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A QUESTÃO DO HIBRIDISMO CULTURAL NA 17ª EDIÇÃO DO FESTIVAL


JOÃO ROCK

Beatriz de Souza Cassão1


Gabriel Henrique Ferreira2
Maria Beatriz R. Prandi3

REUMO: O presente artigo tem como objetivo identificar e analisar se o processo de


Hibridismo Cultural acontece no festival João Rock. O evento cultural é um dos mais
importantes que ocorrem no interior de São Paulo, que em 2018 concentrou um público de
aproximadamente 60 mil pessoas. Para a elaboração do artigo, foi utilizado como
referencial teórico o livro “Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade”, de Nestor Garcia Canclini. Em conjunto, com um estudo de caso e
entrevistas em profundidade com os participantes da 17º edição do evento. Os resultados
da pesquisa apontam que o processo de hibridação cultural pode ser aplicado no objeto de
estudo, pois foi possível identificar onde e como ocorrem os processos de
descolecionamento e desterritorialização que é conceituado e apontado pelo autor.
PALAVRAS-CHAVE: hibridação; cultura; comunicação.

Introdução

No início do século XX, ocorreu nos países latino americanos o fenômeno da


expansão urbana, que dissolveu milhares de comunidades rurais antes dispersas,
concentrando agora essa população em centros urbanos. Isso intensificou o processo
denominado de “hibridação cultural”, termo cunhado e estudado pelo antropólogo
argentino contemporâneo Nestor Garcia Canclini, em seu livro: “Culturas híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade” (2007). Segundo o autor, quando estruturas
socioculturais diferentes se misturam, pode haver o rompimento das barreiras que
separam o que é culto, popular e massivo; e a partir dessa multiculturalidade, estruturas
socioculturais que existiam de forma separada, se fundem gerando uma nova configuração
cultural que pode modificar totalmente grupos e espaços.
Entender e saber analisar de que forma a hibridização cultural acontece na
sociedade é de extrema importância para o campo comunicacional, pois contribui para que

1
Estudante de Graduação do Curso de Publicidade e Propaganda da UNAERP, email: bias.cassao@gmail.com.
2
Estudante de Graduação do Curso de Publicidade e Propaganda da UNAERP, email: gabrielhferreira97@gmail.com.
3
Doutoranda em Psicologia, Processos Culturais e Subjetivação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em
Educação e Bacharela em Ciência da Informação e Documentação pela mesma instituição. Atualmente trabalha com
suporte às disciplinas e cursos a distância da UNAERP. E-mail: mprandi@unaerp.br

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o profissional da área perceba a importância de seu papel social na construção e


reprodução de produtos culturais. Por isso, embasando-se no estudo de Canclini, este
artigo tem como objetivo identificar e discutir a forma como o conceito de hibridismo
cultural pode ser aplicado na estrutura do festival João Rock em sua 17ª edição, que foi
escolhido como objeto de estudo por ser um dos principais eventos culturais que acontece
no Brasil. Além disso, busca-se entender se o evento João Rock, ao prover o encontro de
diferentes culturas, consegue torná-las híbridas.
O referencial teórico foi construído sobre a obra de Canclini, “Culturas híbridas:
estratégias para entrar e sair da modernidade” (2007). Para o estudo de caso, houve a
análise de reportagens jornalísticas e arquivos de mídia da referida edição a fim de
formular um panorama da estrutura sociocultural promovida pelo evento. Os vídeos do
evento que foram usados como base para análise de tudo o que ocorreu foram retirados de
canais do Youtube e estão disponíveis para consulta na internet. O endereço encontra-se
nas referências bibliográficas.
Com o intuito de aprofundar a pesquisa aplicou-se entrevistas em profundidade em
modalidade semi-aberta com o total de dez pessoas que participaram no evento. Tal
metodologia possibilitou uma visão geral e aprofundada sobre o tema ao coletar dos
entrevistados, sua percepção acerca de experiências subjetivas de assuntos pré-
determinados. Ao longo do artigo, alguns trechos serão transcritos e os entrevistados serão
denominados de “sujeito 01”, “sujeito 02”, “sujeito 03”, e assim, sucessivamente.
Este artigo está dividido em quatro partes, na primeira consta, a explicação dos
processos que envolvem o hibridismo cultural proposto por Canclini. Na segunda parte, é
descrito as características gerais do objeto de estudo, João Rock. Em seguida, consta a
análise e interpretação dos dados recolhidos a partir do estudo de caso com base no
referencial teórico.

Hibridismo cultural
Realizar análises socioculturais é uma habilidade que demanda muita
competência, visto que esses temas possuem muitas variáveis. A sociedade é composta por
indivíduos únicos, que mesmo vivendo sob influência de determinadas formas de poder,

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possuem características ímpares que os diferem uns dos outros. Apesar dessa
complexidade, muitos historiadores e antropólogos destinam sua vida para o estudo da
cultura nas sociedades, um destes autores é Nestor Garcia Canclini, antropólogo argentino
contemporâneo, reconhecido como um dos maiores estudiosos em comunicação, cultura e
sociedade na américa latina.
Em sua obra “Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade”,
Canclini caracteriza hibridismo cultural como sendo um processo em que duas culturas
antes distintas se mesclam abrangendo aspectos culturais, econômicos e políticos. O autor
afirma que isso afeta a forma como se produz e reproduz bens simbólicos, o que gera uma
nova configuração cultural. Contudo, o intuito do autor não é verificar se determinada
cultura é híbrida ou não, e sim, entender como ocorrem os processos de hibridização
cultural e como a sociedade se apropria e usa disso, ele também afirma que em tal processo
podem haver limitações, pois há culturas que não se deixam, não querem, ou não podem
ser híbridas (CANCLINI, 2007, p. 40).
Durante sua obra o autor cita várias formas de hibridismo que ocorrem na América
Latina, como por exemplo a configuração cultural do México, em que ocorre uma mistura
de indígenas, colonizadores europeus, criollos, mexicanos nativos e mexicanos migrantes,
que convivem interagindo suas formas culturais e como consequência concede ao México
características culturais únicas e hibridizadas. Sobre esse efeito o autor faz uma
interessante observação:

Os países latino-americanos são atualmente resultado da sedimentação, justaposição


e entrecruzamento de tradições indígenas [...], do hispanismo colonial católico e das
ações políticas educativas e comunicacionais modernas. Apesar das tentativas de dar
a cultura de elite um perfil moderno, encarcerando o indígena e o colonial em setores
populares, uma mestiçagem interclassista gerou formações híbridas em todos os
estratos sociais (CANCLINI, 2008, p. 216-217).

Os processos transitórios são fundamentais para o autor, pois são capazes de


destruir ou construir novas fronteiras. Para elucidar tal fato em seu outro livro "A
globalização imaginada", Canclini faz referência à exposição de arte da artista Yakinori
Yanagi, que usou caixas com areia colorida para formar bandeiras de países. A artista

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utilizou tubos para representar as fronteiras existentes, e então introduziu nesse cenário
formigas que podiam se movimentar dentro das caixas e através delas pelos tubos. Esse
movimento transitório misturou as cores das bandeiras, e também trouxe cores de outras,
até que tal movimento fizesse com que muitas delas se tornassem irreconhecíveis depois
de um tempo. Na obra em questão, as formigas são como as pessoas e seus movimentos
transitórios que podem mudar totalmente a configuração sócio cultural de um país.
(CANCLINI, 2007, p. 48).
Portanto, como um dos fatores que intensificou a hibridação, Canclini aponta a
expansão urbana, pois ela dissolveu as fronteiras geográficas e culturais entre as pessoas
que saíram do campo para morar nas cidades. Tal fenômeno modificou a estrutura social
das cidades gerando um novo espaço capaz de possibilitar que se encontre até mesmo
índios e artesãos que vendem suas formas tradicionais de artesanato usando técnicas
modernas de produção e comercialização tipicamente capitalistas.

Sem dúvida, a expansão urbana é uma das causas que intensificaram a


hibridação cultural. [...] Passamos de sociedades dispersas em milhares de
comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em algumas
regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada
nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta
simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes
nacionais e transnacionais de comunicação. (CANCLINI, N.G, 2007, p. 288.)

Como consequência disso, o tradicional se mistura com o moderno, o que era de


origem popular se mescla com o culto e as novas tecnologias de comunicação possibilitam
que, o que era local e centralizado, se torne massificado. Canclini aponta isso no que diz
respeito a produções musicais quando cita Caetano Veloso e Chico Buarque, “que se
apropriam ao mesmo tempo da experimentação dos poetas concretos, das tradições afro-
brasileiras e da experimentação musical pós weberiana” (CANCLINI, 2007, p. 304). Além
disso, os museus também são citados por Canclini para exemplificar o hibridismo cultural:

Hoje os museus de arte expõem Rembrandt e Bacon em uma sala: na seguinte,


objetos populares e desenho industrial; mais adiante ambientações,
performances, instalações e arte corporal de artistas que já não acreditam nas
obras e se recusam a produzir objetos colecionáveis. (CANCLINI, 2007, p. 303)

Para analisar melhor como ocorre o processo de hibridação, Canclini trabalha com
dois processos que agem de forma combinada e possibilitam traçar não só um panorama

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das novas estruturas culturais, como também da produção e representação de bens


simbólicos. Estes processos são “descolecionamento” e “desterritorialização” (CANCLINI,
2007, p. 302).
A análise e apropriação das culturas sempre foi marcada por “colecionamentos” em
que havia o agrupamento de determinados bens simbólicos que dava origem a
classificações como o folclore e erudito. Todavia, com o entrecruzamento de culturas há o
processo de descolecionamento, em que não mais é possível agrupar bens simbólicos como
utensílios, vestimentas, costumes, linguagens que formavam antes uma caracterização de
determinado tipo de cultura. É sobre estes aspectos que também há a quebra das barreiras
que formavam o que era culto, popular e massivo.
Fotocópias, videocassetes, videoclips e videogames são citados como aspectos
oriundos das novas tecnologias que conseguem proporcionar o descolecionamento, pois
possibilita que as pessoas criem suas próprias coleções particulares por meio de bens
simbólicos de culturas diferentes. O autor também afirma que tal fato ocorre de forma
desigual entre os países centrais que possuem altos investimentos tecnológicos, em
contraposição aos países latinos, onde esse investimento é chamado por Canclini de
“ridículo” (CANCLINI, 2007, p. 308).
O segundo processo, desterritorialização, se dá quando a produção e reprodução
de bens simbólicos acontece fora dos seus locais de origem, como museus e galerias, assim
gerando “a perda da relação "natural" da cultura com os territórios geográficos e sociais”
(CANCLINI, 2007, p. 309). Um exemplo prático disso são as obras de arte utilizadas e
reproduzidas em peças publicitárias, como um anúncio que usa a imagem da Monalisa
para vender uma ideia. Isso quebra o elo do “espaço natural” onde essa pintura
originalmente era apresentada, tornando-a assim, desterritorializada.
Para explicar melhor como isso acontece, Canclini usou como exemplo Tijuana,
uma cidade mexicana na fronteira com os Estados Unidos. Nela há migrações
multidirecionais que dão a essa cidade uma configuração cultural única, à medida que
mescla índios, mexicanos e turistas americanos, e há também a coexistência de dois
idiomas: o inglês e espanhol. Para se estudar os fenômenos culturais de Tijuana, Canclini
pediu que as pessoas fotografassem lugares que representassem a vida e a cultura da

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cidade. Porém, percebeu que dois terços dessas imagens representavam lugares que
estavam além da cidade, como as lojas para turistas, as fronteiras legais e ilegais e
esculturas que caracterizam um passado histórico da cidade. Isso é aplicável à noção de
desterritorialização, visto que a cultura viaja junto com o indivíduo e se mistura à cultura
da cidade que vive. Essas misturas fortalecem os hibridismos e a heterogeneidade das
culturas. Assim, o indivíduo não é caracterizado pelo seu país de origem ou cultura nativa,
mas sim pela cultura adquirida e por onde ele passa e absorve. Tijuana é tão singular e
híbrida que já não é caracterizada por um povo ou cultura dominante, podendo ser
classificada como uma cidade pós-moderna.
Com essa análise, Canclini também percebeu a ocorrência de um fenômeno muito
peculiar que denominou de “reterritorialização”. Ela surge quando as pessoas passam a
querer se colecionar em alguns aspectos para poder se diferenciar do restante, como por
exemplo, os cidadãos de Tijuana que usam certos tipos de roupas para se diferenciarem
dos turistas e migrantes.
Ambos os processos, desterritorialização e descolecionamento, viabilizam o que o
autor designa de entrada e saída da modernidade, entendendo isso como a capacidade de
um indivíduo ser capaz de interagir e mesclar práticas tradicionais com a modernidade já
que isso possibilita que haja a “relocalizações territoriais relativas, parciais das velhas e
novas produções simbólicas. ” (CANCLINI, 2007, p. 309). Por exemplo, um artesão entra na
modernidade quando usa técnicas comunicacionais modernas para reproduzir e vender
sua arte; e sai dela quando produz este bem simbólico por meio de técnicas tradicionais de
produção.
Isso ratifica a noção do autor de que a hibridização cultural, em conjunto com as
tecnologias modernas, torna-se ferramentas democratizadoras da produção de bens
culturais, já que não limita mais que artistas dependam de um determinado local
(desterritorialização) e um público específico (descolecionamento) para conseguir
produzir e comercializar estes bens.
Neste tópico foi tratado a teoria de hibridismo cultural proposta por Canclini,
juntamente com os conceitos de desterritorialização e descolecionamento. No próximo

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tópico, será apresentado o objeto de estudo da pesquisa, o Festival João Rock, e como ele
se consolidou um dos maiores festivais nacionais.

O festival João Rock


O evento foi fundado em 2002 por Luit Marquez e Marcelo Rocci, que sentiam a
carência de um festival de rock no interior de São Paulo, visto que essa é uma região muito
marcada pelos rodeios. O festival acontece anualmente no mês de junho, sendo conhecido
como “O festival de inverno de Ribeirão”. O nome João Rock foi escolhido com referência a
grandes bateristas como João Baroni, dos Paralamas; John Densmore, do The Doors; e John
Bonham, do Led Zeppelin.
Durante a sua história, o João Rock, conseguiu reunir ícones do rock nacional. Tal
encontro, não aconteceu somente no backstage, mas também em cima do palco. A exemplo
disso, em 2007, Caetano Veloso apresentou um show com os Mutantes, o que gerou uma
surpresa inesperada por parte do público. Esse tipo de encontro também aconteceu outras
vezes, desde o Rock até outros gêneros, como a MPB, forró, hip hop, rap e pop. Segundo
Leandro Reis, gerente de projetos do festival, afirma que durante 17 anos de existência,
“foram cerca de 30 encontros marcantes”, em uma entrevista concedida para o G1.
Em 2016, como uma ferramenta de marketing para uma campanha de venda, foi
lançada a imagem do Camaleão, que devido à alta receptividade do público, se tornou a
mascote oficial do evento. Este animal por si só já é símbolo de adaptação. Tal aspecto
também foi levado em consideração na escolha da mascote, como apontado por Paulo
Neto, coordenador comunicacional, em entrevista para o site Terra:

O camaleão se transforma de acordo com o ambiente, mas continua sendo o


camaleão. E é dessa forma que enxergarmos a cena do rock nacional e todos seus
subgêneros. Nosso slogan da campanha institucional traduz muito bem isso: 'A
música se transforma, a cena se reinventa. E, consequentemente, o próprio
Festival. (DINO, 2017)

Logo, percebe-se que o objetivo do evento era de transparecer a ideia de um lugar


de "Paz, música e diversão" no interior paulista. Desde sua fundação, o evento utiliza
elementos para transmitir isso, seja na escolha das bandas, local do evento, parceiros e
patrocinadores e até a mensagem contida nas ferramentas de comunicação. Com isso, a

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partir dessas informações sobre o objeto de estudo, no próximo tópico será analisado se o
conceito de hibridismo cultural pode ser aplicado na 17ª edição do festival João Rock para
verificar quais aspectos apontados por Canclini acontecem no evento.

O Hibridismo Cultural No João Rock

A 17ª edição do festival aconteceu no dia 09 de julho de 2018 e teve duração de


aproximadamente 12 horas. Dentre os artistas que se apresentaram, o palco principal,
intitulado "João Rock", era composto por renomados artistas da música nacional: Cordel do
Fogo Encantado, Supercombo, Raimundos, Skank, Pitty, Natiruts, Gabriel O Pensador,
Criolo e Planet Hemp. O evento também destinou um palco para bandas que estão
iniciando sua carreira, chamado "Fortalecendo a Cena", e trazia artistas e grupos como
Kilotones, Dônica, Sinara, Rael, Froid e Francisco El Hombre.
Todos os anos o evento traz algum tema principal para ser abordado, e nesta edição,
o palco “Brasil” teve como mote principal os “50 anos da tropicália”. Para essa celebração,
contou com a presença de Gilberto Gil, Os Mutantes, Caetano Veloso e Tom Zé, que fizeram
parte do tropicalismo, movimento este, que fundiu diversas matrizes musicais, como
afirmam Fisher, Fabrício e Carvalho:

O tropicalismo baseou-se em várias fontes: a formação literária dos neoconcretistas, e nas


obras de Carlos Drumond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre outros.
Também se inspirou nos ritmos regionais, nas manifestações folclóricas, na música
urbana, nos Beatles, em Bob Dylan, no jazz, na Bossa Nova e música de vanguarda
(Movimento de Música Nova); na obra da artista plástica Ligia Clark e na pop-art.
(CARVALHO, V. A. A. T.; FABRÍCIO, O.; FISHER, C. J., 2003, p.140)

A partir das perspectivas de Canclini, observa-se que o palco Brasil é um dos


principais pontos a serem analisados, já que, reúne artistas da tropicália em um evento que
teve suas origens no rock. Isso contribui para que esta edição fosse marcada pela nítida
mistura de gêneros musicais, como apontado por Marcelo Rocci em uma entrevista
concedida ao site Uol.

Existe uma sinergia entre os ritmos e os subgêneros que abraçamos no evento com
o público do rock. Neste ano, essa expectativa de promover a diversidade e o
encontro foi superada com a homenagem à Tropicália. Acreditamos que um

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evento com esse DNA tem o papel de fortalecer, revelar e ampliar todas as
possibilidades do rock. (ROCCI. G, 2018)

De todo modo, faz-se necessário uma análise mais aprofundada sobre


determinados acontecimentos que ratifiquem que a hibridação esteja realmente presente.
Para isso, pode-se citar o show dos Mutantes, uma banda brasileira de rock psicodélico que
abriu o palco Brasil fazendo uma apresentação com base nos seus maiores sucessos.
A música “El Justicero” é um exemplo de hibridismo, pois entre as estrofes da
canção há a mistura de dois idiomas: o inglês e o espanhol. Outro acontecimento que
merece destaque foi o show de Caetano Veloso em conjunto com seus filhos, Moreno, Zeca
e Tom. Apesar de apresentarem um repertório voltado ao MPB, uma das músicas fugiam
deste segmento. É o caso de “Alexandrino”, composta por Caetano que faz a mistura do
samba, mpb e funk, logo, é nítido que sob estes aspectos houve, como afirmado por
Canclini, a dissolução das barreiras entre culto, popular e massivo. O movimento
“Alexandrino”, que dá nome à música, é um tipo de composição gramatical que marca a
literatura romântica no Brasil, considerada cultura culta, mas na música de Caetano há a
mistura de instrumentos típicos de ritmos de samba com a batida do funk. Durante a
performance, um dos filhos, o Tom, levanta e começa a dançar alguns passos de funk e
ganha a participação do público através das palmas que acompanhavam a música. Outro
momento marcante do show foi seu encerramento com um cover de “Tá escrito”, do Grupo
Revelação. Em uma única apresentação, o público pode ir da MPB ao pagode, passando
pelo funk.
Em função disso, pode-se perceber que esses acontecimentos proporcionam ao
espectador desse show a possibilidade de entrar em contato com ritmos diferentes e
vivenciar a hibridação. As performances também ganham importância na medida em que
os artistas não se limitam apenas em um único estilo, pois cada apresentação é composta
por um setlist em que misturam diversos aspectos culturais, permitindo que as limitações
entre o que é culto, popular e massivo sejam assim quebradas, ratificando assim a teoria
de Canclini no que se diz respeito aos processos de descolecionamento.
O processo de descolecionamento também pode ser visto na apresentação da
cantora Pitty, no momento em que realiza a performance da música “Contramão” para isso

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a cantora convidou Tássia Reis e Emmily Barreto, que também participaram da


composição da música. Essa performance uniu aspectos de 3 gêneros musicais, que foram:
rock, pop e rap, além disso, na performance também houve partes da música que era em
inglês, fazendo com isso uma mistura também de idiomas.
Outro momento foi a performance de um medley de “Run the World (Girls)” da
Beyoncé, “Agora só falta você” da Rita Lee e “Maria da Vila Matilde” de Elza Soares. Logo, é
possível classificar esse momento como “descolecionador”, pois há a mistura de dois
gêneros musicais, sendo o pop e a MPB, em um cover que trazia artistas nacionais
consagrados e internacionais emergentes sendo apresentados por uma dupla de cantoras
de rap em conjunto com a Pitty, umas das principais artistas do rock nacional.
Em relação ao público do festival, o descolecionamento aconteceu à medida que os
próprios espectadores migravam de um palco para o outro, comprovando o que Canclini
afirma que cada indivíduo pode construir sua coleção particular de bens culturais
(CANCLINI, 2007, p. 304). É o caso do sujeito 02, que assistiu a performance de um artista
que não tem o costume de ouvir: “... o Gilberto Gil, [...] não é algo que eu tenho na minha
playlist, mas eu passei pelo show e fiquei um pouco”. Outro aspecto pode ser visto na forma
de se vestir de cada indivíduo: vestimentas, adereços e penteados. Por meio das fotos e
vídeos do local, é visto um cenário composto por pessoas vestidas das mais variadas
formas: trajes escuros, claros, camisetas de banda, fantasias, roupas estampadas e
adereços que se assemelham a um determinado tipo de cultura, como na Imagem 01.

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Imagem 01 - 17ª Edição do João Rock.

Fonte: João Rock. Disponível em: <https://www.joaorock.com.br/fotos/joao-rock-2018> Acesso em 20 de


Setembro de 2018.

Ao analisar a foto, o processo de descolecionamento é visto no indivíduo que utiliza


um chapéu tipicamente nordestino carregando uma bolsa com estampa jamaicana, típico
do estilo musical do reggae. Ao mesmo tempo, acontece o processo de desterritorialização
quando ele utiliza dois acessórios que não são do local em que ele está. O mesmo acontece
com a garota que está ao seu lado, vestida com roupa tradicionalmente norte-americana,
com um moletom amarrado em sua cintura e jeans; e do outro lado, uma garota com
"dread", estilo de penteado de origem africana.
É por meio do processo de desterritorialização que tanto as pessoas como as formas
de produção e reprodução de bens culturais deixam seu lugar de origem e mesclam-se com
outros, permitindo que novas estruturas socioculturais sejam criadas. A quantidade e a
origem do público participante do evento colaboram para que haja os processos de
hibridação, já que grande parte dos participantes do evento são de outras cidades do
interior de São Paulo e de Minas gerais e até mesmo de outros Estados, como é afirmado no
site oficial do evento. (João Rock, 2017). Isso proporciona o encontro de migrantes de
diferentes partes do Brasil, que saem de suas cidades e carregam consigo culturas
diferentes e promovendo nitidamente uma mistura de sotaques, costumes e tradições.
Além dos 3 palcos, há no evento atrações que também são desterritorializadas, como a

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presença em todas as edições do evento de uma pista de Skate, está que está fora de seu
local de origem pois está inserida dentro de um evento musical. Tal fato evidencia as
diferentes maneiras de se aplicar o conceito de desterritorialização no João Rock.
Como consequência da hibridação, Canclini aponta o processo de democratização
da produção de arte, e tal fato é percebido por meio do "Concurso de Bandas" que o João
Rock promove. De acordo com o site de notícias G1, as inscrições são realizadas pelo site, o
qual bandas independentes de diversas cidades e estados do Brasil podem se inscrever. O
prêmio para o vencedor do concurso é o de poder abrir as apresentações do Palco Principal,
que pode aumentar a visibilidade daqueles artistas no cenário musical. Além disso, o palco
"Fortalecendo a Cena" também é um espaço democratizador da arte, pois reúne em um
mesmo espaço, bandas novas que tem ganhado espaço no cenário independente. O Hip-
hop de Rael, o Rap de Froid, a música tradicional com ritmos folclóricos e de Pop Rock de
Francisco del Hombre, o rock argentino de Dônica, o rock de Kilotones e a mistura de Rock,
pop e reggae de Sinara faziam parte deste grande leque cultural que permitiu representar e
dar mais abertura para diferentes culturas.
Assim, com base nos conceitos estudados neste artigo, das análises do estudo de
caso e das entrevistas em profundidade, no próximo tópico será necessário verificar se o
objetivo proposto foi atendido e se alguma das hipóteses traçadas para a problemática foi
corroborada: o festival João Rock, ao promover o encontro de diferentes culturas, consegue
torná-las híbridas?

Considerações finais
Por conta da variedade de gêneros musicais e da diversidade de elementos
culturais distintos em um mesmo ambiente, visto por meio dos processos de
desterritorialização e descolecionamento, é possível comprovar que o conceito de
hibridismo cultural pode ser aplicado no evento. Isso também é notado pelos
entrevistados, que possuem um ponto de vista em comum acerca da mistura de culturais
que compõe as atrações musicais e o público do evento. Entretanto, existe certa divisão de
opiniões entre os entrevistados, quando questionados se o festival João Rock consegue
tornar essas culturas híbridas. Observou-se que uma parcela dos entrevistados não acha

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que o hibridismo cultural aconteceu no festival, em contraposição a outra parte dos


entrevistados que acha que o processo ocorreu.
No caso do Sujeito 03, ele enfatiza que cada gênero musical por si só já é carregado
de uma mistura cultural. Porém, acredita que o hibridismo cultural não aconteceu de fato
entre as pessoas, pois não percebeu uma interação entre elas devido a semelhança entre o
público que compõe o evento: “[...] pela galera em si, eu não consegui ver, pode até haver,
mas o público é muito semelhante então não há tanta mistura, não chega a ser uma coisa
muito nítida e fervorosa. ” Já o Sujeito 01, declara que por experiência própria, já teve o
contato com diferentes culturas em outras edições do evento, deixando-se absorver novos
conhecimentos. Acredita que isso aconteceu devido ao fato dele mesmo deixar-se
hibridizar, e não pelo evento proporcionar ou não um ambiente híbrido.
Já teve ano que fui no festival e me perdi da minha turma, conheci pessoas novas e foi
maravilhoso, muito bom, [...] com amigos novos, com várias coisas diferentes. E já teve ano
que eu fui que não foi tão legal, [...] por causa da experiência cultural que eu tive, não por
causa da organização ou do hibridismo cultural proporcionado.

No caso do Sujeito 02, o festival, de certa forma, acrescentou para sua formação
cultural, mas não necessariamente trouxe uma mudança. Para ele, “...acrescentou o modo
de eu olhar os grupos em si." Para o Sujeito 03, foi a 1ª vez que esteve no evento e gostou
muito, mesmo não sendo seu tipo de evento preferido e até acabou se misturando com
outras pessoas.
Em virtude do que foi mencionado, é possível afirmar que, apesar do evento reunir
diversas culturas e proporcionar aspectos culturais híbridos, o hibridismo só acontece, de
fato, quantos os participantes permitem serem “hibridizados”. Isso já era observado por
Canclini a respeito das limitações no hibridismo, quando diz que há culturas que não se
deixam, não querem, ou não podem ser híbridas (CANCLINI, p. 40). Considerando também
que cada indivíduo já vai ao evento com o intuito de assistir e participar das atrações em
que mais lhe interessa, é possível afirmar que para o hibridismo cultural acontecer,
depende exclusivamente do indivíduo, que pode ou não assistir outras apresentações,
interagir com outras pessoas e participar de forma ativa.
Com isso, é possível perceber a importância de estudar e analisar o tema de
hibridismo cultural no campo da comunicação, pois permite que o profissional da área

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IN REVISTA | UNAERP | p. 58

tenha um novo olhar sobre a sua atuação em produções culturais, tais como o João Rock.
Isso porque, tendo em vista a complexidade de se caracterizar um determinado público
alvo, já que, atualmente, não existem barreiras que separam o que é culto, popular ou
massivo, como apontado pelo autor. Levando isso em consideração, surgem outras
questões outras questões, como por exemplo, de que forma o profissional de comunicação
consegue realizar a determinação do público alvo de uma produção cultural tendo em vista
os processos de desterritorialização e descolecionamento.

Referências

CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4º ed, São Paulo:
EDUSP, 2007.

_______. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003.

CARVALHO, V. A. A. T.; FABRÍCIO, O.; FISHER, C. J. O movimento tropicalista e a revolução estética.


Cad. de Pós-Graduação em Educ., Arte e Hist. da Cult. São Paulo, v. 3, n. 1, p. 135-159, 2003.

Sites:

A Munganga Promoção Cultural. Os Mutantes no João Rock 2018. Disponível em


<https://www.youtube.com/watch?v=qrO6qIuz-uw&t=194s > Acesso em 15 de julho de 2018.

A RÁDIO ROCK. João Rock 2018 - 89 A Rádio Rock. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=EY3kg_4CJqc> Acesso em 12 de julho de 2018.

_______. João Rock 2018 - Palco Fortalecendo a cena. Disponível em


<https://www.youtube.com/watch?v=LbVHNEOb2fk&t=5494s> Acesso em 12 de julho de 2018.

DINO. TERRA. Público do Festival João Rock transforma Camaleão em mascote. Disponível em:
<https://www.terra.com.br/noticias/dino/publico-do-festival-joao-rock-transforma-camaleao-em-
mascote,6ff7ee95ecc3559fb41590a9320f577bx2xmaann.html> Acesso em 20 de setembro de 2018.

FOLHA DE SÃO PAULO. Festival João Rock, em Ribeirão Preto, homenageia os tropicalistas.
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/06/festival-joao-rock-em-ribeirao-
preto-homenageia-os-tropicalistas.shtml> Acesso em 11 de Setembro de 2018.

TIENGO, Rodolfo. Há 15 anos, festival ganhou nome de João Rock em tributo aos bateristas.
Disponível em <http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/musica/joao-
rock/2015/noticia/2015/06/ha-15-anos-festival-ganhou-nome-de-joao-rock-em-tributo-aos-
bateristas.html> Acesso em 13 de Setembro de 2018.

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