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PEDAGOGIA COMO CIENCIA DA EDUCAGAO, COLEGAO ENTRE NOS PROFESSORES Esta colegdo se propde a publicar obras que estejam relacionadas com as necessidades presentes na vida das instituigdes educacionais, dos professores ¢ dos alunos, buscando contribuir com a mudanga educacional, a inovagao pedagdgica e a renovagdo diddtica. E pretende fazé-lo abordando as raizes politica, teérica, epistemolégica e metodolégica que embasam o fazer educativo. Em meio a efervescéncia que tem caracterizado 0 mercado editorial no ambito da educagdo, acreditamos haver espago para um conjunto de obras voltado para a consolidagao de bases tedricas que, elaboradas com base em pesquisas da pratica educativa, a ela se voltem, subsidiando a construgdo de novas praticus. Especificamente, os livros desta colegdo trazem contribuigdes das pesquisas nos campos da Pedagogia, da Diddtica e da Formagao de Professores e se dirigem aos pedagogos e aos professores em formagdo inicial e continua, aos que atuam nas instituigées escolares e ndo-escolures e aos pesquisadores que 1ém a educagao, como pratica social, por objeto de andlise. Acreditamos que 0 acesso ao conhecimento critico e reflexivo, bem como o seu debate, sdo us buses para que os educadores tenham a possibilidade de reivindicar sua prépria prdtica, na diregao de uma educagao com qualidade social para todos. Selma Garrido Pimenta Maria Isabel de Almeida Coordenadoras MARIA AMELIA SANTORO FRANCO, PEDAGOGIA COMO CIENCIA DA EDUCAGAO “PAPIRUS EDITORA Capa: Femando Comacchia Foto: Rennaio Testa Editoragso letrénica: MZ Editoragéo Coordena¢ao editoriat Beatriz Marchesini Copidesque: Maria Lacia A. Maier Rovizdo: Margareth Siva de Oliveira ‘Solange F. Penteado Tals Gaspareti Dados Internacionals de Catalogago na Publicacdo (CIP) (Camara Brasiisia do Livro, SP, Bras) Franco, Maria Améia Santoro Pedagogia como cidncia da educagao / Maria Amelia Santoro Franco, - Campinas, SP : Papirus, 2003. ~ (Coleco Entre Nos Professores) Bibliogratia ISBN 85-308-0707-3 1. Edueagdo - Filosofia 2, Pedagogia 3. Pritica de ensino 4. Professores ~ Formac3o Profssional |. Titulo. Série. 03-0957, co Indices para catilogo slstematico: 1. Pedagogia : Educaglo 370 Proibida a reprodugao total ou parcial dda obra do acordo com a loi 9.610/98. Editora afllada 4 Associagso Brasitira dos Direitos Reprograficos (ABOR) DIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUESA: MR. Comacchia Livraria ¢ Edtora Lida. - Papirus Editora Foneltax: (19) 3272-4500 - Campinas - Sao Paulo - Brasil E-mail: editora@papirus.com.br ~ www.papltus.com.br Dedico este livro 4 meméria de meu pai, Zequinha, que soube ser, na vida cotidiana, um grande pedagogo. AGRADECIMENTOS Agradeco & professora doutora Selma Garrido Pimenta, que orientou desde o inicio o presente trabalho, incentivando- me a aprofundar as reflexes referentes ¢ mantendo-me atenta ¢ perseverante em meu papel de pesquisadora. ‘Agradeso também seu empenho em coneretizar a publicagio da tese neste livro. SUMARIO PREFACIO..... APRESENTAGAO ooeseoeseessesen .13 1, CAMINHOS HISTORICOS DA PEDAGOGIA.. 19 Pedagogia: Ciéncia ou arte?. Pedagogia como ciéncia .. A pedagogia entre filosfia e ciencia Compreensées da histbria da pedagogia como citncia da educasao.. 2. A PEDAGOGIA COMO CIENCIA DA EDUCAGAO, A especificidade do objeto de estudo da pedagogia A pedagogia como ciéncia da educagio A metodologia formativo-emancipatiria .. 3, PEDAGOGO: CIENTISTA EDUCACIONAL? Formagao de pedagogos: Reflexdes iniciai: Formacao de pedagogos: Expaco aberto Formato de pedagogos: Mediates necessdrias REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS .. PREFACIO Atualmente estamos enfrentando um paradoxo na area da educagao, quer no Brasil, quer na Franca (onde leciono), e provavelmente no mundo inteiro. Por um lado, dizem que a educacio se tornou o assunto mais importante para o presente ¢ o futuro das nag6es, mas, por outro, constata-se uma escassez de recursos nessa rea, e quando o FMI negacia com um pais, dessas negociagdes quase sempre decorre um corte no Orgamento educacional. Em relacio & formacao de docentes, estudos ¢ pesquisas realgam a importancia e a necessidade de transformagées profundas nesse Processo, mas, 11a prdtica, so poucas as mudangas que se concretizam e continua-se formando os professores as cegas — para falar a verdade, muitas vezes faz-se de conta que se formam os docentes! Nao se sabe mais qual deve e pode ser 0 modelo de formacio deles. Serd que a soluigio se encontra na “profissionalizagao” ou nas novas técnicas de informagao e comunicagao, ou ainda na formagio universitéria, que transmite aos docentes os saberes desenvolvidos pelas ciéncias da educagio? Por nao saber como resolver esse problema, juntam-se varios meios de formagao Pedagogia como ciéncia da educagio 9 em centros ou institutos chamados de universitérios, sem nenhuma perspectiva suficientemente ampla e ambiciosa. Quem pode e deve ser hoje o formador de docentes? ‘Aos poucos a figura do pedagogo esta desaparecendo do palco da formagio, pedagogo este que foi historicamente encarregado desta. Esse pedagogo nfo tem sido, historicamente, apenas um docente, nem um pesquisador, mas um profissional reflexivo. Como defini-lo hoje? Como o especialista em pedagogia? Mas a pedagogia também esta desaparecendo a0s poucos. Este € 0 problema que Maria Amélia Santoro Franco estd levantando com coragem no presente livro. Para tanto, ela péde se apoiar numa histéria pessoal rica e diversificada no dominio da educagio: foi docente, diretora de escola, € pedagoga, formadora de docentes e também é doutora em educagio. Este livro tem rafzes em sua experiéncia ¢ numa recente tese dedicada a questao da pedagogia. E com base nessa pesquisa que a autora defende, com convicgao, a idéia de que a pedagogia deve ser a ciéncia da educagao que a nossa época estd precisando. As idéias fundamentais que norteiam este livro sao as seguintes: 1) A formagao dos docentes precisa ser norteada, esclarecida e alimentada por uma ciéncia. 2) Outrora a pedagogia cumpriu esse papel, mas, aos poucos, a exigéncia para que se organizasse cientificamente, dentro dos pressupostos da ciéncia moderna, impediu que ela fosse exercida em sua especificidade histérica, Caiu na armadilha da definigao classica da racionalidade e da cientificidade. “Ao se constituir como ciéncia, dentro dos pressupostos epistemolégicos da ciéncia classica, néo encontrou espago de significagao e assim foi perdendo contato com a especificidade complexa de seu objeto de estudo”. Sendo assim, outras ciéncias apropriaram-se das pesquisas sobre a educagao, descaracterizando e fragmentando esse objeto. Dessa sicuagio decorreu uma desconexdo entre teoria e pratica, saberes cientificos e saberes pedagdgicos. Nao so apenas idéias que Maria Amelia 10 Papirus Editora Santoro Franco esté apresentando neste assunto; ¢ mesmo uma histéria da pedagogia referendada por nomes famosos (Herbart, Hegel, Dilthey, Pestalozzi e os demais). Desse modo, seu livro vale também como histéria intelectual da ‘pedagogia e jé constitui, em si mesmo, um precioso instrumento para a formacio dos pedagogos e dos docentes. 3) Deve-se redefinir a pedagogia com base numa outra episte- mologia. Penso que, segundo a autora, pode-se resumir as principais caracteriscicas dessa nova pedagogia da seguinte maneira. A pedagogia é voltada para a praxis educativa e “para atender 3 especificidade da praxis, ha que ser uma ciéncia que se alimente da praxis e sirva de alimento a ela”. “Tera por finalidade o esclarecimento reflexivo e transformador da praxis educativa”, Evidentemente, nutrir-se-4 também dos saberes criados pelas demais ciéncias que pesquisam a educagao. Deve ainda ser uma ciéncia “critico-emancipatéria”, “de forma que a educagao consiga concretizar sua vocagao histérica de humanizar a humanidade, de diminuir as praticas excludentes ¢ injustas”. Enfim, o pedagogo “dever ser pesquisador por exceléncia”. Na verdade, a pesquisa deve se tornar a base da formacio nio apenas do pedagogo, mas também do préprio docente: “todos os envolvidos na pratica reflexiva precisam constituir-se em investigadores no contexto da pritica”. Por certo, o leitor j4 compreendeu que Maria Amélia Santoro Franco estd propondo, neste livro, uma profunda mudanga. Algumas de suas preocupagées também sio preocupacées minhas. Na Franga, 0 foco dos debates nao ¢ a pedagogia, mas a questéo das ciéncias da educagio. Alguns pensam que as ciéncias da educagio ndo podem ser senao plurais, isto ¢, que a propria idéia de uma ciéncia da educagao nio pode ser aceita. Desse modo, “ciéncias da educacao” remetem a uma drea organizacional da universidade, mas nio podem remeter a uma ciéncia com especificidade epistemolégica. Nao concordo com essa abordagem; acredito que as chamadas “ciéncias da educagéo” constituem uma area especifica, em que as varias ciéncias voltadas para a educacao Pedagogia como ciéncia da educagao 11 podem trocar questdes € conceitos. Mas essas trocas sé me parecem possiveis quando as ciéncias da educagio passarem a preocupar-se de forma constante com as priticas (as préprias praticas, as que se encontram no dia-a-dia da sala de aula) e com os fins da educagdo, inclusive os fins polfticos. A meu ver, a pesquisa educacional deve ser um fluxo reflexivo de questées, experiéncias e saberes de varios tipos, fluxo este que relaciona as varias ciéncias voltadas & educagdo e relaciona também os saberes, as praticas e as politicas educacionais. £ claro que essas idéias convergem bastante com as desenvolvidas por Maria Amélia Santoro Franco no presente livro. Seja qual for a abordagem em relacao 4 ciéncia ou as ciéncias da educagéo, a pesquisa sobre a formacio dos docentes deve estar sempre relacionada com a produgao de saberes, com a reflexao sobre o homem, com a vida, com a sociedade e, acima de tudo, com a acéo transformadora. Nio é casual 0 fato de que eu, em minhas pesquisas, realce 0 problema da relacao com o saber, que considero ser um conceito central a formagio dos docentes, e que Maria Amélia Santoro Franco reforce a idéia de que a pesquisa deva ser 0 eixo predominante na formagio do pedagogo e do docente. Nos dois casos, trata-se de entender melhor o mundo e, concomitantemente, transformé-lo. Tarefa que sabemos nao ser facil! E certo. E por isso que vale a pena refletir € agir. E por isso para isso que vale a pena ler o livro de Maria Amélia Santoro Franco e refletir sobre as idéias que ela estd nos oferecendo. Bernard Charlot Professor na Universidade Paris 8 12 Papires Editora APRESENTAGAO A discussao da problemdtica da pedagogia, colocada com muita anfase entre educadores e pesquisadores brasileiros, em meados da década de 1990, ainda esed presente, com toda intensidade, requerendo respostas convincentes, Corajosas e urgentes. Em nossos ouvidos de educadores ainda ressoam, sem respostas, as perguntas colocadas, com muita pertinéncia, nos titulos de livros de dois importantes educadores: Pimenta, em 1996, nos convocava a refletir, perguntando Pedagogia, ciéncia da educagio?, e, dois anos depois, Libaneo (1998) ampliava a questo com 0 titulo instigante de seu livro Pedagogia e pedagogos, para qué? Perguntas téo importantes € que, no entanto, ainda estzo aguardando novas respostas. As discuss6es a respeito dessa problemdtica ampliam-se no meio dos educadores, surgem divergéncias ¢ as controvérsias renovam-se, principalmente desencadeadas pela legislacio em vigor que, ao estabelecer as diretrizes e bases da educagio nacional, por meio da LDB 9.394/96, criaa figura dos Insticutos Superiores de Educagao, para responder, junto Pedagogia como ciéncia da educago 13 com as universidades, pela formagao de docentes da educagao basica. Essa legislagao cria também o Curso Normal Superior, que deverd se responsabilizar pela formagéo de docentes da educagdo infantil e das séries iniciais do ensino fundamental. Tal legislagdo, em seu artigo 64, estabelece duas instancias alternativas para a formagao de profissionais da educacio, nas tarefas de planejamento, inspegao, supervisao € otientagio educacional para a educagao basica: ou a graduacZo em pedagogia ou em pés-graduagio. Os dados impostos pela legislag4o passam a exigir movimentos e tomadas de posigao perante a reformulagao dos cursos de formagao de educadores, intensificando, mais uma vez em nossa histéria da educacio, a presenga de uma palpavel possibilidade de extingéo dos cursos de pedagogia. Esse momento histérico produz muitas inquietacoes, especulagdes e induz educadores a novas e profundas reflexdes. Parece chegada a hora de grandes definig6es. Tem-se a sensagao de que, em termos educacionais, nada mais pode ser adiado, nem as decisdes podem continuar sendo superficialmente tomadas. Ha que se encontrar respostas para outras circunstancias emergentes que estao exigindo respostas e decisGes educativas: a ampliagio dos espacos educativos para além dos muros da escola é uma realidade incontestdvel; as novas e complexas formas em que se estabelecem as relagdes de trabalho estao a demandar novos meios ¢ espacos de formagao dos jovens; as conseqiéncias sociais decorrentes da internacionalizacao da economia, entre outros fatores, exigem o repensar do papel da pedagogia, na diregao da construgio de novas mediagées sociais e politicas, com vistas a um projeto de futuro digno, as novas geracbes. Aprofundar, compreender, tentar interpretar a complexa epistemologia da pedagogia poderd ser um inicio de caminho para o encontro de respostas mais adequadas aos desafios que esto postos. 14° Papirus Editora Buscar respostas a essas questdes tem sido para mim um desafio constante, nos quase trinta anos de meu exercicio militante como pedagoga, em diversos espacos e contextos educativos. E visando oferecer reflexes na busca de respostas a tais questées contextos atuais que este livro pretende oferecer sua contribuigao. O percurso reflexive que empreendi nesses anos de pedagoga culminou em minha tese de doutoramento (Franco 2001), onde discuto a problematica do campo conceitual da pedagogia, nas mediagées histéricas entre praxis e epistemologia, em direcdo as suas possibilidades e perspectivas como ciéncia da educagio. Os frutos sintetizados dessa tese encontram-se reorganizados no presente livro. Nos posicionamentos que coloco a discussao dos leitores, reforgo a especificidade da ciéncia pedagégica no sentido de buscar suporte reflexivo ¢ critico a pratica educativa, na intencdo de encontrar alternativas que possam efetivar a fungao social da educagio como inscrumento de humanizagao da sociedade. Para oferecer respostas & questao da identidade epistemoldgica da pedagogia, procurei retornar ao principio da ciéncia pedagégica, refazendo alguns passos de seu caminhar histérico, olhando seu trajeto em diferentes locais, para tentar compreender as rupturas que foram ocorrendo em seu caminhar. Busquei retornar e perceber as contribuigées que essa ciéncia foi oferecendo a estruturagio dos saberes pedagdgicos em diversos tempos e espacos histéricos, bem como tentei compreender as mediagées historicas que foram ocorrendo entre sua organizagio teérica € suas prdticas investigativas. Minhas reflexées tiveram a finalidade de retornar a outros tempos € espacos para tentar avangar no impasse em que nés, educadores, nos encontramos hoje ¢ que nos impede de termos respostas consistentes a questées fundamentais, tais como: o que pode e deve ser hoje a pedagogia? A que necessidades sociais ela deve responder? A que especifico objeto deve Pedagogia como ciéncia da educagao 15 focar sua agéio? De que métodos de investigagdo precisard se utilizar, para tornar pertinente sua agdo, no sentido de concretizar seu papel social? Sem respostas a tais questées fica dificil trabalhar. Como se pode, por exemplo, organizar um curso de pedagogia sem ter respostas consensuais, cientificas € aprofundadas a essas quest6es? Como fazer frente as investidas oficiais que insistem em demonstrar a desnecessidade da pedagogia sem ter clareza de seu especifico epistemoldgico? A quem destinar a formacdo de docentes, se nao houver uma ciéncia com saberes consistentemente estruturados a dar suporte aos pressupostos formativos desejados? Proponho que as indagacées por que ndo ser a pedagogia a ciéncia da educacao? Por que nao considerd-la a ciéncia que estuda, compreende, esclarece, transforma e orienta a praxis educativa? permeiem o livro como eixo reflexivo. Com essas questées pretendo, neste trabalho, abrir espago para que novos parceiros ampliem e aprofundem a reflexao aqui empreendida, na esperanga de ver esforcos se juntarem, de modo livre, generoso € ousado, na reconfiguracao da “profissio pedagogo”, na formagio de investigadores da educagao, de professores critico-reflexivos. Quero ter a esperanga de que a pedagogia ainda vai cumprir seu ideal e desejo apostar que o rigor cotidiano da reflexdo pedagdgica poderé requalificar a praxis educativa, na perspectiva de superagio dos complexos problemas que tém, historicamente, impedido a educacio brasileira de se exercer na direcdo da organizagio e na construgo de alternativas que emancipem nossa sociedade dos mecanismos perpetuadores das condigées de exclusao, injustos e alienantes, impostos 4 nossa sociedade. O livro esta estruturado em trés capitulos: No primeiro capitulo - “Caminhos histéricos da pedagogia” — discuto os caminhos histéricos da pedagogia enfocando que, historicamente, ela foi tratada quer como arte da educasio, ciéncia da educagao ou ciéncia da arte educativa e que essa triplicidade conceitual 16 Papirus Editora origindria pode estar, desde entéo, configurando as bases da indefinigao de sua epistemologia, que a marcard em seu percurso histérico até os dias acuais. Aborda ainda as diferentes configuragées que a pedagogia cientifica foi vomando ¢ culmina com a consideragao de trés grandes concepgées que a marcaram: a pedagogia filos6fica; a pedagogia técnico- cientifica e a pedagogia critico-emancipatéria. No segundo capitulo ~ “A pedagogia como ciéncia da educagao” - busco organizar as bases dessa ciéncia, analisando a especificidade de seu objeco ¢, em decorréncia, aprofundo os sentidos conceituais politicos da praxis educativa, da praxis pedagégica, buscando superar a dualidade entre arte ¢ ciéncia da educacio, para configuré-la como a ciéncia que transforma o senso comum pedagégico, a arte intuiciva presente na praxis, em atos cientificos, sob a luz de valores educacionais, garantidos como relevantes socialmente, em uma comunidade social. No terceiro capitulo — “Pedagogo: Cientista educacional2” — discuro as alternativas de formagao do profissional de pedagogia e realgo as possibilidades de formacao de um profissional critico da praxis educativa, investigador por exceléncia, em contraponto 4 formagio do professor critico € reflexivo, que deve se organizar a partir de toda complexidade da praxis educativa e das demandas do mundo contemporaneo. Actedito que as idéias postas em discusséo neste livro possam oferecer subsidios ao debate hoje enfrentado pelos educadores brasileiros que, pressionados pela nova legislacao educacional, rém tido a necessidade € a urgéncia de aprofundar reflexdes e decisdes a respeito da formacao de educadores. Actedito ainda que esta proposta possa contribuir para enriquecer o debate referente a necessiria formagao de professores, de forma inicial e continua, dentro dos principios da racionalidade critica, emancipatéria, Pesquisas ¢ estudos sobre o processo formative docente estéo requerendo procedimentos cientificos, saberes fundamentados, metodologia propria, de forma a se construir um corpo de referéncias, de conhecimentos, de procedimentos, que venham a fazer dessa nova Pedagogia como ciéncia da educagao 17 linha de pesquisa néo mais um modismo educacional, mas uma forma de reconstruir caminhos consistentes para a educago, superando as histéricas mazelas que redundam nas questées de fracasso escolar, de inadequagio da escola e na desvalorizagio da pedagogia. Mais uma vez eu pergunto e deixo mais estas indagagées como eixos reflexivos: se ndo é a pedagogia, como ciéncia da educagio, a condutora e a operacionalizadora desse movimento de formagio de professores reflexivos, qual outra ciéncia pode assumir esse papel? E ainda pergunto: diante dos enotmes problemas da complexidade da prética educativa, qual outta alternativa a se tomar sendo a proposta dessa nova racionalidade critico-reflexiva em relagao a formagao de professores? E como transformat essa proposta em projeto educacional? Quem poderd assumir a condugio desse projeto sendo a pedagogia? Actedito que nds, pedagogos, precisamos investir com coragem na reinvengio de nossa profissio. Se neste momento histérico nao quebrarmos antigos paradigmas e nio soubermos reinventar 0 novo, perderemos, talvez, a possibilidade de humanizat as praxis educativas e portanto perderemos, mais uma vez, a chance de dar novas perspectivas formativas e novas possibilidades de convivéncia soliddria as geragdes futuras. Espero que este livro possa auxiliar-nos na reconstrugéo de uma nova profissionalidade pedagdgica que, embasada nas raizes histéricas dessa ciéncia, nas conquistas ¢ lutas de muitos educadores ¢ nos projetos latentes da sociedade contemporanea, permita-nos ter a lucidez ¢ a ousadia de poder “reconhecer 0 que esté morto naquilo que parece vivo €, a0 mesmo tempo, poder detectar os germes do renascimento” (Maffesoli 1998). 18 Papirus Editora 1 CAMINHOS HISTORICOS DA PEDAGOGIA A vida sé apreende a vida pela mediasao das unidades de sentido que se elevam acima do ‘fluxo da historia. Dilthey 1940, p. 12 Pedagogia: Ciéncia ou arte? A pedagogia é reconhecida em suas origens como a ciéncia da educagio. Quando nos detemos a observar os livros classicos de pedagogia,' podemos perceber que ha pouca divergéncia entre os autores: quase todos a consideram como sendo ciéncia da educacio. No entanto, nesses mesmos manuais, percebe-se claramente que, para além de ciéncia, h4 uma tendéncia a consideré-la também como arte. Assim, muitas vezes a pedagogia é conceituada como a ciéncia ea arte da educagao, ou mesmo a ciéncia da arte educativa. 1. Bouchon 1964; Compayré 1911; Debesse ¢ Mialarer 1974; Hubert 1959; Leif ¢ Rustin 1956; Luzuriaga 1969; Monroe 1972; Patrascoiu 1930; Planchard 1963; Siméons 1922, entre outros. Pedagogia como ciéncia da educagao 19 A principio, essa questo de se considerar a pedagogia ora como ciéncia da educagao, ora como ciéncia e arte concomitantemente, ora ainda como a ciéncia da arte educativa, parece uma questio de menor importancia. Mas nao é tao simples assim. Tenho muita conviccio de que essa triplicidade conceitual, nem sempre bem articulada historicamente, carrega as indefinigdes do campo de conhecimento dessa ciéncia, desde a origem do termo, até a estruturagao de seu campo cientifico. Actedito ainda que a problemética que hoje enfrentamos ao refletir sobre a identidade da pedagogia esta entrelacada com essa indefinicao inicial, a qual traduz e expde o germe da histérica dubiedade epistemoldgica dessa ciéncia. Nao me refiro 4 questao de oposi¢ao entre cientifico e artistico; mas ao fato de que essas acées, 0 ser ciéncia eo ser arte, softeram alteracées de sentido, em seu processo de transformacao histérica, configurando um problema crucial & pedagogia em todas as épocas, e ainda néo equacionado, qual seja: a questo da articulacao da teoria com a pratica, a questéo da ciéncia da prdtica que nao serd a tecnologia, a questéo de encontrar o espago da pedagogia na intersecdo dessas contradigées. Portanto, considero muito pertinente aprofundar um olhar sobre as taz6es histéricas dessas colocagées, visando encontrar caminhos elucidativos que permitam uma melhor compreensao das possibilidades cientificas da pedagogia hoje. Para verificar como os educadores brasileiros conviviam com essa questo da pedagogia ser ou nao ciéncia, ser ou nio arte, iniciei uma pesquisa nas obras de estudiosos da pedagogia no Brasil, mais ou menos a época da instituicao dos cursos de pedagogia no Brasil (1939), portanto, décadas de 1930 ou 1940, mesmo sabendo da restrita produgao nacional nesse tema. Queria perceber como a questéo da pedagogia, ciéncia da educagao, estava sendo, naquela época, interpretada pelos que trabalhavam na educagéo, na formacio de professores, na organizacao dos cursos de pedagogia. 20 Papirus Editora Iniciando a pesquisa nas obras de educadores brasileiros, encontro um Tratado de pedagogia, de monsenhor Pedro Anisio (1934), no qual 0 autor coloca, com toda convicgao, ser a pedagogia a ciéncia da educasio, uma ver. que se funda na observacio e na experiéncia, tendo um objeto proprio, que é a educacio, e possuindo “exato conhecimento do que se quer educar ¢ aperfeigoar”. Discorrendo sobre o caréter dessa ciéncia, diz que a pedagogia nao é um amontoado de nogées vagas ¢ indecisas, mas possui principios getais estabelecidos com o maximo rigor, “conhecimentos coordenados ¢ sistematizados que constituem um corpo compacto de doutrina” (Anisio 1934, p. 27). Considero muito importante verificar que hé, para 0 autor, uma pfeocupagéo com a questo que nos envolve, pois afirma que a pedagogia, “mesmo sendo ciéncia, tem em comum com a arte, a atividade pratica, fabricadora” (Anisio 1934, p. 37), nao se restringindo a teoria, mas também “formulando regras diretivas da obra educativa”. O autor reforga 0 cardter tedrico-pritico da pedagogia, realgando que esse cardter néo Ihe tira a cientificidade. E preciso, no entanto, que se faca a distingéo entre ciéncias especulativas e ciéncias prdticas. O que ocorre, segundo o autor, é que “por nao entender bem a distincao entre ciéncias especulativas e praticas foi que surgiram as intérminas questdes sobre se a Pedagogia é arte ou ciéncia (...) contendas alids, que j4 nao tém razao de ser, se afirmarmos que a Pedagogia é uma ciéncia normativa” (éd., p. 37). Parece aqui evidenciado, na interpretagéo do autor, que ser ciéncia € arte néo € um ponto pacifico, ¢ a questo parece ter desencadeado, ainda em sua interpretacio, poscuras excludentes: ser ciéncia nZo comporta ser simultaneamente arte. desse autor 0 conflito se desfaz se considerarmos a Pelo racioci: pedagogia uma ciéncia normativa. Sendo ciéncia normativa, langard mao de meios para se realizar e nao precisa ser arte, a arte serd prerrogativa Pedagogia como ciéncia da educagdo 21

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