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GIENCIA do caos explica como um acontecimem sipsignificante; podese transformar: numa prever — e evitar - as catdstrofes RAFAEL KENSKI COM DESIGN DE RODRIGO MARO) hens ‘com.br Peers t Peer ferret prety O motivo? Um Boer m 25 de julho de 2000, um Concorde da Air France acelerava na pista do Aero- porto Charles de Gaulle, em Paris, para atingir a veloci- dade de 400 quilémetros por hora, co- ‘mo fazia em todas as decolagens. No ‘caminho, passou em cima de uma pe- dago de titnio de 45 centimetros que ‘um DC-10 deixara no asfalto minutos antes. Um dos pneus da asa esquerda explodiu e langou uma tira de borra- cha de 4,5 quilos contra o fundo do tanque de combustivel que estava um ppouco a frente. O choque fez um furo no tanque e gerou calor suficiente pa- raincendiar a gasolina que comegoua vvazar. As chamas atingiram as duas turbinas do avido, que estavam logo atrés. Elas continuaram a funcionar, mas com menos potencia, e espalhan- doo combustivel em um rastro de 60 ‘metros. © Concorde subi. Os siste- mas de seguranga do avido detecta- ram entio que a origem do fogo eram as turbinas ~ e ndo o tanque -, 0 que fez 0 piloto desligé-las e tentar um pouso de emergéncia com os motores ‘que sobravam. A falta das turbinas fez ‘com que, segundos depois, 0 avilio atingisse o ponto critico em que o ar sob as asas nao faz pressdo suficiente para garantir a sustentacao. © Con- corde-omais velozavisode passagei- 10s do mundo ~ cai sobre um hotel em Paris. Foram 113 mortos ~ quatro deles estavamem terra, um hotel em ruinas, um avido destruido. Etudoco- ‘megou com um pedacinho de metal denem 0,5 metro de comprimento. Diagnéstico: azar. Certo? Talvez no. Claro que ninguém supunha que ‘um simples pedago de metal poderia derrubar um avigo tao moderno. Mas acidentes como esse~emqueuma su cessio de pequenas falhas insignifi- ‘cantes dé origem a enormes catdstro- fes ~ so corriqueiros. E, segundo os pesquisadores que estudam achama- da “teoria do caos” (veja quadro na pagina 77), um dos ramos mais inte- ressantes da Matemética, tendem a setornar cada vez mais comuns. E co- ‘mo se estivesse funcionando a todo ‘momento, na vida de todos nés, a Lei de Murphy, aquela segundo a qual “se uma coisa pode dar errado, ela dard, ena pior hora possivel”. ‘Aeexplicagao para.a prevaléncia ca- dda vez maior da Lei de Murphy é que, pela teoria do.caos, os rscos de que fa- tores insignificantes se transformem em tragédia cumentam a medida que ‘aumenta a poténcia das fabricas, dos vveiculos e das maquinas. “Quanto mais energia voct concentra em um espago pequeno, maiores as conse- aéncias de qualquer ato’, diz Moacyr Duarte, especialisca em contengio de catéstrofes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um acidente em uma fabrica no inicio do século XX poderia ser grave, mas no chega aos pés de tum descuido em uma usina nuclear. Quanto maior a complexidade do sis- tema, mais elementos interagem entre siemaiores as chances de acidente. tno centro dateoria do cos” firma © fisico Celso Grebogi, da Universida- dedeSioPaulo USP), umdosautores ‘mais citados no mundo nessa linha de pesquisa. A idéia & que, apesar de se- rem construidas com equagies exatas, as mquinas sofisticadas nao slo tio estéveis quanto parecem. Da mesma forma que um floco de neve pode dar fabrica pegarfogo.ou umaempresa ir faléncia se as condigdes em que ela ‘acontecer favorecerem odesastre. Da mesma forma, nossos equipa- _mentos so compostos de varias partes que interagem, se movimentam e po- dem dar origem a momentos de insta- bilidade. £ nesses momentos que a catéstrofe fica mais préxima. Asredes elétricas, que estio entre as constru- ‘es mais complexas ja feitas, podem absorver interferéncias corriqueiras ‘comoa queda de uma central. Mas, se essa falha acontecer em um momento degrande demanda,o sistematendea cchegar perto da drea de instabilidade, bastando mais um empurrdo para 0 desastre. Uma situagio como essa SEE eye SSS nexdoentre ha Solteirae Araraquara, no interior de Sio Paulo, falhou em tum momento de sobrecarga. Na ten- tativade resolver o problema, outrali- nha na mesma regido foi desligada, piorando a situagéo e jogando todo 0 sistema em uma instabilidade irrever- sivel, Resultado: 11 Estados sem luz, Fendmenos do mesmo tipo sio encontrados em campos como enge- Um pedaco de 0,5 metro de metal solto na pista causou 113 mortes nharia, biologia, medicina, quimicae, principalmente, nos sistemas huma- nos. “Empresas e instituigdes finan- ceiras so formadas por miltiplos agentes interagindo, trocando mate- riais informagdes em uma dinmica complexa. As vezes, eles adquirem uma configuracao tal em que basta uma fagulha para desencadear o de sastre”, diz 0 economista Thomaz Wood Jr., da Fundacao Getilio Var- 428, de Sio Paulo. Em 2000, aeuforia da internet fez.a Nasdaq - 0 mercado ‘de agoes americano voltado para se- tor tecnolégico ~ funcionar em uma base irracional e instével. Bastou as primeiras empresas quebrarem que 0 mercado inteiro veio abaixo. Qual se ria o responsdvel por um desastre co- mo esse? “As pessoas estio acostuma- ddas a pensar em termos de causa € feito, mas nao existe um culpado pa- ra essas situagdes. E uma questdo de Pe Julho 2002 £3 75 como o proprio sistema estava confi- gurado naquele momento”, diz. Tho- maz. Da mesma forma, o catastréfico aumento de violéncia em muitas cida- des nao é s6 questi de falta de pol cia, mas de uma enorme conjuncio de farores que envolve valores dominan- tes, educagao, oportunidades, sistema legal e desigualdade social. ‘Adinimica desses desastres parece desafiar a Iégica da maioria das pes- & tona um tipo de raciocinio que esti- mula erros. A partir da, a situagio se torna cada vez. mais complexa e enco- raja decisdes que tornam as falhas ain- damais proviveis’ diz opsicélogo Die- trich Dorner, da Universidade de Bam- berg, Alemanha, no livro The Logic of Failure (Albgica do fracasso, inédito no Brasil). Dérner chegou a essa conclu- io depois de realizar experimentos melhantes, Dimmer percebeu que 0 ‘aus participantes, de um modo ge- ral, tinham uma abordagem menos complexa do sistema. Costumavam privilegiar apenas um aspecto, repe- tiam a mesma solucio para varios pro- blemas, nao questionavam sua manei- rade pensar e ndo analisavam as con- seqiiéncias de seus atos a longo prazo. ‘Apesar de serem apenas simulagdes de computador, Démer encontrou nelas modelos de comportamento seme- Thantes aos que ocorrem em catdstro- fes reais. “Eles aparecem especialmen- te em problemas como a degradacdo ambiental, a proliferagio das armas nucleares, o combate aoterrorismo eo controleda superpopulagao. Assim co- ‘mo na experigneia dos moros, tentati- vas de lidar com esses perigos geral- ‘mente criam novos problemas ou exa- cerbam os antigos”, diz Dorner. © pesquisador ressalta a importin- ‘em que os participantes tentavam re- _ciade garantir a todos envolvidos na solver situagdes complexasem jogosde —_operagio de sistemas complexos uma computador. Em umdeles,elesimulou _habilidade chamada “pensamento sis- um povo africano, os moros, que vivia _ témico” (veja quadro na pdgina 78). Em sistemas complexos, qualquer gesto afetara muitos outros elementos dacriagiodegadoede plantargrios.A _complexos nio é possivel fazer apenas situacaondo era boa: a mortalidade in fantil era alta, 0 rebanho sofria de cdoengas transmitidas por moscas ¢ ha- vvia seca e fome. Cada um dos 12 parti- © cawsuanant eae Pee td reg oe cn Preis) Sacral mmaquinas velores No século XVII, isaac Newton mudou a ciéncia a0 descobrir que alguns fenémenos da natureza poderiam ser explicados com leis matemsticas. Apattir dai, muitos pesquisadores acreditaram que as leis poderiam explicar e prever 0 comportamento de todos 0s fendmenos se fossem reunidas informagdes suficientes. Até que, em 1961, 0 meteorologista Edward Lorenz, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MID), descobriu por acaso um dos me importantes argumentos contra essa idéia. Ele havia programado um ‘modelo, nos primitivos computadores dda €poca, que simulava o movimento de ventos e de massas de ar. Um di uis repetir uma situagdo em seu programa e digitou os nimeros correspondentes a ela, sé que com algumas casas decimais a menos. Acreditava-se que essa ligeira imprecisio levaria a um resultado 6 um pouco diferente, mas ele se transformou totalmente, Era como se o bater de asas de uma borboleta na Asia causasse, meses depois, um tomado na América. Lorenz percebeu {que seu modelo, embora construido ‘com equacdes simples, poderia se tomar ca6tico e imprevisivel. Nascia {a “teoria do caos”, Pesquisas feitas depois mostraram que 0 “efeito borboleta”, como ficou onhecido, poderia ser encontrado ‘em mithes de fendmenos, como 0 {ransito, 0 movimento de particulas ‘em um liquido e as cotagdes da Bolsa. Cada um desses sistemas, apesar de obedecer a regras simples, pode adquiririnfinitas configuragbes, de acordo coma influéncia de fatores ‘aparentemente insignificantes ~ como casas decimais ou o bater das asas das borboletas. “A propria hist6ria funciona dessa forma”, diz o fisico Celso Grebogi, da USP. “A modificagao de um pequeno acontecimento séculos atrés poderia levar 0 mundo para ‘uma outra situacao”. Ce Seay Ce Benes Explosdes assim Pres Cua) Pear xos. Conseguiu detectar oscilagbes pa recidas em deslizamentos de terr mesmo em registros feitos mais de um ano antes de eles acontecerem. Tam: bém encontrou-as em um dos eventos ‘mais trauméticos por que passamos: 0 nascimento. Para 0 pesquisador, as contragées uterinas apresentam sinais matematicamente parecidos com os das rachaduras, que podem indicar a hora do nascimento e alertar partos prematuros. “Nao estamos interessa- dos em explicar todos os mecanismos por trds desses eventos extremos. Que- remos apenas prevé-los”, diz Sornette. Se jd parece estranho encontrar os mesmos sinais em sistemas fisicos biolégicos, mais surpreendente foi vé- los em estruturas feitas pelo homem. Somette encontrou os mesmos pa drdes nas oscilagbes dos precos nas Bol: sas de Valores ¢ afirma que suas previ bes se aplicariam com sucesso para as dez maiores quedas desde 1962. Ele acredita que, com pesquisas futuras, seus métodos poderdo prever desde terremotos até crises sociais, atentados terroristas e epidemias. “A idéia é ainda ito controversa, masé possivel quea 78 Glulho 2002 maioria dos eventos extremos siga pa- droes semelhantes e, portanto, tenha um grau de previsibilidade”, afirma. Mesmo que essas pesquisas nao le vem a previsdes confidveis, o impor: tante étermos em mente que acidentes fazem parte do mundo e sempre acon- tecerdo. A nossa propria evolucao de- pendeu disso: ndo estariamos aqui se um asterdide nao tivesse destruido os dinossauros ha 65 milhdes de anos. Sa- ber como ¢ por que os desastres ac tecem é questo de entender a dindmi: ca do que esta ao redor e pensar nas conseqiiéncias de cada um de nossos atos. Neste mundo complexo, cad esto minimo nosso implica em riscos = precisamos decidir quais sao aceité: veis, jé que elimind-los ¢ impossivel. ROSS EVITAR DESASTRES Segundo o psicélogo alemao Dietrich Dorner, operar sistemas complexos 6 como jogar xadrez sem saber todas as regras, em um tabuleiro com pecas ‘amarradas entre si, onde movimentar ‘um pedo muda a posico de todas as outras figuras. Ele dé as dicas de como se dar bem nessas situacdes: 1 Saiba com clareza o que vocé quer fazer. Se for algo pouco espectfico, como “aumentar a produtividade da empresa”, procure desdobrar em outras metas, tomando o culdado de nao perder de vista 0 objetivo final. Evite objetivos contraditérios: saiba sempre qual deles 6 priortario. 2 Estude os ‘elementos do sistema e as relacdes entre eles, sem se confundir com detalhes excessivos nem reunir todos 05 fatores em uma explicacao s6. Entenda como o sistema funciona, Mais importante do que o estado atual de um sistema 6a forma como ele tem evoluido. Uma diizia de casos de uma doenga infecciosa pode dar origem a uma epidemia em pouquissimo tempo. Concentre-se nas tendéncias. 4 Mas nao sem antes imaginar quais serd0 0s efeitos secundarios de cada ato. Evite repetir uma soluco Vitoriosa para todos os casos. Os generais mais experientes foram (05 que mais sofreram baixas nas ‘guerras do comeco do século XX. Acostumados as guerras do século anterior, perderam todos os soldados quando a metrathadora foi inventada. 5 Use suas ages como laboratério para saber se 0 modelo ea estratégia ainda sdo Vilidos. Se o trator nao virou quando vvocé girou 0 volante, problema: © modelo que voc’ tinha do veiculo precisa ser revisto urgentemente, antes que aquele muro chegue.

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