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Ao contrério de Hamlet, que n&o passa de fi- gura lendéria, Macbeth realmente existiu. De inicio mormaor ou governador de provincia escocesa (1029) — isso por morte de Malcolm (um dos assassinos do pai de Macbeth, que também havia sido mormaor) —, mais tarde, em 1040, subiu ao trono da Escécia. Para ascender 4 realeza, matou Duncan, que no momento se achava enfraquecido por derrota infligida pelo noruegués Thorfinn. Co- mo provavelmente Macbeth nao pertencesse & fami- lia real (ao contrério de sua espésa Gruach), os membros dessa familia mais de uma vez tentaram desaloja-lo do poder, o que Malcolm, filho de Dun- can, afinal conseguiu. _Antes, o Conde de Nortim- bria, Siward, derrotara Macbeth (1054), que fugiu para o norte do pais. La foi batido por Malcolm, em 1057, e morto em Lumphanan. Macbeth bene- ficiou a Igreja e seu reinado decorreu em anos de prosperidade. Se tais sfo, em grosso, os dados histéricos s6- bre um rei que, segundo a tradig&o, esté sepulto na Ilha.de Iona, ao lado de varios de seus anteces- sores, e se Hamlet é uma figura nebulosa que se perde nas brumas islandesas, também as vicissitudes de transmiss&o do texto diferem entre as duas tra- gédias. Do Hamlet, sabe-se, foram publicados em 1603 um mau in-quarto (Q 1) e em 1604 um bom in-quarto (Q 2), além da vers&o constante do pri- meiro in-folio (F 1), de 1628, o que provoca labo- riosas discussées textuais; j4 0 Macbeth nos chegou em versio tnica, constante de F 1. Isso, que de- 8 PERICLES EUGENIO DA Srrva Ramos stad vantagem para 0 Macbeth, nem ee cmneiguce como tal. A peca é a menor das ve se integram no cdnone shakespeariano, ex- cluida a Comedy of Errors, donde supor-se que a versio de F 1 esteja cortada; por outro lado, certas circunstancias levam 4 presuncdo de que varios tre- chos tenham sido interpolados por mao alheia. Entre os cortes, Sir E. K. Chambers (1) observa que alguns versos curtos sao abruptos e acompa- nhados de obscuridade, o que o induz a pensar em possivel amputacéo: assim em 1.2.20 e 51; II.3. 109; III.2.32 e 51; II].4.4; IV.3.28 e 44. Isso, a par de linhas mal dispostas em 1.3 e de indicios de adaptacaéo em seguida a presumiveis cortes, nio é, porém, tao indiscutivel como o caso de algumas interpolacdes, nomeadamente aquelas em que apa- rece Hécate. Dé-se isso em III.5; IV.1.39-43 e 125-132, sendo ésses acréscimos claramente apontaé- veis nfo sé pelo fato de o verso nao ser trocaico, ¥como nas outras falas das bruxas, e sim iambico, mas ainda em razao de circunstancias que nao com- binam com as sabidamente auténticas (assim a “furna de Aqueronte”, quando Macbeth vai é a uma caverna da Escécia; ser éle chamado “filho” das bruxas; a acusagdo de terem elas negociado tratos com éle; a divisio de “recompensas” etc.) e até de certos ridiculos, como o de as bruxas dangarem uma ronda para desanuviar o espirito do rei. H& cangoes em III.5.34 e IV.1.43, mas a letra é ape- nas indicada pelos versos iniciais nas rubricas. As cangoes completas figuram na tragicomédia The (1) William Shakespeare, Oxford, 1980, vol. I, pags. 471-476. A TrAcéDIA DE MACBETH 9 Witch, de Thomas Middleton (c. 1570-1627), que 86 veio a ser impressa em 1778, de um manuscrito unico. Esse e outros pormenores, como o de as bru- xas de Middleton aspirarem ao amor dos homens, quando disso nfo cuidam as Weird Sisters, levam A presungao de que Middleton haja sido o interpo- lador do texto shakespeariano impresso em F 1 e talvez baseado nos papéis para uso do ponto ou em _cépia déstes. As outras suspeitas de interpo- lagao nao se afiguram téo cogentes como essas, na op:1ido do mesmo Chambers, que as repele todas. Coleridge, por exemplo, julgava inauténtica a cena do porteiro, mas o biégrafo adverte que ésse modo de ver tem hoje poucos adeptos; de fato, a propria semelhanca dessa fala com a do coveiro no 5.° ato do Hamlet j& bastaria para descartar a hipétese do notavel critico e poeta romantico. DATA Matéria um pouco mais complicada é calcular as datas em que foi escrito e representado o Mac- beth. O primeiro registro de representagéo da peca esté no manuscrito do Dr. Simon Forman, The Bo- cke of Plaies and Notes therof per Formans for Common Pollicie, que se refere ao espetdculo no Globe, em 20 de abril de 1611. Mas a pega jé exis- tia alguns anos antes; é 0 que indicam — na opi- niZo de Kenneth Muir (2) — alusdes em pegas contemporaneas, como Lingua (publicada em 1607, (2) The Arden Shakespeare, Macbeth, Methuen, Londres, pags. XVI e ss. arcLEs Eucénto pa Sitva Ramos 10 Pa cos de II.1 € talvez uma parddia da e que traz oenbulismo de Lady Macbeth) ou The gene oe IV .3-89 (também publicada em 1607 e onde ha referéncia ao fantasma de Banquo, que em “white sheete sit at vpper end a th’ Table’), ou ain- da em Knight of the Burning Pestle, de Beaumont e Fletcher, v. 1.26 e SS. (segundo parece levada ao paleo no mesmo ano de 1607 e em que também repercutem as circunstancias em que 0 fantasma apareceu, no meio de alegre jantar e invisivel para os outros). Dando o desconto do tempo para que as pecas com essas alusées pudessem ser escritas, encenadas ou publicadas, segue-se que o Macbeth deve ter sido representado em 1606. Além disso, ha no Macbeth preocupagéo com os assuntos de interésse do Rei Jaime VI da Escécia e I da Inglaterra, como as bruxas e feitigo; o pré- prio rei escrevera uma Daemonologie (Edimburgo, 1579) e também as Newes from Scotland, nas quais narrara a vida e a morte do feiticeiro Dr. Fian (Londres, 1592), cujo processo éle acompanhara. Em 6 de novembro de 1604 ja estava impondo as maos para curar a escréfula, e isso pode explicar as referéncias, no texto de Shakespeare, ao poder de cura de Eduardo, o Confessor, que se transmi- tiria aos outros reis da Inglaterra. Julga Cham- bers bastante provdvel, também, que a idéia das trés bruxas Sh. a tenha colhido no espetdculo das “tres Sibyllae’ de Matthew Gwynne, com 0 qual o — acolhido em Oxford, em 27 de agdsto de Outro pormenor que se tem usado para datar 9 Macbeth 6 a referéncia, na cena do porteiro, a0 ‘equivocator” e traidor, o que visa,-na opiniao de sf. is A TracéDIA DE MACBETH. n muitos, ao padre jesuita Henry Garnet, condenado a férca em 28 de margo de 1606 por cumplicidade no “Gunpowder Plot”, embora a doutrina da “equivo- cacao” fésse familiar desde o julgamento de Robert Southwell em 1595. Mas Dover Wilson acha que as referéncias ao Padre Garnet foram acrescenta- das @ pega para representacéo na Corte, sendo por- tantc posteriores 4 redac&o do Macbeth. Com ésses e outros argumentos, a alguns dos quais opée res- trigdes, (3) Chambers também julga que o Macbeth date de 1606, conclus&o essa que tem a seu favor, ainda, os paralelos estilisticos e métricos (os trans- bordamentos, p. ex.) com outras pegas de Sh. e que fazem situar o Macbeth nas cercanias de Rei Lear e de Anténio e Cleépatra. Apesar de muitas dessas- “evidéncias” serem débeis, pois como acentua Henry N. Paul (The Royal Play of Macbeth, 1950), no Treatise of Spectres de De Loier (1605) ja o Rei Thierry, quando certa noite se assentava para jan- tar, fora assombrado pelo espectro de um homem (3) Murr julga desnecessério supor que Su. tenha ouvido falar nas “trés sibilas”, pois o espetdculo era baseado nas profecias das trés Weird Sisters, que o poeta conhecia de HoLINsHED. Mas H. N. Pavt afirma que Su. estava em 1605 em Oxford e 1a se inteirou de que o Rei nfo gostava de pecas longas e aprovara as Trés Sibilas de Gwywne, com a referéncia a Banquo. Ao voltar para Londres, comegou a redigir o Macbeth, no outono do mesmo ano de 1605. Como de hébito, sio mais ou menos conjeturais as alusdes que se apontam. Discute-se, também, quem influenciou o outro, se SH. OU MARSTON, com as pecas Sophonisba e Anténio e Mellida: Crampens cré que Sx., Muir que Maaston, 12 Périctes EvcfNnio DA SILVA Ramos que matara, umas pelas outras e tudo bem pesado, 1606 parece mesmo o ano mais aceitvel para datar © Macbeth. E assim j& pensava Malone, admitin- do-se que Shakespeare haja comecgado a redigir a peca em 1605. FONTES Em primeiro lugar, como eventual estimulo pa- ra a redacdo do Macbeth, viriam as “Trés Sibilas” de Gwynne. A questéo é controversa, pois implica a estada de Shakespeare em Oxford no verao de 1605 ou pelo menos que tenha ouvido falar no aco- lhimento favordvel do Rei aos versos de Gwynne, nos quais éste considerava Banquo como ascendente do soberano e prometia império sem fim aos mo- narcas do sangue do antigo Thane (4): Fatidicas olim fama est cecinisse Sorores Imperium sine fine tuae, Rex Inclyte, stirpis. Banquonem agnouit generosa Loquabria Thanum. Nec tibi Banquo, tuis sed sceptra nepotibus illae Immortalibus immortalia vaticinatae. De qualquer modo, a fonte primaria de Sha- kespeare séo as Chronicles of England, Scotlande (4) Os versos s6 foram impressos em 1607, no final do in- -quarto consagrado a Vertumnus, peca latina de GWYNNE representada ante o Rei em 29 de agésto de 1605. Pouawess (6.° edigio) traz nfio 86 os versos dessas “tres quasi Sibyllae” (pags. 397-398), como também extratos de HoLinsHED e de WxYNTOWN (pags. 370-396) . A Tracépra De MACBETH 13 and Irlande (Londres, 1577), de Raphael Holinshed, acessiveis ao dramaturgo na edicéo de 1587. Em Holinshed éle encontrou a histéria, mas tomou com referéncia a ela certas liberdades. Assim Banquo, que em Holinshed conspira com Macbeth para ata- car Duncan, em Shakespeare é purificado, porque era tido como ascendente de Jaime Ie éste conde- nava as revoltas contra os reis, ainda que injustos. Para a morte de Duncan, Shakespeare usou 0 relato da morte do rei Duff por Donwald, com o sono , ebPiado dos camareiros e os prodigios descritos em II.4. A voz que exclamava “Sleep no more” foi tal- vez imaginada segundo o que Holinshed narrou de Kenneth III; ouviu éste uma voz afirmar-lhe que seu crime era conhecido de Deus, e entéo, tomado de terror, passou a noite sem dormir. Shakespeare retine a rebeliao de Macdonwald e a invasio do Rei Sweno, e faz as Weird Sisters voltarem, quando em Holinshed o aviso a Macbeth de que se acautelasse contra Macduff e contra alguém nao nascido de mu- Ther, bem como que se prevenisse com referéncia ao bosque de Birnam, lhe féra dado por certos fei- ticeiros e certa bruxa. R. A. Law arrola trinta e cinco incidentes do Macbeth que nao constam de Holinshed (5). Alguns désses incidentes podem derivar de ou- ‘tras fontes, das quais duas merecem consideragio: o Buik of the Chroniclis of Scotland, de William Stewart, e a Rerum Scoticarum Storia, de John (5) University of Texas Studies in English, 1952, pags. 35-41; apud KennetH Muir, Shakespeare’s Sources, vol. I, Methuen, Londres, 1957, pig. 176. 14 pénictes Evatnro pa Stiva Ramos Buchanan. C. C. Stopes chegou a afirmar que “em todos os casos em que Shakespeare se afasta de Holinshed, segue Stewart”. O poema de Stewart (que é uma tradugao ampliada de Boécio) perma- neceu manuscrito até meados do século XIX (1858), e embora Shakespeare possa ter tido acesso a algu- ma copia déle, Muir nao considera de muito relévo os paralelos apontados, parecendo-lhe acidentais as semelhangas no desenvolvimento do carater de Lady nfluéncia de Buchanan, Macbeth, e prefere aderir 4 i: ja assinalada por Liddell (1903) e H. N. Paul (1950). Assevera éste que Buchanan € mais ex- plicito que Holinshed quanto as boas qualidades de Macbeth, e alguns confrontos sao feitos nao sd por éle, como pelo proprio Muir, no caso da nomeagao do Principe de Cumberland. Outros autores de quem Paul aponta possivel influéncia sobre Shakes- peare sao Skene, Scots Acts, e Leslie, De Origene, Moribus et Rebus Gentis Scotorum; Muir admite como possivel o fato de Shakespeare ter visto a se- gunda dessas obras, embora advirta que, de modo geral, as alteragdes feitas por Shakespeare na his- téria de Macbeth, tal como narrada por Holinshed, sejam devidas a razoes de conveniéncia dramatica. Holinshed, para escrever sua historia, baseou- -se nas Scotorum Historiae (1527) de Heitor Boécio (c. 1465-1536), que foram traduzidas por John Bellenden (e publicadas por volta de 1536), ser- vindo-se dessa tradug&o escocesa e cotejando-a cui- dadosamente com o original latino. Boécio, por seu turno, fundou-se em John Fordun, Scotichronicon im foe e na Orygynale Cronykil, terminada cérea , de Andrew of Wyntown. A Tracéora DE MACBETH 15 Quanto & Crénica de Wyntown, Mrs. N. K. Chadwick (1950) sugeriu que incorpore material de sagas célticas sdbre Macbeth, hoje perdidas, espe- cialmente nas partes relativas ao sobrenatural (6). “Ela fundamenta isso com as mudangas de estilo, que indicam um original céltico. Ha uma saga nérdica de Macbeth, esta independente.” INFLUENCIAS MENORES Se Holinshed é pois a fonte principal da trama e se alguns desvios de Sh. podem encontrar apoio em Stewart ou Buchanan, e ainda em Bellenden, ha varias outras influéncias menores na peca; atin- gem apenas determinadas circunstancias, figuras e expressées. De Loier, por exemplo, pode ter in- fluenciado na cena da aparigiéo de Banquo, como apontou Paul; narra éle, como ja frisamos, 0 caso do Rei Thierry, que, tendo matado Simmachus, viu aparecer-lIhe o rosto do morto, com expressao ter- rivel e colérica, quando jantava. Avulsamente, in- fluem em versos do Macbeth livros de bruxaria co- mo a Daemonologie do Rei Jaime ou a Discoverie of Witchcraft, de Scot, a Biblia (copiosamente), os Coléquios de Erasmo (na comparagaéo de homens a cées e na frase “bounteous Nature” — (naturae benignitas) —, apontada por J. D. Rea), algumas pecas de Séneca, tais como o Hercules Furens e 0 Agamemnon (que se admite Shakespeare haja lido no original) ; todas essas influéncias, j4 apontadas pela critica, sio passadas em revista por Muir. Mas (6) Vid. M, C. Brapsrook, Shakespeare Survey, 4, pag. 47 16 Péaicies Evefwio pA SILvaA Ramos além delas ha outras, dos Essays de Montaigne na traducao de Florio, de Cicero, apontada por T. W. Baldwin em seu Shakspere’s Small Latine and Lesse A influéncia déste, Greeke, de Marcelo Palingénio. com seu The Zodiake of Life, acha-se bem estudada por John Erskine Hankins (7). Para citarmos apenas a famosa tirada do 5.° Ato, “tomorrow, and ”* 9 proprio uso triplice tomorrow, and tomorrow , da palavra tem precedente, embora espacado, no Zodiake (8), e assim também a imagem da “vela” e da “poenta morte”, que déste modo se 1é na tra- “O candle set before the windes, O dug&o de Googe: a subject dust to grave” e no original latino: “O mor- tale lutum, ventisque obiecta lucerna”. MACBETH E LADY MACBETH Os caracteres de Macbeth e da Rainha foram desenvolvidos por Sh. de Holinshed. Falou-se em pecas anteriores, como a Tragedie of the King of Scottes, representada na Corte em 1567-1568, e Mal- colm Kynge of Scottes (a que Henslowe se refere como comprada de Charles Massey em 1602), mas e nao se sabe se podiam essas pecas estao perdidas, ou nao versar sobre Macbeth (9). Entretanto, (1) Shakespeare’s Derived Imagery, University of Kansas Press, Lawrence, 1953. (8) Vid. Hanxrns, pag. 36. (op. cit. I, pags. 652-681) que pelo me! mais famosas passagens de SHAKESPEARE derivam déle, uma a comparagéo do mundo com um teatro, a outra a descrigio das idades do homem. (9) Krrragpox, pag. 855; Sir E. K. Cuamners, vol. I, pas- 416. T. W. Bawwwiw j& apontara nos duas das A Tracépia DE MACBETH 17 Kempe, em seu Nine Daies Wonder (1600) repor- tava-se a uma balada sdbre a histéria de “Macdoel ou Macdobeth ou Macsomewhat”, e como as bala- das amitide se baseavam em pecas, e dessa dizia Kempe que era roubada, talvez — adverte Muir — Shakespeare possa ter visto a balada ou a pega ori- ginal. Isso, porém, é simples conjetura. Para Holinshed, Macbeth era “um tanto cruel tureza”, embora por dez anos tivesse gover- nado bem; depois, comecou a agir com | crueldade, e a_ter médo de que fizessem com éle o que éle havia feito com Duncan. Ao mesmo tempo, os outros co- mecaram a ficar com médo_déle, tornando-se pois geral o temor. Essa atmosfera de médo reflete-se também na tragédia de Shakespeare, a ponto de Ca- roline Spurgeon (10) dizer que téda a peca do Macbeth pode realmente ser tomada,.em certo sen- ( “imagem” do médo. “f certamente re- velador o fato de haver~apenas duas pecas de Shakespeare nas quais a palavra amor ocorre tao raramente como em Macbeth, e nenhuma pega em que a palavra médo ocorre t&éo fregiientemente; na verdade, ocorre duas ou trés vézes mais que na maioria das outras pecas.” Na peca, Macbeth 6 um homem valoroso, po- rém muito cheio do “leite da brandura humana”; ao comunicar a profecia das Weird Sisters 4 espésa, esta incita-o a que tome o caminho mais direto pa- ra o trono, matando Duncan. Macbeth age assim, e endurece-se com o crime; feito Rei, teme Banquo, que seria pai de uma linhagem de reis; manda (10) Shakespeare's Imagery, Cambridge, 1935, pag. 156. < 18 PéricLes Eucénro pa Siiva Ramos assassiné-lo, e mais tarde, tendo ouvido 0 aviso da 1.2 Aparicio de que se acautelasse com Macduff, manda passar a fio de espada quantos estivessem no castelo de Fife. A descrig&éo que Ross faz das misérias da Escécia d& bem a medida-da-crueldade de Macbeth. Mas, 4g-prosimidade. a_marta.< quando_o bosaue de Birnam avanca contra Duns nane [acbeth nao deseja matar Macduff, por- que, havia derramado muito sangue da fa- aie déle, 6 que vem a ser uma demonstracao de _ “qlie por Vézes ainda tinha nas veias uma gota velha humanidade, e morre tal.como comegou.a—pe- ga:_bravamente,. com a espada na mao. Singular em sua constituigéo é a sua capacidade de ver as coisas, tendo jA a critica assinalado que éle nao ensa, vé os pensamentos. Dai a adaga aérea ; dai, possivelmente, o fantasma de Banquo, que so éle divisa. Lady Macbeth, por seu turno, nado é uma virago, mas uma dama de maos pequeninas, alguém que o marido nao receia chamar de “dearest chuck”, que desmaia e, afinal, nao é capaz de suportar 8 tengo Dervosa que_a leva ao sonambulismo e ao suicidio. A ela refere-se uma tinica vez Holinshed, dizendo aue insistiu com Macbeth para que tomasse o trono ‘ a forga, pois “era mui sacidvel desejo tar.o. titulo.de rainha”. A “espdsa de Donwald também incita o marido (em Holinshed) a matar o rei Duff, no préprio castelo em que 0 hospeda, havendo igualmente os camarei- ros ébrios que surgiriam em Shakespeare e a morte désses camareiros por Donwald. Com base nesse frégil suporte foi que Shakespeare desenvolveu 2 soberba figura de Lady Macbeth — “ame puissante A Tracép1a DE MACBETH 19 au crime”, como a via Baudelaire —, apesar de o proprio péso désse crime e da inseguranga no trono leva-la ao desbaratamento nervoso e ao colapso final. M. C. Bradbrook sugere que Shakespeare, para imaginar a célebre fala de Lady Macbeth em I.7, se tenha valido de um trecho da Description of Scotland, cap. XIII, que antecede a Chronicle, e no qual se diz que as_mulheres escocesas amamenta- vam os filhos e iam combater nas guerras, tendo “no menos coragem do que os homens”. Até pro- yavam, nos labios, 0 sabor do sangue. qaiy AE AS WEIRD SISTERS Quanto as Weird Sisters, a inteligéncia de sua natureza e funcgio é mais laboriosa do que se afi- gura & primeira vista. Ao pé da letra, essas Weird Sisters (com a grafia Weyward ou Weyard em F1) séo figuras semelhantes 4s Nornas nérdicas ou as Parcas latinas. Segundo se lé nas Chronicles of Scotland, de Holinshed, as trés mulheres “in stran- ge and wild apparell, resembling creatures of elder world” que saudaram Macbeth como thane de Glam- mis e de Cawdor e futuro Rei da Escécia eram, “na opinido comum”, ou as Weird Sisters, a saber, i ino” ou entao “ninfas ou fadas, las com 0 conhecimento da profecia por sua ciéncia necromantica”. Heitor Boécio, fonte da qual se valeu Holinshed, chama-as “parcas aut nymphas G1) “The Sources of Macbeth”, Shakespeare Survey, 4, Pag. 40. 20 PéRIcLes Evcfnio DA StivaA RaMos fatidicés”, 0 que Bellenden traduziu simplesmente por “weird sisteris”. Segundo Kittredge, para a ligagi@} das Weird Sisters com Macbeth a mais ve- Tha fomte que possuimos 6 Wyntown, na sua Ory- gynale’Cronykil, VI.18. Nesse livro elas aparecem em sonho a Macbeth: He thowcht quhile he was swa syttand, He sawe thre wemen by gangand, ‘And thai wemen than thowcht he Thre werd Systrys mast lyk to be. Nas “tres quasi Sibyllae”, de Matthew Gwyn- ne, séo elas ditas “fatidicas sorores”, mas Malone (12) nao duvidava de que féssem as Weird Sisters. Ora bem, acreditavam os antigos germanos em {sé-_. res poderosos, sob cuj maos estava o destino dos hom is séres re- cebiam o nome de wurt (em anglo-saxio wyrd, an- tigo nérdico urdv, “fado”, “morte”). Correspon- diam elas 4s Nornas escandinavas, que se sentavam nas raizes da 4rvore do mundo, sob o nome de Urd, Verdandi e Skuld, como se lé no Voluspa; de l& controlavam o passado, o presente e o futuro no destino humano. Como as Weird Sisters derivam de wyrd, sorte, sina, fado, valiam como uma espécie de Parcas: e realmente as Parcas da Eneida sao traduzidas por Douglas exatamente como Weird Sisters, segundo recordam alguns editéres de Sha- kespeare. Mas traduzir “Weird Sisters” como “Parcas” seria falsear-Ihes o cardfter mitico ger- (12) Vid. Funwess Jr., op. cit., pag. 397. A Tractota DE MACBETH a manico, dando-lhes, com o nome, paternidad@glatina. Isso nao obstante parecer que as Parcae, afites de se terem revestido dos atributos das Moirdj helé- nicas, hajam sido na religiéo romana “‘demOdfiios do nascimento”, e nao obstante viessem a ser igna- das, em sua representagio estatudria no Forum, co- mo “tria Fata”, e as “Weird Sisters”, segundo textos evocados por Kittredge, também pudessem ser Fadas fixadoras do destino das criangas: assim na Trojan War (de circa 1400), a fata de Guido delle Colonne surge como “a werde sistere”, e Pecock fala em “III sistris”, que sio “spiritis” e que estabele- cem junto ao bergo de cada crianga o seu quinhao. Por outro lado, as “Weird Sisters” nao sAo. chamadas de “bruxas” por Shakespeare; quem 0 faz 6 a mulher do marinheiro, por achincalhe, no “Aroint thee, witch!”, de 1.3.6, e além disso as rubricas, de pequeno valor. Macbeth, que nfo sabe o que pensar daquela surpreendente aparigéo das trés mulheres, investiga e conclui, por “segurissima informagéo”, que sao as préprias “Weird Sisters”, como declara na carta a Lady Macbeth. Mas, se as Weird Sisters nao sio simples bru- xas, nao significa isso que no Macbeth elas nao te- nham a aparéncia, nado adotem as praticas, e nao tenham podéres de bruxas, além dos podéres atri- puidos aos magos que também assumem. “No Macbeth — escreve M. C. Bradbrook (13) — Sha- kespeare combina muitas tradigées diferentes, de modo que as Weird Sisters ou Trés Parcas de Ho- linshed equiparam-se aos grupos de bruxas de (13) Op. cit, pag. 42. | v 22 PERICLES EUGENIO DA Siva Ramos seus ritos malévolos, embora North @Ber Wiest poder do mago de suscitar es- é uiram 0 2 fembep acy Jhes ordens, bem como de predizer o como as de fri dar-! re pruxas de Shakespeare, a ‘through futuro, As th Berwick, parecem capazes de voar O the fog and filthy air”. -Podem _navegar em penei- Ya assumir formas animais e controlar o tempo. x grupo afirmavam Tudo isso Agnes Sampson e seu | em suas tentativas de afundar o que haviam feito 5 ‘ navio que trazia da Dinamarca 0 rei Jaime. Mas as bruxas de Shakespeare também tem tragos da bruxa inglésa — _suas barbas, seus demG6nios fa- ifiliares em forma de animal e_seus atos de mes- quinha vingan¢a contra 0 marinheiro e sua mulher. ‘Essas eram acusacoes contra muita pobre velha nas audiéncias. Seu dom de profecia expressa em enig- mas — nao se encontra em Holinshed a forma de expressio enigmdtica — liga-as a caracteres tais como Mother Bombie ou Erestus”. Por outro lado, continua a mesma Bradbrook, os podéres das Weird Sisters sio superiores aos das bruxas comuns, uma vez que podem esvaecer-se instantaneamente como bélhas, o que sugere um poder demoniaco, que assu- me a forma humana e dela se desfaz. “Elas nao demonstram médo ou sujeigéo a férgas diabélicas mais altas ; embora os espiritos evocados na cena do caldeiréo sejam chamados “nossos amos”, as bruxas os conjuram e falam-lhes com autoridade”. © proprio Macbeth, de resto,-afirma que a ciéncia s é i Hale ates Dome w urere Gu ao dizer que vendera sud Nava seeniee Oe eterna, aa falnigo con a — vacao, isto é, sua alma isso de estranho noi um dos homens. Nada tem » pois as divindades pagiis desde os A Tracépia DE MACBETH 23 inicios do Cristianismo haviam passado a ser en- caradas como deménios; Hécate, deusa paga, surge nos trechos interpolados na condigéo de “senhora das bruxas”, portanto como férga demoniaca, e isso pode ter-se dado também com as Weird Sisters, assim infernalizadas. Por isso mesmo, isto é, por- que as Weird Sisters nfo sio apenas projegées das Nornas ou fércas andlogas 4s Parcas e Moiras, mas figuras transfeitas em bruxas, deménios ou agentes do deménio, é que nao se prope, na pega, 0 caso da fatalidade ou do livre arbitrio. Macbeth nao ~nos d4 a impressdo de nao ser responsdvel por seus atos, como bem sublinha Kittredge. Aqui, porém, se apresenta um problema, o da tradugio do nome. A forma “irmas fatidicas” (soeurs fatidiques), adotada por Maeterlinck, com base, segundo parece, nas “sorores fatidicae” de Gwynne, nao transmite 4s irm&s a dignidade mi- tica que trazem de suas origens. ‘Parcas”, equi- valente latino, néo comunica a atmosfera nérdica. Assim, traduzo 0 nome por Mdes-dos-Fados, o que confere As irmas, suponho, a grandeza e a dignidade que competiam a séres tao terriveis como as Nor- nas, embora se tenha presente que, em Shakespeare, as Weird Sisters se transformam em criaturas de- monfacas e agem por vézes como simples bruxas ou meros magos. De qualquer modo sao criaturas “so wither’d and so wild in their attire, / That look not like the inhabitants o’ the earth”, e, assim, dio a impresso de fantdsticas, o que bruxas banais nao dariam. é Quanto a Banquo,’/cumpre assinalar que nado é figura histérita;mas inventada por Heitor Boécio ve 4 pégicurs Buoanro pa Stuva Ramos « tificar a linhagem dos Stewarts; como jg Pa ae eespeare nao segue Holinshed para as * racterizé-lo, mas transforma-o num varao justo e corayrestaria assinalar, ainda, que as histé6rias do homem “néio nascido de mulher” e do “bosque que anda” tém raizes foleléricas e lend4rias profundas, Shakespeare achou-as em Holinshed, sendo certo, de acérdo com Kittredge, que nos textos que nos res. tam o primeiro a ligar as duas profecias a Macbeth foi Wyntown. Furness Jr. traz digressdes sébre homens nao _nascidos de mulher e sobre cortes de galhos, de Simrock, Halliwell e Ritter (14), me- recendo referéncia que 0 heréi do Livro dos Reis de Firdausi, Rustum, veio ao mundo como Macduff, o mesmo se dando com outras figuras de grande férga e heroicidade: assim Wélsung, ancestre de Sigurd. A PEGA A respeito da pega, mereceria referéncia o fato de decorrer em ambiente escuro e pesado, de crimes no meio das trevas, de médo e inseguranga. Se- gundo L. C. Knights (15), Macbeth é uma afirma- ¢éo do mal, e na pega fundem-se dois temas prin- cipais: 0 da inverséo de valores e o da desordem inatural. Cada um désses temas é fixado no pri- meiro ato; um quando da assergéo de que “fair is foule, and foule is fair”; o outro_na segunda cena, cheia de imagens de confusio. Pela pega toda, 9 homicidio, sendo inatural, gera situagdes jnaturais; (14) Op. cit., pags. 398-400. (16) Szplorations, Chatto a Windus, Londres, 1951, PAs» A Tracépia bE MACBETH 3 logo depois do assassinio de Duncan, a cena IV do segundo ato reflete ésses distiirbios: o dia torna-se noite, uma coruja mata um falcio, os cavalos do Rei se entredevoram. E com ésses temas decorre téda a peca, através da qual Macbeth age sempre de modo desleal ou atroz. XApesar disso, a audién- cia shakespeariana, assinala-o Sir Arthur Quiller- -Couch, sentia piedade ou terror, nao por causa dos fatos horriveis, mas para com Macbeth, o autor dos feitos sangrentos. E a causa de tal comiseragéo era e 6, ainda segundo Quiller-Couch, a majestade da fala do heréi da tragédia, que levava o publico a sentir que Macbeth era de algum modo um grande homem (16). Frisa ainda o critico que, nas fra- gilidades de Macbeth e de Lady Macbeth qualquer homem ou mulher podia reconhecer-se, agradecendo a Providéncia nao estar na situagéo de ambos. Por isso mesmo o poeta e dramaturgo alemio Grillpar- zer “procurou a solugdo do problema na concepg&o de Macbeth e de Lady Macbeth como homem e mu- lher, abstratamente, tipos do universal masculino e do universal feminino.em seu_carater—e agoes. Assim, h4é uma simpatia natural por éles em todos nés que pertencemos a um sexo ou outro” (17). A TRADUCAO Na presente tradug&o adotamos o verso decas- silabo, que corresponde na medida ao pentémetro idmbico do original. Deixamos passar dodecassila- (16) Shakespeare's Workmanship, 1918, cap. I. (17) Apud C. J, Sissom, Shakespeare’s Tragic Justice, Methuen, Londres, s.d., pigs. 12-18. 26 péricuks BuGENIO DA ‘Sriva Ramos cakes jo deve causar escAndalo, pois bos c& € Is 0 ginal foge muitas vézes, por outrog ae padrio decassilabico — como é sabido as ati supérfluo recordar. é 6 «oJege ainda que as bruxas falam com ait aloes de quatro acentos — o que tradu- zimos com heptassilabos no inicio, e no corpo da pega com eneassilabos compostos; 08 versos das in- terpolagdes em que surge Hécate, iambicos de qua- tro acentos, traduzi-os também erm decassilabos. Feita essa observacdo, nao faltard talvez quem ache demasiado por mais uma vez 0 Macbeth em nossa lingua, a vista, principalmente, das tradugées anteriores dos poetas Artur de Sales e Manuel Ban- deira. A ésse respeito, de fato o Macbeth é mais afortunado que 0 Hamlet, que nao contava em nos- so pais com tradugéo em verso até ha poucos anos. Mas o fato de haver tradugdes anteriores n&o quer dizer que isso deva constituir barreira a novas tra- dugées, pois nao pode o culto shakespeariano sofrer peias dessa ordem ; assim, em nossa emprésa deve ser visto néo o ridiculo desejo de emular, mas o tri- buto de uma geracao mais recente ao cisne do Avon. Acrescente-se que é nosssa inteng&o traduzir tédas as grandes tragédias e as pecas romanas que Sha- kespeare nos legou e com ésse propésito nao seria compativel a exclusio do Macbeth. _ © texto de que nos servimos foi o de Kenneth Muir (The Arden Shakespeare, Macbeth, Methuen, Londres, 8.* edicéo, 1958), com algumas ressalvas spouiadas em nota; também nos valemos, copiosa- ‘7 ao George Lyman Kittredge, Sixteen Plays espeare, Ginn, Boston, ed. de 1946, de cujas A Trackpia DE MACBETH 27 valiosas notas muito nos socorremos; de Horace Howard Furness Jr, A New Variorum Edition, Macbeth, 5.° edig&o, Lippincott, 1903 (na reprodu- gio Dover, New York, 1963), notével trabalho no qual em regra obtivemos as interpretagées da cri- tica até 1903; de John Dover Wilson, New Cam- bridge Shakespeare, Macbeth, Cambridge, 1947, bem como de outras edicées, coletivas ou nao, entre as quais as de C. J. Sisson, de George Gordon, de Os- car J. Campbell, de W. J. Graig, para citar algu- mas. Consultamos também, em questdes de difi- culdade textual, New Readings in Shakespeare, de C. J. Sisson, vol. II, Cambridge, 1956, e, quanto ao sentido de alguns vocdbulos, 0 glossdério de Onions, sem falar no Diciondério de Oxford (O. E. D.). Se- ria fastidioso, talvez, citar outros livros que nos auxiliaram em determinados pontos, como, para re- ferir apenas um, o de H. M. Hulme, Explorations in Shakespeare’s Language, Londres, Longmans, 1962; basta assinalar que nosso débito é avultado para com muitos editéres e criticos. Acentuamos, afinal, que anotamos o texto com certa minudéncia para mais perfeita compreensao, pelo leitor, da tragédia shakespeariana, na tradugao ou no original. Moveu-nos pois, como se evidencia, nao o desejo de mostrar erudigéo, mas o de facili- tar a inteligéncia de uma das grandes tragédias de Shakespeare, de expresséo por vézes extremamente concentrada ou mesmo ambigua. Sao Paulo, 25 de junho de 1965.

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