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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS

JHENNYFER MAYARA PERTILLE

A VISÃO SOCIAL E LITERÁRIA DA MULHER DA GERAÇÃO BEAT COM BASE


NA OBRA MEMÓRIAS DE UMA BEATNIK DE DIANE DI PRIMA

CURITIBA
2014
JHENNYFER MAYARA PERTILLE

A VISÃO SOCIAL E LITERÁRIA DA MULHER DA GERAÇÃO BEAT COM BASE


NA OBRA MEMÓRIAS DE UMA BEATNIK DE DIANE DI PRIMA

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Letras - Português da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, como
requisito parcial à obtenção do título de
Licenciatura em Letras Português.

Orientador: Profª.Drª. Janice CristineThiél

CURITIBA
2014
Página reservada para ficha catalográfica que deve ser confeccionada após
apresentação e alterações sugeridas pela banca examinadora.
Deve ser impressa no verso da folha de rosto.

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JHENNYFER MAYARA PERTILLE

A VISÃO SOCIAL E LITERÁRIA DA MULHER DA GERAÇÃO BEAT COM BASE


NA OBRA MEMÓRIAS DE UMA BEATNIK DE DIANE DI PRIMA

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Letras - Português da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, como
requisito parcial à obtenção do título de
Licenciatura em Letras - Português.

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________
Profº. Drº. Marcelo Franz
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________
Profª.Drª. Janice CristineThiél
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Curitiba, 18 de junho de 2014.


Verdade, Fernando: Jamais conheci
mesmo quem levasse porrada.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a força da revolução feminina que desde o século passado lutou


pela igualdade e para que as mulheres conseguissem se dedicar a vida acadêmica e
literária, vocês lutaram por mim e eu luto por vocês.
Agradeço aos meus colegas de curso, Francis Beheregaray e Isabella Micoski
que estiveram ao meu lado durante essa caminhada.
Agradeço a minha professora orientadora Janice Thiél, pela paciência e
dedicação ao trabalho.
Meu agradecimento especial a minha mãe, Cleo Castro, que fez o papel de
pai e mãe. Foi ela quem batalhou para que eu e meu irmão Jhonny Castro
conseguíssemos uma formação acadêmica de qualidade. Eu te amo.
Eu vi os expoentes da minha geração destruidos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de
madrugada em busca de uma dose violenta de
qualquer coisa...

(GINSBERG, 1999, p.27)


RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso visa analisar o papel da mulher da


geração beat e o avanço literário pelo qual ela foi responsável, bem como a
aceitação que teve dos membros do próprio grupo contracultural e da sociedade
norte americana em que estava inserida. Com base em referencial teórico e na
análise da obra Memórias de uma Beatnik de Diane di Prima, de gênero
memorialístico, foi possível perceber como a autora narra não apenas suas
experiências como integrante do movimento, mas também descreve sua dificuldade
em ser aceita propriamente como escritora. Além da análise literária e do estudo dos
elementos estéticos da obra, foi ainda apresentado neste trabalho um panorama
histórico da geração beatnik a fim de podermos contextualizar o mundo, a sociedade
e o grupo em que di Prima estava inserida.

Palavras-chave: Papel da mulher. Geração Beatnik. Memórias de uma Beatnik.


Diane di Prima.
ABSTRACT

This paper aims at analyzing the role of women of the Beat Generation and the
literary breakthrough for which she was responsible, as well as her search for
acceptance by members of the countercultural group and by North American society.
Based on theoretical references ando n the analysis of Diane di Prima’s Memórias de
uma Beatnik de Diane di Prima, it was possible to notice that the author has built not
a story about her experience as parto f the beatnik movement, but she also has
described her dificulty to be accepted as a writer herself. Besides the literary analysis
and the investigation of the aesthetic elements of the book aforementioned, this
paper ha salso focused on presenting a historical view of the beatnik generation in
order to contextualize Di Prima’s world, the society and literary group.

Key-words: Women’s role. Beatnik Generation. Memórias de uma Beatnik. Diane di


Prima.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10
2 A GERAÇÃO BEATNIK E O CONTEXTO SOCIAL .................................... 13
2.1 A ESCRITA FEMININA ................................................................................. 16
3 UMA BEATNIK CHAMADA DIANE DI PRIMA ............................................ 19
3.1 MEMÓRIAS DE UMA BEATNIK E A MULHER LITERÁRIA ......................... 20
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 25
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 27
10

1 INTRODUÇÃO

A geração beatnik ou simplesmente beat foi um movimento contracultural que


surgiu por volta da década de 1940, mas veio a ganhar notoriedade apenas nas
décadas de 1950 e 1960, mais precisamente, o termo beatnik surgiu em 1958, pelo
jornalista Herb Caen, na Universidade de Columbia. Os jovens desta época
começaram a contrariar a bandeira que a elite levantou, de progresso e otimismo, já
que estavam passando por um período onde a guerra fria gerava medo de que
viesse a ocorrer uma terceira guerra mundial. Como afirma Hobsbawn (2008, p.
224), a Guerra Fria “(...) baseava-se numa crença ocidental, respectivamente
absurda, mas bastante natural após a Segunda Guerra Mundial, de que a Era da
Catástrofe não chegara de modo algum ao fim”. Além do medo, os americanos
estavam inconformados com o "sonho americano" e com a fase que o mundo e a
sociedade estavam passando, buscaram refúgio na literatura, no jazz, nas drogas e
nos becos da cidade, uma vida mais fácil em tempos de fúria.
Os Estados Unidos foram o país que conseguiu mais lucrar com a guerra e
passou a defender uma visão capitalista e burguesa, conhecida como way of life -
expressão utilizada pela mídia para mostrar as diferenças da qualidade de vida entre
as populações dos blocos capitalista e socialista - e junto com esse novo estilo de
vida surgiu também uma sociedade consumista, comportamento este que está
diretamente ligado à imagem de um círculo familiar perfeito, onde o marido era o
responsável por trazer renda à família, trabalhando e a mulher era encarregada de
cuidar da casa e dos filhos. Na década de 1960, uma visão mais ampla trouxe a
questão das necessidades práticas das sociedades norte-americanas, logo, linhas
de estudo começaram a ser abordadas, como o pensamento freudiano e o
marxismo, adotando uma postura mais rígida diante da sociedade. Nesse mesmo
tempo, romperam-se vários tabus e valores tradicionais da sociedade norte
americana, através de uma Nova esquerda: os beats, hippies, gays, feministas,
negros e intelectuais.
A imagem da mulher em um contexto geral, logo ficou padronizada, a figura
das pin-ups, mulheres que traziam um ar de erotismo e ao mesmo tempo
submissão, representavam a visão popular da época, principalmente as que
carregavam uma imagem de mais comportadas, fotografadas cuidando da casa e
com roupas menos ousadas. Apesar de todos os estereótipos que a sociedade
11

pregava, grande parte dos jovens das décadas de 1950 a 1970 se manifestaram
contra o american way of life, formando movimentos que levantavam bandeiras com
lemas como Peace and Love e Make love, not war, movimentos estes chamados de
contracultura. Neste contexto, a mulher teve representação ativa, a mulher eleitoral
se tornou peça chave no cenário político
De acordo com Ferreira (2005, p. 106):

As mulheres em geral saíram do “cabresto” do marido e passaram a


escolher os seus próprios candidatos. Muitas já preferem votar em
mulheres, ou em quem apresenta as melhores propostas para o gênero
feminino. Com essa participação mais efetiva, os políticos em geral foram
obrigados a pensar em uma propaganda que não só conquistasse os
eleitores, mas também as eleitoras. A figura feminina passou a ser usada
para dar credibilidade, para reforçar o discurso do candidato e para
conquistar o voto da sociedade.

Com muito esforço e luta, as mulheres dessa geração fixaram seu poder,
mudaram a representação da sua figura na sociedade e tomaram impulso para
soltarem as amarras do preconceito e do machismo, aquelas que faziam parte da
geração beatnik em si - companheiras, amigas, ativistas e escritoras - eram
consideradas outsiders, ou seja, elas não se enquadravam na visão popular da
época, andavam em grupos e participavam ativamente de movimentos literários,
seja escrevendo ou sendo musas e fazendo parte das histórias - fictícias ou não -
que por muitas vezes envolviam drogas, bebidas e sexo sem pudor. As mulheres
que estavam ligadas direta ou indiretamente ao mundo da escrita eram mal vistas
pela sociedade padrão da época. Ao invés de cuidar do marido e de filhos, essas
mulheres participavam de manifestações sociais, culturais, políticas e de todo o
movimento intelectual do momento, sendo assim, as grandes responsáveis por
anunciar o segundo momento da história do feminismo, como aponta NAVAZ &
KOLLER (2006, p.649), “A segunda fase do feminismo ressurge nas décadas de
1960 e 1970, em especial nos Estados Unidos e na França. As feministas
americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da
igualdade”. A igualdade que as mulheres buscavam era conhecida como “o
feminismo da igualdade”, onde as mulheres lutavam por empregos com o mesmo
salário que os homens ganhavam e a possibilidade de entrar em uma universidade
com os mesmos privilégios.
Infelizmente nem todos tiveram seu valor reconhecido; na geração beat não
foi diferente. As mulheres desta geração, que participaram de um momento chave e
12

ultrapassaram barreiras impostas não só pelo gênero sexual, mas também por um
estilo de vida sui generis, foram outsiders e não foram tão ovacionadas quanto os
homens. Embora ambos possuíssem e buscassem sempre comportamentos
igualitários e estilos de vida alternativos, poucas são as obras traduzidas para outros
idiomas escritas por mulheres e pouco se ouve falar da figura feminina atuante na
época. Dentre algumas escritoras que faziam parte da geração beat, a que mais se
destacou foi Diane Di Prima, que chegou a ser procurada por editores pioneiros para
escrever cenas de romances eróticos, como aparece na obra Memórias de uma
Beatnik de Di Prima (2013, p. 212)

Eu havia conhecido Maurice Girodias em Nova York e escrito as cenas de


sexo para alguns romances chatos e inóculos que ele adiquirira para serem
usados como esqueletos de enredo aos quais seriam adicionadas cenas
lascivas, como orégano ao molho de tomate. Antes da minha partida, ele
me pedira para escrever um romance, e quando ficou óbivio que o dinheiro
estava escasso (...) comecei a trabalhar e logo escrevi páginas suficientes
para receber um adiantamento.

Maurice Girodias, mencionado por Diane, foi dono da Olympia Press e


publicou autores como Nabokov, Samuel Backett, Willian S. Burroughs e várias
subliteraturas eróticas. A maior parte dos autores lançados por Girodias criaram
nome e foram devidamente reconhecidos, mas Diane foi usada como produto, sendo
forçada – obviamente pela condição financeira – a escrever textos que
obrigatóriamente fossem comercias e não aquilo que ela geralmente produzia, ou
seja, as mulheres que estavam envolvidas no meio literário desta geração se
tornaram muitas vezes coadjuvantes e grandes escritoras foram diminuidas e
esquecidas.
Podemos reconhecer a geração beat como um grupo aberto e por muitas
vezes sem restrições a homossexuais, negros, boêmios, hippies etc. Como afirma
FANTI & FEIJÓ (2012, p. 9)

Esse grupo se diversificava com Diane di Prima, a primeira mulher, Anne


Waldman e Leroy James, o afro-ameriano. Tornaram-se altamente
antiautoritários. A influência dos beats entrou nos anos 60 a dentro
influenciando artistas, escritores, cineastas, dramaturgo, jornalistas. No
desenvolvimento cultural desta época, aliando a música e todas as outras
formas de arte e também a mídia, há uma disseminação desta contracultura
que atinge principalmente os jovens pela música.

Na prática poucas foram as escritoras que conseguiram alcançar um espaço


privilegiado no grupo e ficarem marcadas no meio beat como aconteceu com Diane
13

di Prima. Grande parte das mulheres chegaram a ser inferiorizadas em alguns


textos, fazendo até mesmo papel cômico, sendo consideradas ignorantes, nas
conversas filosóficas. Por esse e outros motivos é que BUENO e GOES (1984, p.34)
tratam a fraternidade como um “verdadeiro Clube do Bolinha”. Algumas escritoras
não são reconhecidas pelas suas obras em si, e sim associadas à fraternidade com
a identidade de "esposas", "namoradas", "amantes" e até mesmo como groupies dos
grandes escritores deste período.
A proposta desse trabalho de conclusão de curso é analisar as causas que
levaram a essa visível diferença de gênero e os contrastes que tomaram conta de
uma geração tão aberta e que lutava pela igualdade de sexo, raça, classe social,
opção sexual etc. Os valores e contribuições que as mulheres dessa geração
tiveram na história da literatura beat e no movimento feminista foram de grande
importância, serviram de válvula propulsora para muitos movimentos, feministas ou
não, que surgiram posteriormente. Esse trabalho, pretende contribuir e ampliar os
horizontes de visão sobre vários aspectos, não apenas na questão mulher, mas
também na literatura beatnik e no movimento cultural em si.

2 A GERAÇÃO BEATNIK E O CONTEXTO SOCIAL

Quando a geração beatnik é mencionada, logo vem a cabeça uma


contracultura associada à marginalidade, mas não podemos analisar de forma
negativa o movimento contracultural, já que ele propôs uma nova maneira de
pensar, sentir e agir, se tornando um fenômeno de proporções continentais. Os
jovens das décadas de 1950 a 1970 estavam inconformados com a situação que a
segunda guerra mundial havia gerado, estavam desiludidos após verem a violência
da guerra da Coréia, na qual morreram aproximadamente 4 milhões de pessoas, e
perceberem o fortalecimento da brutal Guerra do Vietnã, que fez mais de 1 milhão
de vítimas. Os jovens discordavam de todas as regras, doutrinas e condições
impostas pelo padrão social e pelo governo dos Estados Unidos, manifestavam seu
descontentamento ao american way of life e formaram vários movimentos que a
mídia denominou de contracultura. Birnbaum (1968, p. 26) define essa questão:

[...] a geração oriunda da elite da sociedade industrial e de sua intelligentsia


técnica negou tanto a legitimidade quanto a eficácia dos métodos de ensino
que seguiu. Passou do descontentamento e da desobediência para a
revolta. Fazendo isso, não hesitou em entender sua campanha contra as
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instituições políticas centrais da sociedade. Podemos notar de passagem


que ela frequentemente indicou, pelo estilo das relações interpessoais que
adotou, por seu comportamento e sua maneira de vestir, o seu desprezo
para com as convenções seguidas por seus pais. Resumindo, aqueles a
quem a sociedade industrial oferecia perspectivas de futuro assegurado
votaram-lhes as costas e procuraram avanças para o desconhecido: para
uma hipotética comunidade de justiça, de razão e de alegria.

A sociedade desta época havia acabado de se ver livre da segunda grande


guerra mundial, e estava abalada pelas maiores atrocidades que ocorreram no
decorrer do século XX. A Segunda Guerra Mundial gerou um grande medo e receio
nas pessoas e até mesmo nos norte-americanos que saíram praticamente intocados
durante esse período. De uma certa forma, as vivências dos escritores estão
diretamente ligadas à sua produção literária e a Segunda Guerra Mundial acabou
impulsionando a escrita e mudando a forma dos escritores tratarem a literatura. Para
CEVASCO (2009, p.269), “os novos tempos do pós-guerra pediam uma visão mais
democrática e inclusiva de cultura e uma forma mais integrada de ver as formas
culturais como articulações de processos sociais reais”.
Na década de 50, o american way of life e os Estados Unidos eram modelo de
desenvolvimento e crescimento para os outros países ocidentais. Na visão do
american way of life, todo cidadão que se prezava tinha um carro, uma casa, uma
mulher e um emprego. A vida que se levava na éopoca, era a mais conservadora
possível; enquanto o marido trazia o sustento para dentro de casa, a mulher cuidava
dos filhos e dos afazeres domésticos com a ajuda dos mais variados
eletrodomésticos que estavam surgindo. A sociedade burguesa era mais do que
nunca impulsionada pelo consumismo, buscava o conforto e a praticidade para o dia
a dia. Esses burgueses, muitas vezes, criticavam a vida alternativa que os beats
levavam e até mesmo aqueles seguidores do movimento que não abusavam do
álcool e das drogas eram considerados marginais. Os beats geralmente eram
acusados de vagabundagem, gerando um enorme conflito de ideologia e aceitação.
Enquanto os burgueses criticavam os seguidores e participantes do movimento
contracultural, os beats contrariavam o pensamento determinado pela sociedade;
para eles, a vida deveria ser usufruida com a maior intensidade possível, deixando
de lado essas normas de felicidade mascarada. Os beats buscavam a realização e
satisfação em algo além do que um padrão imposto pela sociedade poderia lhes
proporcionar, algo que dinheiro nenhum poderia comprar, a liberdade.
15

A geração beat foi herdeira de diversas revoluções culturais, como o cinema


chamado de exploitation, com filmes que contavam com pouca verba e baseados na
literatura barata, explorando sexo e sangue. Esses filmes eram normalmente
exibidos em pequenos cinemas chamados de Grindhouse, na Rua 42 em Nova
Iorque. As artes plásticas também serviram de influência para os jovens beats. A
arte que inspirou-os foi a Pop Art; os pensamentos dos artistas plásticos dessa
geração eram quase idênticos aos pensamentos dos beatniks. Para BRANDÃO
(2012, p.46) “(...) o movimento também fazia críticas ao consumo exagerado
norteado pelo capitalismo pós-industrial, o qual usou a arte para atrair consumidores
em um processo de transformação da realidade em hiper-realidade.”. Dentre essas
revoluções culturais, a que mais se destacou foi a literatura, na qual os escritores
deixavam claro as influências diretas do jazz - estilo de música que era consumida
por negros e pobres da periferia dos Estados Unidos - e tinham como meta produzir
uma literatura que se aproximava do contexto em que viviam na época, ou seja, uma
literatura completamente (sub)urbana e realista, produto de uma cultura e sociedade
controladora, omissa e principalmente preconceituosa. Em On the Road, por
exemplo, livro escrito pelo ícone beatnik Jack Kerouak, é mencionado que os beats
frequentavam bares onde se tocava jazz e que ficavam nas proximidades de New
Orleans ou em São Francisco. Quando não estavam nesses bares, costumavam
ouvir jazz no último volume dentro do carro em alta velocidade. BRANDÃO (2012,
p.48), define a arte contemporânea e ajuda-nos a perceber o tempo e momento
histórico em que ela ocorre:

A antiarte contemporânea interfere diretamente na realidade, reflete e


simultaneamente critica o consumo, é a arte das massas, do pastiche, dos
museus para as ruas. Representa uma desvinculação total para com os
projetos de arte anteriores e sem tentativa interior de superação. Acontece à
medida que o consumo acontece, porém norteada pelas críticas sobre a
vida momentânea sem interpretação ou virtude fortemente requerida. É a
expressão máxima do cotidiano: a arte imita e é a própria vida.

Os integrantes do movimento beat se destacaram com a contracultura e


lutaram por ideais que na época eram marginalizados, como a luta contra a
homofobia, racismo e contra o sexismo, ou até mesmo a luta pelo sexo e drogas
livres. Além de relatarem com grande frequência fatos do próprio cotidiano – muitos
ícones dessa geração escreveram (auto)biografias -, os escritores desse movimento
16

costumavam construir uma intertextualidade com outros grandes autores. Para Willer
(2009, p 63):

Distinguiam-se não só pela intensidade, mas pela voltagem literária.


Projetaram em seu comportamento os autores que liam: ao viajar, podiam
ser Rimbaud ou Herman Melville; transitando pelo submundo, realizavam
Dostoievski, Genet ou Hart Crane; fazendo um discurso profético,
encarnavam Whitman; ao terem visões, eram Blake, Yeats ou Böhme; sob
alucinógenos, reviviam De Quincely, Baudelaire, Michaux; internados,
faziam parte, a exemplo de Artaud, da confraria dos escritores loucos; ao
relataram tudo isso, traduziam a seu modo Dostoiévski, Proust, Gertrude
Stein e Thomas Wolfe.

Ou seja, seus escritos dialogavam com textos questionadores de períodos


literários anteriores, apesar da marginalização que lhes foi incumbida, seguindo com
uma grande bagagem literária, filosófica e social para o que produziam, o que
acabava enriquecendo e dando a intensidade à obra literária à qual Willer se refere.

2.1 A ESCRITA FEMININA

A crítica feminista começou a crescer apenas por volta da década de 1970,


pois a escrita desse gênero era visivelmente ignorada e muitas vezes não era aceita
como arte. Grande parte da literatura realizada pelas mulheres se perdeu com o
tempo, mas o avanço da crítica nesta área fez com que historiadores literários
começassem a resgatar e interpretar textos deste meio.
A crítica que notou a literatura de autoria feminina na geração beat chegou
tarde, tivemos o estudo feitos por Knight (1996) dos livros de Denise Levert, Edie
Parker Kerouac, Anne Waldman, Madeline Gleason, Joanna McClure, Joyce
Johnson, Helen Adam, Jane Bowles, Joan Burroughs, Josephine Miles, Eillen
Kaufman e Elise Cowen. Johnson & Grace (2002) fizeram estudos dos livros de
Joanne Kyger, Janine Pommy Vegas e Anne Waldman. Pro fim, Lee (1996) que
lança uma coletânia onde destaca as poetisas Bonnie Bremser e Carolyn Cassady.
O que podemos perceber é que mesmo com esse leque de escritoras beat, a que
aparece com mais frequência é Diane di Prima.
A mulher que escrevia ou procurava participar do mundo acadêmico, antes
deste período de descoberta da literatura excluída, era considerada um ser de baixa
intelectualidade mas que queria passar por uma pessoa culta e bem educada. A
escrita feminina era principalmente recriminada pelos homens brancos e da classe
17

média alta, que eram o topo da elite letrada e culta. As mulheres se encaixavam no
grupo das minorias sociais, onde estavam também os negros, os pobres e os
homossexuais.

Ser o outro, o excluso, o estranho é próprio da mulher que quer penetrar no


“sério” mundo acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por motivos
mitológicos, antropológicos, sociológicos e históricos, a mulher foi excluída
do mundo da escrita - só podendo introduzir seu nome na história (...)
através de arestras e frestas que conseguiu abrir através de seu
aprendizado de ler e escrever em conventos (LOBO, 1999, p.5).

Essa reflexão de Lobo esclarece o principal motivo para a exclusão e


recriminação da mulher. Os motivos que impulsionaram a falta de reconhecimento
da escrita feminina não vem de hoje e foram gerados por ideologias que se
mantinham geração após geração.
Quando o mundo viu-se de frente com o pós guerra, a arte começou a tomar
proporções diferentes: “É na América, nesse peculiar nexo de niilismo e jovialidade,
(...) que começa a história da Contracultura” (GOFFMAN; JOY, 2004, p. 251). Até
então os adultos e jovens consumiam filmes de Hollywood e quadrinhos de super-
heróis, as mulheres se portavam como intocáveis e inacessíveis, grandes damas
que usavam roupas comportadas e que não deixavam aparecer muito a pele. A
geração seguinte veio para quebrar essa visão. Os filmes, músicas e
consequentemente a literatura agora criavam uma forma de expressão do que há
tanto tempo havia sido oprimido. Como reação, nessa fase de descobertas, a mulher
soltou as amarras do preconceito, buscando a liberdade para poder se expressar
tanto quanto os homens.
Mesmo com todas essas descobertas modernas, muitas mulheres ainda eram
subestimadas, dominadas e diminuidas. Eram criticadas e dadas como loucas pelas
próprias famílias, apenas por desejarem se tornar livres, como podemos analisar em
uma fala de Gregory Corso em uma entrevista, quando foi perguntado por uma
mulher da plateia o motivo para não haverem muitas mulheres participantes do
movimento beat. Ele inclina-se para a frente e, totalmente sério, responde:

Havia mulheres, elas também estavam lá, eu as conheci, suas famílias as


colocavam em sanatórios, e elas recebiam choques elétricos. Na década de
50, se você fosse homem você poderia ser um rebelde, mas se você fosse
mulher, sua família poderia trancá-la. Houve muitos casos assim, eu os
presenciei, e algum dia alguém ainda vai escrever sobre isso. (CORSO,
1994)
18

A mesma geração que se tornou aberta a novas descobertas, impossibilitou


grande parte das mulheres de se mostrarem iguais. Aquelas que acompanhavam as
aventuras e histórias dos homens da geração beat, acabavam várias vezes sendo
inferiorizadas e negativamente descritas, como analisa SANTOS (2012, p. 58):

Em 1955, Kerouac vai à Cidade do México. Por conta da sua recente


conversão ao Budismo, procurou se afastar de prostitutas, mas não resistiu
ao consumo de drogas e bebidas. Lá conheceu Esperanza Villanueva, viúva
de um traficante de drogas conhecido de Burroughs. A imagem daquela
mulher açoitada pela própria personificação da decadência, da forma como
é escrita pelo biógrafo, desperta em Kerouac uma fascinação pela “morta-
viva”, pela mistura de olhos de Billie Holiday e o jeito resignado da Virgem
Maria.

É inquestionavel a forma depreciativa em que as mulheres são tratadas. Tudo


isso acontece mesmo com toda a luta pela igualdade sexual e busca por uma
sociedade que ampliasse o campo de visão, para sair do mundo de máscaras e
artificial criado pelo american way of life.
19

3 UMA BEATNIK CHAMADA DIANE DI PRIMA

Diane di Prima é descendente de uma família italiana e nasceu em 1934, em


um bairro pobre dos Estados Unidos. Diane foi e é considerada a escritora mais
importante da geração beat, aquela que conseguiu se sobressair sem depender da
ajuda dos grandes nomes da geração, Diane não é lembrada como amante,
namorada ou esposa dos homens da geração, Diane é lembrada apenas como
Diane di Prima, a escritora e poetisa beat. Mesmo com talento e sabedoria, grande
parte do tempo ficou na sombra de grandes escritores como Allen Ginsberg e Jack
Kerouac, já que a sociedade machista acabava ofuscando o reconhecimento e o
talento da mulher.
Sua descendência italiana foi parte de sua formação e orientação política e
comportamental, que veio principalmente de seu avô materno, Domenico Malozzi
que a influenciou com sua vivência ateísta e anarquista. Herdou do seu avô também
o gosto pela ópera e pela literatura, Diane começou a escrever com apenas sete
anos de idade mas foi com quatorze anos que começou a perceber a criação
literária como prioridade em sua vida. Mais tarde, no final dos anos 1950 e início dos
anos de 1960, Diane mudou-se para Manhattan, onde fez seu primeiro contato com
a cultura beat. Sua primeira publicação ocorreu nesse meio tempo, mais
precisamente em 1958; seu primeiro livro levou o nome de This kind of Birds Flies
Backward. KRIM (1968, p. 84) consegue resumir a figura de Diane di Prima:

Diane di prima, de olhos devoradores, quis certa vez estudar física e foi
para a Universidade de Swarthmore. Chegando lá, entregou-se à musa
boêmia e começou a escrever seus poemas em prosa num estilo pessoal,
verdadeiro, requintado e fatal. Entre cerca de vinte e cinco escritoras jovens
da atualidade, Diane se sobressai por sua genuína modernidade. Inteligente
e lúcida, ela possui além do mais um espírito sincero, tenso e dolorido. Suas
histórias são cortantes como a ponta de um bísturi, e seu futuro é tão
importante para a literatura em geral quanto para o movimento
especificamente beat. Diane é uma escritora fascinante que conseguiu,
jovem ainda, o que os outros escritores mais velhos lutam para alcançar –
se é que alcançaram. Embora Diane passeie de mãos dadas com a
preciosidade, ela jamais se deixa cativar a ponto de perder a consciência do
que faz: sinal evidente de que presenciamos algo surpreendente com essa
jovem de raras qualidades.

Podemos analisar que Diane conseguiu se sobressair em um mundo que


tentava engolir a figura feminina. Infelizmente foi uma das poucas e se comparada
20

com os homens, seu reconhecimento pode ser considerado muito superficial, mas o
passo que ela deu, com certeza foi o início da revolução e transformação da escrita
literária feminina.
Diane se dedicou ao mundo da arte não apenas pelo meio literário ela
também fundou o Teatro dos Poetas de Nova Iorque (New York Poets Theatre) e a
Editora dos Poetas (Poets Press).
Na década de 1970, Diane lançou seus livros que ganharam mais
repercussão: Revolutionary Letters (1971) e Loba (1978). O livro Revolutionary
Letters foi baseado em seu ativismo político e no grupo de teatro anarquista que foi
fundado por Emmett Grogan.
Ao todo, Diane publicou 43 livros de poesia e prosa, recebeu por eles prêmios
por sua trajetória literária e títulos honorários de literatura. Em 2009, foi eleita poeta
laureada.
Atualmente, Diane mora em São Francisco, onde continua produzindo
literatura e promove cursos. Em 2001, publicou Recollections of My Life as a
Woman. Em 2002, lançou Towers Down, em 2003 publicou The ones I used to laugh
with e em 2006 Timebomb. Em 2008 a obra Loba foi republicada e ampliada,
contendo o dobro do material de publicação anterior.

3.1 MEMÓRIAS DE UMA BEATNIK E A MULHER LITERÁRIA

Como o próprio nome do livro fala, a obra é uma composição de memórias da


beatnik Diane Di Prima, que participou mais ativamente da geração beat, o livro é
um misto de realidade e ficção, podendo ser considerado um livro do gênero
memorialístico. A memória do passado na literatura, segundo BRANCO (1994, p. 26)
é descrita como “O passado não se conserva inteiro, como um tesouro, nos
receptáculos da memória, mas se constrói a partir de faltas, de ausências (...) o
gesto de se debruçar sobre o que já se foi implica um gesto de edificar o que ainda
não é, o que virá a ser”. Se analisarmos dessa maneira, o gênero memorialístico é
como um arquivo de onde retiramos apenas as partes que são boas do nosso
passado – normalmente aquilo que mais lembramos do nosso passado - e
acrescentamos aquilo que nossa vontade nos faz querer encaixar na história. Ainda
segundo BRANCO (1994, p.25) “Para os gregos, Mnemosyne, deusa da memória, é
capaz não só de promover o resgate do passado como sua perda, seu
21

esquecimento”. Em Memórias de uma Beatnik, a própria autora deixa claro que


aquilo que ela escrevia, muitas vezes nem ela mesma lembrava depois, como
menciona no trecho a seguir “lendo o livro hoje, há muito de que não me lembro, que
leio como se fosse a história de outra pessoa” PRIMA (2013, p. 213). A volta para o
passado nada mais é do que o resgate de uma lembrança bruta que se tem,
lapidando-a e fazendo dela sua nova verdade atual, como acontece na obra de
Diane di Prima.
Podemos encontrar na obra Memórias de uma Beatnik, um emaranhado de
ações cotidianas e vemos também muitas vezes o apelo extremo ao lado sexual,
como já foi mencionado anteriormente, Diane optava por essa escrita por saber que
era o que os grandes editores da época buscavam nos escritos literários de uma
mulher, ou seja, não se publicavam ou vendiam livros de autoria feminina sem que
houvesse um lado obsceno. Percebemos, que Diane narra o que o público gostaria
de ler, já que chega a contar as história por duas perspectivas diferentes, a real e a
que o possível leitor da época buscava, como as duas que fazem parte do livro
Memórias de uma Beatnik e são intituladas: “Uma história junto à lareira: O que você
gostaria de ouvir” (2013, p. 168) e “Uma noite junto à lareira: O que realmente
aconteceu” (2013, p. 170). Diane chegou a confessar que para ganhar dinheiro
haveria de escrever situações forçadas e muitas vezes inserir cenas abusivas de
sexo em seus escritos, como ela mesma disse “estava claro que esse era o caminho
a seguir.” (2013, p. 212). Diane tinha muitas vezes que reescrever o que mandava
para o editor, pois para ele, nunca estava boa a quantidade de cenas eróticas que
Diane colocava no livro:

Montes de palavras partiam para Nova York sem que o aluguel estivesse
atrasado, e voltavam com as palavras “MAIS SEXO” rabiscadas na primeira
página, com a letra inimitável de Maurice, e eu imaginava ângulos bizarros
de corpos ou estranhas combinações de humanos, enfiando tudo ali e
mandando de volta. Às vezes, enandava pela casa, procurando gente para
verificar algumas coisas: ‘Deite’, eu dizia, ‘quero ver se uma coisa é
possível’. E eles deitavam, vestidos, e descobríamos, de modo amigável e
desinteressado, se determinada contorção era viável, e depois nos
levantávamos, sem excitação alguma, e cada um voltava a cuidar da sua
vida. PRIMA (2013, p. 214)

Mesmo com esse erotismo exacerbado e com grande parte ficcional no livro,
Diane di Prima não deixa de escrever o que realmente presenciou, como a
caminhada de uma mulher que entra no universo da contracultura beat. O livro deixa
bem claro que a mulher que encarava essa realidade vivia de forma totalmente
22

alheia ao padrão social de vida americana, como podemos observar no seguinte


trecho:

Bom, lá estava eu. Estiquei as pernas, arqueando os dedos do pé e


suspirando só um pouco, para não acordar o garoto ainda dormindo ao meu
lado. Lá estava eu, e pensei com ironia, este é apenas o primeiro
apartamento de muitos apartamentos estranhos que acordei. PRIMA (2013,
p.12)

Di Prima, durante todo o percurso que é narrado no livro, muda


frequentemente de casa, muitas vezes não conhece nem mesmo as pessoas que
estão morando com ela, ela cita também as mudanças de cidade, de parceiros e
muitas vezes relata a experiência de não ter onde dormir e não saber em que lugar
está ao acordar. Ela descreve também os ambientes em que costumava frequentar,
locais sujos e infestados de ratos e baratas, onde as pessoas iam e vinham, muitas
vezes sem destino. Ela conta dos seus vários momentos em que chega a passar
fome e frio, transformando em poesia os acontecimentos que era obrigada a passar,
já que havia escolhido viver dessa maneira, totalmente desligada de padrões
sociais.
Diane mostra por diversas vezes que sua vida era diferente das mulheres que
seguiam a maré da nova sociedade amaricana, ela, diferente das mulheres
conservadoras, não vivia para cuidar de marido e de filhos em um lar tradicional
completamente patriarcal e hierarquizado. Ela gostava apenas de ler, ouvir música –
que também é fonte de inspiração para os beats, principalmente o jazz - e escrever
compulsivamente, frequentar bares e casas de colegas onde o álcool, as drogas e o
sexo eram coisas normais. Seus dias, muitas vezes, baseavam-se em ficar em casa,
simplesmente esperando a vida acontecer:

Fui até a estante de livros, escolhi a tradução de García Lorca da New


Directions e mergulhei na elegia a Ignacio Sánchez Mejías. A cafeteira
elétrica matinha o café sempre quente. Após algum tempo, peguei uma
xícara e fui até a cama. Coloquei-a no chão, estiquei os lençóis
amarrotados, pus uma cantada de Bach na vitrola e me deitei com meu
livro. Minha mente não parava e, depois de algum tempo, pus o livro de lado
e me entreguei aos meus pensamentos. PRIMA (2013, p. 21)

A autora narra diversos acontecimentos nos quais podemos analisar seu


estilo de vida, estilo esse que se diferencia por completo da maioria das mulheres da
época. Além de culta, Di Prima frequentava cafeterias que ela mesma descrevia
23

como “cafés descolados” (2013, p.28), bares, becos e todo o círculo onde a
contracultura estava presente.
Em Memórias de uma Beatnik, Diane trata não só de erotismo sem nenhum
pudor, ela narra acontecimentos onde a opção sexual e outros aspectos sociais que
muitas vezes são vistos com preconceito, não eram tatados assim pelos beats.
Todas as atitudes que eram criticadas na época – e ainda atualmente – são
descritas de uma forma singular e incisiva, passando para o leitor um ar de
normalidade nas ações, como podemos perceber no trecho a seguir:

Eu estava sentada no Swing Rendezvous, um bar gay administrado pela


máfia, com uma amiga do colegial, Susan O’Reilley. Nós duas tínhamos
deixado nossas respectivas faculdades semanas antes e estávamos
morando em condições precarias na casa dos pais, procurando emprego e
apartamento, e buscando refúgio à noite dos pais furiosos, da polícia a que
eles haviam recorrido mais de uma vez e do mundo ameaçador como um
todo. Esse bar nos parecia “seguro” (...) o swing era um refúgio porque era
um lugar proibido, um ponto de encontro para foras da lei. PRIMA (2013, p.
22)

Podemos perceber que Di Prima descreve suas atitudes sem nenhum pudor,
deixa claro que sua vida não era nem um pouco padronizada como a época pregava
para as mulheres.
Na trajetoria narrada no livro, Diane conta que conheceu vários escritores da
geração beat, como Kerouac e Ginsberg. A autora narra seu deslumbramento ao se
deparar com o livro Uivo de Allen Ginsberg:

Então, em uma noite (...) o sacerdote ex-ladrão de livros chegou e colocou


um pequeno livro preto e branco na minha mão dizendo: ‘Acho que isso
pode interessá-la’. Eu o peguei, folheei a esmo, ainda determinada a servir
nosso ensopado de carne, e me vi no meio de Uivo, de Allen Ginsberg.
Soltei a concha, voltei ao começo e, de imediato, minha atenção foi
capturada por aquela abertura triste e poderosa: ‘Vi as melhores mentes da
minha geração destruídas pela loucura...’. Fiquei excitada demais para me
preocupar com o ensopado (...) andei algumas quadras até o píer na
Sixtieth Street e me sentei diante do Rio Hudson para ler e encarar o que
estava acontecendo. A expressão ‘abrir terreno’ ficava me vindo à mente.
Eu sabia que aquele Allen Ginsberg, quem quer que fosse, abriria terreno
para todos nós – algumas centenas de nós – só por ter publicado aquilo. Eu
não fazia ideia do que isso significava, até onde nos levaria. PRIMA (2013,
p. 195)

Esse encontro de Diane com os beatniks aconteceu por volta de 1957, um


ano antes de lançar seu primeiro livro. Foi esse encontro que mudou sua vida como
pessoa e principalmente como escritora, como ela mesma mencionou no trecho
24

acima, o livro Uivo de Allen Ginsberg abriu terreno para os novos escritores e criou
uma geração inteira.
A linguagem que podemos ver no livro Memórias de uma Beatnik se
assemelha muito com os livros de outros autores dessa geração, até mesmo por ser
do gênero memorialistico, que é uma das principais característias da maioria desses
escritores, que contavam em tom confessional o que viviam e enfrentavam por fazer
parte de um grupo contracultural.
25

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo analisar a obra Memórias de uma Beatnik,
de Diane di Prima, a fim de perceber a construção do papel da mulher da geração
beatnik e a visível diferença da mulher de uma geração tão aberta e que lutava pela
igualdade de sexo, raça, classe social, opção sexual. Para tanto, analisamos
elementos históricos e sociais da Geração Beatnik, bem como elementos de
construção estética do texto da referida autora.
Conclui-se que embora as mulheres não tenham sido aceitas por séculos
como protagonistas na sociedade, di Prima representa as mulheres que se
mostraram dispostas a mudar essa figura de coadjuvantes dos grandes escritores,
apostaram na construção de um novo papel de homem e mulher, defenderam a
visão de que a mulher não deveria ser uma sombra do homem e dos pensamentos
arcaicos de uma sociedade. Betty Friedan, considerada uma das maiores ativistas
fesminitas estado-unidenses do século XX afirma:

Especialistas ensinavam-lhe a agarrar seu homem e a conservá-lo, a


amamentar os filhos e orientá-los no controle de suas necessidades
fisiológicas, a resolver problemas de rivalidade e rebeldia adolescente; a
comprar uma máquina de lavar pratos, fazer pão, preparar receitas
requintadas... [...] a vestir-se, parecer e agir de modo mais feminino e a
tornar seu casamento uma aventura emocionante; a impedir o marido de
morrer jovem e aos filhos de se transformarem em delinquentes. FRIEDAN
(1971, p.15)

Pode-se analisar na obra Memórias de uma Beatnik, de Diane di Prima, que


as mulheres que fizeram parte ativamente da geração beat seguiram o lado oposto
do que a sociedade estava pregando. Frequentavam locais marginalizados, não
viviam em um ambiente patriarcal onde se elevava o homem, a religião, a família e
não o ser humano em apenas uma unidade; a mulher desse grupo não fazia parte
do alto escalão e do novo padrão de vida norte americano e não compunha uma
tríade de marido, mulher e filhos.
Muitas mulheres que viveram no meio contracultural, escreveram, cursaram
universidades, viveram a vida sem um homem para guiá-las, mas infelizmente não
tiveram tanta aceitação e reconhecimento quanto os homens. Elas não produziram a
literatura que realmente queriam, escreviam apenas o que vendia, como forma de
ganhar a vida:
26

O que as mulheres estavam fazendo naquele momento histórico era dizer,


bem alto, o que já diziam bem baixo há muito tempo, sob o domínio do
poder estruturante do patriarcado, almejado, quem sabe, ter a chance de
todas e todos viverem em uma sociedade “pós-patriarcal” ou, no mínimo,
ressignificada. ARAUJO e MONASTÉRIOS (2011, p.52)

Décadas foram necessárias para que obras de autoras beat começassem a


ser traduzidas, divulgadas e reconhecidas. Muitas delas não chegaram a passar dos
manuscritos e esboços para lançar livros. Muitos editores usavam as mulheres
escritoras para ganhar dinheiro com romances eróticos e comerciais.
A geração beat lutou contra o preconceito mais foi, muitas vezes, vítima do
próprio ideal, não reconhecendo o papel feminino.
27

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