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(© que significam anegritude ea identidade para as bases populares egras ¢ para a militincia do movimento negro? Por onde deve passar “oxdiscurso sobre essa identidade contrastiva do negro, cuja base seria a negritude? Passaria pela cor da pele e pelo corpo unicamente ou pela cultura e péla consciéncia do oprimido? A partir de questionamentos como esses, Kabengele Munanga debruca-se sobre a construgio iden= titarla do Bradil'ao longo dos tempos, partindo do principio de que o conceito de identidade recobre ima realidade muito mais complexa do ue se’pensa, englobando fatores historicos, psicologicos, linguisticos, ulturais, politico-ideolégicosé raciais. Ao tratar da negritudé e/a identidade negra na contemporaneidade, ‘autor discorre ainda sobre o conccito na didspora, conten planido 0 ue se pode chamar de tentativa de assimilagao dos valores culturais do branco, abordando discursos pseudojustificatives e diferentes acepcdes ‘¢ rumos da negritude Escrito por um dos maiores estudiosos da cultura negra no Brasil e no mundo, este livro,integrante da colecao Cultura Negra e Identidades, figura como obra relevante e inquietante sobre a temitica e, princi- Palmente, acerca da construgao identitaria da nacio e da configura¢io social cultural, politica'e econémica'no Brasil auténtica It NL auténtica ltura Negra Identidades Kabengele Munanga Negritude usos’e sentidos 1 scin Te 2+ edigoes pela auténtica Copyright © 2009 Kabengele Munanga ima tino Gomes ‘Mara Arajo(Universdade de Coimbra, ania Bootie Goncaese Shia (UFSCARY Renato mason dos Santos ERI: Maria azareth Soares Fonseca PUC Mina abngle Munanga USP) Chose Costa ue Fv Pedrosa ia Braganga de Mendonca, jane Bas Tadosos dos ress ela Atta Eos Nenumapate dea pucagdo pode se repro sejapor mes mecnicos, elevricos Sj va cpia nergy sem a autarzaao pre do Era AUTENTICA EDITORA LTDA. Belo Horizonte ua Amores, 981, 8* andar Funcondtos 30140-071. Belo Horizonte . MG Tal: (85 31) 3222 6819, sso Paulo ‘x: Paulsta, 2073 , Conjunto Nacional Horsa 11° andar. Can. 1101. Cerquetra Cesar (0131-940 . S30 Paulo. SP Tal: (55 11) 3034 4068 ‘elevendas: 0900 243 13 22 wan autentiaeditore com br Dados internacionais de Catalog: (Camara Brasileira do Li ublicagso (CP) Brasil) Munanga, Kabengele Negitude : uses esentidos / Kabengele Munanga. ~3. ed. - 1. tei. ~ Belo Hoizonte: Auténtica Edtora, 2012. ~(Colecdo ‘Ctra Negra e dentidades) Bbbiogatia. 1SBN 978-85-7526-380.8 |. Negios 2. Preconcetes 3, Radsmo 4, Redes rac Tio. Serie os.01138 00-3058 Indices para eatdloga sstematico 1 Nears: Kdentiade social 305.8 SUMARIO APRESENTACAO, InrRopuGAo Negritude e identidade negra no Brasil tual [Negritude na atualidade diasporana Conpigdes nisTORIcAs Caracteristicas A sociedade colonial Associedade colonizada Discursos pseudojustificativos A pregica do colonzade negro retardade,persersa lad, TENTATIVA DE ASSIMILAGAO DOS VALORES CULTURAIS DO BRANCO ONEGRO RECUSA A ASSIMILAGAO Nos Estados Unidos y Na Europa, No Quartier Latin Obdjetivos da megritude esa, a questo da dead Lar pea emaneipago Rep eo i: logo com ontras caters. DIFERENTES ACEPGOES E RUMOS DA NEGRITUDE Carder pico ou racial Conceito sociocultural de classe. 23 m4 2s 26 26 a M4 37 Definigzo cultural Negri dora Negru agrevsiva Negritule seroma Nearitudevtorioa Crinicas A questio da unidade A lishagene—0 parcmesco Potavra forca tal morte Inicing do casamento Povler = grvermo~ democracia Acicicia Negritude, apenas um problema do intelectual Originalidade e megritde Stanislas Adon ‘Prone Fanon Cheick ra Diop Als Margarido Marcon Tove René én VocaButArio critic RerERENCIAS BIBLIOGRAFIA COMENTADA oo oo 60 ot 6 ” 9 APRESENTACAO Aqueles que acompanham a historia, a militincia, a obra e a traj ‘6ria do antropdlogo e professor Dr. Kabengele Munanga saberiio quiio desafiadora é a tarefa de apresentar um livro de sua autoria, Ainda mais uum livro lido por varias geragdes de intelectuais que se dedicam ao est do da realidade racial, cultural, histérica e politica brasileira e afficana. Nascido na Repiiblica Democritica do Congo (antigo Zaire) e naturalizado brasileiro aos 43 anos, Kabengele Munanga é professor titular do Departamento de Antropologia da USP. Sua historia €mar- ‘cada pela experiéncia de quem viveu muito de perto uma realidade de lta e opresstio no préprio pais de origem e enfrentou a experiéneia da diispora. Podemos dizer que a negritude ¢ os processos de construgo da identidade negra se fazem presentes na propria biografia do autor Ha muito se faz necessirio 0 relangamento do livro Negritude; ‘sos ¢ sentidos, leitura imprescindivel a todos que se interessam estudain a histbria e a cultura afficanas e as relagdes raciais no Brasil ena difspora, © momento ni poderia ser mais oportuno: a sociedade brasileira do terceit lugar—nio menos tenso—nos debates politicos, juridicos e académicog por meio da discussao ¢ da imple do de experiéncias concrepas da urgéncia jai destacada, deve também ser lida como uma homenagem sua competente, dedicada e sensivel presenga no cenéirio académico ¢€ politico brasileiro, sempre contribuindo para o desvelamento do racismo, impulsionando agdes antirracistas, acolhendo e orientando ‘estudanles Jovens ¢ adultos, negros e brancos, que também aceitam “desafio de diseutirteoricamente as questdes afro-brasileira e afticana ‘Ao tematizar a negritude, 0 autor discute que talvez a perspectiva mais vidvel para compreender a complexidade do tema seria situé-la ¢ colocé-la dentro do movimento histérico, apontando seus lugares de ‘emergéncia e seus contextos de desenvolvimento. No entanto, iso $6 ndo basta. Ele nos. 1.0 fato de que hi afirma: “se historicamente a negritude é, sem divida, uma reagao racié negra a uma agressdo racial branca, nao poderiamos entendé-la e cerca- la sem aproxima-la com o racismo do qual é consequéncia ¢ resultado’ _racismo imprime marens negativas em todas as pessoas, qualquer pertencimento ¢tnico-racial, e é muito ma ct les que sao suas vitimas diretas. Abala os processos identitirios. Por isso ‘a reagio antirracista precisa ser incisiva. Para se contrapor ao racismo faz-se necessiria a construgio de estratégias, praticas, movimentos ¢. politicas antirracistas concretas. F importante, também, uma releitura histérica, sociolégica, antropolégica e pedagégica que compreenda, valorize e reconheca a humanidade, o potencial emancipatério ¢ con- testador do povo negro no Brasil e a nossa ascendéncia africana. Acedigao que agora vem a piiblico traz novidades. Nesta, 0 autor atuali gritude ¢ insere mi ‘i 7 discute os 1 construco da identid ra na didspora (© autor entende que essa identidade possui_ uma diversidade contextual, que por isso no pode ser tatads e analisada de forma fe- |, considera algumas questoes tidas como es essenciais na construgio de uma identidade ou de uma personalidade coletiva, a saber: 0 fator hist6rigo, 0 fator linguistico e 0 fator psicalé- ‘gico. Essas questdes reforgam a necessaria discussao critica, politica ¢ contextualizada da identidade negra, Reforgam também a vitalidade do conceito de negritude no mundo atual ~ E importante considerar que negritude ¢ identidade negra, embora, estejam relacionadas com a cor da pele negra e as leituras que sobre ‘aem ou Ihe sio impostas, nao so essencialmente de ordem ‘a. Elas colocam em dialogo algo mais profundo que atravessa a historia dos povos afficanos e da didspora tormando-se um ponto comum: o fato de terem sido na hist6ria “vitimas das piores tentativas, _de desumanizacio ¢ de terem sido suas culturas nao apenas objeto de fticas de destruigdo, mas, mais do que isso, de ter sido ~simplesmente negada a existéncia dessas culturas”, Por isso a luta. contra o racismo e as desigualdades raciais, assim como a afitmagao da identidade negra, sto processos complexos, desafiadores e que pre- cisam ser desenvolvidos de forma enfitica, petsistente e contundente. Nese processo, hi também outros pontos em comum. Um deles atomada de consciéncia, a afirmacio e a construgtio de uma solida ide entre as vitimas do prdj dos valores das civilizagdes destruidas e de culturas negadas, Questoes ‘que «sitio no ceme da negritude como conceito e movimento. Questées que atravessam as muitas € diversas experiéncias de construgio da identidade negra no Brasil e na diéspora africana, Nilma Lino Gomes raciad gunna. a wma A mugiude 2 rem soso ree A upd Fe Cunniea) IntropucAo Negritude e identidade negra no Brasil atual A jglentidade negea no Brasil de hoje se tornou essa realidade da qual se fala tanto, mas sem definir no fundo o que ela ¢ ou em que ela consiste. A identidade objetiva apresentada através das caracteristicas culturais, linguisticas e outras descritas pelos estudiosos muitas vezes ¢ proprio grupo se define ¢ ou é definido pelos grupos vizinhos. Nem sempre std claro quando se fala de identidade: identidade atribuida pelos es- tudiosos através de critérios objetivos. identidade como categoria de ao grupo pelo grupo vizinho? §¢ 0 processo de construgao da identidade nasce a partir da tomada de consciéneia das diferengas entre “nés” ¢ “outros”, nflo creio que . essa conscigncia seja 1dentico entre todos os negros, consi- derando que todos vivem em contextos socioculturais difetenciados. Partindo desse pressuposto, no podemos confirmar a existéncia de ‘em comunidades religiosas diferentes, por exemplo, os que vivem em chmunidades de terreiros de candomblé, de evangélicos ou de catsli- Cos, cle. em comparagiio com a comunidade negra militante, altamente politizada sobre a questi 10, ou com as comunidades rema- -nescentes dos quilombos._ 10 do rac Talvez seja necessirio para mostrar essa diversidade contextual, -considerar alguns fatores tidos como componentes essenciais na de uma identidade ou de uma personalidade coletiva, a. saber: 0 © fatorhistorico, 0 fator Taguistico e o fator psicoldgico. A identidade cultural perfeita corresponderia & presenga simultanea desses trés componentes no grupo ou no individuo. Mas isso seria uum caso ideal, pois na realidade encontram-se todas as transigdes desde 0 caso ideal até 0 caso extremo da crise de identidade pelas atenuagdes nos trés fatores distintivos. As combinagies especificas desses fatores oferecem todos os casos possiveis, individuais e cole- tivos. Enquanto um fator interage plenamente, outro tem um efeito muito fraco ou mesmo nulo. Como aconteceu com a perda da lingua materna na didspora Poder-se-i perguntar qual dos trés fatores é mais importante, ou seja, qual entre eles seria suficiente para caracterizar a persopalidade cultural na auséneia dos outros dois, Vamos examinar a importineia relativa de cada um deles: 1°) 0 fator histérico parece o mais importante, na medida em que constitu o cimento cultural que une os elementos diversos de um povo através do sentimento de continuidade hist6riea vivido pelo conjunto de sua coletividade. O essencial para cada povo é reencontrar o fio con= _dutor.que-o-tiga a set passado ancestral o mais longincuo possiyel. A ‘Xouscigncia historia, pelo sentimento de coesto que ela cria, constitui uma relagao de seguranga a mais certa ¢ a mais s6lida para o povo. E a razio pela qual cada povo faz esforgo para conhecer sua verdadeira historia c transmiti-la ds futuras geragdes, Também é a razao pela qual oafastamento-¢ a destruigio da sonscltae historica eram_uma das i onizagao para destruir jem negar a comunidade do passado histérico de todos os negros da didspora, acredito que a consciéncia que se tem desse passado € re- lativamente diferente entre as categorias acima referidas. Parece-me que 4 consciéncia historica ¢ mais forte nas comunidades de base religiosa, por exemplo, nos terreiros de candomblé, gragas justamente aos mito de origem ou de fundagio conservados pela oralidade e atualizados através de ritos e outras priticas religiosas. A questo da busca ou da crise da identidade ndio se colocaria nesse contexto, Nas bases popt- Jares negras sem vinculos com as comunidades religiosas de matriz: aifieana, a consciéneia histérica e, consequentemente, a identidade se diluiriam nas questoes de sobrevivéncia que toma 0 passo sobre 0 Testo e pode desembocar num outro tipo de identidade: ada consciéagia __ do oprimido economi iscriminado racialmente, Namilitincia egra ha um ada de consciéncia aguda da perda da historia e, consequentemente, a busca simbdlica de uma Africa idealizada, 2°) Quanto ao fator Linguistico, nao podemos dizer que a crise foi total, pois nos terreiros religiosos persiste uma linguagem esotérica que serve de comunicago entre as humanos ¢ os deuses (orixas, inquices) ‘que confinua a ser um fator de identidade. Nas outras categorias foram criadas outras formas de linguagem ou comunicago como estilos de __cahelos, penteados ¢ estilos musicals que Si ‘Algumas comunidades rurais negras isoladas teriam conservado estrus _tutas linguisticas afficanas enriquecidas com vocabulos e expressdes de lingua portuguesa, 3°) O fator psicolégico, entre outros, nos leva a nos perguntar se ‘© temperamento do negro é diferente do temperamento do branco e se podlemos consideri-lo como marca de sua identidade. Tal diferena-se_ existir, devs a te, do condicionamento historico do negro e de suas estruturas sociais comunitarias. € base nas diferencas biologicas como pensariam os racialistas. Poder-se-i dizer, em titima instincia, que q identidade de um_ grupo funciona como uma ideologia na medida em que permite a seus aposigo aos membros de ou mani maa io pods tomara dtseio de uma fi (oleate igmentada despojada de reivindicacao politi Voltando & questio da pluralidade de contextos, a confusao per- siste quartdo estudiosos e militantes falam da construgao da identidade negra, De que identidade se tr identidade mitico-religiosa conservada nos terreiros religiosos? Da identidade do} grupo oprimide que vacila entre a consciéncia de classe e a de raga? Ou da identidade politica de uma “raga” afastada de sua participagao politica na sociedade “queajudou a consiruir? Esta dltima,ainda em formagalo, que caracteriza a iomada de consciéneia da jovem elite negra politicamerte mobilizada, me parece.a mais problemiitica dé todas, Nela se misturam os eritérios ideol6gicos, culturais e ratiais, Nesse Caso, a situaco do méstigo fica ‘mais critica ainda pela ambivaléncia racial ¢ cultural da qual ele par- ticipa, e sua opgao fica geralmente baseada em critérios ideolégicos, Também nem todos que participam desse processo vive plenamente 0 valores culturais negros. Mas, por causa da discriminagio racial da qual todos sao vitima, quase todos se referem retoricamente aos valores culturais negros ou tentam recuperi-los, pelo menos simbolicamente, como 0 mostra o discurso da negritude, . Parece também que os critérios raciais sem consciéncia ideol6gi- ca ou politica niio seriam suficientes para desencadear o proceso de formagao da identidade, Nesse sentido, a famosa pergunta ~“Afinal, quem é negro? racials, se refere a essa dificuldade de definir a identidade com base no tinico eritério racial. Como se percebe, o conceito de identidade recobre uma realidade muito mais complexa do que se pensa, englobando fatores histéricos, psicoldgicos, linguisticos, culturais, politico-ideoldgicos ¢ raciais (MUNANGA, 1988, p.143-146). No mesmo momento em que aume a0 conceitos de identidade e de negritude no movimento negro con- temporaneo da diaspora, surgem dividas e perguntas. Afinal, o que significam a negritude e a identidade para as bases populares negras € para a militineia do movimento negro? Se alguns entendem a negritude © a identidade como um movimento politico-ideolégico, outros se per- guntam se nio seria uma forma de racismo do negro contra o branco, ido, se a negritude é um movimento negro, ndo seria legitimo que se falasse também da “branquitude” ‘como movimento de brancos ¢ da “amarelitude” como movimento © interesse em recorrer um racismo ao avesso. Nesse si — muuitas vezes colocada no atual debate sobre cotas _ funciona como uma categoria de domi “tnultirraciais contempordneas observaveis, Em outros termos, poder- dos amarelos? “Negritude”, “branquitude” e “amarelitude” nos leva- iam ao conceito maior das ragas negra, branca e amarela, conceitos biologicamente inoperantes, mas politica e sociologicamente muito significativos. Ha quem se pergunte se no Brasil seria possivel a exis- ‘éncia de uma identidade dos negros diferentes da dos demais cidadaos. Outros chegam até a ind: snegritude e identidade negra nfio poderiam ser vistas como uma divisto da luta de todos os oprimidos. Essas perguntas, essas diividas e essas preocupagdes merecem um esclarecimento, ou melhor, uma discussiio. Poderiamos agrupar e alinhar as melhores definigdes sobre esses conceitos. Mas isso ajudaria pouco para desvendar seus contetidos. No entanto, uma perspectiva mais vidvel seria situar e colocar a questo da negritude e da identidade dentro do movimento historico, apontando seus lugares de emergéncia € seus contextos de desenvolvimento, Se historicamente a negritude 6 sem divida, uma reago racial negra a uma agressio racial bran no poderiamos entendé-la e cered-la sem aproximé-la do racismo do qual é consequéncia e resultado Para ser racista, coloca-se como postulado fundamental a crenga na existéncia de “ragas” hierarquizadas dentro da espécie humana. De outro modo, no pensamento de uma pessoa racista existem ragas superiores e ragas inferiores. Em nome das chamadas ragas, intimeras atrocidades foram cometidas nesta humanidade: genocidio de milhes ‘de indios nas Américas, eliminagdo sistemitica de miles de judeus judeus _¢ ciganos durante a Segunda Guerra Mundial. Como se nao bastasse G,antissemitismo,_a persisténcia dos mecanismos de disctiminagao racial na Africa do Sul durante @ Apartheid, nos Estados Unidos, na Europa ¢ em todos os paises da América do Sul encabegados pelo Brasil ¢ em outros cantos do mundo demonstra claramente que 9 racismo € um fato que confere 4 “raga” sua realidade politica ¢ Social. Ou seja, se cientificamente a realidade da raga € contestada, politica e ideologicamente esse conceito é muito significativo, pois isdlo nas sociedades ia reler como trago fundamental préprio a todos os negros (pouco importa a classe social) a situagio de excluidos em que se encontram «em nivel nacional. Isto é,a identidade do mundo negro se inscreve no o é ser excl real soba forma de “exclusdo”. Ser ni ido. Por isso, sem ‘minimizar os outros fatores, persistimos em afirmar que a identidade negra mais abrangente seria a identidade politica de um segmento importante da populagao brasileira excluida de sua participagao politica € econémica ¢ do pleno exercicio da cidadani Quem fala e escreve a respeito da identidade negra ou afrodes- cendente? E possivel alimentar e manter um discurso sobre identidade, no qual esteja ausente a ideologia? Poder-se-ia perguntar quais seriam, fora do campo cientifico-académico os interesses daqueles que falam © escrevem sobre a identidade? Os interesses seriam, sem diivida, ideologicos. O que significa que a identidade negra ou afrodescedente ‘outra substancia, a ndo ser as relagdes politicas e econdmicas. Isso no quer dizer que outros aspectos importantes na formagio da identidade, como a histéria, deixam de ser considerados. A historia escrita ou oral no pode ser feita sem a meméria. Desdeos trabalhos de Halbwachs, esse é um fenémeno construido coletivamente e sujeito a constantes reelaboragdes. No caso da populagao negra brasileira como de qualquer outra, a memoria é construida, de um lado, pelos aconteci- mentos, pelos personagens e pelos lugares vividos por esse segmento da populacaio, e, de outro lado, pelos acontecimentos, pelos personagens e pelos lugares herdados, isto é, fornecidos pela socializagdo, enfatizando dados pertencentes & histéria do grupo e forjando fortes referéncias a ‘um passado comum (por exemplo, o passado cultural afticano ou o pas- ado enquanto escravizado). O sentimento de pertencer a determinada coletividade esté baseado na apropriagiio individual desses dois tipos de meméria, que passam, entdo, a fazer parte do imaginario pessoal ¢ coletivo (Hatawacns, 1968). Ao lado desse fundamento empirico da meméria (acontecimentos, lugares, personagens), existem elementos com base quase projetiva, configurando uma realidade as vezes bastante afastada dos marcos objetivos. Aqui se situaria o discurso da elite negra militante que, a0 fazer uma selegdio nos contetidos da meméria, retém principalmente “negritude” como base na formagao de sua identidade contrastiva, em oposigiio a identidade do opressor. A questo que se coloca é saber por onde deva passar o discurso sobre essa identidade contrastiva do negro, cuja base seria a negritude; passaria pela cor da pele e pelo cor- po unicamente ou pela cultura ¢ pela consciéneia do oprimido? Esse discurso, sabe-se, passa necessariamente pela questo da cor da pele ou do corpo negro ¢ pela cultura, por razdes historicamente conhecidas. ‘Com efeito, a alienagdo do negro tem se realizado pela inferiorizagio do seu corpo antes de atingir a mente, o espirito, a histéria e a cultura Dois problemas podem, entio, ser colocados politicamente em relagdo a uma identidade submetida & cor e & cultura, dentro do con- texto brasileiro. Em primeiro lugar, coloca-se a espinhosa questo de saber se os negros seriam capazes de construir sua identidade e sua unidade baseando-se somente na pigmentagio da pele ¢ em outras caracteristicas morfobiolégicas do seu corpo, numa sociedade em que a tendéncia geral é fugir da cor da pele “negra”, de acordo com a pritiea de embranquecimento sustentada pela ideologia de democracia racial fundamentada na dupla mestigagem biol6gica e cultural. Esse obstéculo da cor rejeitada por alguns e reivindicada por outros teria sido resolvido pelo conceito de “afrodescendéncia” que por sua vez se tomou objeto de manipulagao politica nos debates sobre as cotas. Partindo da verdade historica de que a A rica ¢ 0 bergo da humanidade, qualquer cidadio, pouco importa a cor da sua pele, poderia reivindicar sua afrodescendéncia, Em segundo lugar, poderiam os negros construir sua identidade com base numa cultura ja expropriada e cujos simbolos fazem parte da cultura nacional? (Pereira, p. 177-187) ‘Tomar consciéncia histovica da resisténcia cultural e da impor tancia de sua participagao na cultura brasileira atual é 0 que importa € deveria fazer parte do processo de busca da identidade negra por parte da elite politizada, Mas basear a busca e a construgiio de sua identidade na “atualmente” dita cultura negra & problematico, pois em nivel do vivido outros segmentos da populagao brasileira pode- riam langar mao da mesma cultura e nem todos os negros que no plano da retérica “canta” a cultura negra a vivem exclusiva ¢ se- paradamente dentro do contexto brasileiro, assim como nao existem brancos Vivendo exclusiva e separadamente uma cultura dita branca, Aqui os sangues se misturam, os deuses se tocam, ¢ as cercas das ‘etorica vot se cstcalscesesa através das proprias contribuigdes culturais_ ‘egras no Br ara existéncia do racismo e para reafirmar- a proclamada democracia racial, 3 E nesse sentido que alguns estudiosos tentaram, com razio, alertar e denunciar a folclorizagaio e a domesticagao da cultura e das religides negras por parte da ideologia dominante no Brasil (PEREIRA, 1982, p. 93-105). [J] 4 conversio de simbolos étnicos em simbolos nacionais no apenas oculta uma situagao de dominagi racial, mas torna ‘muito mais dificil a tarefa de denuneié-ta[..] (Fa, 1982, p. 52) Coloca-se também outro problema ja corriqueiro. Sera possivel a participagao dos negros na sociedade brasileira sem asolidariedade de todos os oprimidos brancos e outros? Sente-se um deslocamento pelo ‘menos uma confuséo entre raga e classe. Aqui esta um dos dilemas da questio racial brasileira: os oprimidos brancos éa saciedade niio tém consciéncia de que a exelusio politica e econémica do negro por jOtivOs racistas 86 beneficia a classe dominante, o que torna dificil, “ seniio impossivel, sua solidariedade com o oprimido newro% além disso, eles mesos sao racisias pela educagao e pela socializagao recebidas na familia e na escola, Raca e classe se tornam, enti, duas varidveis da mesma realidade de exploracio, na estrutura de uma sociedade __de classe (Pereina, 1987, p.151-162). Em nome dessa dialética entie raga e classe, alguns estudiosos de formagao marxisia pensavam que a solugo definitiva da questao racista no Brasil s6 viria com a trans- formagao da atual estrutura capitalista em uma estrutura socialista mais igualitéria, Ou seja, numa sociedade sem cl negros € brancos podem igualmente participar das decisdes politicas € da distribuigdo do produto econémico (FeRNanves, 1966). Uma certa militéncia negra assumiu esse discurso, acreditou que a solucio ‘is suas mazelas logo viria com a transformagdo da sociedad& dai talvez a explicagao de sua indiferenga em relagZo as politicas de ago "afrmativa em pritica nos Estados Unidos desde os anos 1960,.Como lasses sociais, em que (Os que pensam que a situago do negro no Brasil é apenas uma questo econdmica, e n como as pr Jo racista, io fazem esforco para entender s Facistas impedem ao negro 0 acesso na participagio ena ascensio econdmica, Ao separar raga e classe numa sociedade capitalista, comete-se um erro metodolégico que dificulta a sua anilise e os condena ao beco sem saida de uma explicagaio pura- ‘mente economicista. Finalmente, busca da identidade negra no €, no meu entender, luta dos oprimidos. O negro tem problemas espe ficos que 86 ele sozinho pode resolver, embora possa contar com a |e solidariedade dos membros conscientes da sociedade. Entre seus problemas especificos esta, entre outros, a alienagdo do seu corpo, de sua cor, de sua cultura e de sua historia e consequentemente sua “inferiorizagao” e baixa estima’, a falta de conscientizagao historica © politica, ete. Gragas a busca de sua identidade, que funciona como uma terapia do grupo, 0 negro poder despojar-se do seu comple- xo de inferioridade ¢ colocar-se em pé de igualdade com os outros oprimidos, 0 que é uma condigao preliminar para uma luta coletiva. A recuperagiio dessa identidade comega pela aceitago dos atributos fisicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, men- tais, intelectuais, morais e psicolégicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade. Negritude na atualidade diasporana Muitos ainda se perguntam sobre a persisténcia da negritde no complexo da globalizagio, e sobretudo na didspora africana num mundo Cuja “raga” enquanto realidade biolégica nao se sustenta mais. Alguns indagam sobre a persisténcia e a importancia politica desse conceito numa didspora africana cuja mesticagem é fundamental et importante Que a cor mais escura da pele. Em primeiro lugar é importante frisar que a negritude, embora tenha sua origem na cor da pele negra, nao & essenciaimente de ordem, Diolbgica. De outro modo, a identidade negra nao nasce do simples Tato de tomar consciéncia da diferenga de pigmentagao entre brancos e negros ou negros e amarelos. A negritude efou a identidade negra se referem historia comum que liga de yma maneira ou de outra Todos 05 grupos humanos que o olhat do mundo ocidental “brancg” “reuniu sob o nome de negros. A negritude nfo se refere somente & cultura dos povos portadores da pele negra que de fato sio todos culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos humanos :m fundamentalmente em comum nao é como parece indicar, 0 ter- mo Negritide a cor da pele, mas sim o fato de terem sido na historia vitimas das piores tentativas de desumanizagao ¢ de terem sido suas culturas no apenas objeto de politicas sistematicas de destru ‘mas, mais do que isso, de ter sido simplesmente negada a existéncia dessas culturas. Lembremos que, nos primérdios éa colonizagio, a Africa negra foi considerada como um deserto cultural, ¢ seus habi- tantes como 0 elo entre o Homem ¢ 0 macaco. ‘Tomada de consciéncia de uma comunidade de condigao hist6- rica de todos aqueles que foram vitimas da inferiorizagio e negagao da humanidade pelo mundo ocidental, a negritde deve ser vista _também como afirmagdo ¢ construeiio de uma solidariedade entee.as ‘vitimas, Consequentemente, tal afirmagio ndo pod permanecer na _condigio de objeto e de aceitagao passiva. Pelo contririo, deixow-de “serpresa do ressemtimenioe desembocou em revolia, ransformando. ‘a solidariedade e a fraternidade em armas de combate, A negritude torna-se uma convocagilo permanente de todos os herdeiros dessa condigao para que se engajem no combate para reabilitar os valores de suas eivilizagées destruidas e de suas culturas negadas. Vista des- se Angulo, para as mulheres e os homens descendentes de africanos no Brasil ¢ em outros paises do mundo cujas plenas revalorizagio e aceitagao da sua heranca africana faz. parte do proceso do resgate de sua identidade coletiva, a negritude faz parte de sua luta para reconstruir positivamente sua identidade e, por i em atualidade. Tomando a forma de irmanagdo entre mulheres € homens que dela se reclamam para fazer desaparecer todos os males 0, um tema ainda que atingem a dignidade humana, a negritude se toma uma espécie de fardo do Homem e da Mulher negros. Enquanto uma dnica pessoa continuar a ser caracterizada ¢ fliseriminada pela cor da pele escura, enquanto uma tinica pessoa se_ _gbstinar, por causa de sua diferenga, a langar sobre outra pessoa um _glhar-globalizante que a desumaniza ou a desvalotiza, a negride devera ser o instrumento de combate para garantir a todos o mesino respeito das culturas do mundo. A negrinude fornece nesses tempos de globalizagdo, um dos melhores antidotos contra as duas maneiras de se perder: por segregago cercada pelo particular e por diluigao no universal (Gésaire, 1987, p, 5-33). ConpigoEs HisTORICAS Quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana, gm meados do aéeulo XV, a onganizagao politica dos Estad ‘monarquias cram constituidas.por ui Con: conselho popular, no qual a ‘diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social ¢ moral _jauivalia 4 politics, Em contapanida,o desenval Jes evolégicas, socioecondmicas e histrieas da Africa daquela época, ¢ nao biologicamente, como queriam alguns sos cientistas. ‘Também no século XV aAmeérica foi descobertg. A valorizagio de obra barata, A Africa sem defesa (frisamos que sua tecnologia e sua indiistria de guerra eram relativa- mente menos desenvolvidas do que as europeias) apareceu, entio, como reservatério hh deriscos. A uma neces mano apropriado, com um minimo de gastos e m, 0 trifico modem dos eseravizados negros tornou: dade econ6mica antes da aparigo da maquina (Revolugaio Industrial). Essas novas relagdes técnieas estendem ao plano social 0 binémio ser A.cupacio colonial efetiva da A fiica pelo Ocidente no séeulo XIX {entou desmantelar as suas antigas instituigdes politicas. Alguns reinos resistiram e subsistem até hoje, embora num contexto totalmente dife~ rente, Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que dele tiravam. A ignordncia em relagio a hist6ria antiga dos negros, as diferengas cultu- rais, 0s preconceitos énicos entre duas sociedades que se confrontam pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades econdmicas da ex- ploracdo predispuseram o espirito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptidées intelectuais. Negro torna-se, entio, sindnimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pré-logica. B, como 0 ser humano toma sempre © cuidado de justificar sua conduta, a condigo social do negro no mundo modemo criaré uma literatura deseritiva dos seus pretendidos ccaracteres menores. 0 espirito de muitas geragdes europeias foi pro- Jivamente_alterado.A opinido ocidental cristalizara-se.e admitia io a verdade revelada negro = jumanidade inferiorA colo- nizagdo apresentada como um dever, invocando a missio civilizadora do Ocidente, competia a responsabilidad de levar oafricano ao nivel dos outros homens. dos ‘No maximo, foram reconhecidos nele os dons artisticos liga sua sensibilidade de animal superior. Tal clima de alienagao atingir’ profundamente 0 negro, em particular o instruido, que tem, assim, a oportunidade de perceber a ideia que 0 mundo ocidental fazia dele € de seu povo. Na sequéncia, perde a confianga em suas possibilidades e nas de sua raga, e assume os preconceitos criados contra ele, E nesse tude, context ‘A compreensao das circunstincias historicas em que surgiu a ne- gritude, obriga-nos, como ji foi enfatizado, a considerar rapidamente s caracteristicas e legitimagdes discursivas. a situagao colonial nas st Caracteristicas conceito de situagao colonial aparece como nogato dinimi- ca, expressando uma relagao de forgas entre varios atores sociais dentro da colénia, sociedade globalizada, dividida em dois campos antagonistas ¢ desiguais: a sociedade colonial_¢ # sociedade colo- nizada. Na situago colonial africana, a dominagao é imposta por uma minoria estrangeira, em nome de uma super ridade étnica ¢ cultural dogmaticamente afirmada, a uma maioria autdctone jo Ha confronto entre duas civilizagoes heterogéneas: além das sobreposigdes econdmicas ¢ tecnolégicas, de ritmo acelerado, a dominadora infligiu sua origem crist& a uma radicalmente oposta. O carater antagonista das relagdes existentes entre elas é ilustrado pela fungo instrumental 4 qual é condenada a sociedade domi- nada. A necessidade de manter_a dominacao por suas vantagens ccondmicas e psicossociais leva os defensores da situagdo colonial_, ecorrer niio apenas A forga bruta, mas a outros mecanismos, como os de controle, jé mencionados. A sociedade colonial Ela compreende os estrangeiros de origem metropolitana, isto é, 4do pais colonizador, os europeus ou de populagao branea ndo metropo- litanos ¢ 0s nao europeus, geralmente de origem asiitica, os coloured _ou homens de cor. Os grupos nao desempenham 0 mesmo papel na -folnia, mas cada um deles tem preeminéncia sobre os autéctones. O de origem metropolitana é o mais ativo, pois cabe a ele a fungiio de dominar politica, econémica ¢ espiritualmente. Suas atribuigdes podem ser classificadas da seguinte maneira: a adminisiragio dirige”

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