Você está na página 1de 18
Marcia Abreu (org.) LEITURA, HISTORIA E HISTORIA DA LEITURA | MERCADO @FAPESP er LETRAS DADOS IMTERNACIONAIS DE CATALOGACAO NA PUBLICACAO (CIP) {CAMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) Leitura, historia @ bistia da lituca f Macca Abrou fora.) ~ Campinas, SP Morcado'de Letras, 1999, -(Cofegdo Histrias de Letra) ‘Apoio institucional: FAPESP. Varios autores, Bibogratia, ISBN as 88726-52.4 1. Leitura —Histéria 2, Liveos Historia | Abreu, Marcia, I, Séro, 99.4240 Z cbb-418,409 indices para catéloge sstemitico 1. Leitura : Linguist = Historia 418,409 COLEGAO HISTORIAS DE LEITURA capa 9 projeto grafico: Vande Rotta Gomide copidesque: Maria Marcelo Braida ‘revise: Marlane Rebello DDIREITOS RESERVADOS PARA A LINGUA PORTUGUESA © MERCADO DE LETRAS EDICOES E LIVRARIA LTDA, Rua Jodo da Cru e Souze, 63 “Telofax: (19) 3241-7514 13070-116~ Campinas SP Brasil ‘wvwarcado de-otrasscom br livios@mereado-de-atrasicom br JUNHO/2007 2" reimprassao ~ 500 oxs, Impressio Digital Iaprensdoe Acabamente ‘Feta obra esté protegida pela Lei 9610/98, E proibida Sua reprodugio parcial ou total som autoizagdo previa do Editor, Oinfrator esiard sujet is ponalidadesprevitas na Lot ALEITURA CENSURADA Aparecida Paiva’ Embora nao seja possivel distinguir grandes linhas de um discurso catdlico sobre a leitura, no Ambito de um texto como este, a atuagao de frei Pedro Sinzig (frei franciscano alemao, 1875-1952, naturalizado brasileiro, diretor por doze anos da Editora Vozes de Petrépolis, autor de 65 livros entre biografias, romances, obras musicais e didaticas) possibilita uma fecunda aproximagao com uma de suas dimensées ~ a censura -, na medida em que permite a reconstituicao de parte do discurso da censura catélica a leitura, no Brasil, no inicio deste século. Isso, se circunscrevermos este discurso ao horizonte restrito dessa atuagdo, como uma das manifestacées da Igreja. Sem duivida alguma, essa instituicao religiosa esta aprendendo, nas tiltimas déca- das da Belle Epoque, a conferit ao impresso seu significado. Ao mesmo tempo, constata que a questao da leitura est no centro dos debates de opiniao e que arreligido também precisa acompanhar esse movimento. A preocupagéo com a leitura, tornada mais aguda nessa época, articula-se, como sabemos, a raz6es conjunturais. O desenvolvimento da 1. Professora da Facaldade de Educagdo da Universidade Federal de Minas Gerais, 4u imprensa e de uma literatura de propaganda republicana ou socialista inquieta intelectuais de diferentes instancias de poder. Esse é um tempo em que as certezas seculares vacilam, em que os modelos tradicionais néo sao mais garantias de eficdcia. As contradigdes e os conflitos nascidos do embate entre a lgreja e a modernidade podem se exprimir nesse discurso de veto & leitura. O debate politico que sacode com violencia a Reptblica nascente encontra, no impresso ~ livro ou jornal -, um suporte de expressdo Esse discurso de veto catélico a leitura precisa, portanto, ser consi- derado nas duas instancias em que se apéia, se enfocarmos a autoridade instituida da Igreja. A primeira, de carater mais universal, é a censura romana, que se impée com a publicacao do Index. A segunda insténcia, na qual Sinzig se insere, coresponde a iniciativa de alguns de seus repre- sentantes ao tomarem para si a tarefa de censores, produzindo manuais e revistas, detalhando e especificando melhor a interdigao. Sem outorgar-lhes eficdcia,com a qual certamente julgavam contar, consideremos apénas que eles faziam parte de um grupo de padres que se empenhou com afinco na tarefa de prescrever normas de leituras para 0s catélicos fundamental na anilise aqui defendida é que o discurso catélico, proferido pela voz de Sinzig, coloca em cena a face politica conjuntural do pais e seus vinculos com o exterior, por meio da problematica da reorgani- zacio institucional da lgreja no Brasil. Estar atenta para a singularidade desse discurso, captar nele elementos do contexto brasileiro e as formas como so representados é extrair da propria leitura sentidos possiveis para a construgao desta analise. Um texto que nao quer limitar-se ao reconheci- mento das formas sociais, das estruturas econémicas e das organizaces politicas em que a acao de Sinzig e, de certa maneira, da Igreja, se desenrola. Por outro lado, um texto que nao busca interpretar a politica catdlica estritamente a partir de sua originalidade religiosa, mas procurando com- preender seu carater especifico no interior da formacao social brasileira, pela trajetoria de um dos seus intelectuais. O objetivo, portanto, desta 12 faze andlise, sem desconsiderar a pertinéncia dos dois movimentos anteriores, é de fazer funcionar o sistema de representagées com que Sinzig apreende esas realidades e a linguagem com que as transfigura simbolicamente, em seus livros e seu percurso. E, portanto, na esteira desses acontecimentos externos e internos ao movimento de reorganizagao da Igreja que se localiza a acao da Editora Vozes de Petropolis, incluindo seus jornais e revistas e o projeto de censor que frei Pedro Sinzig vai desenvolver. Seja como diretor, como editor, como escritor ou como jornalista, a questao era, para ele, sobretudo, um problema de “crise das consciéncias”, trazido pela onda de materialismo que avassa- lava os valores espirituais e invadia todos os planos da vida social. Sua idéia dominante era: “vamos tentar vencer o puro materialismo e naturalismo de nossa época. Pois nés ja perdemos hoje em dia o centro, o equilibrio, a justa medida”. Nenhuma civilizagao pode ter continuidade e durabilidade se nao tiver uma concepcao muito bem clara do homem e da vida, “sem um verdadeiro humanismo integral” O que fez Sinzig para realizar esse humanismo cristdio em sua época? De que maneira ele exercia seu apostolado, levava sua mensagem? Sinzig lancou mao de todos os meios modernos, pés em funcionamento toda a maquinaria a sua disposigao para defender sua causa: imprensa, cinema, jormalismo, politica. Implementou sua mensagem por intermédio de uma luta que beirou o épico, tentando formar as consciéncias por meio da palavra escrita. O interessante na producao de Sinzig é 0 fato de ela se basear tanto no movimento do laicato quanto na estruturagao organizacional da hierar- quia eclesidstica brasileira. Desde os primeiros textos, como Reminiscéncias de um frade (1916), passando pelos inameros que o sucederam, a produgao intelectual de Sinzig torna-se indispensavel para quem deseja investigar 0 seu trabalho de censor. Sob a protecao da autoridade moral conferida pela Igreja, ele vai tragando seu projeto, exigindo o cumprimento dos preceitos ctistéos. O seu sonho de “moralizar” a sociedade brasileira é a tentativa de fazer valer a moral catélica como crivo fundamental para o cristéo se 413 relacionar com a producao escrita, em especial, a literaria. Sinzig, dentro da maquina organizacional da Igreja, produziu como seu legitimo intelectual “organico”. Pertenceu ao grupo dirigente da Igreja e exerceu um trabalho intelectual sistematico de registro, transcricao e publicagao de documentos, artigos, jomnais e revistas. Contribuiu, ainda, para cristalizar a meméria corporativa, num esforco consideravel de expurgar qualquer material im. presso “tendencioso”, de revidar os argumentos e versdes anticlericais, de resistir ao proselitismo dos concorrentes macons, protestantes e espititas, de condenar ao esquecimento tudo que contrariasse, em sua opiniao, a doutrina catélica. Assim, Sinzig foi construindo 0 seu Através dos romances: quia para as consciéncias, publicado pela primeira vez em 1915, Um guia que se compée de criticas a uma infinidade de obras de fiecao, com 0 objetivo de recomenda-las ou nao aos leitores, segundo a obediéncia ou desobediéncia dos escritores aos preceitos da Igteja Catdélica. Para isso, Sinzig os divide em trés categorias distintas: 1) livros recomendados, bons, de leitura sa, que obedecem perfeitamente a esses preceitos; 2) livros recomendados, mas com ressalvas, “que nao prejudicam o leitor adulto sensato que o lesse por algum justo motivo”, embora oferecam perigo, se lidos indiscriminadamen- te; 3) 0s livros perigosos, cuja leitura é um veneno para as almas de seus leitores e que, por contaminarem definitivamente os espiritos cultos e incultos, so rigorosamente taxados de “‘lixo literério”. O manual do veto transforma-se, portanto, no projeto sonho, sinal da censura catélica che- gando aos leitores, dando-lhes a orientacao “infalivel”. Para o inquieto censor, 0 manual acenava também com a possibilidade de divulgacao de uma leitura saudavel, alimentando-Ihe a ilusao de um controle da Igreja, imptegnado de valores morais, socializado na paz dos valores catélicos, mas ambicioso 0 suficiente para aceitar os desafios impostos pela proliferagéo da imprensa. Afinal, a censura ideada por ele destacava-se das de outros segmentos: era um manual “modemo”, bem-construfdo, capaz de “neutra- lizar de algum modo os grandes males que podem produzir as més leituras dos maus livros e principalmente dos maus romances” (A Resposta, p. 52). 414

Você também pode gostar