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146.04 year 13, jul 2012

Tipologia arquitetônica e morfologia urbana


uma abordagem histórica de conceitos e métodos
Renata Baesso Pereira

146.04
Na década de 1960, metodologias de estudo da cidade que buscam superar a
abstracts
divisão disciplinar entre Arquitetura e Urbanismo adquirem expressão,
how to quote
quando parte da cultura arquitetônica italiana, questionando os
resultados da aplicação dos códigos redutivos do Movimento Moderno na languages
cidade, tais como o empobrecimento d oambiente urbano e a perda da
original: português
identidade cultural, postula a aplicação de novas abordagens para a
Arquitetura em conexão com a análise das estruturas urbanas, entendidas share
como relações mutáveis, mas constantes no tempo (1).

Tal abordagem inicia-se com Saverio Muratori que, em Studi per una
operante Storia Urbana di Venezia (1960), examina o tecido urbano e faz 146
do tipo, enquanto estrutura formal, o conceito básico para explicar o 146.00
desenvolvimento histórico desta cidade. Para Muratori, o tipo é a chave Arquitetura e ciência
para compreender a conexão entre os elementos individuais e as formas espaço, tempo e
urbanas; assim tanto as calli, como os campi e os cortide Veneza são conhecimento
considerados elementos tipo vinculados uns aos outros, que perdem o Eunice Helena S.
sentido se não são reconhecidos a partir da interdependência constatada. Abascal and Carlos
Esta atitude, ao destacar a relação dos elementos entre si e com o todo, Abascal Bilbao
propõe um método de análise que pode ser chamado de morfológico e que foi
a base para o desenvolvimento de numerosos estudos tipológicos.(2)Os 146.01
outros expoentes italianos que, à época, propõe uma análise da cidade a Dobras Deleuzianas,
partir da relação entre tipologia arquitetônica e morfologia urbana são: Desdobramentos de Lina
Giulio Carlo Argan, Aldo Rossi, Carlo Aymonino e Ludovico Quaroni. Ao Bo Bardi
situar historicamente este movimento, François Loyer nos dá a dimensão de Considerações sobre
sua importância: “desejo” e o “papel do
arquiteto” no espaço
(…) No início dos anos 1970, a temática adquire maior expressão projetado
por constituir um instrumento de contestação do Movimento Lutero Proscholdt
Moderno. Tratava-se de lutar contra o primado das abordagens Almeida
econômicas e sociológicas, introduzindo uma perspectiva 146.02
histórica, capaz de extrair significado do plano cultural. O Vícios do projeto
viés tipológico revelava-se como uma regra implícita mais edilício e suas
convincente do que a visão puramente plástica das ordenações consequências jurídicas
impostas pela tradição Beaux-Arts. Fascinaram-se pelo método, José Roberto Fernandes
aqueles cujo patente interesse era o de restabelecer a Castilho
continuidade cultural entre passado e presente bem como o diálogo
do patrimônio com o projeto. (3) 146.03
De quintas a parques
O planejamento urbano da época apoiava-se sobretudo em bases Visitando os Parques da
quantitativas e era dominado por disciplinas variadas tais como a Quinta das Conchas e da
sociologia, a geografia, a economia, e a engenharia de tráfego. Em Quinta dos Lilases em
oposição ao primado de tais abordagens, a Tendenza, como ficou conhecido Lisboa
o movimento na Itália, defende a insubmssão da ciência urbana e sua Carlos Smaniotto Costa
recuperação, na medida em que a cidade é estudada a partir de seus dados 146.05
formais, como uma arquitetura, uma construção ao longo do tempo, ligada à Pacificação da cidade
cultura da sociedade. versus urbanidade
O caso dos espaços
Ao tomar como ponto de partida a forma da cidade, este tipo de análise públicos do grand
não deixa de reconhecer a contribuição de outros campos disciplinares,
apenas não admite uma relação determinista em que a cidade é mero produto
dos contextos econômicos, políticos e sociais; pois considera-se que sua
forma também seja o resultado de teorias, posições estéticas e culturais
de arquitetos e urbanistas.Os estudos de morfologia urbana rompem com os
métodos do funcionalismo que reduzem o projeto e o conhecimento da cidade
aos sistemas de circulação e zoneamento. Em oposição às análises
quantitativas, a metodologia propõe o estudo de dados qualitativos como o
parcelamento do solo e as constantes tipológicas na configuração dos

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tecidos urbanos. Há também uma mudança de escala no projeto urbano, para ensemble Les
o qual, em oposição aos planos globais e às macro estruturas Minguettes, na França
funcionalistas, o fragmento volta a ter relevância.O projeto de partes da Marcele Trigueiro de
cidade deveria então encaminhar-se como desenho urbano, em consonância Araújo Morais
com parâmetros que regulassem a arquitetura dos edifícios, pois segundo
146.06
esta abordagem, a qualidade arquitetônica da cidade não se restringe à
Jean-Paul Sartre e
realização de obras isoladas, mas também à capacidade das novas
Georges Pérec
arquiteturas relacionarem-se a fatos urbanos anteriores: a outras
maneiras de descrever
arquiteturas, à paisagem, ao lugar e aos sistemas de infra-estrutura. (4)
espaços
Adson Cristiano Bozzi
Tal método de análise assume algumas classificações de caráter
Ramatis Lima
instrumental. Em termos de escala, a estrutura urbana é composta pelos
seguintes elementos: o traçado viário, o quarteirão, o lote (ou parcela 146.07
fundiária), o edifício. Um estudo morfológico é válido quando além de O tratamento do
descrever estes elementos, investiga sua interdependência. A partir daí, conforto térmico em
outros fatores são considerados: os regulamentos de construção, as lançamentos
técnicas construtivas, a cultura de profissionais como arquitetos, imobiliários na zona
engenheiros, construtores e artesãos. Tal análise é capaz de esclarecer a temperada
vigência de determinadas formas e o conceito de tipo adquire então valor a questão da
instrumental no sentido de indicar a origem dos edifícios e suas relações regionalização da
com os outros elementos operantes na forma urbana, assinalando assim sua Arquitetura
armação histórica. Aloísio Leoni Schmid,
Bárbara Alpendre da
A morfologia urbana é o estudo das formas da cidade. A tipologia Silva, Calisto
construtiva é o estudo dos tipos de construção. Ambas as Greggianin, Carla
disciplinas estudam duas ordens de fatos homogêneos; além disso, Rabelo Monich,
os tipos construtivos que se concretizam nos edifícios são o que Cristiane Baltar
constitui fisicamente a cidade. (5) Pereira, Juliana Loss,
Isabella Marchesini,
Para entender a relação entre tipologia arquitetônica e morfologia urbana Márcio Henrique
em suas implicações para a análise da estrutura das cidades ou mesmo como Carboni, Martina
metodologia de projeto, é necessário definir o conceito de tipo e suas Joaquim Chissano and
acepções ao longo do tempo. Um percurso histórico demonstra que não Renata Paulert
existe uma única definição de tipologia construtiva, ao contrário, tal
conceito é redefinido sempre em função das investigações que se pretende
realizar: o tipo é, portanto um instrumento e não uma categoria.

Em 1825, no terceiro volume da Encyclopédie Methodique - Architecture, o


teórico francês Quatremère de Quincy define formalmente tipo e introduz o
conceito ao campo disciplinar da Arquitetura. Entretanto, a consolidação
desse conceito remete ao século XVIII, pois a idéia de tipo inscreve-se
no concento das preceptivas então em voga e nele se relaciona com as
noções de caráter, imitação, decoro e origem da Arquitetura. Limitar a
compreensão de tipo apenas ao âmbito da teoria francesa da Arquitetura no
século XIX, quando Durand já o havia submetido a uma condição operativa
em suas lições na École Polytechnique é um equívoco.

Capa da Encyclopédie Méthodique: Architecture. Liège: chez


Panckoucke, Tome I, 1788, de Quatremère de Quincy

Quatremère de Quincy estabelece então a distinção entre tipo e modelo que


responde a suas preferências pela etimologia grega frente à latina, pela
linguagem especulativa frente aos termos demasiados práticos. Tipo, do
grego typos, significa matriz, impressão, molde, figura em relevo ou em

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baixo-relevo (6) e distingue-se de modelo, do latim modellum, trasladado


às artes através do italiano modello, que implica em uma cópia literal e
possuiconotações empíricas,físicas e miméticas. O tipo é a idéia por trás
da aparência individual do edifício, uma forma ideal, geradora de
infinitas possibilidades, da qual muitos edifícios dissimilares podem
derivar. Distingue-se do modelo, objeto específico que podeser copiado
identicamente.

A palavra tipo não representa tanto a imagem de uma coisa a ser


copiada ou imitada perfeitamente como a idéia de um elemento que
deve ele mesmo servir de regra ao modelo. (…) O modelo, entendido
segundo a execução prática da arte, é um objeto que se deve
repetir tal como é; o tipo é, pelo contrário, um objeto, segundo
o qual qualquer pessoa pode conceber obras que não se
assemelharão em nada entre si. Tudo é preciso e dado no modelo;
tudo é mais ou menos vago no tipo. Assim vemos que a imitação
dos tipos nada tem que o sentimento e o espírito não possam
reconhecer. (…) (7)

O tipo é um elemento importante da dimensão conceitual da Arquitetura.


Abarca a essência da arte em particular, mas também resulta no que
poderia ser um desdobramento prático da teoria ao guiar a concepção do
arquiteto e o julgamento do público. Para Quatremère, a relação entre
arquitetura antiga e moderna não era outra coisa senão a modificação do
tipo, uma transformação conceitual requerida cada vez que um edifício é
projetado. O tipo arquitetônico é o principio que regula as modificações
e a chave para a legibilidade do público, pois é por ele que se imprime o
caráter distintivo aos edifícios.

Quatremère estabelece uma relação entre as etimologias dos termos tipo e


caráter. Tipo deriva do termo grego typos, no sentido de gravar ou
imprimir. Caráter, do grego characteer, traz o significado de marca e de
traço distintivo: um verdadeiro tipo possui caráter próprio, e este
permanece impresso em sua forma.

Cada um dos principais edifícios deve encontrar em sua destinação


fundamental, nos usos que lhe concernem, um tipo que lhe é próprio. A
arquitetura deve tender a se conformar, da melhor forma possível, a este
tipo se quer imprimir, a cada edifício, uma fisionomia particular. É da
confusão entre estes tipos que nasce a desordem tão comum que consiste em
empregar indistintamente as mesmas ordenações, disposições e formas
exteriores em monumentos destinados aos usos mais diversos. (8)

A diatribe dirigida às barrières de Paris - 47 portas alfandegárias


projetadas por Claude-Nicolas Ledoux nos estertores do Ancien Regime – é
expressão da polêmica em torno da invenção de um novo tipo. A eloquência
das formas elementares e o caráter distintivo destes monumentos dignifica
a autoridade citadina e assinala a passagem ao domínio austero da
urbanidade (9). Ledoux compõe variações sobre temas: o templo grego, os
portais amurralhados, o esquema palladiano da rotunda. Contudo, a mistura
de tipos antigos e modernos é violentamente contestada por Quatremère,
pois para ele apenas o arco triunfal seria adequado ao tema. Enquanto o
emprego das massas imponentes e da mais austera das ordens gregas é
considerado por ele motivo de encômio, as licenças de toda espécie
encontradas algures – arcos inseridos em frontões, ábacos comuns a duas
colunas, modilhões, bossagens e colunas submetidas aos piores gêneros de
tortura (10) – justificariam sua exprobração.

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Portas alfandegárias de Paris. Claude-Nicolas Ledoux. Barrière du Trône ou


Barrière de Vincennes, 1787
Foto Mbzt [Wikimedia Commons]

Com Jean-Nicolas-Louis Durand em suas lições na École Polytechnique, a


tipologia arquitetônica passa a ser um instrumento indispensável, com
indicações projetuais, mas assume um caráter operativo. A tipologia já
não se relaciona mais com os conteúdos a representar, tal como nas
pesquisas dos arquitetos ilustrados; passa a ser a catalogação de
protótipos que já definiram e deslindaram usos e ofícios semelhantes. A
expressão doedifício é dada pela conveniência e disposição das partes e
nesse contexto, os tratados de arquitetura tendem a transformar-se em
manuais que oferecem modelos exemplares.

DURAND, J-N-L., Combinaisons horizontales. Publicado originalmente em: Précis


des leçons d’architecture données à l’École Royale Polytechnique. Paris, 1819

O método de composição arquitetônica de Durand (11) compreende três


etapas: em primeiro lugar, a descrição dos elementos da arquitetura, tais
como colunas, pilastras, abóbadas, escadas, etc; em seguida o traçado das
formas gerais de associação destes elementos- em abstrato, a partir da
distribuição conforme eixos e modulação reticular, e também conforme as
exigências distributivas dos vários temas- e, finalmente, o estudo de
modelos exemplares. A geometria concreta e elementar dos projetos dos
arquitetos ilustrados se dissolve numa abstrata retícula cartesiana, que
permite, em função da economia de meios, a regularidade por um lado, e a
medida, em seu mais amplo sentido, por outro. (12) Havia neste método o
propósito prático de transmitir aos alunos na École Polytechnique um
mecanismo compositivo simplificado com objetivo operacional: viabilizar o
sistema de Bâtiments Civils na capital e nas cidades do interior da
França.

DURAND, J-N-L., Ensembles d`édifices. Publicado originalmente em: Précis des


leçons d’architecture données à l’École Royale Polytechnique. Paris, 1819

A composição será o instrumento utilizado pelos arquitetos para enfrentar


a variedade de programas propostos por uma nova sociedade, pois tal
diversidade não poderia ser satisfeita com os tipos conhecidos. A
composição passa a ser o mecanismo capaz de resolver a relação entre
forma e programa, ou forma e função, convertendo-se no conceito básico

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para entender a arquitetura do século XIX e seus novos edifícios de


caráter institucional, tratados como monumentos e utilizados como pontos
de referência dentro de um sistema que os relaciona a traçados e infra-
estruturas nas grandes intervenções urbanas do período.

DURAND, J.N.L. Recueil et Parallèle des édifices de tout genre, anciens et


modernes. Paris, 1822

Nas reformas da Paris de Haussmann e na expansão projetada por Cerdá para


a cidade de Barcelona, os tipos residenciais são o resultado da
implantação urbana, baseada nos traçados viários e nos regulamentos que
definiam o gabarito dos conjuntos edilícios a partir da largura das vias.
Verifica-se nestes casos uma alteração do conceito de tipologia: o tipo
passa a ser estabelecido primeiro em função do projeto urbano para só
depois passar por estudos distributivos e compositivos, a partir do exame
das necessidades que deveriam atender.

Há uma interação contínua entre o plano para a expansão de Barcelona


(1859) e o objetivo maior de Cerdá de formular princípios gerais para o
projeto racional de cidades expressos na Teoría general de la
urbanización y aplicación de sus pricipios y doctrinas a la reforma y
ensanche de Barcelona (1867). A teoria era usada para justificar o plano
e este, por sua vez, funcionava como base empírica e elucidava a teoria.

A idéia de uniformidade era essencial para Cerdá. Todas as partes da


cidade são projetadas de acordo com os mesmos princípios, teriam o mesmo
valor e seria possível estender a retícula ortogonal, que define a área
urbana, ad infinitum usando sempre o mesmo sistema.

O tipo urbano de Cerdá, o quarteirão, aceita arranjos variáveis, dentro


de uma taxa de densidade máxima, e constitui o elemento básico do tecido
urbano. Depois de definir a estrutura geral do projeto do Ensanche, a
partir do sistema de ruas e quarteirões– em sua terminologia, vias e
intervias, respectivamente – Cerdá passou ao estudo da composição dos
quarteirões. Prescreveu exigências mínimas que assegurassem a salubridade
e a boa circulação sem prefigurar nenhuma solução arquitetônica
específica. Dentro de um esquema de ordem geral, os proprietários tinham
liberdade de construir os edifícios. As tipologias tradicionais da cidade
de Barcelona são rechaçadas por Cerdá que as considerava insalubres. (13)

Cerdà, Ensanche de Barcelona, 1859 [Wikimedia Commons]

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No caso de Paris, a tipologia arquitetônica está relacionada com a


modalidade de parcelamento, consequência das formas de apropriação do
solo então vigentes. No século XVIII, a antiga escala de parcelamento,
fundada sobre a propriedade familiar, começaria a tender para a criação
de loteamentos nos grandes terrenos, ainda vazios, da capital. A nobreza,
grande proprietária de terras, promoveu a abertura dos primeiros
loteamentos nos quais seriam construídos imóveis de renda. (14)

Na Paris do século XIX, tanto as grandes residências urbanas, como as


mais modestas, aproximavam-se, no que diz respeito à distribuição dos
espaços, do hôtel particulier, tipo de residência aristocrática,
consolidado no século XVII. Esse tipo de edifício articulado em meio a
generosas parcelas fundiárias era dotado de extensa fachada, voltada para
um jardim, e formada pela linha de aposentos para recepção. A área de
convívio social, no térreo, ficava bem separada dos cômodos íntimos, no
pavimento superior, e das áreas de serviços domésticos e empregados, nos
fundos. Várias escadas, localizadas de forma estratégica, separavam por
completo os diferentes fluxos.

Mais do que a difusão de um tipo arquitetônico, a adaptação de algumas


características do hôtel particulier ao imóvel de renda parisiense,
representa a difusão de um modo de vida luxuoso entre a pequena
burguesia. O jardim é substituído pela rua e esta será a fachada
privilegiada ocupada pelos cômodos de representação. As superfícies são
reduzidas e o apartamento se organiza horizontalmente, espaços de
recepção e espaços privados, que no hôtel particulier ocupavam andares
diferentes, nos apartamentos estarão em um mesmo nível, voltados para a
rua ou para o pátio interno no quarteirão.

O tipo imóvel de renda parisiense se diferencia da casa particular pela


ruptura na escala de parcelamento. Do ponto de vista fundiário, os
terrenos e quarteirões rasgados pelos bulevares de Haussmann aumentaram
de valor. Os novos parcelamentos, resultantes da abertura de vias através
do tecido urbano antigo, propiciavam a construção do tipo de imóvel que
entraria em voga na segunda metade do século XIX. Devido ao recorte dos
quarteirões, o lote haussmanniano tinha poucas chances de ter uma forma
regular, e enquanto alguma constância era mantida nas dimensões das
testadas e nos limites laterais, lançados de forma perpendicular às novas
vias, a profundidade das parcelas variava bastante.

O tipo denominado hoje de imóvel haussmanniano era, portanto flexível e


adaptável às irregularidades dos lotes. Apenas a linha de fachada voltada
para a rua, onde estavam dispostos os cômodos de recepção, deveria
obedecer a uma geometria rígida. O pátio interno, espaço menos nobre,
para onde estavam voltadas as áreas íntima e de serviço, aceitava
irregularidades em sua forma.

Imóvel haussmaniano, Paris


Foto Thierry Bézecourt [Wikimedia Commons]

É importante verificar que o imóvel haussmanniano não é tratado como um


objeto isolado, mas como parte de um conjunto pois em todos os imóveis
dos quarteirões é mantida a regularidade das fachadas e o alinhamento da
rua. O uso do mesmo gabarito gerou uma ampla unidade urbana. A

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regularização se aplicava à altura dos andares, às saliências dos balcões


ou das cornijas, ao ritmo das aberturas enquanto as diferenças se
restringiam aos ornamentos. Os regulamentos de Haussmann visavam a
harmonia do conjunto arquitetônico e a proporção entre a escala dos
quarteirões e a escala urbana.

A passagem da escala do lote para a escala do quarteirão nas reformas de


Haussmann deve ser entendida dentro do plano geral de dar à capital
francesa uma escala monumental. Os bulevares, que rasgavam o tecido
antigo de Paris, tornar-se-iam o modelo de espaço urbano central. Este
tipo urbano, composto de vias paralelas, com circulação de pedestres
separada da circulação de veículos, articulava várias funções: além da
animação comercial da calçadas, permitia a rápida circulação entre os
bairros. Por outro lado, o bulevar era perfeitamente adequado à criação
do traçado, em escala monumental, indispensável à visibilidade global da
forma urbana.

A história do imóvel parisiense é de um aumento considerável na


densidade, sem que isso significasse a transformação radical na aparência
da construção: os lotes se alargam, aumenta o índice de ocupação dos
terrenos, aumenta o número de andares, mas a aparência geral das
fachadas, seguindo a tradição clássica de composição com embasamento,
corpo principal e coroamento, permanece.

No contexto do final do século XIX, em que as principais cidades


européias passam por profundas transformações, no esforço de
compatibilizar crescimento acelerado, aspectos sanitários e circulação, a
obra de Camillo Sitte, A construção da cidade segundo seus princípios
artísticos (15), pode ser considerada uma reação ao desaparecimento dos
cascos antigos e uma tentativa de conferir à cidade uma dimensão formal
que se desintegrava sob as reformas urbanas, resgatando a urbanidade
presente, sobretudo na antiguidade greco romana. (16) Partindo da análise
de inúmeros exemplos de espaços públicos, sobretudo praças, Sitte formula
princípios gerais de composição urbana cuja aplicação julgava ser capaz
de conferir às cidades modernas qualidades formais semelhantes aos
exemplos históricos.

Na obra de Sitte, a cidade é tratada como uma obra de arquitetura. Além


de investigar as possibilidades urbanísticas da arquitetura - proporções
e maneiras de inserir os monumentos nos espaços públicos – Sitte também
explora o potencial estético de elementos urbanísticos como uso do solo,
alinhamentos dos edificios, fluxos de tráfego, densidade edificatória e
vegetação. (17)

Depois de obter grande repercussão logo após seu lançamento, a obra de


Sitte é objeto de duras críticas por parte do Movimento Moderno para, nos
anos 1960, ser retomada pelos contextualistas pós-modernos e pelo
movimento Townscape. A reverência à história, a escala através da qual
trata a cidade, privilegiando as partes em relação ao todo, o interesse,
manifesto em seus desenhos, pela maneira como o cidadão comum percebe o
espaço urbano, são aspectos da obra de Sitte retomados nos trabalhos de
Kevin Lynch, Gordon Cullen e dos irmãos Leon e Rob Krier.

No século XX, as noções de tipo e tipologia como ponto de partida para o


projeto arquitetônico são rechaçadas pela vertente do Movimento Moderno
dita funcionalista. Tal crítica tinha por base a defesa da
individualidade do objeto arquitetônico, a rejeição da teoria acadêmica
da arquitetura estabelecida durante o século XIX e a valorização
conferida à metodologia do projeto no processo criativo. O funcionalismo,
entendido como a relação de causa e efeito entre função e forma
arquitetônica, parecia oferecer naquele momento um método que eliminava
totalmente o recurso à tipologia, enquanto instrumento legitimado pela
história e premissa para o projeto.

A produção em série da arquitetura, centrada, sobretudo nos programas de


habitação assume papel relevante para o Movimento Moderno. A habitação
estandardizada, capaz de abrigar as pretensas necessidades fundamentais e
passível de repetição em vários contextos, seria a resposta programática
às transformações pelas quais a sociedade urbana e industrial passava. O
tipo deixa de ser um conceito abstrato para se tornar uma realidade
concreta nos processos industriais e ao viabilizar a reprodução exata do
modelo o tipo é convertido em protótipo.(18)

No século XX, a configuração da vivenda passa a ser estruturada de forma


endógena, a partir das necessidades lógicas da unidade residencial
individual. No alojamento funcional, a forma urbana é o resultado do
arranjo de células-base segundo parâmetros quantitativos tais como
insolação e ventilação, que substituem a relação dos edifícios com
outros elementos da forma urbana, como ruas, praças e quarteirões.
Arquitetos e urbanistas promovem intervenções em parcelas das cidades,
sobretudo nos novos bairros periféricos, que não estabelecem um acordo
com estruturas urbanas anteriores. A relação entre tipologia habitacional
e morfologia urbana passa a ser então unilateral: a tipologia determina a
morfologia, pois as demandas do espaço urbano deixam de ser consideradas
como aspectos relevantes. (19)

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Le Corbusier: Unité d`habitation – Berlim, 1956-58


Foto Manfred Brückels [Wikimedia Commons]

Frente as limitações do Movimento Moderno para lidar com as questões


urbanas, uma série de textos da década de 1960 insiste na necessidade de
se buscar uma teoria capaz de explicar a continuidade formal e
estrutural entre as novas partes e as cidades antigas. Tais estudos
consideram a cidade como uma estrutra formal cujo sentido só pode ser
compreendido através da análise de seu desenvolvimento ao longo da
história. Retoma-se então ao início deste artigo, sobretudo à obra de
Aldo Rossi e de Giulio Carlo Argan, que retomam a definição de tipo de
Quatremère de Quincy.

Argan interpreta a definição de Quatremère com tal pragmatismo que parece


desconsiderar o neo platonismo implicito na definição do conceito no
século XVIII. Para Argan, o tipo supõe uma certa abstração inerente à
forma e à função dos edfícios. O tipo se configura como um esquema,
deduzido através de um processo de redução de um conjunto de variantes
formais a uma forma base comum, entendida como estrutura interna da forma
ou como princípio que implica a possibilidade de infinitas variantes
formais e, até, da ulterior modificação estrutural do tipo mesmo. (20) O
tipo deduzido de uma série de obras é portanto resultado de uma operação
feita a posteriori, o que faz com que Argan divirja de Quatremère, para
quem o tipo se aproxima do absoluto platônico, da idea a priori.

Contudo, a definição de tipo de Quatremère como algo vago e indefinido,


permite a Argan estabelecer dois momentos no processo de criação de uma
nova obra de arquitetura: o momento da tipologia e o momento da definição
formal (21). O momento da tipologia é para Argan o momento não
problemático em que o arquiteto estabelece os laços com o passado e a
sociedade ao se referir a um repertório de tipos conhecidos. Já o segundo
momento do processo ideativo é aquele da invenção, que representa a
resposta do arquiteto à situação histórica hodierna, através da crítica e
da superação das soluções passadas sedimentadas e sintetizadas na
esquematicidade do tipo. (22)

Ao analisar a tipologia dos edifícios e sua relação com a cidade, Aldo


Rossi também recupera a definição de tipo formulada por Quatremère de
Quincy. Convergindo com o teórico do século XVIII, Rossi afirma que o
tipo se constitui de acordo com as necessidades e com as aspirações de
beleza das diferentes sociedades, ligado à forma e ao modo de vida. Por
conseguinte, o conceito de tipo se constitui em fundamento da
arquitetura e retorna tanto na prática quanto nos tratados. O tipo é,
pois, constante e se apresenta com características de necessidade; mas
mesmo determinadas, elas reagem com a técnica, com as funções, com o
estilo, com o caráter coletivo e o momento individual do fato
arquitetônico. (23)

A obra de Rossi, A Arquitetura da Cidade (1966), constitui um libelo


contra a corrente funcionalista da arquitetura moderna. Condicionada à
função, a forma arquitetônica é destituída de suas razões mais complexas,
por um lado, o tipo se reduz a um mero esquema distributivo, um diagrama
de fluxos; por outro, a arquitetura perde sua autonomia. Ao estudar a
cidade a partir de sua arquitetura, Rossi aponta questões como a
individualidade, o locus, a memória, o desenho, mas não se refere a
função e para justificar sua posição faz menção a fatos urbanos
preeminentes cuja função mudou ao longo do tempo, ou mesmo em que não
existe função específica. Pode estar apontada aqui a chave para uma das
questões essênciais da cidade contemporânea: a possibilidade de
readequação, a partir das qualidades da sua arquitetura e de sua forma
urbana, de partes inteiras da cidade cujos usos tornaram-se obsoletos.

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arquitextos 146.04: Tipologia arquitetônica e morfologia urbana | vitruvius Página 9 de 10

Aldo Rossi – Quadra Schützenstrasse, Berlin, Germany, 1994


Foto Jean-Pierre Dalbéra [Wikimedia Commons]

Se para Quatremère de Quincy, o tipo explica o problema original da


arquitetura, sempre latente no curso da história, resta a pergunta: faz
sentido hoje recorrer ainda ao conceito de tipo? A resposta pode ser
positiva quando se considera que uma obra de arquitetura não se constitui
como um fato único e isolado, pois está condicionada por uma determinada
realidade e por sua história e, portanto, se propaga em outras tantas
obras. A validade de uma interpretação tipológica se coloca, pois quando
toda vez que se reconhece o caráter unitário e ao mesmo tempo relacional
da arquitetura e da cidade.

notas

NA
Alguns aspectos dos conceitos de morfologia urbana e tipologia constrtutiva são
abordados pela autora em: PEREIRA, Renata B. “Uma abordagem histórica dos
conceitos de morfologia urbana e tipologia arquitetônica”. In: Ímpeto. Revista
de Arquitetura e Urbanismo. PET Arquitetura- UFAL. Ano 02. Fev. 2010. pp. 21-6.

1
AYMONINO, Carlo. O significado das cidades. Lisboa: Editorial Presença, 1984,
p.7.

2
MONEO, Rafael. “Sobre la noción de tipo” (1978). In: COSTA, Xavier. Hábitats,
tectónicas, paisajes. Arquitectura española contemporánea. Barcelona: Actar,
2001.

3
LOYER, François. “Prefácio”. In: SALGUEIRO, Heliana A.. La casaque d’arlequin:
Belo Horizonte une capitale éclectique au 19e. Siècle. Paris: EEHESS, 1997,
p.X.

Além dos italianos, outras escolas trabalharam com este tipo de abordagem, a
saber: o Laboratório de Urbanismo de Barcelona, com Solà-Morales; na França os
estudos de Panerai, Castex e Depaule; e mais recentemente na Argentina,
Fernando E. Diez.

4
AYMONINO, Carlo, op. cit., p 126.

5
ROSSI, Aldo. Para una arquitectura de tendencia. Escritos: 1956-1972.
Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S.A., 1977.

6
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Type”. In: Encyclopédie Methodique - Architecture.
Liège : chez Panckoucke, Tome III, 1825, p.543.

A tradução integral deste e de outros verbetes do Dictionnaire Historique


d`Architecture de Quatremère de Quincy encontra-se publicada em: PEREIRA,
Renata Baesso. Arquitetura, imitação e tipo em Quatremère de Quincy. São Paulo:
FAU-USP, 2008. Tese (Doutorado). Programa de Pós Graduação em História e
Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo da Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2008.

7
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Type”. Op. cit.,Tomo III, p.543.

8
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Type”. Op. cit.,Tomo III, p.545.

http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.146/4421 26/02/2013
arquitextos 146.04: Tipologia arquitetônica e morfologia urbana | vitruvius Página 10 de 10

9
AZEVEDO, Ricardo Marques de. Antigos modernos: estudos das doutrinas
arquitetônicas nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: FAU-USP, 2009, pp.75-6.

10
QUATREMÈRE DE QUINCY. “Barrière”. In: Encyclopédie Méthodique : Architecture.
Liège: chez Panckoucke, Tome I, 1788, p.216.

11
DURAND, Jean-Nicholas-Louis. Précis des leçons d’architecture données à l’École
Royale Polytechnique. Paris, 1819. (Edição facsimilar: Nördlingen: Verlag Dr.
Alfons Uhl, 1985).

12
MONEO, Rafael. “Prólogo” a la edición española. In: KAUFMANN, Emil. La
arquitectura de la ilustracion. Barcelona: Gustavo Gilli, 1974, p.XXV.

13
CERDÁ ciudad y territorio: una visión de futuro. Catálogo de la Exposition.
Barcelona: Electa, 1994, p.87.

14
LOYER, François. Paris XIXe siecle, l’immeuble et la rue. Paris: Hazan, 1987,
pp.67-70.

15
Título original: Der Städtebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen. 1ª
edição: Viena, 1889. Tradução para o português organizada por Carlos Roberto
Monteiro de Andrade: SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus
princípios artísticos. São Paulo: Ática, 1992.

16
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. “A construção da cidade segundo seus
princípios artísticos”. In: Projeto, São Paulo, n.128, p.108, dez. 1989.

17
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de, Op. Cit., p.109.

18
MONEO, Rafael. “Sobre la noción de tipo”. Op cit., p.182.

19
ROWE, Colin, KOETTER, Fred. Ciudad Collage. 2.ed. Barcelona: Editorial Gustavo
Gilli, 1998, p.58.

20
ARGAN, G.C. “Sobre o conceito de tipologia arquitetônica”. In: ARGAN, G. C..
Projeto e destino. São Paulo: Editora Ática, 2000. p.67.

21
ARGAN, G. C. Op. Cit., p.69.

22
ARGAN, G. C. Op. Cit., p.70.

23
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 27.

sobre a autora

Renata Baesso Pereira é Arquiteta pela Escola de Arquitetura da Universidade


Federal de Minas Gerais (1994). Mestre em Urbanismo pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas – FAU-PUC- Campinas (2000). Doutora pelo
Programa de Pós Graduação em História e Fundamentos da Arquitetura e do
Urbanismo da Universidade de São Paulo (2008). Professora do Curso de Pós
Graduação em Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (CEATEC
- PUC- Campinas – SP), na linha de pesquisa História do Pensamento Urbanístico.

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