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ESPIRITUALIDADE PROPEDÊUTICO1

CAPÍTULO I: ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA


FEVEREIRO
1. “Espiritualismos” x Espiritualidade Cristã............................................................02
MARÇO
2. Antropologia Cristã............................................................................................04
ABRIL
3. Espiritualidade Bíblica: Antigo Testamento2
Torah
Profetas
Escritos Sapienciais
Salmos (Liturgia das Horas)
MAIO
4. Espiritualidade Bíblica: Novo Testamento3
Evangelhos
Cartas Católicas
Cartas Paulinas
Hebreus
Apocalipse

CAPÍTULO II: ENFOQUE HISTÓRICO

JUNHO
5. Místicos Antigos
JULHO
6. Místicos Medievais: TRABALHO - As três vias e as três conversões, Reginald
Garrigou- Lagrange. Sintetizar em 3 laudas (máx.) as três vias espirituais de
Santidade apontadas pelo autor.
AGOSTO
7. Místicos Modernos
SETEMBRO
8. Místicos Contemporâneos
OUTUBRO
9. Concílio de Trento e Concílio Vaticano II
NOVEMBRO
10. Espiritualidade Litúrgica e Fenômenos Extraordinários

Seminário: Virtudes Teologais: 1. Fé, 2. Esperança e 3. Caridade. Virtudes


Cardeais: 4. Fortaleza, 5. Justiça, 6. Prudência e 7. Temperança. 8. Pecado
Grave. 9. Pecado Venial. 10. Vícios.

1
Para as principais referências divido as siglas para um melhor entendimento: (ME) BETTENCOURT,
Estevão Tavares. Curso de Espiritualidade. Ed. Escola “Mater Ecclesiae”. Rio de Janeiro, 2006. E a sigla
(C) para: CATÃO, Francisco. Espiritualidade Cristã. 1. Ed. São Paulo. Paulinas, 2009.
2
Para as direções da espiritualidade Bíblica uso a seguinte referência: GASS, Ildo de Bohn. Coleção: uma
introdução a Bíblia – 8 Volumes – Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). Editora Cebi, 2002.
3
Idem.

1
1. “Espiritualismos” x Espiritualidade Cristã

Um conceito sobre espiritualidade: é a atitude (convicções e práticas) que o


homem assume frente aos valores espirituais (alma humana, deus). É considerada como
filha da modernidade, pois sua origem remete a escola francesa do século XVI, como
designação da relação pessoal do humano com Deus. Não é também uma contraposição
ao que é material. A capacidade de a pessoa entrar em harmonia consigo mesma,
vivendo na paz; é a capacidade de dialogar, de expressar toda a força de sua
interioridade, de abrir-se e acolher todo o amor de Deus. Espiritualidade, dizia Tenzin
Gyatso (14º Dalai Lama) “é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior e o
leva a mudar o mundo”.
A procura da espiritualidade é uma exigência da própria natureza humana, pois o
homem sempre procura o equilíbrio interior; quanto mais ele acolher e obedecer à voz
do Espírito que mora dentro dele, tanto mais estará construindo esse equilíbrio (Rm 8,
16 e 26). Por fim é um “conjunto de práticas e atitudes que manifestam a experiência de
Deus numa pessoa, numa cultura, ou numa comunidade. Estilo de vida que dá unidade
profunda ao nosso orar, nosso pensar e agir”.4
O ateísmo que se propagou no Ocidente a partir do século XIX, atenuou ou
extinguiu a espiritualidade no mundo, a tal ponto que na década de 1960 se falava na
morte de Deus5: ele é fruto de causas extrarracionais como educação, traumas infantis,
ambiente cultural familiar, hipótese elegante para a existência das coisas. Hoje o debate
é este: “Deus não morreu, ele se tornou dinheiro, e o banco tomou o lugar dos padres”:
filósofo Italiano, Homo Sacer, Giorgio Agamben [ENTREVISTA]. Implica aí a
dessacralização da sociedade e a laicização (democratização divina) da vida pública.
Deus está para todos, mas aqueles que o encontram “mais” colocam um preço e o torna
um produto de mercado: um royalty6.
Este renascimento da fé religiosa é frequentemente emotivo e irracional.
Apresento três das principais manifestações:
1. Ocultismo e suas variantes: (magia, astrologia, horóscopos, quiromancia,
necromancia, comunicação com os mortos). Em 1975 realizou-se em Bogotá
(Colômbia) o primeiro Congresso Internacional de Magos, acompanhado de ampla
ibliografia sobre o assunto. Os países da cortina de ferro (que depois divide o mundo
entre as potências capitalistas e comunistas), sujeitos a ideologia ateia e materialista do
marxismo.
2. Interesse pelas crenças orientais: embora panteístas (tudo é Deus: mistura da
divindade com a natureza, ser humano e com o mundo) atraem inúmeros seguidores
pelo seu aceno Transcendental; vários mestres budistas tem feito sucesso (Coen Rōshi,
é uma monja zen budista brasileira de ascendência portuguesa, e missionária oficial da
tradição Soto Shu com sede no Japão; a norte-americana Pema Chödrön e a
inglesa Jetsunma Tenzin Palmo e Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama é o chefe de
estado, líder espiritual do Tibete. É o título de uma linhagem de líderes religiosos da
escola Gelug do budismo tibetano) e inúmeras pessoas visitando o oriente para serem
iniciados ao Budismo, hinduísmo, Yoga, medicinas orientais, etc.
3. Nova Era: as famosas new age surge de um aglomerado de princípios filosóficos
e religiosos, que a rigoa, não combinam entre si, mas tem o objetivo de criar uma nova
era, que contesta os valores tradicionais do ocidente. Sua fonte não é a razão, mas isto
4
BEOZZO, J. O. (Org.) Espiritualidade e mística. Curso de verão, ano XI. São Paulo: Ceseep/Paulus,
1997, p. 23.
5
Deus está morto é uma frase muito citada do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Aparece pela primeira
vez em A Gaia Ciência, na seção 108, na seção 125 e uma terceira vez na secção 343.
6
Compensação paga pela extração de recursos naturais, minerais e hídricos. 

2
não importa aos seus adeptos, resultando a fragilidade de seus religiosos. A maioria dos
defensores da Nova Era entendem que Jesus Cristo não fundou nenhuma religião, mas
foi usado indevidamente pelo Império Romano para estabelecer a Igreja Católica. A
antiga era é a dos peixes, lembrando os cristãos de antigos costumes inspirados pelo
império romano. Pesquisa: http://www.grandefraternidadebranca.com.br/cronologia.htm
Espiritualidade cristã é viver segundo o Espírito, ou a própria vida cristã em si:
orientar-se para Deus, através de Cristo, no Espírito Santo. As diferentes maneiras de
experimentar a graça divina por meio de Cristo tornando o cristão capaz de acolher e
conhecer os mistérios de Deus 1Cor 2, 7-9. Alguns elementos são constitutivos: intuição
e experiência pessoal de Deus. Influência do ambiente sociorreligioso e do próprio
temperamento pessoal. Resposta ás exigências históricas do povo de Deus. Estilo
singular de vida. Métodos de oração e meios ascéticos, práticas comunitárias e formas
de apostolado.
ASCESE: askesis, exercício, treino, esforços graças aos quais se procura
progredir na vida moral e religiosa, em geral comporta exercícios de oração mental e
uma disciplina corporal. Assim como um atleta numa Olimpíada ou um soldado na
guerra. É a capacidade de dizer não quando visitado por uma tentação. Há distinções nas
diferentes modalidades. Ascese ativa é aquela que o cristão empreende com a graça de
Deus, onde pode ser positiva, como no caso de alguém que, com especial carinho se
dedica a um irmão carente. Pode ser ascese ativa negativa quando a pessoa deixa de
fazer algo que lhe agrade, jejuando, por exemplo. A ascese passiva quando não
procurada pelo indivíduo, mas infligida pelas circunstâncias. É o que se dá quando
alguém cai doente ou sofre algo que não espera fatalidade que a vida oferece: Dasein-
presença/ser aí no mundo, diversas possibilidades do ser no mundo.

O Dasein partilha com os outros o espaço que circunda. Em sua


ocupação ele se encontra a si mesmo e aos outros. De fato,
nesta possibilidade de ser-com-os-outros, “o estar-só do Dasein
é ser-com no mundo (…). O próprio Dasein só é na medida em
que possui a estrutura  essencial de ser-com, enquanto co-
Dasein que vem ao encontro dos outros. (Ser e Tempo, p.171)

MÍSTICA: mystikós, que foi iniciado “nos mistérios” (realidade secreta)


escondido ao conhecimento ordinário, que se propõe a um tipo de experiência que
conduz à união com o absoluto. União direta com Deus. Longe de ser algo
extraordinário (visões, êxtases, estigmas, etc), é a experiência que a criatura humana faz
de Deus presente no íntimo de sua alma. Há três maneiras distintas de conhecer a Deus.
O modo natural é o que depende da aplicação do uso da inteligência, pelo
raciocínio o homem é levado, sim aos conceitos do sumo bem: motor imóvel, primeira
causa. Nesta via de conhecimento podemos citar os filósofos como Aristóteles no
exemplo que citamos. O modo sobrenatural pela graça santificante, levado a
conhecer algo a mais do que a razão por si apreende, penetra nos conhecimentos da fé
revelada: a vida íntima de Deus e seus desígnios referentes à salvação do homem.
Assim o cristão se move para progredir no conhecimento divino e nos mistérios da fé. E
ainda de modo sobrenatural pelas virtudes infusas e pelos dons do Espírito Santo:
por eles não mais a criatura que se move e procura a Deus segundo seu modo subjetivo,
mas Deus mesmo move o ser humano ultrapassando suas capacidades humanas- padece
a ação divina. O estado místico é a criatura humana, sujeita a ação do Espírito Santo, faz
a experiência de Deus que lhe está intimamente presente na alma.

3
3. Antropologia Cristã
Iniciamos com a citação de Santo Irineu:
“Este é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o
Filho de Deus Filho do homem: para que o homem, unindo-se
ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho
de Deus(...)Aquele a quem o revelar o Pai que está nos céus,
dando-lhe a entender que o Filho do homem que nasceu não pela
vontade da carne, nem pela vontade do homem, é o Cristo, o
Filho do Deus vivo.” (Adversus haeresis 3,19)
Assim a diferença do amor humano: é que o amor divino não supõe valores no ser
amado, mas antecede-os e os cria. Com outras palavras: o homem não é amado por
Deus porque seja bom, mas ele é bom porque é amado por Deus. O primeiro dom
gratuito de Deus para o homem é a encarnação do Filho: Jesus é Filho de Deus por
natureza (possuem a mesma natureza: a divina) e nós somos Filhos de Deus por
Graça: dá-nos a participação da natureza divina (Gl 4, 4-7).
“Devemos amá-lo, porque tudo aquilo a que Ele deu existência é digno de
nosso amor”. (Santa Catarina de Sena, mística e doutora da Igreja).
Assim a via privilegiada do conhecimento de Deus é a humanidade (CIC 311).
Com sua inteligência é a única criatura material que conhece. Observando a maravilha
do universo material e sua imensidão, o homem vê que é apenas uma ínfima parcela
dele. Entretanto, ele é o único ser pensante. Todo o resto apenas se dá a conhecer; só o
homem conhece. Só ele tem a faculdade de conhecer, ou seja, a inteligência. A ciência
natural, o conhecimento do universo material, não satisfaz a alma humana, pois todas as
suas faculdades a elevam acima dele.
A vontade, por sua própria natureza, busca a felicidade plena, e, portanto não se
satisfaz com o bem que é passageiro relativo. Ela foi criada com sede do Bem absoluto.
Os bens finitos podem atrair o homem, encantá-lo, subjugá-lo. Atingidos, porém,
mostram-se insuficientes; geram novo desejo por bens superiores. O coração humano é
como um abismo que todas as alegrias e gozos materiais não são suficientes para
preencher. O Desejo, assim, a alma deseja o infinito como o corpo deseja o ar, a água e
o alimento. Finito, o homem foi feito com sede de infinito. O homem diante de Deus,
essa formiga em face do oceano, é capaz de atingir e de mover Deus, infinitamente
superior a Ele. Daí poder o homem elevar a Deus suas orações tendo certeza de que
serão ouvidas, apesar da infinita distância que separa o Criador da criatura. Não
contente de subir até Deus, o homem deseja também que Deus desça até ele, sabendo
esse ato tão realizável quanto o primeiro. Tal foi o desejo expresso por Isaías: "Que Ele
rasgue os céus e desça!" Foi o que aconteceu na Incarnação. Há no homem a aspiração
de experimentar Deus. Quando não temos consciência disso buscamos Deus onde ele
não está: bebida, droga, sexo, dinheiro, compra, fama, ódio, fofoca, etc. (CIC 35).
Deus nos deu uma identidade pessoal a cada um, ou seja, é a consciência que a
pessoa tem de si mesma. É a capacidade de se questionar todos os dias ao acordar pela
manhã e se olhar no espelho: quem sou eu? O conjunto de informações contidas na
resposta forma o que chamamos de identidade: idade, local de nascimento, profissão, se
é pai, mãe, filho, estudante, católico; tudo isso forma quem somos. Ser está muito além
dos rótulos em que a sociedade nos coloca: médico, advogado, gerente, gordo, feio,
negro, gay, cadeirante, depressivo, bandido, bêbado, divorciado, santinho,
mestre/doutor, intelectual, burro, pois estamos em constante mudança: “Ninguém entra

4
num mesmo rio uma segunda vez. Pois quando isso acontece, já não se é o mesmo;
assim como as águas, que já serão outras” Heráclito de Éfeso, Filósofo.
Mas não viemos do acaso. Veremos esta “plenificação” da criação de Deus a
partir dos Evangelhos paralelamente ligado ao Gênesis onde Deus Cria o homem e
a mulher a partir do amor assim como envia seu Filho para tornar completa a
Criação: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito,
para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” Jo 3, 16
("criado à imagem de Deus em Gn 1, 27, -Em hebraico adam significa "ser
humano", "gênero humano", que é tirado de adamah: terra.  E Eva: Hava, que
traduz do hebraico por ser vivente. Somos adão e eva, já que somos seres viventes e
fomos tirado da terra, ou seja, da matéria, a partir de sua constante relação de amor:
Pai, Fiho e Espírito Santo) Nossa identidade portanto só encontra sentido quando
encontramos Jesus como princípio e modelo da nossa maneira de viver, pois Deus
revela o que é em Jesus Cristo, Ele é a imagem viva do Deus invisível.
Aproximamo-nos de nós mesmos à medida que queremos imitar as atitudes de
Jesus: Ele é conteúdo, fonte e finalidade do ser humano, pois anunciou e viveu
como realidade última o estabelecimento da aliança eterna e definitiva com o Pai
sendo fiel. Antes, porém de perceber o mistério pascal, vemos que Deus se digna
morar com os homens, à semelhança dos homens. Com isso percebemos que a
criação é plenificada, pois o que os patriarcas chamados por Deus não conseguem,
ele faz por nós: ser modelo de fidelidade à aliança com Deus. Desde a criação
somos unidos a Trindade:
“...o homem e a mulher são criados em idêntica
dignidade, “à imagem de Deus”. Em seu “ser mulher”
e “ser homem” refletem a sabedoria e a bondade do
criador. (Catecismo da Igreja Católica, § 369)
Em Gn 1, 27, ao criar o homem e mulher, a tradução do hebraico nos ensina
está pertença a Deus de maneira poética:
Homem = (y) îsh Mulher = (y) îsha Deus = (y) aweh- YHWH
Todas as três palavras possuem a mesma inicial, da menor letra do hebraico
chamada: yôd, a partir dela que, é a inicial do nome de Deus Y é tirado o ysh e
ysha, ou seja, o homem e a mulher. De Deus somos gerados e ganhamos uma
dignidade inviolável e jamais perdida. Como fala o documento do Concílio
Vaticano II:
“A consciência é o centro mais secreto e o santuário do
homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se
faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência,
revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no
amor de Deus e do próximo.” Gaudium et Spes 16
Apesar de ser complexo, não posso ter medo de ser eu mesmo: ser sincero ao
dizer “sim” e “não”, mostrar o que gosto de fazer, contar meus sonhos, falar sobre
minhas lutas e vitórias, para que o outro se relacione com quem de fato sou e assim
conviva não com um personagem que está preocupado em agradar a todos, mas ser
integro para tornar-me de fato a imagem e semelhança de Deus. O que acontece é que às
vezes deixo de fazer e falar o que desejo com medo de que o outro não me aceite. A
identidade é um processo de amadurecimento para um equilíbrio do que “eu” sou, com
o “eu” que os outros pensam que eu sou e do “eu” que desejo ser para corresponder ao
5
projeto de Deus. Quem não assume sua identidade e a realidade em que a vida o
colocou7, não pensa o que fala, vive sempre frustrado, não faz o que diz, e quando erra
coloca a culpa em Deus, no outro e até no demônio.
Por fim quem nos ajuda a descobrir o que somos é Deus. Pois ele nos criou sem os
estereótipos e rotulações apenas com uma verdade imutável: somos filhos amados de
Deus. Nossa essência exala o amor de Deus, por isso somos eternos, bons e desejamos
ser felizes e se ainda não temos consciência disso é porque não descobrimos ainda um
sentindo para gastarmos este amor. Em certa medida o outro e o que fazemos como
profissão (nossa obra para o mundo) nos mostra quem somos, porque aí na relação com
o outro e com o mundo é que vai despertando em mim as emoções diversas: medo, ódio,
simpatia, inveja, angústia, admiração, perdão, paciência, amor, etc. através deste
processo de educação a partir da pessoa de Jesus temos os dados fundamentais:
aprendo a ser, aprendo a fazer, aprendo a conviver e aprendo a apreender.
O reconhecimento da nossa origem: paternidade divina, por sua vez, exige uma urgente
mudança de vida. O homem não pode verdadeiramente declarar-se filho de Deus sem uma
determinada determinação — como dizia Santa Teresa d'Ávila — de tornar-se santo como o
Pai é santo Mt 5, 1-12. A mola que sustenta a espiritualidade cristã é o desejo de Deus. Não
posso servir a dois senhores. A santidade deve ser nossa única meta nesta vida. Todavia, para
que possamos atingi-la, é necessário o auxílio da graça. Amamos com o amor de Deus. A lógica
da santidade cristã, portanto, é esta: Deus me ama (pela fé, cremos no seu amor), eu amo Deus
(pela caridade, devolvo seu amor a Ele e ao próximo). E isso se realiza mediante a esperança.
Esperamos em Deus a purificação de nossas faltas para que possamos urgentemente amá-lo
"em espírito e em verdade" (Jo 4, 24). Pois "quem pôs a sua esperança em Cristo vive dela, e
traz já em si mesmo algo do gozo celestial que o espera".
Destaco esta concepção (até mesmo citada no catecismo da Igreja católica no
parágrafo 367: “A Igreja ensina que cada alma espiritual é diretamente criada por Deus,
não é produzida pelos pais, e é imortal: ela não perece quando da separação do corpo na
morte e se unirá novamente ao corpo na ressurreição final”, ou seja, ela é espiritual
porque não possui matéria e nos indica que o homem está ordenado desde a sua criação
para seu fim sobrenatural).
Assim podemos relacionar o sacerdócio e o CELIBATO, pois uma das dimensões
é a identificação com Cristo: é uma participação do seu sacerdócio. Serviço da Igreja:
este oferece ao mundo um sinal vivo de Cristo sacerdote, dando a vida como Cristo fez
pela sua Igreja. Sinal dos bens celestiais: assumido esta fidelidade esponsal com Cristo
em nossa Alma Esposa, este mistério já revela aqui na terra o que um dia será no céu. É
sem dúvida uma graça de Deus onde o vocacionado é convidado a integrar toda sua
sexualidade segundo a visão Cristã.
O celibato sacerdotal: Não é contrário à natureza humana considerada “in
abstracto”. Santo Tomás o estabeleceu claramente ao distinguir as necessidades naturais
próprias a cada indivíduo (a nutrição) e das necessidades próprias à coletividade: “Em
respeito às primeiras, diz para cada indivíduo cuidar delas; enquanto às necessidades
de grupo, não é exigido que cada membro do grupo seja responsável por elas, aliás,
seria até impossível (…). Ora, a geração não é uma necessidade para cada indivíduo,
mas sim para a espécie no seu conjunto. Logo, não é preciso que todo homem exerça a
atividade de geração”. (CG, III, 136, ad 1um).
Não é contrário à natureza humana considerada “in concreto”. Na mesma
referência (ad 5), o Doutor comum responde à objeção do “chamado dos sentidos”: “Os
cuidados e as ocupações das pessoas casadas são contínuos: a mulher, os filhos e a sua
7
O cristão maduro, aceita e ama principalmente a família que Deus lhe deu, com todos os defeitos e
qualidades. Quem não aceita os pais como são dificilmente conseguirão se amar e ser feliz.

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subsistência. Ao contrário, a perturbação que acompanha a luta contra a
concupiscência é de pouca duração. Aliás, diminui na medida em que se domina mais a
concupiscência”. Lembremos que o combate contra a concupiscência, longe de
prejudicar a natureza humana, vem libertá-la progressivamente do “fomes peccati” – o
foco de pecado –, que perdura depois do batismo.
O celibato é conforme à natureza do Sacerdócio: Porque está no serviço de
Deus, o sacerdote tem o dever de tender à perfeição: “Sede santos, porque Eu sou
Santo” (Lev. 19, 2). Por isso, eles precisam se liberar de toda preocupação alheia. Ora,
“o que está sem mulher, está cuidadoso das coisas que são do Senhor, como há de
agradar a Deus. Mas, o que está casado, está cuidadoso das coisas que são do mundo,
como há de dar gosto a sua mulher e está dividido” (I Cor. 7, 32). Porque no serviço de
Deus, o Sacerdote oferece o sacrifício do Corpo e do Sangue do Senhor. Se, como nota
Orígenes (Hom. 23 in Num.), os sacerdotes da Antiga Lei deviam viver na continência
durante os dias do seu ministério, com maior razão é conveniente que o sacerdote da
Nova Lei, que oferece cada dia o Sacrifício, guarde a continência perpétua. Vivendo em
contato com o Corpo de Cristo, o Sacerdote deve representar a virgindade da qual
Nosso Senhor quis se rodear durante a sua vida terrestre: “Não é sem motivo que Deus
quis que uma Virgem preparasse Jesus para a sua missão sacerdotal. Aqui se encontra
a primeira razão desta escolha de vida ao quais os sacerdotes estão chamados” (João
Paulo II, 19/08/1990).
Vivendo ao serviço dos homens, o sacerdote deve em todo tempo rezar pelas
almas que lhe estão confiadas. Ora, o Apóstolo recomenda às pessoas casadas de
“guardarem a continência por um tempo, a fim de entregar-se à oração” (I Cor 7, 5).
“A fim de orar sempre pelo seu rebanho, disse São Jerônimo (Lib. 1 ad jovin.), o
sacerdote deve abster-se sempre do matrimônio”. Para servir aos homens, o sacerdote
deve ser entre eles o representante de Jesus Cristo. Tem, pois, de reproduzir nele a
pureza de Nosso Senhor, o qual facilita nos fiéis a veneração e a confiança que eles têm
de ter no Sacerdote. “Pelo brilho da sua castidade, o sacerdote vira semelhante aos
anjos, e aparece mais digno da veneração do povo cristão” (São Pio X, Haerent
animo). Para ser totalmente disponível para os seus fiéis, o Sacerdote precisa adquirir a
liberdade espiritual do corpo e da alma, que só a perfeita castidade é capaz de dar.
“Deste modo, liberado dos principais laços que poderiam tê-lo atado ao mundo, o
Sacerdote será mais inflamado deste fogo celeste do amor, entenda-se amor das almas,
que brota do Coração de Jesus Cristo e não quer senão se comunicar aos corações
apostólicos e abrasar toda a Terra” (Pio XI, Ad cath. Sacerdotii fastigium).
Por fim, numa entrevista ao site do Aleteia Ignasi Navarri, sacerdote responsável
pelo seminário da diocese espanhola de Urgel explica estas definições: “O celibato não
é a arte de não amar ninguém; é a arte de amar todos sem possuir ninguém”. “É
possível, sim, e muitos padres viveram e vivem com fidelidade este ideal. O celibato
nunca é um estado de abandono, de falta de oportunidade, de assexualidade, de
indiferença diante do outro, de descompromisso com os outros, de incapacidade de
entrega; muito pelo contrário: nele nos fazemos ‘tudo com todos para ganhar todos para
Cristo”. Além disso, o próprio Papa São João Paulo II declara não existir distinção entre
vocação ao sacerdócio e vocação ao celibato. Trata-se de realidades intrinsecamente
ligadas e indissociáveis na Igreja. Para a Igreja é um dom precioso da graça divina de
que os sacerdotes dispõem para se dedicarem unicamente a Deus, mais facilmente e
com o coração indiviso.

4. Espiritualidade Bíblica: Antigo Testamento


Introdução
7
A espiritualidade bíblica tem como componente essencial à vivência da fé e sua
explicação teológica no contexto do povo eleito no Antigo Testamento e do pode de
Deus no Novo Testamento. Sabemos que o termo espiritualidade tem significado
explicativo devido à referência do Espírito Santo atuando na comunidade de fé e no
coração dos fiéis quando tendem a elevar-se até Deus. É marcada pela sua dimensão
comunitária: a cultura tribal dos semitas é a base para eleição do povo de Israel.
Autores bíblicos apresenta uma marcante de dimensão antropológica por meio de
personagens que imprimiram um impulso para fomentar a convivência entre pessoas e
os povos, rompendo o particularismo entre as gerações de diferentes culturas e abrindo
diálogo entre os seres humanos e Deus rompendo o particularismo entre as gerações e
diferentes culturas e abrindo diálogo entre os seres humanos e Deus.
Este caminho de espiritualidade tem como função promover a experiência
religiosa entre os fiéis por meio dos atos culturais da celebração litúrgica em cuja
adoração do Deus transcendente em seus símbolos, rituais, solenidades religiosas e dons
sagrados se reconhecem os frutos do espírito.
As formas litúrgicas expressam a resposta humana a auto-revelação de Deus,
tornando o diálogo divino-humano salvífico no seio da comunidade de fé. Devido às
mediações participadas entre os fiéis, a celebração da liturgia se enriquece com os dons
do Espírito criando uma religião viva e despertando um dinamismo espiritual que leva a
comunidade de fé a consolidar as duas colunas da religião no AT: Eleição divina e a
Aliança Sagrada.

A espiritualidade do Antigo Testamento


Ambas a realidades estão no contexto das comunidades sociais, o grupo, a família,
o clã ou a tribo que era idêntica no seu funcionamento estrutural, mas diferentes na
vivência nos modos de celebrarem os cultos. No interior da família é que surgiu a
relação de agrupamento Com base no relacionamento de paternidade e Irmandade
espiritual. Assim os israelitas não se definiram pelos critérios étnicos e raciais, mas
pelos laços sócio-históricos dos membros do Povo Eleito.

História dos patriarcas


A vivência dos nômades acontece devido às migrações que tem como pano de
fundo os campos e as colinas da região. A Ação anual dos pastores iniciava-se com a
invocação de Deus, a quem se implorava proteção nos novos territórios. É que os
pastores e os rebanhos eram deixados para trás em cada território que tinham como
novo destino. Eles conduzem o povo a invocar o Deus Altíssimo, “Criador do céu e da
terra” (Gn 14,19) contra a idolatria a Baal, deus de Canaã (poder), Mamon: Dinheiro
(Segurança), Astarte: deusa da fertilidade, guerra e prostituição.
Para lutar contra esta idolatria era vivido à fé com os atos de adoração e
oferenda dos dons sagrados, como era a praxe da devoção cultural: no altar de Betel
Gn 12,7-8; no altar de Hebron Gn 13,18; na ação de Graças celebrada por Melquisedec
Gn 14,18-24; na ratificação da aliança entre Deus e Abraão Gn 15, 18-21. Outro meio
de Eleição é a circuncisão, rito da puberdade que mar a transição da infância para a
adolescência.

Êxodo do Povo de Israel


É a dramatização histórica da Eleição divina das tribos israelitas, que partem do
Egito para a Terra prometida e ali se organizam como povo eleito, relembrado na
religião de Israel como memorial litúrgico na festa da Páscoa. Tornou-se o paradigma
de salvação da humanidade (Gn 18,19).

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Na marcha no deserto que dura quarenta anos, desde a Saída do Egito até o Monte
Sinai lugar da organização das doze tribos em aliança com Deus. Nesta entrega do
código moral e ético necessita de cumprimento para selar de fato a aliança com Deus. É
condição imprescindível para chegar à Terra Prometida, pois neste caminho de nossa
libertação implica a “liberdade de” situações de opressão, passando para a “liberdade
para” abraças às leis de moral, e envolve a “liberdade com” a comunidade de fiéis e
“liberdade em” escolher valores que são assumidos como opção de vida como dom.

Pregação dos Profetas


Uma saída está em identificarmos um uso em sentido amplo, outro em sentido
estrito. No caso dos profetas, podemos utilizar esta distinção também para a Bíblia. Só
na Bíblia Hebraica, a palavra profeta aparece cerca de 315x. No NT, são outras 144x
aproximadamente. E isto se considerarmos apenas as palavras correspondentes a
profeta no hebraico e no grego. E estas não são as únicas palavras usadas para designar
os profetas. Nem sempre estas atestações usam o termo profeta em sentido estrito.
Algumas destas atestações o utilizam em sentido amplo. É assim, p. ex., que em Gn
20,7 Abraão é chamado de profeta. De fato, Abraão foi um patriarca. Moisés foi um
guia e legislador. Davi foi rei. Aqui e acolá, eles acabam sendo chamados de profeta.
Isto é porque todos eles tiveram também alguma coisa de profeta. Mas o profeta mesmo,
em sentido estrito, não é nem patriarca, nem guia, nem legislador, nem rei. O profeta é
profeta. Nem sábio – do tipo do autor do Qohelet – ele não é.
O profeta não é rei, mas quase sempre se mete em política. Na verdade, eles
aparecem mais à vontade na oposição do que no poder. O profeta pode ser um guia?
Talvez, dependendo das circunstâncias. O problema é que quase sempre ele está à frente
de seu tempo e quando o povo se dá conta de que tem que ir, o profeta já está voltando.
Quanto às leis, ninguém parece ter feito tão pouco caso delas em toda a Bíblia quanto os
profetas. Mas isso parece que nem sempre foi assim. De fato, a Bíblia nos dá uma
interpretação da realidade que é sempre posterior à realidade. Em outras palavras, não
se percebe um verdadeiro profeta do dia para a noite. É preciso tempo para se descobrir
um profeta no sentido em que a Bíblia utiliza o termo profeta. Vejamos um pouco da
história desta palavra, já que também as palavras possuem história.
No mundo semítico, do qual Israel fazia parte, houve profetas que viveram em
palácios. O profeta era um funcionário real, uma espécie de porta-voz do governo. Em
geral, ele transmitia ao rei as mensagens divinas. No fundo, o profeta dizia aquilo que o
rei queria ouvir, ou ainda melhor: aquilo que o rei queria que o povo escutasse. O
profeta tinha, pois a função de ajudar a manter a ideologia que sustentava o poder e esta
ideologia era sempre de matiz religioso.
Na Bíblia, contudo, o profeta deixa de ser alguém que depende do rei e passa a ser
alguém que depende de Javé. Livre da dependência do rei, o profeta já não está mais
obrigado a agradar nem ao rei, nem ao povo. Isto, dito com o recuo do tempo parece até
fácil. Mas lá no tempo em que as coisas estavam acontecendo não era bem assim.
Muitos profetas pagaram caro a independência do poder real. E mais, não foi em vida
que eles foram chamados e reconhecidos como profetas, uma vez que assumiram
posições exatamente opostas às dos profetas de seu tempo. Foi depois que eles foram
reconhecidos como profetas de Javé. E quem os reconheceu como profetas foram
aqueles que guardaram a memória daquilo que eles disseram e fizeram.
Tudo isso levou tempo, o tempo suficiente para deixar que as coisas amadureçam.
Contestados em vida, o tempo se encarregou de mostrar que eles tinham razão.
Entrando mais no profetismo em sentido bíblico, percebemos que o profeta tem uma
ligação muito forte com Javé. No fundo, tudo brota desta ligação, uma vez que o profeta

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é um enviado de Javé. No início de tudo está um chamado de Javé, o que quer dizer que
ninguém escolhe ser profeta, mas é escolhido para ser profeta. Depois, vem o
aprofundamento da própria vida, na qual Deus se manifesta. É neste lento
aprofundamento da vida que a vocação profética é gerada.
Este é também o espaço da liberdade (de dizer sim ou não ao chamado) e da
criatividade (como dizer o sim ou o não). Chegamos aqui a um elemento central da fé
bíblica: Deus se manifesta. É claro que esta afirmação não é exclusiva das religiões que
se apoiam na Bíblia. De fato, é uma constante na história da humanidade, e na história
das religiões em particular, que o ser humano busque conhecer a vontade divina. É
assim que oráculos, adivinhações, revelações, etc. façam parte da cultura religiosa dos
povos. De modo especial, as pessoas buscam saber o futuro: o que está para acontecer,
e, se possível, modificá-lo quando de prognósticos não favoráveis.
O maravilhoso no profetismo bíblico é que Deus se manifeste através de pessoas
que aprendem a ver a vida com os olhos de Deus. Não se trata, no profetismo bíblico de
interpretar os astros, o vento, as nuvens, o vôo dos pássaros ou outras coisas do gênero,
mas de interpretar a vida, de modo especial a vida da coletividade: a história do povo. É
assim que os profetas são pessoas muito ligadas no tempo. Eles vêem o que se passa no
presente, podem julgá-lo com a experiência que vem do passado, e são capazes de fazer
prognósticos para o futuro.
A missão profética está relacionada, de modo particular, com os olhos e com a
boca. Com os olhos porque o profeta vai aprendendo a ver a vida com os olhos de Deus,
e com a boca porque ele deve falar em nome de Deus. Acontece, porém, que nem
sempre o profeta é ouvido. Isso significa que Deus pode não ser ouvido. Pode acontecer
ainda de o profeta ser perseguido. Isso significa que a revelação de Deus pode estar com
aquele que foi humilhado. Uma última observação se faz necessária. Os textos
proféticos que vamos estudar, em sua maioria, fazem parte de um patrimônio bíblico
comum ao cristianismo e ao judaísmo. Foi no cristianismo, porém, que eles receberam
sua maior importância.
Assim a palavra profética tem dimensões bíblicas bastante objetivas:
- é palavra ativa por meio da qual se dá a criação e a história. Alguns textos importantes:
Sl 33 e Eclo 42,15. E ainda: o início do Gênesis, Eclo 15,14; Jr 1,10; Pr 21,1.
- é palavra humana carregada da fraqueza e limitação do profeta. Alguns textos
importantes: Is 40,8 e Ez 12,21-28; 33,31-33; Am 7; Jr 20,18.
- é Palavra de Deus falada pelos homens que coloca o profeta a serviço da palavra:
Jr 1,7 – vivida pelo profeta: Ez 24 e Os 2.
- é Palavra dita e escrita. E sendo escrita: é processo, é poema, é provérbio...
Alguns textos que acenam para a transição da palavra oral para sua fixação por escrito:
Is 8,16-20; Jr 36; 51,59- 64; Is 30,8; Jr 30,2; Hab 2,2.
- é Palavra que se transmite para se manter presente: Zc 1,5ss.
- mas este ministério também está fadado à falência: Hb 1,1s.

Ao povo em geral, às vezes, só a um "resto" fiel, os profetas anunciam a


intervenção de Iahweh, tanto para punir os ímpios por sua iniquidade, como para
recompensar os justos por sua fidelidade. Podemos distinguir duas vertentes na
profecia israelita: a vertente efraimita e a vertente judaíta.
Os profetas efraimitas, apoiados socialmente pelo grupo levítico, sempre
atuaram na periferia da sociedade, denunciando o poder monárquico como destruidor
das estruturas sociais javistas. Sua visão é a de que o profeta é o único intermediário
legítimo entre Iahweh e Israel. Visão esta bem assentada na teologia do Deuteronômio,
de origem levítica (cf. Dt 18). O seu modelo de profeta: Moisés.

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Já a profecia judaíta tinha função de manutenção da ordem social central.
Quando Isaías, por exemplo, profeta judaíta da ordem social central, prega a conversão
e a reforma é para preservar a ordem davídica que se fragmentava sob governos
incompetentes ou corruptos. Daí que sua articulação teológica se fundava em Davi e em
Sião.
Seu papel principal, portanto era: aconselhar os reis, censurar injustiças,
condenavam idolatrias. Não é possível saber a exatidão a época que cada um pregou,
mas sabemos que atuaram do século VII ao III a.C. (sabemos que antes de Cristo
contamos os séculos em ordem decrescente).

Literatura Sapiencial
A Literatura Sapiencial, nas Sagradas Escrituras, parece querer nos dizer que a
Sabedoria de Deus se manifesta e se realiza na vida do povo. É no dia a dia, nas alegrias
e nas tristezas; nas lutas; nas vitórias e nas derrotas; nas esperanças e nas angústias; nas
experiências e nas convicções do povo, que a sabedoria se faz: em espiritualidade, em
convicções e em desafios e vitórias. Sua intenção é trazer na vida cotidiana a Sabedoria
de toda a Lei.
O povo, portanto, aprende enquanto caminha e caminha enquanto aprende.
Aprende a discernir, a distinguir o que é essencial do que é secundário. O que o ajuda e
o que o atrapalha na caminhada. Ainda mais, quem o ajuda, sendo apoio, reforço,
referência e parceiro de confiança, e quem cria atalhos, bezerros de ouro (cf. Ex 32,1-6),
desculpas e o desvia de seu caminho. Desviá-lo, porém, do caminho da Terra Prometida
é fraqueza, é adultério, é coisa de cabeça dura (Ex 32,9). É coisa de satanás (Mt 16,23),
diria o Sábio de Nazaré.
Assim, é mais fácil entender porque existe um tempo para cada fase da
caminhada, para se viver cada situação. Há um tempo para a oração, há um tempo para
o ativismo, há um tempo para o estudo e há um tempo para o descanso (cf. Ecl 3,1-8). A
Teologia do Êxodo parece querer nos dizer, e efetivamente nos diz que a caminhada
ensinou o povo a conhecer e a reconhecer YHWH (Iahweh) como seu verdadeiro Deus!
(cf. Ex 6,7). Isto é sabedoria.
Na Bíblia católica, são estes os livros sapienciais: Jó, Salmos, Provérbios,
Eclesiastes, Cântico dos Cânticos (Cantares), Sabedoria e Eclesiástico. É um acervo de
experiências comunitárias e produções populares que comunicam um modo de viver e
revelam a vivência de uma fé encarnada no dia a dia e na caminhada. Neste acervo,
encontramos em Jó, uma nova experiência de Deus; poesia e música de caminhada,
inclusive de subida para Deus, como nos Salmos 120 a 134. São os Cânticos de
romarias; também temos instruções, conselhos, ditados populares, sabedoria do povo,
que na Bíblia são conhecidos como Livro dos Provérbios; encontramos uma
sistematização da sabedoria na terra (Ecl 8,16), sempre na alegria de se viver o dia de
hoje, tida como sabedoria. É o Livro de Eclesiastes (Coelét); mas a sabedoria se
manifesta e se faz presente no amor que se faz poema entre o amado e sua amada. Entre
a amada e seu amado.
Ou seria no poema que se faz amor? É o Livro do Cântico dos Cânticos, onde o
amor é forte, uma faísca de Iahweh. Também conhecido como Cantares, nele
encontramos uma proposta nova na relação de gênero; a face feminina da Sabedoria está
retratada na justiça e na prática do bem. “Amem a justiça, vocês que julgam a terra.
Tenham bons pensamentos sobre o Senhor e o busquem na simplicidade do coração”
(Sb 1,1). É o Livro da Sabedoria; a Sabedoria como a meditação da Lei e o sábio como

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aquele e aquela que medita; Eclesiástico (Sirácida) completa a coleção. Nesta coleção, a
Palavra criadora e salvadora de Deus é a própria sabedoria.
Continuemos nosso diálogo e com perguntas que nos façam refletir. O que é
sabedoria e o que é ser sábio? “É interessante notar que Jó, admirado como sábio e fiel a
Deus, é um estrangeiro edomita (cf. Jó 1,1)” (BONH GASS, 2011, vol. 4, p 109).
Trazendo uma mensagem muito atual para o nosso tempo, assim dizem os sábios que
escreveram o Livro dos Provérbios, “Quando os justos são muitos, o povo se alegra;
mas quando o ímpio governa, o povo se queixa” (Pr 29,2).  É a injustiça contra o pobre
que chega a Deus em forma de gritos e de lamentos (Ex 23,1-9; Lv 19,15-16). É
sabedoria buscar e conhecer a verdade, porque dela vem à liberdade (Jo 8,31-32). A
Literatura Sapiencial mostra-nos que foi a Sabedoria de Deus quem criou tudo o que
existe e que é igualmente ela quem nos chama para cuidar do planeta de toda a criação,
como escreve o Papa na exortação Laudato’Si: nossa casa comum, a Mãe-terra.

Salmos e Liturgia das horas


De acordo com a tradição, o Cânon Judaico (Tanakh) é composto por 24 livros
que se agrupam em três conjuntos: “Lei, Profetas e Escritos”. A TORAH: – cinco
livros, o equivalente ao “Pentateuco ou a Lei”. A NEBIIM – oito livros (Profetas), o
equivalente aos livros escritos anteriores ao exílio (Profetas anteriores): Josué; Juízes; 1
Samuel e 2 Samuel; 1 Reis e 2 Reis e os escritos posteriores ao exílio (Profetas
posteriores), que são compostos pelos seguintes livros (4) Isaías; Jeremias; Ezequiel e
os 12 profetas menores. E KETUBIM – onze livros (Escritos): Composto pelos livros
poéticos e trechos de alguns livros proféticos.
Os Salmos fazem parte da tradição dos escritos Sapienciais que ajudou o povo de
Israel a rezar a Lei na liturgia por meio da oração comunitária e ao mesmo tempo sua
aplicação na vida. Perpassa toda a vida dos Israelitas: pré-exílio, exílio e pós-exílio.
Enfatiza a conformidade com a vontade de Deus, pormenorizada na Lei divina, não por
um voluntarismo ético apenas, mas à adesão pessoal a Deus como autor da Aliança
Sagrada e Pai do povo Eleito.
É uma compilação e resumo, fonte e síntese dos livros do primeiro testamento,
pois apresenta a espiritualidade comunitária inspirada na experiência de fé e vivenciada
na comunidade; está na percepção dos sinais da presença atuante de Deus na vida
cotidiana. Descrita assim pelos salmistas como a manifestação verdadeira da bondade
divina que transborda de amor pelo ser humano: antes que alguém professasse a fé em
Deus, a solicitude e a ternura de sua mãe eram a expressão de sua própria bondade
divina.
Alguém poderia objetar que o salmista um sentimento subjetivo para Deus, como
mera sublimação do amor elevando-o no nível mais alto que é a oblação de si mesmo.
Mas isso não confere, pois não é uma pessoa sozinha que reza a Deus, pois nos Salmos
ainda que um reze sozinho é membro do Povo Eleito e reza por todos. O significado de
cada Salmo encontra usa mensagem definitiva em Jesus Cristo.
O Salmo é chamado de: Saltério vem do grego Psaltérion – e faz referência ao
instrumento de cordas que acompanha os cânticos e orações. Em hebraico se diz tanto
Tehillim – hinos, como Mismor – propriamente o que é acompanhado por música. As
subdivisões por agrupamento temático e fundamento teológico:

- HINOS
- SÚPLICAS ou LAMENTAÇÕES, coletivas ou individuais.

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- AÇÕES DE GRAÇAS
- GÊNEROS ABERRANTES e MISTOS
Autores e Datas.
Conforme a BJ, os Salmos são assim atribuídos, conforme sua titulação hebraica:
- 73 a Davi.
- 12 a Asaf.
- 11 aos filhos de Coré
- outros são atribuídos a Emã, Etã (ou iditun), Moisés e Salomão.
No Catecismo temos inúmeras referências, cito as principais:
2585. De David até à vinda do Messias, os livros sagrados contêm textos de
oração que atestam como esta se foi tornando mais profunda, quer feita em favor de si
mesmo quer pelos outros. Os salmos foram a pouco e pouco reunidos numa coletânea
de cinco livros: os Salmos (ou “Louvores”), obra-prima da oração no Antigo
Testamento.
2586. Os salmos nutrem e exprimem a oração do povo de Deus enquanto
assembleia, por ocasião das grandes festas em Jerusalém e em cada sábado nas
sinagogas. Esta oração é inseparavelmente pessoal e comunitária; diz respeito aos que a
fazem e a todos os homens; sobe da Terra Santa e das comunidades da Diáspora, mas
abraça toda a criação; recorda os acontecimentos salvíficos do passado, mas estende-se
até à consumação da história; faz memória das promessas de Deus já realizadas, mas
espera o Messias que as cumprirá definitivamente. Rezados por Cristo e n'Ele
realizados, os salmos continuam a ser essenciais para a oração da sua Igreja.
2587. O Saltério é o livro em que a Palavra de Deus se torna oração do homem.
Nos outros livros do Antigo Testamento, “as palavras declaram as obras” (de Deus a
favor dos homens) «e esclarecem o mistério nelas contido». No Saltério, as palavras do
salmista exprimem, cantando-as para Deus, as suas obras de salvação. É o mesmo
Espírito que inspira, tanto a obra de Deus, como a resposta do homem. Cristo unirá uma
e outra. N'Ele, os salmos não cessam de nos ensinar a orar.
2588. As expressões multiformes da oração dos salmos tomam forma, ao mesmo
tempo, na liturgia do templo e no coração do homem. Quer se trate dum hino, duma
oração de aflição ou de ação de graças, de súplica individual ou comunitária, dum
cântico real ou de peregrinação, ou ainda duma meditação sapiencial, os salmos são o
espelho das maravilhas de Deus na história do seu povo e das situações humanas vividas
pelo salmista. Um salmo pode refletir um acontecimento do passado, mas reveste-se de
tal sobriedade que pode com verdade ser rezado pelos homens de qualquer condição e
de todos os tempos.

Liturgia das horas


A oração oficial da Igreja é totalmente comunitária, pois segue o exemplo dos
Salmos. Assim cita a Sacrossantum Concilium, 84:

O Ofício divino, segundo a antiga tradição cristã, destina-se a


consagrar, pelo louvor a Deus, o curso diurno e noturno do
tempo. E quando são os sacerdotes a cantar esse admirável
cântico de louvor, ou outras pessoas delegadas pela Igreja, ou os
fiéis quando rezam juntamente com o sacerdote segundo as
formas aprovadas, então é verdadeiramente a voz da Esposa que
fala com o Esposo ou, melhor, a oração que Cristo, unido ao seu
Corpo, eleva ao Pai.

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As horas canônicas são assim chamadas porque estão no cânon ou padrão dos
livros oficias da Igreja. Assim ela reza como Esposa de Cristo, de modo especial, diz ser
sua oração e que, com a Eucaristia, os sacramentos e sacramentais, integra o culto
oficial da Igreja. Os judeus costumavam rezar a rezar três vezes por dia: de manhã, ao
meio-dia, no fim do dia (Sl 55,17). Os cristãos herdaram esta prática: todavia não lhes
era estranha a oração noturna, da qual Jesus e os Apóstolos deixaram precioso
testemunho Lc 6,12 (Jesus passou a noite em oração antes de escolher os doze
Apóstolos) e At 16,25 (Paulo e Silas, à meia-noite, cantavam os louvores de Deus na
prisão de Filipos).
Tertuliano no século III mencionava cinco momentos de oração: aurora, terça,
sexta, nona e vésperas, ou seja, ao nascer do dia, ás 9h, ao meio-dia, às 15h e ao por do
sol. Esta prática se expandiu e recebeu dois acréscimos: o da hora primeira (prima, 7h) e
o de completas (oração antes do sono da noite). Mais tarde os monges foram os
protagonistas dedicando-se especialmente à oração e ao trabalho manual, contribuíram
para a formação do Oficio Divino com as suas oito horas canônicas: laudes (na aurora),
prima, terça, sexta, noa, vésperas, completas, além das vigílias noturnas8.
No concilio vaticano II foi suprimido o oficio de prima, por fazer duplicatas, de
certo modo com o oficio de laudes; além disto, o Concílio não suprimiu as chamadas
horas menores (terça, sexta e noa), mas permitiu que se celebrasse uma só, escolhendo-
se aquela mais adaptada ao momento em que se permitiu que se celebre uma só,
escolhendo-se aquela mais adaptada ao momento em que se reza (a terça, durante a
manhã; a sexta, por volta do meio-dia; a noa, no decorrer da tarde).
Cada uma dessas horas tem uma motivação e ambientação espiritual específica:
Laudes: (louvores) tem por motivo inspirador o renascer da Luz do dia após as
trevas da noite. Esta hora canônica celebra a Ressurreição de Jesus, “luz verdadeira que
ilumina todo o homem” Jo 1,9 e “Sol de Jusiça, que nasce do Alto” Lc 1,78; por isso
uma das tônicas desta oração é a glorificação do Senhor, que obteve a vitória sobre a
morte da inserção do cântico de Zacarias Lc 1,68-79. 
As laudes, em resposta o dom de Deus, tencionam consagraram o senhor o dia do
Cristão dia de trabalho e esperanças. São Cipriano + 258 258 observa: "deve-se rezar de
manhã para que, pela oração matinal, seja celebrada a ressurreição do Senhor” (citado:
De  Oratione Dominica 35).
Às vésperas: (Vênus),  O Astro luminoso que começa a brilhar logo recai nas
trevas da noite. São, por isso, a oração que concluiu o dia e dá início à noite. O Astro
luminoso que começa a brilhar logo recai nas trevas da noite. São, por isso, a oração que
concluiu o dia e dá início à noite., está há de dar graças a Deus pelos benefícios
recebidos pelo Cristão durante o dia. Além disso, às vésperas comemoram a Última
Ceia do Senhor e a sua morte na cruz, ambas ocorridas em horas vespertinas. Mas ela
deve avivar no orante a esperança na vinda consumada do Reino de Deus,  fim da
jornada deste mundo, trazendo a luz sem ocaso.
Os cristãos rezam às vésperas como os operários Da Vinha da igreja, que, no fim
do dia de seu trabalho,  se encontram com o Divino patrão para receber o dom do seu
amor como recompensa da labuta prestada Mt 20, 1-16.  Ou ainda  o Cristão, ao fim da
caminhada de um dia, Diz ao senhor como os discípulos de Emaús: "Fica conosco,
Senhor, porque o dia vai declinando" Lc 24, 29.
Ofício das leituras é o nome que tem atualmente o antigo Ofício de vigílias. 
Pode ser celebrado a qualquer hora desde o anoitecer até o fim do dia seguinte, quando

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O número de sete horas diurnas parecia recomendado pelo Salmo 119,164: “Sete vezes por dia eu vos
louvo”, ao passo que o ofício da noite era sugerido pelo Salmo 119,62: “Levanto-me à meia- noite para
vos celebrar por vossas justas normas”.

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é recitado no  couro, deve conservar ainda de louvor noturno. Este Ofício tenciona
proporcionar ao povo de Deus um contato substancioso com a sagrada escritura e com
as mais belas páginas dos autores de espiritualidade antigos e modernos. Os textos
bíblicos são selecionados de modo que se lê no Ofício devido à sessões que não são
ouvidas na liturgia eucarística. Assim o Cristão encontra na celebração da liturgia o
alimento correspondente à época do ano em curso: Advento, Natal, Epifania, Quaresma,
Páscoa, etc.
As festas dos Santos foram retiradas do lecionário todas as leituras cuja
veracidade histórica era discutida, as festas dos Santos foram retiradas do lecionário
todas as leituras cuja veracidade histórica era discutida, de preferência leem-se então os
escritos dos Santos celebrados.  A prece de louvor ou de Súplica é a resposta da criatura
de Deus que ele fala.
Terça, sexta, noa:  situadas às  9h, às  12h às 15h; estas 3 horas canônicas
colocam-se ao longo do dia de trabalho para santificá-lo ponto cada qual evoca algum
acontecimento do evangelho ou dos Atos dos Apóstolos.
A Terça hora Record da vida do Espírito Santo sobre os discípulos e Maria
Santíssima, reunidos No cenáculo "a hora terceira do dia" At 2,15.  Por isto o hino de
terça comemora no espírito e prédio para igreja contemporânea; mesma hora terceira
está associada a crucifixão de Jesus, conforme Mr 15,25.
A Sexta hora em que o Pedro rezava no terraço de uma casa e teve importante
visão que o levaria a batizar o Centurião Cornélio sem lhe impor a circuncisão Ar 10,9.
também conforme MT 27,45, a hora da Agonia de Cristo na cruz. Visão ao calor que
muitas vezes se faz sentir ao meio-dia e pede ao senhor que eles têm que vir o fogo das
paixões, que emprego na multa pode arder dos corações dos homens.
Noa lembra a oração de Pedro e João no templo, onde Pedro curou o paralítico,
conforme At 3,1, evoca também a morte de Jesus na cruz segundo Mt 27,46.  O hino
desta hora pede: "seja à tarde Luminosa numa vida permanente, e na santa morte o
prêmio nos de Glória eternamente".
Completas  é oração que se deve dizer antes do repouso da noite, mesmo que este
começa após a meia-noite.  Tem, antes do mais, caráter penitencial, pois se inicia com
exame de consciência (o Cristão tem interesse em se jogar tão lucidamente quanto Deus
o julga, enquanto de nado usufruir do perdão e da misericórdia divina);  faz-se o ato
penitencial pelas faltas do dia, ato que, se conscientemente realizado obtém o perdão
dos pecados leves cometidos durante a jornada.  A salmodia sequente costuma exprimir
confiança no Senhor, o sono da noite na tradição dos povos antigos,  lembra o sono da
morte; por isso estão faz um ato de entrega e abandona o senhor antes de se entregar ao
repouso noturno. O canto do velho Simeão o canto do velho Simeão alegria e a gratidão
por havermos usufruído da luz e da Misericórdia de Cristo durante a jornada de trabalho
recém-findada.

5. Espiritualidade Bíblica: Novo Testamento

Espiritualidade do Discipulado em São Marcos

* Marcos é um anti-evagelho em relação à política imperial romana


* Marcos foi companheiro de Paulo, primo de Barnabé
* Primeiro Evangelho a ser escrito: comunidades da Síria e Palestina
* Ênfase não está no que Jesus diz, mas no que faz
* Escrito para cristãos não judeus devido as explicações de expressões judaicas

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* Texto com muitas perguntas e cenas intensas
* As doenças eram passadas pelo ar (espíritos maus), Jesus exorciza eles
* Eucaristia como “hessed” (criar laço afetivo com pessoas sem laço de sangue)
* Semana Santa se dá em sete dias, no oitavo Jesus ressuscita (Nova Criação)
* Jesus é o Filho de Deus em três afirmações (1,1; 8,29 e 15,39)
* As perícopes são esquematizadas
* Começa com Jesus e João Batista no Jordão
* Inicia com a catequese batismal (Batismo) e termina com a catequese eucarística
(Ceia)
* Apocalíptica presente no capítulo 13 devido à destruição do Templo e da cidade
* Não possui conclusão sendo criado um apêndice posteriormente (16,9-20)
* Símbolo do Evangelho de Marcos: leão (Ap 4,7 e Ez 1,5.10)
* Marcos faz parte dos Escritos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas)

Marcos (nome romano): Leão significando o início com o clamor no deserto. O


leão é a mais forte das feras, como está escrito: “O leão, o mais bravo dos animais,
que não recua diante de nada” (Pr 30,30). Não possui genealogia. Jesus é o Servo (por
isso sem genealogia), evangeliza aos romanos, narrativa que mostra mais Jesus em
ação, curando, e ensinando menos. Os romanos eram pragmáticos, gostavam mais da
ação do que do pensamento. Relação com o livro do profeta Jeremias.

Temas específicos
I) O “evangelho querigmático”. Marcos retrata como nenhum outro o primeiro anúncio
(= querigma) que os apóstolos dirigiam aos seus contemporâneos. Ainda para nós hoje,
conserva o sabor do primeiro anúncio e é capaz de renovar o impacto de Jesus no nosso
cristianismo, que está um tanto “gasto”.
II) O temor diante da santidade de Deus que se manifesta em Jesus, nas expulsões de
demônios, na autoridade/poder de Jesus, diante do sepulcro vazio depois da ressurreição
(16,8).
III) O Reino de Deus agora. O que Jesus anuncia é o Reino de Deus já (1,15). Para ver o
que isso significa é preciso ler o evangelho e ver o que Jesus faz: isso é o reino que ele
traz presente.
IV) O “segredo messiânico”. Em Marcos, os demônios expulsos percebem que Jesus é o
Messias, mas ele proíbe que o publiquem. Do mesmo modo, os discípulos depois da
profissão de fé e a Transfiguração (8,30; 9,9). Pois é impossível entender em que
sentido Jesus é Messias e qual o seu reino, antes de ver seu dom da própria vida, na cruz
e sua ressurreição.
V) O Filho do Homem e Servo Sofredor. Jesus não se chama a si mesmo de Messias,
mas de Filho do Homem, o enviado humano de Deus (8,31; 14,62; cf. Dn 7,13); e ele
realiza esta sua missão dando sua vida “por muitos” (10,45; 14,24), como o servo
sofredor de Is 53.

Caminho do Discipulado no Evangelho

(01) Diferentemente dos outros sinóticos, Marcos apresenta seu trabalho como um
evangelho. Mateus escreve o livro da origem de Jesus Cristo e Lucas um relato
coordenado. Evangelho pertence ao vocabulário da missão cristã sendo a Boa-nova da
salvação trazida por Cristo. Possui função unificadora aparecendo como leitura,
expressão do Mistério e definição de uma tarefa

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(02) Em Marcos, o Reino de Deus é um elemento chave impulsionando a
espiritualidade do discipulado. É visto por seu elo com o Evangelho (traz uma nova
dimensão à existência humana desvendando uma nova vida no hoje e para o futuro) e
também com Jesus (a pregação d’Ele centraliza na eminência do Reino). Jesus é o Filho
de Deus e aparece em dois momentos reconhecendo sua identidade: Tu és o Cristo (Mc
8,29) e De fato, este homem era Filho de Deus (Mc 15,39).
(03) O Filho do Homem e o Reino aparecem como metáforas do que Deus fez em
Jesus, de seu poder divino manifestado em sua vida e ensinamento. Através de palavras
e gestos simbólicos, Jesus se faz conhecer como Cristo e revela seu conteúdo de sua
missão. Também substitui o Templo e de outro modo à presença de Deus: oferece seu
corpo e seu sangue pela multidão dos homens (Mc 14,22-25). Algo muito peculiar é a
incompreensão dos discípulos e a frequência em que Jesus se retira com eles.
(04) A melhor forma de sustentar a fé da comunidade é esclarecê-la. Para tanto é
necessário voltar sempre àquilo que Jesus disse e fez. Repetindo o primeiro anúncio,
Marcos “reenvageliza” a comunidade em crise. Mostra que Jesus não é um messias de
sucesso fácil (o “Messias esperado”), mas um messias diferente (o “Messias
inesperado”). Nem mesmo os seus discípulos compreenderam, até que ele levasse a
termo a sua obra. Jesus é o Filho do Homem, o Servo do Senhor, o Filho do Deus fiel
até a morte por amor e exaltado por Deus na ressurreição, para conduzir novamente o
seu rebanho, na “Galileia” do mundo (cf. Mc 16,7).
(05) Não basta saber quem é Jesus. Inclusive é possível ter dele uma compreensão
inadequada, mesmo com afirmações corretas a seu respeito. Esta é a grande
preocupação do evangelista: levar a comunidade a compreender o sentido profundo do
messianismo de Jesus e de sua filiação divina. Para alcançar esse objetivo, ele propõe
uma narração da prática de Jesus junto às multidões pobres da Galileia e vizinhanças, e
o diálogo com seus discípulos. O desafio é não se fixar na superfície, mas mergulhar
fundo no sentido das palavras e ações de Jesus, para descobrir a significação específica
de sua identidade.
(06) Mas não basta entender. O caminho que Jesus trilhou, da Galileia até
Jerusalém, é aqui apresentado para ser assumido e seguido por quem queira ser
discípulo seu. E aqui mora o problema: o texto sugere que é justamente nesse ponto que
Jesus não é compreendido, nem pelas multidões, nem pelos discípulos, muito menos
pelas lideranças religiosas e políticas da época. Algumas poucas pessoas, porém, o
acompanharam até o fim, e recebem a tarefa de comunicar que os conflitos que
marcaram o caminho dele e o levaram à cruz devem ser o ponto de partida para a
compreensão do seu messianismo e do que se exige de seus discípulos.
(07) É essencial superar a visão triunfalista a respeito de Jesus: é a morte brutal na
cruz, resultante das maquinações do poder político e religioso da época, que permitirá
descobrir verdadeiramente que ele é Filho de Deus (cf. 15,39). Esta morte não é fruto do
ocaso, nem de um acidente, mas resulta da prática que Jesus veio desenvolvendo em seu
caminho, e dos conflitos que foi assumindo nesse percurso.
(08) Devido a essas questões, o Evangelho de Marcos é considerado o itinerário
da espiritualidade do discipulado. Escrito com o intuito de mostrar quem é Jesus e como
caminhar na mesma estrada que ele, o Evangelho pode ser assim dividido:
Introdução:1,1-15
1ª etapa. 1,16-6,13: o entusiasmo no início da caminhada com Jesus
2ª etapa. 6,14-8,21: o mistério da pessoa de Jesus aparece. Nos discípulos
surge a crise do não entender.
3ª etapa. 8,22-13,37: a cegueira causada pela luz escura da Cruz é combatida
pela instrução de Jesus.

17
4ª etapa. 14,1-16,8: o fracasso final é apelo para recomeçar tudo de novo.
Conclusão (acréscimo posterior): 16,9-20.

(09) Estes quatro passos não são estanques, mas se inter-relacionam.


Caracterizam-se como atitudes ou estados de ânimo, que podem existir,
simultaneamente, dentro das mesmas pessoas ou comunidades. Por exemplo, a segunda
etapa já começa enquanto a primeira ainda perdura. A última etapa pode ser vivida a
qualquer momento para aquele que cai na caminhada de fé.
(10) A primeira etapa consiste no entusiasmo inicial. Começa com a chamada dos
discípulos à beira do lago e termina com o envio para a missão. Jesus movimenta-se por
todo canto, na Galileia. Com ele, os discípulos e grande multidão. Mas dentre todos
chama Doze.
(11) O chamado (1,16-20): a primeira característica da espiritualidade do
discipulado é o chamado de Jesus, pois os discípulos não se autodenominam apóstolos.
Os Doze não foram chamados porque possuíam capacidades especiais ou fossem
melhores do que os demais discípulos para receber a missão que lhes seria confiada. No
Evangelho não indica qualquer qualidade humana ou religiosa que desse razão a
escolha. A resposta que se torna clara é aceitarem o chamado e não colocaram condição
alguma para seguir Jesus.
(12) Superar os laços de sangue (3,31-35): outra característica da espiritualidade
do discipulado é deixar a família e seguir Jesus por todo o canto. A comunidade é
itinerante andando pelas sinagogas, casas, campos, praia, mar. Em uma das ocasiões
Maria é apresentada a Jesus bendizendo os seios que O amamentaram. Jesus vai além da
cultura familiar judaica dizendo que sua mãe e seus irmãos são aqueles que colocam a
Palavra de Deus em prática. Forma-se uma nova família sendo que o grupo dos Doze,
em relação a outros discípulos, é íntimo, está mais próximo e forma uma comunidade de
vida com Jesus, que lhes dedica uma particular atenção e instrução.
(13) Participam da amizade com Jesus (1,29-31): A convivência se torna íntima
e familiar. Alguns até recebem apelidos. Jesus vai à casa deles e se preocupa com os
problemas da família deles, como no caso da sogra de Pedro. Estar com Jesus é o ponto
fundamental na espiritualidade do discipulado. Estar com Jesus determina e orienta tudo
na vocação e no exercício do ministério, pois é a virtude (força dinâmica) do discípulo.
Em Jesus havia um encanto pessoal, um toque humano particular que promovia uma
experiência nunca realizada antes.
(14) Anunciar a Boa Nova (6,6b-13): Os discípulos são enviados para anunciar a
Boa Nova e chamar à conversão. Isso implica em instaurar o Reino de Deus e, por ele,
restaurar o ser humano a partir da sua presença que envolve, comunica vida e liberta de
tudo o que oprime e pretende ocupar o lugar de Deus. O ministério dos Doze, ao lado de
Jesus, serve-lhes para aprender o amor de Deus que acolhe, perdoa, liberta, cura, porque
desperta nas pessoas a fé capaz de remover montanhas.
(15) O anúncio do Reino implica também em expulsar demônios e curar doenças.
Jesus confere ao Doze a autoridade para expulsar espíritos impuros e curar os males e
enfermidades, devido a sua compaixão pela multidão, pois são como ovelhas sem
pastor. Isso porque no início do ministério público de Jesus, o Senhor vence as seduções
de Satanás, manifestando a presença e força do Reino de Deus. O anúncio de Jesus,
instaurando o Reino de Deus, denota a chegada do triunfo sobre toda a espécie de mal.
(16) Confiar na divina providência (6,34-44): Jesus realiza a multiplicação dos
pães partindo do que poderia ser partilhado. Os discípulos argumentam que com
duzentos denários poderiam comprar o pão para todos. A lógica aqui está no acúmulo,
no comprar, adquirir. Jesus ensina a confiar em Deus, na dinâmica da partilha, na

18
perspectiva do dom, da doação. O número de cinco pães e dois peixes para a
multiplicação remete à Palavra de Deus. O Antigo Testamento tem uma divisão
tripartite segundo o prólogo do Eclesiástico. Os cinco pães remetem a Torá, composta
de cinco livros: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico e Deuteronômio. Os dois peixes
fazem alusão as outras duas partes: os Profetas e os Escritos. Os pães multiplicados
fazem lembrança de Jesus que se entregou na Ceia, noite anterior a sua morte. É
justamente na entrega ao próximo que possibilita a partilha, dessa forma, saciando a
fome.
(17) Outro aspecto desse relato em Marcos, é a satisfação da multidão e a sobra de
doze cestos de pães. O número doze lembra as doze tribos de Israel, ou seja, todo o
povo de Israel. Na ceia realizada por Jesus na quinta-feira a noite também seu corpo foi
dado a doze apóstolos. O número se repete simbolizando a Nova Aliança. Jesus é o pão
da vida, e os doze cestos que sobraram simbolizam o alimento que nunca se acaba na
Igreja com a celebração da Eucaristia.
(18) Mudança de mentalidade (8,14-21): Apesar dos sinais, os discípulos
continuam não entendendo nada. Ficam apavorados quando Jesus se aproxima da barca,
de noite. “Eles, porém, no seu íntimo estavam cheios de espanto, pois não tinham
entendido nada a respeito dos pães e o seu coração estava endurecido” (Mc 6,51-52). O
coração endurecido lembra o povo no deserto segundo o Antigo Testamento. Jesus
critica os discípulos duramente para guardar do fermento dos fariseus e de Herodes. A
ideologia (fermento) dos dominantes (fariseus e herodianos) tinha tomado conta dos
discípulos e os impedia de enxergar. Tinham os pés junto ao povo excluído, mas a
cabeça junto aos poderosos.
(19) Jesus passava uma confiança, uma presença segura aos discípulos e a todo
mundo. Tinha uma liderança junto às pessoas. A maior mudança que Jesus procurava
era uma mudança de mentalidade dos judeus, por isso nem todos compreendiam, nem
mesmo os de sua família que viam como louco. Jesus não veio para curar todo mundo,
mais sim para colocar uma proposta nova aos seus. Diante da grande quantidade de
pessoas que procuram Jesus, ele pede aos discípulos para ir à outra margem. Percebe
que no lugar as pessoas estavam procurando pelo seu curandeirismo, sua atividade
missionária não renderia mais frutos. A impressão de quem tem fé é que consegue
superar os medos. Jesus apela constantemente aos seus discípulos para que não tenham
medo e avancem as águas mais profundas.
(20) Na terceira etapa da espiritualidade do discipulado desponta a cruz como
condição para o seguimento de Jesus. O ambiente da narrativa muda pois Jesus com
seus discípulos saem da Galileia e caminham rumo a Jerusalém, onde será crucificado.
Os discípulos também não aparentam mais ter o mesmo entusiasmo na etapa anterior.
Diminuem os milagres, restando somente três: a cura de dois cegos e a expulsão de um
epilético endemoninhado. Quase não há mais multidão: só Jesus e os poucos discípulos
e discípulas.
(21) Tomar a Cruz : Jesus começa a instruir os discípulos, para que vençam a
cegueira. Fala abertamente sobre a Cruz e sobre o Messias-Servo que vai sofrer e
morrer. A Cruz de Jesus é vivida pelas comunidades da época da redação do Evangelho
de Marcos: a cruz da perseguição, brigas com os irmãos judeus, conflitos internos,
incertezas, medos. Jesus pede a renúncia das coisas do mundo para poder adentrar no
Reino de Deus. Quem se esquivar da morte não pode fazer a experiência da
ressurreição.

(22) Cada um dos três anúncios da paixão em Marcos é acompanhado de gestos


ou palavras de incompreensão por parte dos discípulos. No primeiro, Pedro não quer a

19
cruz e critica Jesus que reage e o chama de Satanás, pois quer desviá-lo do caminho de
Deus. No segundo, os discípulos têm medo e cada um quer ser o maior. No terceiro,
eles estão assustados, com medo e querem promoção. Atitudes que retratam a realidade
das comunidades para as quais Marcos escreve o seu evangelho.
(23) Cada um dos três anúncios traz uma palavra de Jesus que critica e corrige a
falta de compreensão dos discípulos e ensina como deve ser o comportamento deles:
- No primeiro anúncio (8,27-38) ele exige: negar-se a si mesmo, carregar a
cruz e segui-lo, perder a vida por causa dele e do Evangelho, e não ter
vergonha dele e da sua palavra.
- No segundo anúncio (9,30-37) exige: fazer-se servo de todos, e receber os
pequenos, como se fossem ele mesmo, Jesus.
- No terceiro anúncio (10,32-45) exige: beber o cálice que ele vai beber, não
imitar os poderosos que exploram, mas sim imitar o Filho do Homem que
veio não para ser servido, mas para servir.
(24) Fidelidade (3,13-19): Jesus pede aos discípulos que se mantenham fiéis ao
ser chamado para anunciar o Evangelho. O Senhor afirma que não foi iniciativa dos
discípulos a escolha, mas Sua destinando a ir e produzir fruto desde que estejam unidos
a Ele. A exigência de permanecer fiel a Jesus é a segurança de que produza os frutos na
espiritualidade do discipulado. Na lista dos Doze, em Marcos, curiosamente os nomes
da ponta acabam traindo Jesus. O primeiro na figura de Pedro, sendo que este se
arrepende e volta a videira verdadeira que é o Senhor. O último na figura de Judas,
rompe com Jesus e não reata mais a amizade, e na sua desesperança comete o suicídio.
(25) Destacar dos seus bens (10,17-27): é um outro aspecto da renúncia por amor
ao Reino. A vida como missionário itinerante igual ao Mestre que não tem um lugar
para repousar pede aos discípulos que não estejam apegados as posses. O apego as
posses impedem que a pessoa saia do lugar e siga o sopro do Espírito. Abraão fez esse
passo de sair de seu lugar e se colocar nas mãos de Deus, o discípulo também é
convocado a fazer o mesmo em seu caminho espiritual. Jesus é duro dizendo que quem
pôr a mão no arado e olhar para trás, não é digno de ser seu discípulo.
(26) Na última etapa do Evangelho de Marcos aponta o aparente fracasso de Jesus
como um novo apelo aos discípulos manter-se fiéis nas adversidades. Esta etapa
descreve a história da paixão, morte e ressurreição de Jesus nas mãos dos poderosos em
Jerusalém. O evangelista vai animando a fé das comunidades perseguidas e vai
apontando quem é realmente discípulo e discípula fiel de Jesus.
(27) Vigiar sempre (13,32-37): Jesus pede aos discípulos para vigiar visando
reconhecer o momento de sua manifestação. Esse pedido de cunho escatológico refere-
se a vigilância e perseverança na oração diante das tribulações pelas quais vão passar.
Jesus é enfático ao dizer: “Vigiai, portanto, porque não sabeis quando o senhor da casa
voltará” (Mc 13,35). Jesus não diz exatamente quando vai voltar, o que importa é que a
comunidade dos cristãos não se afaste de seus compromissos, devendo sempre estarem
vigilantes.
(28) Rompimento: ser discípulo de Jesus implica em ter uma espiritualidade
arraigada em viver nos passos de Jesus. Cristo foi morto por romper com a ordem
vigente, sendo que muitos discípulos correram no momento em que Jesus foi preso,
julgado e condenado a morte. A espiritualidade do discipulado requer uma atitude
radical seguindo o mesmo destino do Mestre e de outros profetas que foram silenciados.

1) Jesus rompe com a visão triunfalista de Messias e se mantém no seu caminho (11,1-
11): apesar de ser aclamado Rei, Ele se mantém no caminho do serviço, simbolizado

20
pelo jumento, animal de carga. Ele é o Messias Servo e não aceita ser o Messias Rei
guerreiro.
2) Jesus rompe com o Templo (11,15-26), que deixou de ser casa de oração para todos
os povos e virou um ambiente de exploração, um shopping da fé onde impera o
consumo.
3) Jesus rompe com os sumos sacerdotes, escribas e anciãos (11,27–12,12). A
autoridade de Jesus não está subordinada aos poderes deste mundo. Sua ação não
depende da licença deles e por isso decidem matá-lo.
4) Jesus rompe com os fariseus e os herodianos (12,13-17). Estes dois grupos eram as
lideranças locais dos povoados da Galileia. Sua ideologia (fermento) contaminava os
discípulos... Bem antes, já tinham decidido matar Jesus (Mc 3,6). Agora, querem saber
se Ele é a favor ou contra o pagamento do imposto aos romanos.
5) Jesus rompe com os saduceus (12,18-27). Este grupo é formado por latifundiários e
grandes comerciantes. Questionam Jesus a respeito da ressurreição, pois não
acreditavam nela.
6) Jesus rompe com os escribas (12,28-40). Eles eram os responsáveis pela doutrina
oficial. Já tinham espalhado a calúnia de que Jesus era um possesso (Mc 3,22). Jesus
questiona o ensinamento deles sobre o Messias (Mc 12,35-37), condena o
comportamento ganancioso e hipócrita de alguns deles (Mc 12,38-40).
7) Jesus rompe com os critérios contrários à vontade de Deus (12,41-44). No episódio
do óbolo da viúva, Jesus ensina aonde os discípulos devem procurar a manifestação da
vontade de Deus: nos pobres e na partilha.

(29) Jesus era o Mestre que unia os discípulos e hoje é a interpelação do


Evangelho que os reúne. O estudo não está mais na Lei, mas sim na pessoa e obra de
Jesus. Ninguém pode tornar-se mestre nesse conhecimento, mas resta apenas ser
discípulo seu. A transformação de vida que Jesus exige concretiza-se na espiritualidade
do discipulado. Tudo se resume numa vida de amor e de serviço. O amor a Deus e ao
próximo vale muito mais do que todos os holocaustos e sacrifícios (Mc 12,33).
(30) O Evangelho e a espiritualidade do discipulado permanecem vivos
pastoralmente. A Palavra não é morta, um relato histórico do passado, mas algo que
mantem vivas as comunidades que se reúnem em torno da mesma. Para o surgimento do
Reino, implica numa metanoia, ou seja, a mudança de vida. O batismo é a confirmação
de uma pessoa que quer mudar, começa com o arrependimento aprendendo a ler a vida
com critérios superando os erros. É muito difícil mudar de vida. Nós queremos
segurança e recompensa em nossas atividades. Entrar na lógica divina significa viver o
evangelho de Deus, assumido o caminho de Jesus Cristo. No decorrer da história,
muitos se aceitavam batizar na hora da morte evitando assumir o compromisso cristão
durante um período de vida longevo.
(31) O grande desafio de hoje é que o batismo não tem a mesma dimensão que na
época das comunidades primitivas. Precisa-se de uma conversão pastoral na mística do
discipulado, atualmente somos chamados a evangelizar as pessoas batizadas que
perderam a consciência de serem cristãos. Em Marcos, a atividade pública de Jesus no
período de três anos estava atrelada ao período de catecumenato dos primeiros cristãos.
Na Igreja primitiva, toda pessoa que passava pelo batismo era chamada de santo. A
definição de fé é uma posse antecipada daquilo que ainda não vejo, que se viverá na
eternidade. Fé é viver o kairós, é uma conquista e opção pessoal. Até hoje a profissão de
fé é algo realizado em primeira pessoa, sendo que na comunidade vive e celebra a fé. O
discipulado é uma adesão pessoal a partir do encontro com o Cristo vivo e ressuscitado,
diferentemente do jovem que abandonou o Mestre (14,51-52).

21
(32) A grande dificuldade da comunidade cristã foi assumir e pregar o
indefensável: a morte de Cristo na cruz. É significativo a instrução do mistério da cruz
na segunda parte do evangelho de Marcos. Jesus fala a Pedro que quem não aceita esse
mistério é Satã, o adversário. Assumir a cruz segundo Marcos é seguir Jesus assumindo
a resistência ao sistema político e religioso. A meta está em ir contra o sistema
excludente romano e judaico sendo capaz de renunciar as regalias. Jesus foi alguém que
olhou além de seu tempo, foi um encrenqueiro com a “ordem vigente”. Um cristão deve
abandonar a mentalidade triunfalista e aceitar o peso e a consequência da cruz. Jesus
não quer somente louvação (não só falar coisas bonitas a Deus), mas o seguimento que
culmina no “abraçar a cruz”. A instrução de Marcos é para capacitar os discípulos a
suportarem a vergonha da cruz e darem testemunho do Senhor morto e ressuscitado no
exercício da espiritualidade do discipulado.
(33) Nunca se falou tanto de Jesus nos meios de comunicação. O questionamento
está na perspectiva em que Jesus é abordado. Desponta a teologia da prosperidade que
aparece nas igrejas pentecostais. O seguimento de Jesus implica numa vivência
comunitária e não na satisfação do próprio ego. O individualismo é muito presente nas
igrejas, sendo que as mesmas vendem um Jesus segundo os requisitos do cliente. Resta
buscar as fontes e fazer uma experiência verdadeira com o Senhor, que mesmo apesar
das dificuldades e tribulações que a espiritualidade do discipulado implica, dizendo
como Pedro: “A quem iremos Senhor, pois tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68).

Espiritualidade da Vivência do Reino de Deus em São Mateus

* Segundo os sinóticos, Mateus foi cobrador de impostos e seguiu Jesus


* Mateus vem do grego Theodoro que significa “Dom de Deus” ou “Deus dado”
* É considerado o Evangelho mais completo
* Mais citado pela Patrística e a partir dele se elaborou a doutrina da Igreja
* Facções religiosas no tempo de Jesus: saduceus, herodianos, fariseus, zelotes e essênios
* Influência direta do concílio de Jâmnia (90) no ataque aos fariseus, onde os judeu-
cristãos são excluídos das sinagogas
* Escrito de judeu-cristãos para os judeus relendo o Antigo Testamento
* Semita ensina por histórias e causos = parábolas
* Escrito em Jerusalém, oriundo da comunidade de Tiago
* Jesus de Mateus como o novo Moisés, novo Mestre
* 43 citações diretas do Antigo Testamento
* Cumprimento das Escrituras (1,23; 2,6; 4,14-16; 21,5.16) bem como da Lei (5,17; 5,21-
28; 19,3-9)
* Divisão em cinco livros lembra o Pentateuco, sendo que o relato introdutório da
infância e a conclusão sobre a Paixão-Morte-Ressurreição formam o número sete
* Os cinco livros com as duas partes remetem aos dez mandamentos
* Presença de cinco sermões: da montanha (5–7), da missão (10), das parábolas (13), da
comunidade (18) e escatológico (24–25)
* Começa com a genealogia de Jesus partindo de Abraão, pai dos judeus
* Símbolo do Evangelho de Mateus: homem (Ap 4,7 e Ez 1,5.10)
Mateus: Homem. Inicia com a genealogia de Jesus, isto é, com o nascimento
humano de Cristo (Mt 1,1). Mateus quer conferir a linhagem hebreia para Jesus diante
da comunidade nascente de hebreus-cristãos de Jerusalém. Genealogia como Filho de
Davi, Jesus Rei. Evangeliza especialmente aos judeus. Anuncia várias vezes o Reino dos
Céus. Os judeus aguardavam o Messias Rei. Relação com o profeta Ezequiel (note que

22
aparece também no profeta Ezequiel a formula "filho do Homem" no sermão
escatológico).
Temas específicos
Jesus Mestre e o “escriba no reino de Deus”. O Jesus de Mateus é antes de tudo o
Mestre, modelo do mestre cristão, instruído no Reino de Deus, que tira dos seus
guardados coisas novas e antigas (13,52), para instruir o novo Povo de Deus e ganhar
discípulos entre todas as nações (28,20).
A nova justiça. Justiça é em primeiro lugar o que Deus faz conosco, inclusive
amar-nos como um Pai a seus filhos. A nova justiça consiste, pois, não em aplicar
mecanicamente uma lei (de Moisés ou de qualquer instância), mas em procurar a vontade
deste Deus, que é Pai, e viver em conformidade com isso (5,17-47)
O Reino de Deus agora. O que Jesus anuncia é o Reino de Deus já (1,15). Para ver
o que isso significa é preciso ler o evangelho e ver o que Jesus faz: isso é o reino que ele
traz presente.
O Pai Nosso e a vontade do Pai. Com base na nova justiça, podemos rezar para
que a vontade de Deus seja feita e assim seu reino seja realizado no meio de nós (6,10).
Segundo Mateus, Jesus retoma essas mesmas palavras na sua oração no jardim das
Oliveiras (26,42). Mateus é o evangelho que mais acentua Deus como Pai, no sentido
daquele cuja vontade é o programa de vida de seu Filho e dos “filhos” que este congrega.

Caminho do Reino de Deus no Evangelho

(01) Diferentemente dos outros sinóticos, Mateus apresenta Jesus como um


grande professor no seu evangelho. Jesus Cristo é o novo Moisés que ensina as pessoas,
é o Mestre resignifica a Lei aos judeu-cristãos. Os cinco livros dos seus discursos pelo
Reino de Deus remetem aos cinco livros da Torá judaica: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio. Devido a cultura semita fortemente impregnada no texto, o
Evangelho faz memória à estrutura da Torá em cinco livros.
(02) De forma proposital, a pessoa de Jesus, confirma com textos escriturísticos
sua linhagem davídica (1,1-17), seu nascimento de uma virgem (1,23) e em Belém (2,6),
sua estada no Egito, sua residência em Cafarnaum (4,14-16), sua entrada messiânica em
Jerusalém (21,5.16); assim o faz a propósito de sua obra, que inclui formas milagrosas
(11,4-5), ensinamento que “dá cumprimento” à Lei (5,17), sublinhando-a (5,21-48;
19,3-9.16-21). E sublinha não com menos energia como a humildade dessa pessoa e o
fracasso aparente dessa obra são também cumprimento das Escrituras: matança dos
inocentes (2,17-18), a infância oculta em Nazaré (2,23), a mansidão e compaixão do
“Servo” (12,17-21; cf. 8,17; 11,29; 12,7), o abandono dos discípulos (26,31), o preço
irrisório da traição (27,9-10), a prisão (26,54), os três dias passados no túmulo (12,40),
tudo isso era o desígnio de Deus anunciado pela Escritura. Do mesmo modo, a
incredulidade dos judeus (13,13-15), apegados as suas tradições humanas (15,7-9) e aos
quais só se pode dar um ensinamento misterioso em parábolas (13,14-15.35), estava
também anunciada pelas Escrituras.
(03) Em Mateus há uma maior ênfase que Jesus é o mestre no qual seu
ensinamento representa a Lei nova que leva a antiga à perfeição; a Igreja por ele
fundada sobre Pedro (16,18) e da qual ele próprio é a pedra rejeitada pelos construtores
(21,42) é a comunidade messiânica que prolonga a da Antiga Aliança, dando-lhe uma
extensão universal com o anúncio do Reino de Deus em cinco livros, para abrir a porta
da salvação a todas as nações (8,11-12; 21,33-46; 22,1-10; cf. 12,18.21; 28,19).
(04) É compreensível que esse evangelho tão completo e bem estruturado,
redigido numa linguagem menos saborosa e mais completa que a de Marcos, tenha sido
23
recebido e utilizado pela Igreja nascente com notável predileção. Em Mateus, a vivência
do Reino de Deus é um elemento chave impulsionando ao discipulado. A
espiritualidade entre os Evangelhos de São Marcos e São Mateus interpenetram nas
perícopes. Sem ser discípulo, a vivência da espiritualidade do Reino de Deus é
anacrônica.
(05) Não basta falar da pessoa Jesus. É necessário saber o que o Mestre veio fazer
quando se encarnou na humanidade. Esta é a grande preocupação do evangelista: levar a
comunidade a compreender o sentido profundo do Reino de Deus e sua espiritualidade
no cotidiano. Para alcançar esse objetivo, ele propõe cinco sermões relembrando os
cinco livros adotados por todos os judeus da Antiga Aliança. Jesus Cristo é o novo
Moisés que reinterpreta a Lei na espiritualidade da vivência do Reino de Deus trazendo
à terra a vontade de Deus vivenciada no céu. (06) Mateus também apela para a
aritmética teológica dos rabinos atribuindo aos números um valor simbólico:
• 1 é o número de Deus, o único (18,5);
• 2 é o da criatura que sempre exprime uma dualidade (8,28);
• 3 designa a divindade e ao mesmo tempo a constituição do homem em
espírito/alma/corpo e sua natureza contínua (1,17);
• 4 representa o universo da criação estendendo-se aos quatro pontos cardeais (4
palavras de totalidade em 28,18-20);
• 5 é o número do amor divino (5 discursos podem ser equipados ao 5 livros da
Torá, 5 tipos de enfermidades curadas em 4,24), pois a Lei compreende cinco livros, ao
passo que 10 exprime a ação humana (10 sinais de poder em Mt 8–9);
• o número 7 simboliza a história humana, com base nos sete dias da criação (7
pedidos do Pai-nosso em 6,9-13), a partir disso, 6 manifesta uma falta, ao passo que 8
marca a plenitude ou cumprimento (8 bem-aventuranças em 5,3-10). Sete são os dias da
semana (ciclo lunar);
• 12 simboliza a comunidade dos apóstolos com referência as dozes tribos de
Israel (Israel é citado 12 vezes na obra mateana, assim como as palavras “julgamento” e
“ensinando”; há referência a 12 cestos em 14,20; há 12 etapas no evangelho). Doze são
os meses do ano (ciclo solar).
(07) O Evangelho não foi escrito para estudo, mas para ser vivido trazendo o
Reino de Deus no cotidiano. O que salva não são as palavras de Jesus, mas o que Ele
fez. Os cinco livros estão divididos em gestos e palavras. No livro I, os gestos (capítulos
3 e 4) e as palavras (capítulos 5 a 7). Neste último, há o sermão do monte no qual Jesus
fala à nova comunidade. No livro II, os gestos (capítulos 8 e 9) e as palavras (capítulo
10). Aqui entra a missão da nova comunidade. No livro III, os gestos (capítulos 11 e 12)
e as palavras (13,1-52). Nas parábolas há uma nova pedagogia. No livro IV, os gestos
(capítulos 13,53 a 17) e as palavras (capítulo 18). O discurso é a Igreja, novo Povo de
Deus. No Livro V, os gestos (capítulos 19 a 22) e palavras (23 e 25). Somente na obra
de Mateus há um discurso escatológico.
(08) Devido a essas questões, o Evangelho de Mateus é considerado o itinerário
para a vivência do Reino de Deus. Escrito com o intuito de explicar o projeto do Reino
de Deus com a força nova Lei dado pelo Novo Moisés, o Evangelho pode ser assim
dividido acerca da espiritualidade da vivência do Reino de Deus:
1º livro – A busca do Reino de Deus a sua Justiça: capítulos 5 à 7.
2º livro – Chamado para a missão de anunciar o Reino de Deus: capítulo 10.
3º livro – A dinâmica do Reino de Deus em Parábolas: capítulo 13,1-52.
4º livro – Comunidade comprometida com o Reino de Deus e a sua Justiça:
capítulo 18.
5º livro – A vivência do Reino de Deus no cotidiano: capítulos 23 e 25.

24
(09) O Reino de Deus (ou Reino do Céu) é o tema central da pregação/missão
de Jesus. Está presente nos seus discursos e nas suas parábolas. O conceito do Reino de
Deus pode ser trabalhado tanto de forma mais ampla quanto mais restrita; tanto em seu
significado mais geral quanto mais específico. Como foi dito, seu significado geral fala
do reinado eterno e soberano de Deus sobre tudo. A Sagrada Escritura mostra Deus
como o rei supremo que governa todas as coisas (cf. Sl 103,19 e 113,5; Dn 4,34-35; Mt
5,34; Ef 1,20; Cl 1,16; Hb 12,2; Ap 7,15).
(10) Já o Reino de Deus em seu significado mais restrito fala de tudo o que
envolve a ação soberana de Deus na redenção de seu povo. Por isso inclui-se no
conceito de “Reino de Deus” a obra de Cristo, a realidade presente da Igreja e graça da
salvação, e a consumação de todas as promessas nas bem-aventuranças na vida eterna.
(11) Dito de outro modo: o Reino do Céu é Deus, através de Jesus, a agir no
mundo dos homens para que este (mundo dos homens) seja o mundo que Ele (Deus)
sonhou para eles – um mundo segundo a medida do seu amor por eles. É o atuar da
vontade de Deus, dos seus desígnios, do seu projeto relativo à vida e á história dos
homens, de modo a tornar-se efetivamente o Senhor do mundo, do homem e da história.
(11) No Sermão da Montanha (5-7), do qual as Bem-aventuranças (5,3-12) são
como que o pórtico, Jesus apresenta o programa do Reino do Céu, ou seja, revela a
vontade de Deus, o modo como Deus quer reinar e ser Senhor, o modo como Deus quer
transformar o mundo dos homens para que este seja o reflexo do seu próprio mundo, o
mundo do Céu.
(12) Na verdade, ao longo deste discurso, Jesus indica ao homem o que deve
fazer, o modo como deve viver, os valores que deve cultivar, as atitudes e os
sentimentos que deve assumir nas suas relações com Deus e com o seu semelhante, para
acolher o reino de Deus, para o tornar presente e o ajudar a construir na sociedade, e
para o receber, depois, como a grande recompensa de Deus.
(13) Jesus concretiza: o Reino de Deus pertence, ou melhor, pertencem ao reino
de Deus aqueles que vivem segundo o espírito das Bem-aventuranças. Deixa isso bem
claro na formulação da primeira e da oitava: “porque deles é o reino do Céu” (5,3.8).
(14) Jesus sublinha também a relação estreita entre Reino do Céu e vontade de
Deus. Na oração do Pai-Nosso (6,9-13) estabelece um paralelismo perfeito entre as
súplicas “venha o teu Reino” e “faça-se a tua vontade” (6,10). O Reino vem ao mundo,
torna-se realidade na vida do homem só na medida em que este aceita que nele se faça a
vontade de Deus. Esta vontade de Deus (os desígnios de Deus, o projeto de vida que Ele
tem para nós) é dada a conhecer por Jesus (muito especialmente no Sermão da
Montanha).
(15) A espiritualidade da vivência do Reino de Deus só acontece quando existe
sintonia e comunhão entre a tua vontade e a vontade de Deus, quando a tua vida é o
reflexo do querer de Deus a teu respeito. Mais à frente, mas ainda no primeiro livro,
Jesus voltará a insistir: “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do
Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu” (7,21). Devemos
entender estas palavras de Jesus à luz das que diz imediatamente a seguir: “Todo aquele
que escuta estas minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que
edificou a sua casa sobre a rocha” (7,24). Podemos concluir que a vontade de Deus, que
o homem deve fazer, é revelada nas palavras de Jesus, sobretudo na Regra de Ouro: “
Portanto, façam às pessoas o mesmo que vocês desejam que elas façam a vocês.
Esta é, de fato, a Lei e os Profetas” (7,12). Construindo a sua vida na base da palavra de
Deus, o homem está a construir o Reino do Céu.
(16) O Reino de Deus, por ser indissociável do próprio Deus, merece o primeiro
lugar na vida do homem: “Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o

25
mais se vos dará por acréscimo” (6,33). Estamos, em certa medida, perante uma
reformulação do primeiro mandamento da Lei. Se o Reino de Deus se torna efetivo,
se Deus é colocado e amado sobre todas as coisas, se o homem deixa que Deus seja o
Senhor da sua vida e da sociedade, então, com o Reino de Deus lhe virão todos os bens
de que precisa. No prefácio da solenidade de Cristo Rei, o Reino de Deus é descrito
como “um Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de
paz”.
(17) O anúncio do Reino de Deus conta com a escolha dos Doze Apóstolos. Os
escolhidos remetem às doze tribos de Israel (19,28), como a família do novo Israel
denominado Reino de Deus. Antecipa-se o título futuro de apóstolos, ou seja,
mensageiros; o Mestre comunica-lhes seus poderes messiânicos (7,29). Encabeça-os
Pedro com seu nome novo de ofício. São de origem e mentalidade diversa: nomes
hebraicos e gregos, pescadores, um publicano, um zelota..., e Jesus será o seu centro de
unidade. A tradição identificou Natanael (Jo 1,44) com Bartolomeu, Levi (Mc 2,13; Lc
5,27) com Mateus (Mt 9,9). Antecipa-se o destino de Judas. A lista é programática.
Começa aqui um tema que terminará nas últimas páginas do Apocalipse, na Jerusalém
celeste, com “doze pedras de alicerce, que trazem o nome dos doze apóstolos” (Ap
21,14).
(18) Os apóstolos devem estar livres de tudo quanto é supérfluo no anúncio do
Reino de Deus. Jesus sabe que esta tarefa mexe com os interesses, seguranças e
tradições. Envia os apóstolos como ovelhas no meio de lobos (10,16). Os Doze e
também cada um de nós na vivência da espiritualidade do Reino de Deus deve superar o
medo e ter coragem em testemunhar o Mestre diante do mundo. Mesmo que a morte
possa alcançar o corpo material, por causa do testemunho, não deve ser temida, pois
Deus é o Senhor da Vida. O Reino de Deus contrasta com o reino do mundo, sendo
eminente o conflito com a própria família e a ordem estabelecida.
(19) No terceiro livro Mateus conta várias parábolas para explicar o mistério do
Reino de Deus (13,1-52). A parábola do semeador (13,1-9) mostra, por um lado, que o
Reino de Deus está condicionado pela a atitude que o homem assume em face de Cristo.
Por outro, mostra como é particularmente eficaz, quando o homem o acolhe na sua vida.
Cada um pode ser joio ou trigo diante do Reino de Deus.
(20) A parábola do grão de mostarda (13,31-32) mostra o contraste entre a
pequenez do início e a plenitude do fim. Por sua vez e na mesma linha, a parábola do
fermento (13,33) mostra o contraste entre a pequena quantidade do fermento e a da
massa a levedar. Estas parábolas refletem, até certo ponto, o mistério da Encarnação.
Jesus, na simplicidade e humildade da sua natureza humana esconde todo o poder e
eficácia da sua divindade.
(21) As parábolas do tesouro e da pérola (13,44-46) mostram que o Reino de
Deus é o tesouro mais valioso, aquele ao qual o homem deve subordinar toda a sua vida
e todos os seus bens. Podemos dizer que esse tesouro é o próprio Jesus. Na verdade, há
um paralelismo entre o que é pedido ao homem para adquirir o tesouro do reino do Céu
e aquilo que lhe é exigido para seguir Jesus. Jesus e o reino do Céu são realidades
indissociáveis.
(22) Depois, a parábola do joio e do trigo e a parábola da rede (13,47-50) (rede
que apanha toda a espécie de peixes) sublinham a coexistência de bons e de maus até ao
fim do mundo. Deus não elimina os maus nem encurta as suas vidas, como gostariam
que fizesse aqueles que se consideram justos. Deus respeita a liberdade dos homens,
mesmo quando escolhem viver sem Ele ou contra Ele. Só no fim serão
responsabilizados pelas suas opções e suportarão as respectivas consequências.

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(23) No quarto livro salienta-se a comunidade dos discípulos de Jesus que estão
comprometidos com a espiritualidade do Reino de Deus. A lógica não está em ser o
maior e o mais importante, mas em servir e fazer a vontade do Pai. Este exige que o
homem o acolha com a simplicidade característica das crianças: “Se não voltardes a ser
como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde
como este menino será o maior no Reino do Céu” (18,3-4). O Reino de Deus, por não
ser como os reinos deste mundo, não pode ser olhado como uma oportunidade de poder
e de grandeza, como pensava a mãe dos filhos de Zebedeu (20,20) e os apóstolos
(20,24). No Reino de Deus, o primeiro é aquele que está disposto a ser servo de todos
(20,27).
(24) Jesus quis a Igreja e que esta fosse sinal do Reino de Deus nessa realidade
terrestre. Os apóstolos, primeiro núcleo da Igreja, devem anunciar e tornar presente o
Reino de Deus. Ressalta-se que dentro da própria comunidade podem vir males,
escândalos e traições (18,6-9). Os órgãos corporais podem ser perigosos em sua função:
a mão, sede da ação; o pé, da conduta (caminho); o olho, da faculdade que avalia
(conhecimento). O joio e o trigo estão presentes dentro da Igreja e isto faz com que o
Reino de Deus seja questionado dentro da Igreja. Judas Iscariotes também foi motivo de
escândalo entregando o próprio Senhor para cumprir interesses particulares.
(25) A espiritualidade da vivência do Reino de Deus em comunidade exige a
prática da correção fraterna (18,15-18). A Igreja é um povo profético. Os cristãos
devem ser "sentinelas", ou seja dar o alerta, advertir o irmão que não está no caminho
certo. Para isso existem passos:
1º Passo: Um encontro pessoal a sós com esse irmão. Geralmente se espalha o
erro aos quatro ventos. O amor é mais importante do que a verdade. A verdade nua e
crua, muitas vezes destrói a convivência entre as pessoas, pode destruir uma pessoa,
arruinar uma família e destruir um casamento. A verdade deve ser dita com delicadeza.
A verdade que não produz amor, mas provoca perturbações, gera discórdias, ódios e
rancor, não deve ser dita.
2º Passo: Pedir ajuda a outras pessoas, que tenham sensibilidade e sabedoria, caso
o passo anterior não surta o efeito.
3º Passo: Levar o assunto à comunidade em virtude do fracasso das tratativas
anteriores. A comunidade recorda ao infrator as exigências do caminho cristão. Essa
intervenção deve ser guiada pelo amor e recomenda-se que fique tudo em casa.
4º Passo: Desligamento da Igreja em virtude da teimosia e persistência do erro.
Não é a Igreja que exclui o infrator, é ele que recusa a proposta do Reino e se coloca à
margem da Comunidade.
(26) A vivência do Reino de Deus em comunidade exige a prática da oração em
comum (18,19-20). Isso quer nos lembrar que, quando a correção não for possível por
outros meios, ainda poderá ser possível pela oração, feita em comum com duas ou mais
pessoas, em nome de Jesus. Os rabinos exigiam na assembleia um mínimo de dez
pessoas. A Comunidade de fé é comunhão com Cristo, através da relação fraterna.
(27) A experiência de da vivência do Reino de Deus em comunidade remete ao
exercício do perdão fraterno (18,21-35). Pedro consulta Jesus sobre os "limites do
perdão". Segundo a Tradição: 2, 3 ou 4 vezes no máximo... Pedro propõe até sete. Jesus
responde: "70 x 7", isto é, Sempre e Todos, "um perdão sem limites", inclusive aos
inimigos que os judeus não incluíam. O perdão não deve ficar na Quantidade, mas na
Qualidade, "de coração". A parábola explicita isso diante de duas pessoas devedoras.
Uma deve 100 denários (salário de cem dias de um diarista) e outra dez mil talentos
(cem milhões de denários). Não há limites para o perdão, o amor não é mesquinho.

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(28) O quinto livro trata da vivência do Reino de Deus no cotidiano. O capítulo 23
retrata os adversários do Reino de Deus. Jesus denuncia a hipocrisia religiosa dos
fariseus e doutores da Lei (23,1-12) por não se comprometerem com o Reino de Deus e
a sua justiça. São arrogantes por sentirem-se superiores aos outros, por terem
supostamente o conhecimento de Deus e de sua Palavra. A espiritualidade da vivência
do Reino de Deus não pode tolerar dominações, pois todos são irmãos, discípulos do
mesmo Mestre. Na perícope dos sete “ais” contra os escribas e fariseus (23,13-36) a
crítica está na inversão de valores dos detentores da Lei deixando de lado a prática da
justiça e da misericórdia. Em nome da religião, eles chegam a matar os enviados de
Deus, como ajudarão a fazer com o próprio Jesus.
(29) Finalmente, temos as parábolas em que Jesus relaciona a espiritualidade da
vivência do Reino de Deus com a segunda vinda do Filho do Homem, o julgamento e
plenitude da história. A parábola das dez virgens (25,1-13) alerta para a necessidade
de estar sempre preparados e vigilantes para ir ao encontro do Senhor e poder entrar na
“sala das núpcias”, pois este virá sem anunciar previamente a hora de chegada. Ser
discípulo do Senhor implica em viver o Reino de Deus constantemente.
(30) Através da parábola dos talentos (25,14-30), Jesus sublinha que cada um
deve pôr a render os dons recebidos de Deus e será julgado e responsabilizado por isso.
Só quem faz a sua parte na construção do Reino de Deus entrará “no gozo do Senhor”.
(31) Na última parábola (25,31-46), acontece o julgamento das nações de acordo
com o que vivenciaram a mística do Reino de Deus. Jesus apresenta-se como Rei (o
Filho do Homem sentar-se-á no seu trono de glória) e como Juiz (separará as pessoas
umas das outras). As pessoas que entrarão no Reino dos Céus são as que fazem a
vontade de Deus (cf. 7,21) e não de si mesmos, como os escribas e fariseus. Aqui, o
Reino é manifestamente o Céu, o mundo de Deus, a vida eterna. O Reino que está
preparado como herança para os homens é o próprio Deus. Deus, através de Jesus,
trouxe o seu mundo divino até ao mundo dos homens (o Reino do Céu), para que os
homens, aderindo à proposta de Deus e comprometendo-se com ela, possam atingir a
plenitude desse Reino, ou seja, viver eternamente com Ele. Vivenciar realmente o Reino
de Deus na Terra é experimentar a comunhão com Deus na eternidade.
(32) Mais em concreto, qual a atitude que o homem deve tomar face ao Reino de
Deus? A primeira, apontada por João e por Jesus e que implica todas as outras, é a
conversão: “convertei-vos”. A conversão, tendo presente o significado do verbo grego,
significa mudança de mentalidade. A Conversão a Deus implica conformar a mente, a
vontade e o coração com a verdade, os desígnios e o amor de Deus. Consequentemente,
o homem passa a olhar Deus, o mundo, os outros, a vida e as coisas segundo a
perspectiva de Deus. O homem passa a pensar, a querer e a amar como Deus pensa quer
e ama.
(33) Não existe vocação evangélica sem ruptura com o reino e a mentalidade do
mundo. A maior conversão é a de Mateus, pois ser cobrador de imposto implicava numa
vida corrupta. Talvez hoje não tenhamos cristãos católicos convictos, mas apenas por
convenção. São pessoas com identidade cristã fraca e vulnerável. Este continua sendo o
desafio dado aos Doze e que perpetua até o fim dos tempos. “Ide, fazei discípulos meus
todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (28,19).

Espiritualidade da Oração em São Lucas


* Lucas foi colaborador de Paulo nas viagens (Fm 24; CI 4,14; 2Tm 4,11)
* Contraste entre o fariseu (Filágero – amigo da prata) e o cristão (Teófilo – amigo de
Deus)

28
* Lucas e Atos são uma só obra (Lc 1,1 – 24,49 + At 1,12 – 28,31)
* É considerado o Evangelho mariano
* Evangelho que mais tem passagens acerca do dinheiro – ambiente urbano
* História elaborada segundo a cultura helenista na organização dos fatos (1,3)
* Zacarias simboliza a Antiga Aliança (mudo) e Maria a Nova Aliança (diz o “sim”)
* História começa em Nazaré (periferia) e termina em Jerusalém (centro)
* Evangelho da Liturgia devido à demarcação minuciosa dos fatos da vida de Jesus
* Jesus agia sob a ação do Espírito Santo
* Samaritano (estrangeiro) que age a favor da vida e não fica fixo na Lei (judeu)
* Jesus anunciando a libertação e proclamando o “tempo da graça”
* Enfoque na humanidade de Jesus, pois Lucas era médico e grego
* Importância da oração em cada momento decisivo da vida de Jesus (3,21; 5,16; 9,18;
9,28; 11,1; 10,21; 22,31s; 22,39s; 23,34.46)
* Ênfase na misericórdia, sobretudo no capítulo 15
* Escrito para os gentios seguindo a tradição paulina
* Linguagem lucana é teológica (sabedoria - perspectiva judaica) e não grega
(conceitual – científica e racional)
* Genealogia de Jesus (77 gerações) partindo de Adão, pai da humanidade
* Símbolo do Evangelho de Lucas: touro (Ap 4,7 e Ez 1,5.10)
Lucas: Touro, que às vezes, aparece com asas. Tudo começa no Templo de
Jerusalém, lugar do sacrifício dos bois e carneiros. É anunciado o nascimento de João
Batista no Templo, onde os touros eram oferecidos em sacrifício ao Senhor. O touro
simboliza o sacrifício de Cristo, tão bem enfatizado no Evangelho de Lucas. Jesus
Homem, destaque para Maria. Além disso, o touro também é símbolo da paciência, da
força e do serviço, virtudes demonstradas pela vida e pela obra de São Lucas. Relação
com o livro do profeta Isaías.

Temas específicos
I) A graça e a misericórdia de Deus, que se exprime na atenção prioritária dada
aos pobres e pecadores
II) A gratuidade e a universalidade da salvação: embora Lucas valorize muito a
preparação da salvação durante o Antigo Testamento, ele mostra que o cumprimento
ultrapassa o esperado; as fronteiras da etnia judaica são estreitas demais
III) Jesus, o novo Elias. Enquanto os outros evangelistas aproximam Elias de João
Batista, Lucas acentua as semelhanças entre Jesus o grande profeta do tempo dos reis de
Israel: Elias fez um jejum no deserto, era movido pelo Espírito Santo, fazia milagres que
manifestavam a misericórdia de Deus aos pobres, às viúvas, aos estrangeiros, foi
arrebatado ao céu, enquanto se espera a sua volta...
IV) O tema da libertação: Jesus é aquele que vem libertar o povo, anunciar a
liberdade aos cativos, instaurar o “ano da graça” do Senhor (cf. sobretudo 4,16-21)
V) Jesus, o novo Elias. O que Jesus anuncia é o Reino de Deus já (1,15). Para ver
o que isso significa é preciso ler o evangelho e ver o que Jesus faz: isso é o reino que ele
traz presente.
VI) A piedade (religiosidade) dos que aderem a Jesus e se tornam, em todos os
grupos sociais – judeus, pagãos, pobres, ricos, homens, e de modo especial mulheres –,
modelos para os cristãos do tempo que vem.
VII) Maria, “a cheia de graça” (Lc 1,28.30). Lucas descreve dignamente a Fiel e
Crente por Excelência: Maria, onde todas as gerações bendirão o seu nome.

29
Constância da Oração no Evangelho
(01) De acordo com a cultura helenista, Lucas redigiu uma “história” (enquanto
Marcos compôs um resumo do anúncio e Mateus, uma catequese a partir do tema da
Lei). Não sendo testemunha ocular dos fatos, investigou os testemunhos antigos e
compôs um evangelho “em boa ordem” (1,3), conforme as regras da historiografia de
então. Ressalta-se aqui a importância da oração em toda a vida de Jesus bem como a
consequência prática da intimidade com Deus que é a manifestação da misericórdia ao
irmão.
(01) O Evangelho ressalta a misericórdia de seu Mestre para com os pecadores
(15,1-2.7.10) e em narrar cenas de perdão (7,36-50; 15,11-32; 19,1-10; 23,34.39-43).
Lucas gosta de insistir na ternura de Jesus para com os humildes e com os pobres,
enquanto que os orgulhosos e ricos folgazões são tradados severamente (1,51-53; 6,20-
26; 12,13-21; 14,7-11; 16,15.19-31; 18,9-14). Entretanto, mesmo a justa condenação
não virá senão depois da paciente espera da misericórdia (13,6-9). Basta que a pessoa se
arrependa, renuncie a si mesma, e nesse ponto a generosidade viril de Lucas faz questão
de repetir a insistência de um desapego decidido e absoluto (14,35-34), especialmente
pelo abandono das riquezas (6,34-35; 12,33; 14,12-14; 16,9-13). Finalmente, como em
São Paulo e nos Atos dos Apóstolos, o Espírito Santo ocupa um lugar de primazia, que
só em Lucas sublinha, em 1,15.35.41.67; 2,25-27; 4,1.14.18; 10,21; 11,13; 24,49.
(03) A obra historiográfica lucana pode ser comparada a uma metáfora da casa.
Jesus salienta que a casa só permanece em pé se está edificada em Deus, ou seja, haja
intimidade na oração com o Senhor. Todo o texto é explicitado em cômodos de uma
casa. Ela proporciona acolhida, descanso, reflexão e orientação.
1. O Projeto da Casa do Evangelho
Prólogo (1,1-4)
2. A Varanda na Entrada da Casa
Nascimento e vida oculta de João Batista e de Jesus (1,5–2,52)
3. A Porta de Entrada
Preparação do ministério de Jesus (3,1–4,13)
4. A Sala de Visitas
Ministério de Jesus na Galileia (4,14–9,50
5. O Salão da Grande Viagem
A subida para Jerusalém (9,51–19,27)
6. O Corredor para o Oratório
Ministério de Jesus em Jerusalém (19,28–21,38)
7. O Oratório da Casa do Evangelho
A Paixão ( 22,1–23,56)
8. A Porta dos Fundos
Após a ressurreição (24,1-53)
(04) O ar que se respira na varanda desta casa é de oração e liturgia. Liturgia de
Advento, marcada por muito louvor e júbilo. É marcada pela vinda de duas crianças:
João Batista e Jesus. Aparecem dois contextos que se opõem e se completam: o oficial
(Templo/ Jerusalém/ Judéia) e o popular (casa/ Nazaré/ Galiléia). Os nomes das
personagens revelam o rosto de Deus: Gabriel (=Deus é forte), Zacarias (=Deus se
lembra), Isabel (=Deus é plenitude), João (=Deus é favorável), Maria (=querida do
povo), José (=Deus acrescente), Jesus (=Deus é salvação), Ana (=misericórdia), Simeão
(=Deus ouviu).
(05) A primeira passagem que mostra a importância espiritualidade da oração
ocorre com a mãe de Jesus com o Magnificat (1,46-55), oração que sempre é recitada
na Liturgia das Horas durante as Vésperas. O cântico de Maria se inspira no de Ana

30
(1Sm 2,1-10) e em alguns salmos. O Magnificat é a síntese da experiência de Maria, e
ela agradece pelo presente. O cântico de Maria, chamado “Magnificat” resume, de
forma poética, a proposta de Jesus nas Bem-Aventuranças (6,20-23). Sinaliza, com
clareza, que a Boa Nova de Jesus propõe uma mudança nas atitudes das pessoas e nas
estruturas sociais. Deus se volta, sobretudo para os mais pobres, pois são os que mais
necessitam. Sua misericórdia permanece para sempre.
(06) Maria não fica em casa acomodada pensando que tem o filho de Deus na
barriga, sendo motivo para ficar se guardando. Ela vai a serviço de Isabel e fica por três
meses. O que salva e evangeliza não se limita nas palavras, mas os gestos provenientes
da oração que implicam a diferença que a Palavra está fazendo na vida do cristão.
(07) Maria era uma leiga, mulher, adolescente, solteira, estava em casa fazendo os
serviços domésticos. No contexto popular Deus revela a Nova Aliança com a
Encarnação de Cristo. Maria é a serva do Senhor e acredita no anjo. Ela é o sacrário.
Seu corpo humano é o templo feito por Deus sendo mais importante que um Templo de
pedra. Jesus também fala que iria destruir o Templo e ria reerguer em três dias, era o
prenúncio de sua ressurreição que os fariseus não entenderam.
(08) A segunda passagem que apresenta uma espiritualidade orante é o
Benedictus (1,68-79), sempre recitado na Liturgia das Horas durante as Laudes. Esta
oração bendiz a Deus pela vinda de seu Filho ao mundo para confirmar a Santa Aliança,
libertar e salvar Israel. Zacarias era um sacerdote, homem, da tribo dos levitas, pessoa
idosa, casado, morava em Jerusalém, estava no Templo fazendo o sacrifício. Zacarias
simboliza a Antiga Aliança e Maria a Nova Aliança.
(08) Zacarias duvida da Palavra e devido a sua incredulidade não pode mais falar,
pois não tem nada a anunciar. A religião de Zacarias não comunicava mais a Palavra
mesmo ele estando no Santo dos Santos. Em Lucas precede a oração de uma mulher
leiga diante de uma oração de um sacerdote do Templo. Zacarias fica mudo em virtude
de sua desconfiança e Maria exalta a Deus na casa do próprio Zacarias. O ritual fixo do
Templo era mais importante que Deus. Isso é uma questão muito debatida entre Jesus e
os fariseus.
(10) Simeão e Ana também representam os pobres que esperam a libertação já
anunciados pelos cânticos de Maria e de Zacarias. O homem com uma espiritualidade
orante chamado Simeão pronuncia o Nunc Dimittis (2,29-32), hino recitado na Liturgia
das Horas durante as Completas. O cântico de Simeão relembra a vida e missão do
Messias: Jesus será sinal de contradição, isto é, julgamento para os ricos e poderosos, e
libertação para os pobres e oprimidos (cf. 6,20-26).
(11) Aqui também se faz importante salientar a profecia de Simeão (2,34-35)
diante de Maria. Não se trata de uma alusão ao sofrimento de Maria na hora da cruz,
pois nos evangelhos sinóticos Jesus morre sozinho e Maria não está incluída entre as
mulheres que o observam, de longe. A espada tem um sentido metafórico. Alude a
Jesus, que é a palavra-gesto do Pai, conforme Hb 4,12s: “A Palavra de Deus é viva,
eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes. Julga as disposições e
as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença”.
(12) Maria, como os outros aprendizes de Jesus, não sabia tudo. Foi fazendo
descobertas no correr de seu caminho espiritual. Neste sentido, o relato da perda no
Templo confirma que Maria e José não entendem naquele momento as palavras e os
gestos de Jesus (2,41-50). Por isso mesmo, ela precisa refletir e buscar o sentido dos
fatos. A interpretação nova que Jesus dá à Lei, ao sábado, ao templo e às tradições
questionava seus seguidores, trazia conflitos e lhes provocava mudanças na sua visão
religiosa. Era uma espada! Maria passou pelo crivo da espada da Palavra, e cresceu com
isso.

31
(13) Antes da atividade pública de Jesus destaca-se a presença de João Batista. A
porta de entrada da casa do Evangelho consiste na espiritualidade orante do maior de
todos os profetas que pregava a conversão (3,4-6). A espiritualidade da oração implica
numa nova atitude diante da vida despojando-se do homem velho e renascendo pelo
Batismo de conversão. A fé deve ser coerente com o que se pratica no cotidiano
abandonando velhos hábitos conforme as respostas dadas à multidão, aos cobradores de
impostos e soldados.
(14) Lucas ressalta a oração e a presença do Espírito Santo na missão de Jesus.
Cada etapa importante de sua vida, Jesus reza por meio do Espírito Santo: em seu
batismo (3,21), no período de 40 dias (4,1), durante o seu ministério (5,16), antes de
escolher os seus apóstolos (6,12), antes da profissão de fé de Pedro (9,18), no momento
da transfiguração (9,28), Cristo louva o Pai por revelar seus mistérios aos pequeninos
(10,21), Jesus roga ao Pai (11,1), ora por Pedro tentado (22,31-32), reza durante a
agonia (22,39s), na cruz (23,34.46).
(15) 1 – Batismo de Jesus (3,21-22): A Porta de Entrada do Evangelho de Lucas
liga dois mundos. O mundo da Antiga Aliança (tempo de preparação) e o mundo da
Nova Aliança (tempo da realização). O mundo da Lei e dos Profetas e o mundo do
Reino de Deus. João é o ponto alto do primeiro mundo. Jesus é o início e a base do
segundo que se confirma com o seu Batismo descendo o Espírito Santo em forma de
pomba. A voz do céu pela palavra lembra o Deus Pai criador do início do Gênesis. A
Trindade se manifesta na voz do Pai, na pessoa do Filho e na pomba como forma
corporal do Espírito Santo.
(16) 2 – Tentação no deserto (4,1-13): A presença do Espírito Santo por meio da
espiritualidade orante de Jesus permite que o mesmo enfrente as três tentações do
deserto. São também um retrato das tentações que devemos vencer para não nos desviar
do projeto de Deus. Jesus recusa o caminho do materialismo, do poder e do prestígio.
(17) a. O PÃO: “Manda que esta pedra se mude em pão...” Jesus responde: "Não
só de pão vive o homem..." Quantos são tentados a buscar apenas o pão material,
possuir todos os prazeres da vida e acumular riquezas para si. É o materialismo, que
leva a perder a sensibilidade humana e espiritual. O combate está com o conselho
evangélico da castidade.
(18) b. O PODER: “Eu te darei todo esse poder e riqueza se te ajoelhares diante de
mim...” Jesus reponde: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás...” Todos nós
temos sede de domínio sobre os outros e frequentemente somos tentados a nos tornar
"donos" na família, na comunidade e no trabalho. O combate está com o conselho
evangélico da pobreza.
(19) c. O MILAGRE: “Joga-te daqui para baixo... Deus dará ordem aos anjos
para que te guardem...” Jesus responde: “Não tentarás o Senhor teu Deus...” Ainda hoje
somos levados a tentar Deus com uma religião mais fácil e sem compromisso, que
promete milagres, salvação, dinheiro, emprego, saúde, com “orações milagrosas” e
“correntes” exigindo que Deus faça a nossa vontade e nos mande um santo milagreiro
para nos atender. O combate está com o conselho evangélico da obediência.
(20) 3 – Durante o ministério (5,12-16): Entramos agora na primeira grande sala
da casa do Evangelho de Lucas. É uma sala que nos deixa bem à vontade. Porém, não
recebemos cadeiras para sentar, porque somos convidados a acompanhar Jesus em suas
caminhadas pela região da Galileia. Ele realiza sua missão com a força do Espírito
Santo. Seu ministério se caracteriza por muitas caminhadas, visitas, ensinamentos,
curas. Após as curas Jesus retirava-se para rezar e entrar em intimidade com o Pai. A
ação é oriunda da oração como enfatiza no episódio da casa de Marta e de Maria.

32
(21) 4 – Escolha dos Doze (6,12-16): Jesus passa a noite em oração na montanha,
descendo da mesma com o nome dos Doze apóstolos. Moisés também passa a noite na
montanha retornando ao povo com as tábuas da Lei. Os Doze não foram chamados
porque possuíam capacidades especiais ou fossem melhores do que os demais
discípulos para receber a missão que lhes seria confiada. No Evangelho não indica
qualquer qualidade humana ou religiosa que desse razão a escolha. Jesus confia nas
pessoas e lapida-as durante a caminhada.
(22) 5 – Antes do Primeiro Anúncio da Paixão (9,18-27): No final de sua
atividade na Galileia, Jesus, depois de ter rezado, provoca os Apóstolos a dizer o que
pensam dele, de sua identidade e missão. Os Doze deviam ter uma ideia mais
amadurecida do que as multidões, pois foram testemunhas de seus milagres e
destinatários privilegiados de sua doutrina. Jesus afirma que é o Messias, falando pela
primeira vez de sua Paixão. Apresenta-se como o "Servo Sofredor", desprezado e
rejeitado pelos homens, na expressão usada pelo profeta Isaias. Sem uma espiritualidade
orante é impossível renunciar a si mesmo, tomar a cruz de cada dia e seguir o Senhor.
Diante de seu futuro em Jerusalém e da fraqueza de fé dos apóstolos, a oração dá força
para Cristo agir por meio do Espírito Santo.
(23) 6 - Transfiguração do Senhor (9,28-35): A espiritualidade orante é o
caminho de nossa transfiguração em Cristo. O monte Tabor é uma parada que Jesus faz
em sua caminhada para o Calvário. É o lugar onde Deus reanima seus amigos e lhes dá
as forças necessárias para chegar também eles à cruz. Na transfiguração aparece
claramente esse sentido da oração (v. 35). E a vontade do Pai é que Jesus realize o
êxodo (v. 31), isto é, que ele realize, mediante sua morte, ressurreição e ascensão, o ato
supremo de libertação do povo, acabando com a opressão exercida pelo sistema judaico
do Templo em Jerusalém.
(24) O primeiro anúncio da paixão provoca neles uma crise profunda
desmoronando as esperanças messiânicas impregnadas de triunfalismo. Os Apóstolos,
decepcionados, entram numa profunda crise. Para reanimar a fé abalada deles, Jesus
recorre à oração, na montanha, lugar sagrado por excelência, onde Deus se revela ao
homem e lhe apresenta seus projetos. Jesus se transfigura, pois todo encontro autêntico
com Deus deixa marcas visíveis no rosto das pessoas, como em Moisés ao descer do
Sinai. Uma voz confirma que todos devem escutar o Filho de Deus. A transfiguração
aconteceu oito dias após o anúncio da Paixão. Para os cristãos, o 8º Dia é o “Dia do
Senhor”, no qual cada um deve rezar em comunidade para escutar a Palavra e para partir
o Pão.
(25) Agora vamos entrar com Lucas numa sala bem espaçosa. É como se fosse
uma espécie de salão comunitário. Todos estão convidados a entrar neste salão. Nele
vamos acompanhar a grande viagem de Jesus e seus discípulos a Jerusalém. A subida
para a capital da Palestina é uma decisão consciente e corajosa de Jesus. Lá vai
enfrentar a mais dura rejeição, a cruz e a morte.
(26) 7 – Revelação aos pequeninos (10,21-24): A espiritualidade da oração
constante se dá pela presença constante do Espírito Santo. Deve surpreender que, em
sua oração, Jesus, tomado do Espírito, agradeça ao Pai porque sábios e entendidos não
compreendam sua mensagem sobre o Reino! Caso a compreendessem, tratariam de
modificá-la e adequá-la com os seus próprios interesses. A compreensão acontece com
os pobres, os subjugados pelo poder político e religioso, para os quais Jesus tem uma
notícia de libertação e pleno acesso a Deus. O primeiro a colocar obstáculos no caminho
de Jesus é um teólogo, nunca os pequeninos. Os escribas sabem que o amor total a Deus
e ao próximo é que leva à vida. Mas, não basta saber. É preciso amar concretamente.

33
(27) 8 – Jesus roga ao Pai (11,1-13): Jesus possuía uma intimidade com o Pai por
meio da espiritualidade da oração constante. O Senhor ensina a rezar e insiste na
necessidade da oração com o Pai-Nosso (11,1-4), em perseverar na prática da oração
(11,5-13) e também pedir o dom do Espírito Santo (11,13). O Evangelho insiste na
oração perseverante e confiante. Se os homens são capazes de atender ao pedido de
amigos e filhos, quanto mais o Pai! Ele nada recusará. Pelo contrário, dará o Espírito
Santo, isto é, a força de Deus que leva o homem a viver conforme a vida de Jesus
Cristo. Sem o Espírito Santo nada é possível de concretizar na vida do discípulo. Maria
é o exemplo de ser humano transformado pelo Espírito Santo, a mãe do Senhor é a cheia
de graça.
(28) Os mestres costumavam ensinar os discípulos a rezar, transmitindo o resumo
da própria mensagem. O Pai Nosso traz o espírito e o conteúdo fundamental de toda
oração cristã. Esta oração se faz na intimidade filial com Deus (Pai), apresentando-lhe
os pedidos mais importantes: que o Pai seja reconhecido por todos (nome); que sua
justiça e amor se manifestem (Reino); que, na vida de cada dia, ele nos dê vida plena
(pão de amanhã); que ele nos perdoe como nós repartimos o perdão; que ele não nos
deixe abandonar o caminho de Jesus (tentação).
(29) 9A – Modelo Oração Perseverante (18,1-8): Insistência e perseverança só
existem naqueles que estão insatisfeitos com a situação presente e, por isso, não
desanimam; do contrário, jamais conseguiriam alguma coisa. Deus atende àqueles que,
através da oração, testemunham o desejo e a esperança de que se faça justiça. Com a
oração perseverante será possível aceitar os projetos de Deus, compreender os seus
silêncios, respeitar os seus ritmos e acreditar no seu amor.
(30) Rezar sempre significa nunca interromper o diálogo com Deus, mesmo no
aparente silêncio de Deus. “É a presença silenciosa de Deus na base do nosso
pensamento, da nossa reflexão e do nosso ser, que impregna toda a nossa consciência”.
(Bento XVI) Nesse diálogo, Deus transforma os nossos corações e aprendemos a nos
entregar nas mãos de Deus e confiar nele. Se interrompermos esse contato, se deixarmos
“cair os braços”, logo fracassaremos.
a. A Oração não é uma fórmula mágica para levar Deus a fazer nossa vontade ou
até nossos caprichos. Não é um simples ato de piedade, ou expressão do sentimento;
mas antes um ato de fé e de amor, que nos abre ao diálogo com deus.
b. Rezar é CONVERSAR com Deus: Falar e Escutar. As Orações não precisam de
palavras complicadas. Existem orações escritas que rezamos, mas também as orações
que são feitas quando queremos conversar com Deus do nosso jeito. Deus é o nosso
melhor amigo e gosta de nos ouvir.
c. Rezar é fazer SILÊNCIO profundo para ouvir Deus, acolher a sua Palavra e
assim nos dispor a fazer a sua vontade.
d. Rezar é uma RESPOSTA vivencial e verbal, que poderá assumir várias
formas: Ação de graças... Contemplação... Profissão de fé... Declaração de entrega...
Pedido...
(30) 9B – Modelo Oração Falsa (18,9-14): Os destinatários da Parábola do
Fariseu “santo” e do Publicano “pecador” são alguns que se consideravam justos e
desprezavam os outros. Os dois rezavam no Templo enquanto um esperava a
recompensa e o outro a misericórdia. O modo de rezar dos dois é bem diferente. O
Fariseu pelo caminho do orgulho, o Publicano pelo caminho da humildade. Jesus
desmascara todo o tipo de oração hipócrita e vazia, novamente aparece o “teólogo”
sabedor das leis e tradições. Na Oração, ao invés de louvar a Deus, louva-se a si mesmo
e despreza o pecador. Umas práticas religiosas bem observadas lhe dão a segurança da

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salvação. O Senhor quer uma religião em espírito e verdade, com o mandamento do
amor. O fariseu a reduz a umas obrigações, para estar em dia com Deus.
(31) O Ministério de Jesus em Jerusalém (19,28-21,38) é um corredor bem
estreito. Esta passagem vai nos conduzir ao oratório: lugar de oração, silêncio e
reflexão. Ele chega agora em Jerusalém onde se desenrolarão os últimos acontecimentos
de sua vida histórica. É o ponto alto da caminhada. A Narrativa da Paixão (22,1-23,56)
composta pelo oratório é o último espaço da casa do Evangelho de Lucas. O ambiente é
simples, mas marcado por muita violência. Mas tem também marcas de muito amor e
misericórdia.
(32) 10 – Jesus reza por Pedro tentado (22,31-32): Satanás tenta conquistar
inclusive os discípulos de Jesus, Judas foi um deles e Pedro chegará a negar três vezes o
Mestre. No começo do livro de Jó, exige para si os apóstolos para submetê-los à prova.
Quando Jesus ia ser submetido à prova, era movido pelo Espírito e repleto dele (4,1). A
fé não é desempenho puramente humano, mas se apoia nessa oração de Jesus. Somente
a intercessão de Jesus faz com que ele não perca completamente a fé e assuma
corajosamente a própria missão.
(33) 11- Jesus reza no Monte das Oliveiras (22,39-46): É o momento da grande
tentação e da decisão definitiva. Diante das consequências de toda a sua vida e ação,
Jesus deve escolher entre obedecer à vontade do Pai ou submeter-se ao poder das trevas
(cf. 22,53). A oração é a união com Deus que ajuda o homem a manter-se consciente e
fiel ao compromisso até o fim. Jesus reza de joelhos, humilde e confiante. Como sempre
e de modo único, invoca Deus como Pai; desta vez não sente o “júbilo do Espírito”
(10,21).
(34) 12 – Jesus reza na Cruz (23,34-46): Lucas recolhe três palavras na cruz:
pelos culpados (34), do ladrão (43), por si (46). A primeira e a última começam igual:
Pai! Jesus tinha dito que somente Ele conhece o Pai (cf. 10,22); agora também faz, pois
está sendo “compassivo como o Pai” (6,36). Jesus intercede; como Abraão (Gn 18),
como Moisés (Ex 32; Nm 14), como Samuel (1Sm 12), como Jeremias (Jr 15,15) e mais
que eles; e continuará sempre intercedendo (Hb 7,25).
(35) As últimas palavras de Jesus são citação adaptada de um salmo (31,6): onde
este invoca a “Deus”, Jesus diz “Pai”. Deixa seu alento vital em depósito (assim o
hebraico original) a alguém que é fiel, em que confia plenamente; sabe que recobrará
seu depósito. No mesmo salmo se diz (v. 16): “em tuas mãos está o meu destino”.
Expirou: “tornou-se obediente até à morte, morte de cruz” (Fl 2,8).

Espiritualidade dos Gestos e Palavras em São João

* O livro escrito sob a ótica das mulheres: comunidade de Maria Madalena


* Valorização de figuras femininas (mulher adúltera, mulher samaritana, lava pés)
* Se temos nos Sinóticos em torno de 35 milagres, João enuncia 7 sinais e nenhum
milagre
* Chave hermenêutica dos sinais é o fracasso humano
* Se temos mais de 40 parábolas nos Sinóticos, em João nenhuma delas aparece
* Nos Sinóticos a expressão utilizada na missão de Jesus é Reino de Deus ou Reino
dos Céus, em João o mesmo sentido tem-se com a Vida Eterna ou Vida
* Não há uma ordem cronológica entre os fatos da vida de Jesus (Galileia e Judeia)
* Jesus participa como judeu em 3 páscoas
* Ausência de exorcismos como nos Sinóticos
* Jesus Cristo é a Palavra de Deus em carne humana

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* Contraste entre o momento que não chegou sua hora (sinais) e no momento de sua
hora (exaltação)
* Jesus se pronuncia com a fórmula “Eu sou” (luz, pão, porta, pastor, videira,
ressurreição, vida, caminho, verdade)
* Destaque das três pessoas da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo)
* É considerado o Evangelho mais espiritual
* Espírito Santo como o Advogado e que atualiza Jesus
* Conflito de Jesus com as forças do “mundo”
* Crítica aos “judeus” (separação devido ao concílio de Jâmnia) como que se
esquecendo dos “romanos”
* Livro sem genealogia/origem de Jesus: Ele é o Verbo, Eterno ao Pai
* Os capítulos 15 e 16 formam uma “duplicata” do discurso de despedida do capítulo
14, o qual originalmente tinha sua continuação no capítulo 18.
* Discurso da despedida de Jesus (15–17) como um testamento
* A “perícope da adúltera” (Jo 7,53–8,11), é um trecho bíblico que inicialmente foi
transmitido separadamente e, no século IV, inserido no evangelho de João.
* Maria na entrada (Bodas de Caná) e despedida (Cruz) da vida pública de Jesus
* Símbolo do Evangelho de João: águia (Ap 4,7 e Ez 1,5.10)

João: Águia. Começa com a divindade do Verbo, dizendo: “No princípio era o
Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). Tem como
intuito substância divina, fixando o olhar no sol à maneira de uma águia. Destinado
ao mundo e a todos os tempos, ou seja, católico/universal. Relação com o profeta
Daniel. Note que a mesma comunidade também escreveu o Apocalipse e se refere
muito a Daniel.

Temas específicos
A Palavra de Deus em carne humana. A mensagem que João propõe se resume
na frase: “Ninguém jamais viu Deus; o Filho único, que é Deus e está na intimidade do
Pai, foi quem o revelou” (1,18). Pois Jesus é a “Palavra” do Pai. A vida de Jesus é o
Pai se comunicando e realizando suas obras (14,10). A vida de Jesus nos diz como
Deus é, e não há outro caminho (14,6) de conhecer a Deus como ele é. “Quem me vê,
vê o Pai” (14,9): esta frase, pronunciada algumas antes de Jesus provar seu amor até o
fim (cf. Jo 13,1), significa que, no dom da vida de Jesus, reconhecemos o rosto de
Deus, que é Amor (1Jo 4,8.16)
“Sinais” e símbolos. A linguagem de João é altamente simbólica: Jesus se
apresenta como Luz (8,12; 9,5); Ressurreição e Vida (11,25); Caminho, Verdade e
Vida (14,6); Pastor (10,11); Porta (10,7.9); Pão da vida (6,35); Pão vivo (6,51). Ele
traz em si o dom da Água da Vida (4,14; 7,37-38). Esses mesmos símbolos são o dom
de Jesus nos milagres, chamados expressamente de “sinais”, porque seu valor não está
no dom material, mas naquilo que significam (o vinho: bebida das núpcias
messiânicas; a saúde: a vida que Jesus traz; o pão: seu ensinamento e o dom da própria
vida; a restauração da vista: a luz que é Jesus; o reerguimento de Lázaro: a
“Ressurreição e Vida” presentes em Jesus...). Quem não vê o “sinal” no gesto de
Jesus, é como se não tivesse visto nada (cf. 6,26).
A Hora de Jesus. João chama “a hora” de Jesus esse momento em que Jesus é,
ao mesmo tempo, elevado à cruz e na glória, pois em seu morrer transparece a glória
do Pai, que é amor e fidelidade até o fim.
O Espírito-Paráclito e a “memória” de Jesus. Ao despedir-se do mundo, Jesus
promete o Paráclito para recordar a sua obra e ensinamento para conduzir a

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comunidade na verdade plena, fazendo-a compreender dia após dia o que Jesus falou
antes que se realizasse (16,1-15). Este mesmo Paráclito nos ajuda também a cumprir
as “obras maiores” que Jesus, na limitação de sua existência carnal, não realizou, mas
deixou para nós: o Espírito “atualiza Jesus” no nosso meio (14,12-17). Por causa dessa
compreensão atualizada no Espírito, o evangelho joanino é chamado o “evangelho
espiritual”: pelo Espírito, que Jesus envia da parte do Pai, aprendemos a fazer a obra
de Jesus hoje.
A Trindade. O acima dito mostra soberanamente o caráter trinitário deste
evangelho: com o Espírito que permanece sobre ele (1,32-33), Jesus revela o Pai
realizando sua obra (14,10) e nos dá o Espírito para continua-la (14,12-17)
A mãe de Jesus e as personagens femininas. João é sóbrio em relação à “mãe
de Jesus”, nunca designada pelo seu próprio nome. Ele a menciona em duas cenas
apenas, porém extremamente significativas: no primeiro dos “sinais” (2,1-5) e ao pé da
cruz (19,25-27). Maria é a referência de Jesus ao entrar e ao sair de sua vida pública. E
é na qualidade de referência de Jesus que ela é acolhida pelo Discípulo Amado “no
que era seu”, a comunidade (19,27). As outras personagens femininas são descritas
com fina sensibilidade (a samaritana, Marta, Maria de Betânia, agora identificada com
a mulher que ungiu Jesus; e, sobretudo Maria Madalena, presente ao pé da cruz e
primeira ao ver o Ressuscitado e a anunciar a ressurreição).

Espiritualidade dos Gestos e Palavras de Jesus

(01) O Evangelho de João foi escrito para levar seus leitores a acreditar que Jesus
é o Messias, o Filho de Deus. E mais. Para que, crendo nele, tenham vida. A palavra
crer ou acreditar encontra-se 89 vezes neste Evangelho. Só isso nos mostra a
importância que os autores deste escrito lhe conferem. É interessante notar que
nenhuma vez usam a palavra fé, tão comum nos Sinóticos e em Paulo. Isto se deve ao
fato de quererem mostrar que o ato de crer é algo dinâmico, é adesão à pessoa e ao
projeto de vida de Jesus, tendo uma prática consequente. Não é apenas uma questão
intelectual, um aderir a princípios teóricos.
(02) Em João, Jesus quase não prega na forma típica de sentenças e parábolas,
como nos evangelhos sinóticos, mas em grandes diálogos ou discursos, um pouco como
o Moisés do Deuteronômio (sobretudo no discurso da comunidade Jo 14–17). João é,
nitidamente, um evangelho mais reflexivo que os outros. Mas isso não quer dizer que
ele deva ser negligenciado quando tentamos formar uma ideia a respeito da atuação de
Jesus. Mesmo se ele for menos que os outros uma transmissão de fatos particulares, ele
pode estar recordando melhor o sentido profundo daquilo que a atuação de Jesus
revelou: a radical união entre Jesus e Deus e o amor-caridade como critério de nosso
agir. Parece que o evangelho de João reforçou com caneta marcadora os traços
essenciais da pregação apostólica, apagando os detalhes...
(03) O Evangelho de João relê as Teologias da Criação (1,1-3; Gn 1,1-3; Pr 8,22-
31) com a palavra-chave vida, do Êxodo (6,34-35.48.51; Ex 13,3-10) com a palavra-
chave liberdade e da Aliança (2,1-12; Sl 11,30.138.160) com a palavra-chave amor.
Jesus serve-se das alegorias do Bom Pastor (10,1-18) e da Videira (15,1-17). As
comunidades devem permanecer junto à videira para dar frutos. O verbo permanecer
aparece 40 vezes em João, expressa a unidade íntima com o amor de Deus. O
Evangelho pode ser dividido em duas grandes partes salientando os gestos e palavras de
Jesus bem como a concretização de sua vida no Mistério Pascal.
1. Prólogo (1,1-18)

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2. O ministério de Jesus (1,19–11,54)
Livro dos Sinais: a obra de Jesus para a vida no mundo (1,19–11,54). A hora de
Jesus, a sua glorificação na cruz, ainda não chegou (2,4; 7,6.8.30; 8,20).
3. Transição entre o Livro dos Sinais e o Livro da Glória (11,55–12,50).
Aproxima-se a hora de Jesus (11,55; 12,23).
4. A hora de Jesus: A Páscoa do Cordeiro de Deus (13,1–20,31).
Livro da Glória: oferta da própria vida por amor (13,1–20,31). É o grande sinal
ao qual conduzem os sete sinais realizados por Jesus. É a chegada de sua hora (13,1;
16,32; 17,1).
5. Epílogo (Jo 21,1-25)
(04) João utiliza o termo sinais para explicitar os sete milagres especiais que
Cristo realiza em seu Evangelho. Um sinal indica sempre algo; ele tem sempre um
“sentido”, e, por isso, uma leitura rica dessas narrativas envolve a apreensão do sentido
daquilo que Jesus fez. Do mesmo modo que Moisés foi enviado a realizar sinais que
autenticassem sua autoridade profética perante o povo israelita (Ex 4,1-9), Jesus
também foi enviado a fazer as “obras” do Pai que lhe enviou, as quais testificam do seu
anúncio (5,36). No decorrer do Evangelho de João há um entrelaçamento entre ver os
sinais e crer no Filho (2,11.23; 4,48; 6,2.30; 10,24.25.37.38; 11,47s; 12,10s; 20,25.30s).
(05) 1º Sinal – Casamento em Caná (2,1-12): O primeiro sinal de João faz uma
espécie de dobradiça entre o Antigo e o Novo Testamento ressaltando a espiritualidade
dos gestos e palavras de Jesus. A festa de casamento sustenta e unifica os símbolos. O
matrimônio é no AT símbolo frequente do amor de Deus pela comunidade, muitas vezes
personificada em Jerusalém (Is 62,5). No NT, é símbolo da união do Messias com a
Igreja (Ef 32-33.25). As palavras de Maria são um eco do povo fiel: “Faremos tudo o
que o Senhor disse” (Ex 19,8). A água remete a figura de Moisés dada ao povo na
Antiga Aliança e o vinho remete a figura de Jesus, sangue da Nova e Eterna Aliança.
Sem Jesus o casamento com a humanidade é sem vinho (sem alegria). Esse milagre fala
da comunidade (Maria) que nasce da fé em Jesus. Esse milagre significa que Deus
escolhe uma nova comunidade: a Igreja.
(06) O corpo de Jesus é o Novo Templo (2,18-22): Jesus entrega
voluntariamente seu corpo à destruição e à morte, mas depois de três dias voltará a
recuperá-lo glorioso (1Cor 6,19). O corpo de Jesus morto e ressuscitado se transforma
no lugar em que Deus se manifesta o único centro de oração, o verdadeiro templo para
se colocar em contato com Deus. Os judeus tomam a resposta de Jesus ao pé da letra,
por falta de penetração (recurso favorito de João).
(07) Nicodemos deve nascer de novo (3,1-8): Nicodemos se destaca do grupo
fariseu, mas continua ligado a uma espiritualidade simplesmente reformista e
dependente de sinais, por sua compreensão terrena atua de noite (cf. Is 59,9-10; Jo 9,4).
Jesus lhe propõe uma mudança radical: não renovação, mas inovação, “nascer de novo”.
Nascer de novo significa crer em Jesus (1Jo 3,9 5,1.4-5), nos seus gestos e palavras
deixando de lado os velhos paradigmas judaicos. É o Espírito o agente desse novo
nascimento.
(08) Aliança eterna da samaritana (4,4-42): Jesus diante do diálogo com a
samaritana argumenta que é a água viva e o marido perfeito da mulher, simboliza a
Nova e Eterna Aliança esperada pelos habitantes da Samaria. O número de cinco
maridos (v.17-18) alude ao começo da idolatria na Samaria (2Rs 17,33), em cinco povos

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diferentes (Babilônia, Cuta, Ava, Hamate e Sefarvaim) prestavam culto a sete
divindades, além do Senhor.
(09) 2º Sinal – Cura de um filho de um funcionário real (4,46-54): Jesus salva
à distância, mas encontra-se presente em sua Palavra. Há uma contraposição entre as
três vezes que aparece a palavra morte (v.46.47.49) e a palavra vida (v.50.51.53) no
texto. Quem crê na Palavra de Jesus passa da morte para a vida, não no futuro, mas no
próprio momento de crer. O primeiro sinal se insere na plenitude da vida, uma festa de
casamento; o segundo está no limite da vida e da morte, um ponto que não pede muita
elaboração simbólica.
(10) 3º Sinal – Cura de um enfermo na piscina de Betesda (5,1-47): As cinco
colunatas simbolizam os cinco livros da Lei, e com eles os fariseus interpretam,
impõem, controlam, paralisam e excluem os doentes, coxos, cegos e paralíticos das
festas religiosas. Jesus fixa-se num enfermo de 38 anos, o que significa uma geração de
judeus “doentes espiritualmente”. Esse foi o tempo que os judeus ficaram paralisados no
deserto após murmurarem contra Moisés, ressalta-se que esse fato aconteceu quando
existia dois anos de caminhada após a saída do Egito. Jesus devolve à vida esse morto-
vivo pela Palavra curando em dia de sábado. As autoridades judaicas questionam a
novidade de Jesus.
(11) 4º Sinal – Multiplicação dos pães e peixes (6,1-15): esse milagre é relatado
seis vezes nos evangelistas, duas vezes em Marcos e Mateus. Quem apresenta o
alimento para o milagre é um menino, os cinco pães e dois peixes representam o
alimento comprado após um dia de trabalho. A pergunta de Felipe remete a pergunta de
Moisés diante do povo que queria comer no deserto (cf. Nm 11,13). Jesus sabe o que
fazer, diferentemente de Moisés que se dirigiu a Deus apreensivo. Não sabemos se com
os doze cestos alude às doze tribos. Fica claro que não deve desperdiçar o dom de Deus.
(12) 5º Sinal – Jesus caminha sobre o mar (6,16-21): Moisés divide as águas e
atravessa o mar pisando a pé enxuto na libertação do Egito. Jesus supera Moisés
andando sobre o mar (Is 51,10). Jesus acalma os discípulos e não as águas como nos
sinóticos. Pronuncia a fórmula “não temas”, e com a expressão “eu sou” frequente em
mais sete vezes em João. Pode-se chamar esse relato de epifania ou cristofania, porque
manifesta sensivelmente a transcendência de Jesus.
(13) No evangelho de João encontramos um uso distinto de afirmações de Jesus
que começam com “eu sou”. A expressão “Eu Sou” recorda Ex 3,14 e é uma implícita
reivindicação de divindade; ou seja, Jesus é Deus conosco presente na espiritualidade
dos gestos e palavras. Ele é a imagem do Deus invisível (Cl 1,15).
(14) 1º “Eu Sou” – O Pão da Vida (6,35-51): Quando se dizia pão, o judeu
entendia que se tratava do sustento diário. Assim como era o maná no deserto e também
dito na oração do Pai Nosso: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6,11). Somente
Jesus satisfaz a saciedade humana. Os judeus não acreditam e murmuram, lembrando a
atitude do povo no tempo do Êxodo (Ex 16,2; Nm 11,1; 1Cor 10,10). Em João não há o
relato da Eucaristia, mas o v.51 traduz o conceito da Ceia narrada nos Sinóticos.
(14) A mulher adúltera (8,1-11): É um acréscimo posterior e alguns manuscritos
antigos colocam depois de Lc 21,38. O objetivo é acusar Jesus colocando como inimigo
da lei Moisés. Jesus convida os escribas e fariseus a passar da lei que deve ser executada
para a lei que deve ser interiorizada a partir da própria responsabilidade. Os adúlteros na
verdade eram dos dirigentes do povo, denunciados pelos profetas (Ez 16; Os 2).
(16) 2º “Eu Sou” – A Luz do Mundo (8,12-20): A luz é um dos símbolos mais
frequente usados a Deus e ao divino (Sl 27,1). A Palavra ou lei de Deus também é
chamada de luz que orienta o caminho dos obedientes (Sl 119,105, Pv 6,23). Como o

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povo de Deus ia atrás da nuvem luminosa que o guiava (Sb 18,3), assim deve caminhar
o discípulo atrás da luz, deixando-se transformar e iluminar pela presença de Jesus.
(17) 6º Sinal – Cura do cego de nascimento (9,1-41): Jesus olha sobre o cego de
nascença e dá a ele uma nova existência, um novo nascimento comparável ao
nascimento do alto (3,3). A teologia dominante está ultrapassada ao afirmar que as
doenças são castigos e o novo cristão dá testemunho diante das autoridades. Os pais
deste preferem ficar no comodismo da religião judaica e permanecem cegos juntamente
com as autoridades religiosas. A espiritualidade dos gestos e palavras de Jesus implica
adotar uma postura, impossível ficar neutro.
(18) 3º “Eu Sou” – A Porta das Ovelhas (10,7-10): O uso metafórico da porta é
original. As portas interiores e exterior do Templo eram guardadas, permitindo o acesso
somente aos autorizados (Sl 118,20). Também Jerusalém tem uma porta de acesso:
“Abri as portas, para que entre um povo justo” (Is 26,2). Jesus é o único acesso (como a
escada de Jacó 1,51): à casa de Deus, ao Reino de Deus, ao Pai (14,6).
(19) 4º “Eu Sou” – O Bom Pastor (10,11-15): Jesus diante da espiritualidade dos
gestos e palavras denomina-se como o perfeito pastor, aquele que deu a vida
voluntariamente por suas ovelhas. Jesus é bom porque não abandona as suas ovelhas,
contrário do pastor inútil (cf. Zc 11,17). Jesus é o novo Davi, elemento de esperança
escatológica (Ez 34,31). A relação de Cristo com as ovelhas é pessoal. Faz denúncia dos
lobos famintos e pastores interessados e descuidados (Ez 34,2-6), avisa e convida
também aos pastores da Igreja (At 20,28-29; 1Pd 5,1-2).
(20) 7º Sinal – Ressurreição de Lázaro (11,1-54): O sinal definitivo onde Jesus
mostra que tem poder sobre a vida e a morte. A Família de Betânia representa a
Comunidade cristã, formada por irmãos e irmãs, não tem pais. Essa família faz a
experiência da morte. Mas os amigos de Jesus sabem que Ele é a Ressurreição e a Vida,
e que dá a vida plena aos seus. A morte é apenas a passagem para a vida plena. A
Ressurreição de Lázaro é uma prefiguração da Ressurreição de Cristo. O Batismo é um
morrer e ressuscitar com Cristo. O discípulo de Jesus, renascido à Vida no Batismo,
carrega em si o germe da verdadeira Vida.
(21) 5º “Eu Sou” – A Ressurreição e a Vida (11,25-26): Jesus não é somente
aquele que traz novamente a vida, Ele é a Ressurreição e a Vida. A vida para o cristão
não termina com a morte, mas continua eternamente, como uma vida sem fim de
comunhão com Deus. Com a ressurreição tem-se a vitória sobre o último inimigo (1Cor
15,26) e sobre quem tem seu domínio (Hb 2,14). Todas as pessoas, que acreditam em
Jesus como o senhor da ressurreição e da vida, devem lutar para que todos tenham a
vida em abundância (10,10).
(22) Jesus é ungido por uma mulher (12,1-8): A refeição significa a alegria da
ressurreição e a unção evoca o sepultamento de Jesus. A refeição reúne Jesus e Lázaro.
O fato de Lázaro estar ceando na mesa significa que está vivo realmente. O gesto é
surpreendente para os convidados. Uma mulher judia não podia, por decência, soltar os
cabelos em público. Sentado junto de Lázaro, ao qual Jesus chamou para fora do
sepulcro (12,17), Jesus é ungido como se unge um nobre cadáver. Se em 11,53 se diz
que já decidiu sua morte, aqui se anuncia seu sepultamento. O valor de 300 denários do
perfume remete a um ano de trabalho. Há um contraste entre duas figuras: a
generosidade de Maria e a atitude mesquinha de Judas, ladrão e hipócrita.
(23) Jesus é aclamado como Rei (12,12-19): O povo vem para Jesus, cena que
mostra a acolhida de uma pessoa importante. A multidão não traz ramos arrancados das
árvores na caminhada, e sim palmas. No mundo antigo e especialmente atestado nos
documentos judeus, as palmas são sinal de vitória (1Mc 13,51; Ap 7,9). A multidão
entoa o salmo 118,25-26: “Bendito o que vem” a Jerusalém em nome de seu Pai, esse é

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o rei de Israel (v. 13). Jesus entra montado num jumentinho, líder humilde, nada
militarista nem político (Zc 9,9s). Os governadores romanos andavam em carruagens
puxadas por cavalos demonstrando o poder e pompa real, sobretudo na posse de
províncias como foi o caso de Pilatos em Jerusalém.
(24) O Lava-Pés (13,1-20): A espiritualidade dos gestos e palavras é evidente na
perícope do lava-pés. É uma autêntica revolução e revelação de Jesus. O gesto remete a
mulher que ungiu os pés do Senhor e este faz o mesmo com os discípulos. O lava-pés é
uma obra de escravos e não de livres. Segundo Lv 25,39, os judeus não deveriam deixar
que um escravo judeu lavasse os pés. Tal gesto parecia uma indignidade. A cena remete
um serviço de amor até o extremo, o que se concretiza com a paixão e morte de Jesus na
cruz. Pedro ao negar que Jesus lave seus pés está negando também o valor da cruz (Mc
8,31-38). Se o lava-pés remete a cruz, o que o Senhor pede é que o discípulo olhe para a
cruz e imite o gesto de amor Jesus entregando sua vida em serviço de amor até a cruz, e
não que comece a lavar fisicamente os pés.
(25) Testamento do Novo Mandamento (13,31-35): O amor é, antes de tudo,
dom e revelação de Cristo. O preceito do amor é novo, não pelo conteúdo (Lv 19,18.34;
Dt 10,19), mas pela extensão, pelo motivo, pelo exemplo. Deverá ser o distintivo dos
discípulos de Jesus (1Jo 3,14). O texto de despedida é permeado pelo gênero de
testamento. Isso também aconteceu com outros personagens bíblicos: Jacó (Gn 49),
Moisés (Dt 32-33), Samuel (1Sm 12), Davi (2Sm 23; 1Rs 2), Matatias (1Mc 2,49-70) e
Tobias (Tb 14). A espiritualidade dos gestos e palavras está presente aqui onde ajuntam
lembranças e cruzam conselhos. A despedida dá um tom cordial às palavras e um peso
acrescido a instruções e conselhos. No caso de Jesus, a despedida é anômala, porque
não é a última e os discípulos voltarão a vê-lo.
(26) 6º “Eu Sou” – O Caminho, a Verdade e a Vida (14,6-7): O Senhor
indicava o caminho com o fogo ou com a nuvem, ele mesmo guiava o povo por meio do
anjo ou por meio de Moisés (Ex 33,14; Sl 77,21). Jesus não é guia, mas caminho; como
é escada até o céu (1,51), como é porta de entrada (10,7). Por ele vem a verdade da
revelação e a vida que é seu resultado; por ele transitamos rumo ao Pai. É um caminho
autêntico (verdadeiro) e vital, é verdade e vida em caminho. Conhecer quem é ele é
conhecer o Pai (8,19). Vê-lo com os olhos de fé é ver o Pai.
(27) A Verdadeira Paz (14,27-31): A paz era a saudação judaica corrente de
chegada ou despedida (Ex 4,18; Jz 18,6), com frequência simples da palavra
convencional. O mundo defende pazes injustas ou defende a paz com paliativos ou
pronuncia desejos hipócritas. Não é assim a saudação ou despedida de Jesus, os seus
gestos e palavras são espirituais na medida em comunicam vida. O príncipe deste
mundo é o Diabo, Satanás. Não porque ele seja poderoso, mas porque o mundo o segue
voluntariamente. A morte de Jesus não será uma vitória de Satanás, mas cumprimento
do desígnio do Pai, prova de amor e obediência frente a esse mundo hostil. A paz
romana se fazia pelas armas e Pedro também age sim diante do soldado do Templo,
Jesus repreende o discípulo por não ter entendido.
(28) 7º “Eu Sou” – A Videira Verdadeira (15,1-8): A videira é uma das figuras
usadas no AT como a ilustração do povo de Israel (Ez 15,1-6; 17,5-10; 19,10-14; Jr
2,21). Cristo, videira verdadeira, acha-se em relação de oposição, de não validade e
superação do AT. Opõe-se fundamentalmente ao judaísmo, caracterizado em seus
símbolos mais conhecidos. O emblema do Templo de Jerusalém era uma imensa videira
de ouro; a sinagoga de Jâmnia tinha também como emblema de uma videira; as moedas
cunhadas nas duas guerras judaicas traziam uma videira. Os fiéis brotam de Jesus, não
são acrescentados; permanecem unidos a Ele e recebem a seiva de Cristo. A mesma
ideia referida a Deus (2Cor 3,5).

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(29) Entrega de Maria à João (19,25-37): As três Marias e João representam a
parte de Israel fiel a Jesus até o suplício. Jesus recomenda sua mãe a um discípulo leal.
Jesus lhe dá o tratamento de 2,4: “mulher”: chegou a hora então anunciada. A mãe do
rei recebe como nova família, como irmão de Jesus, o discípulo ideal. Maria pode
encarnar a nova Eva que “adquiriu um homem com a ajuda de Deus” (Gn 4,1). Para a
tradição antiga, é a figura da Igreja mãe.
(30) Descrença de Tomé (20,24-29): A segunda aparição de Jesus ressuscitado
remete a prova de sua ressurreição por meio das chagas de seu corpo. O episódio gravita
rumo à profissão de fé feita por Tomé (11,16) e a declaração de Jesus. Tomé se afasta
do grupo dos Doze. É o incrédulo que pede novas provas palpáveis, que crê nos
milagres indubitáveis; que ironicamente, pela sua teimosia, acaba sendo testemunha
excepcional. Serve de aviso para todos os que no futuro terão de crer na Palavra de
Deus.
(31) Pesca abundante e a confirmação de Pedro (21,1-19): O texto é um
acréscimo posterior e nesta terceira aparição de Jesus ressuscitado contempla sete
discípulos. Além das imagens já usadas de pesca e pastoreio, o relato é repleto de
detalhes de alcance simbólico: a noite e a manhã, a rede que não se rompe, nudez e
veste de Pedro, navegação e margem. A pesca abundante é o sinal de que Jesus está
presente com os apóstolos, no qual os 153 peixes representam os discípulos e a
Trindade dobrada sobre si mesma (12x12+3x3). Apesar de não corresponder (filia
v.15s) plenamente (ágape) a intensidade do amor pedida por Jesus, Pedro recebe dele a
tarefa de cuidar das ovelhas, ou seja, dos membros da comunidade. Na terceira vez
pergunta por filia (v.17) e Pedro se cala. Cada um de nós está num processo de amar
como Jesus amou seguindo a espiritualidade de seus gestos.

Introdução ao livro dos Atos dos Apóstolos

O centro do programa dos Atos dos apóstolos está: 1,8. É o livro onde fala
respectivamente do espírito. O mesmo que estava em Jesus e o levou a missão estará
agora com os apóstolos e os levará a continuar a palavra e a ação de Jesus com seu
testemunho. É a continuação do evangelho de São Lucas, que apresenta a viagem de
Jesus para Jerusalém, centro da fé judaica e é o ponto de chegada e de partida do
caminho da Igreja que testemunha o Cristo ressuscitado apesar da cruz em todos os
tempos e lugares. O livro de Atos narra a expansão da fé até Roma, capital do grande
império romano e expressão de que a boa nova havia chegado a todas as nações. Relata o
nascimento da igreja, caracterizada pela caridade e fraternidade entre seus membros, por
seu sentido missionário e dar razão a fé em Jesus Cristo e do poder do Espírito Santo,
anunciando o Kerigma.
O protagonista deste livro é o Espírito Santo. Ele é o Pneuma, inspirador, motor,
animador e presença de Deus entre os primeiros cristãos, como se vê em sua
manifestação sobre os apóstolos (At 2, 1-42), na conversão de Paulo, na unidade da
comunidade da fé, em sua oração, na celebração da Eucaristia e na partilha dos bens.
Existe no livro uma grande riqueza literária da fé, dá ênfase a ação pastoral de Pedro e
Paulo, os dois missionários mais importantes da Igreja primitiva. Relata o primeiro
Concílio da Igreja de Jerusalém na qual decidiu a aceitação dos pagãos convertidos a
Cristo sem deles exigir que se tornassem judeus praticantes At 15, 1-35.
O autor segundo a tradição é Lucas, discípulo de Paulo. Foi datado mais ou menos
em 63 d. C (depois de Cristo), direcionado aos cristãos de segunda geração, de origem
judaica e pagã representados por Teófilo (o nome significa: Amigo de Deus). Segundo

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São Jerônimo (Traduziu a Bíblia para o latim, chamada Vulgata), diz que os Atos dos
apóstolos foram escrito em Roma na língua grega quando Lucas estava ao lado de Paulo
prisioneiro. Importante ressaltar que Atos é a segunda parte da obra que deve ser lida em
conjunto: sua primeira parte é o evangelho de Lucas. Ler o livro Lc 1, 1-8 e comparar
com At 1, 1-4. Assim como o evangelho apresenta o caminho de Jesus à Jerusalém como
já repetimos, Atos apresenta o carinho da Igreja e juntos formam o caminho da salvação.
Em Lucas 6,16 é oferecido uma visão profunda do que é esta salvação que se
realiza durante a história de maneira gradual e pedagógica. Podemos citar três etapas:

ANTIGO TESTAMENTO JESUS ATOS DOS APÓSTOLOS


Promessa e espera do reino Chegada e concretização Difusão do reino no mundo
do PAI do reino no FILHO inteiro pelo Ruah:
ESPÍRITO SANTO

O livro em si pode ser dividido em dua partes: uma que é marcada pela pessoa de
Pedro (At 1 a 12) e a outra por Paulo (At 13 a 28). Pedro leva o evangelho de Jerusalém à
Judeia e à Samaria, chegando até a conversão marcante do primeiro pagão batizado,
Cornélio (At 10, 1-11), o que abriu a porta da Igreja para aqueles que não judeus.
Divisão simples para uma noção geral do livro:
ATOS DOS APÓSTOLOS
Divisão Conteúdo
1, 1-5,42 A Igreja em Jerusalém
6,1-12,25 De Jerusalém a Antioquia
13,1-28,31 De Antioquia a Roma

Na primeira parte (Evangelho), que narra os atos e ensinamentos de Jesus até sua
ascensão, e os discípulos devem ser suas testemunhas. Escreve os Atos dos Apóstolos
(80 e 85 d.C.), se refere ao segundo livro, continua o percurso salvífico cujo centro é a
morte e ressurreição de Jesus, prolonga na Igreja primitiva. Escreve a Teófilo “amigo
de Deus” (Lc 1,3), preocupa-se: pobres, mulheres, pecadores públicos.
É importante destacar o conjunto temático para uma melhor localização tanto
geográfica como teológica (Teologia: estudo da revelação de Deus). Assim divide-se em
cinco partes, para organizar nossa leitura espiritual.

I. Origens da Igreja de Jerusalém (1,1-5,42). Início da primeira comunidade


cristã, ainda ligada às estruturas do judaísmo (Templo e Lei). Estrutura e
dinamismo da vida da primeira comunidade. Primeiras perseguições.
II. Perseguição e missão: de Jerusalém a Antioquia (6,1-12,25). Missão na
Samaria, Judéia, e Síria. Conversão de Paulo e perseguição de Pedro.
III. Primeira viagem missionária e Concílio de Jerusalém (13,1-15,35). Paulo e
Barnabé entre os judeus que vivem fora da Palestina (diáspora). Conversão
dos pagãos. Problemas com a Igreja de Jerusalém e primeiro concílio.
Separação entre cristianismo e judaísmo.
IV. Grandes viagens missionárias: fundação das Igrejas na Grécia/Ásia (15,36-
20,38). Novas comunidades entre pagão: Filipos, Tessalônica, Beréia,
Corinto, Éfeso. Confronto com a cultura Grega. Confronto com as
autoridades e estruturas do império.

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V. Paulo prisioneiro de Cristo: de Jerusalém a Roma (21,1-28,31). Captura e
prisão de Paulo m Jerusalém e Cesaréia. Acontecimentos alternados do
processo. Viagem a Roma. Paulo permanece preso, mas o Evangelho
continua a se difundir.
Faz se esta divisão para articular um caminho a fim de situar-se de modo mais
profundo na leitura. Toda estruturação é interpretativa do autor, nunca é imutável, mas
interpretativa. Com isso a razão da escrita de Atos é a era do espírito que leva-nos a
nossa maior vocação: Ser Santo. Nos primeiros séculos da Igreja experimentamos a
coragem dos discípulos de não ceder às perseguições e imitar Jesus pela entrega de suas
vidas a martiria, palavra grega quem se traduz por testemunha. Ser testemunha é
justamente representar, responder em nome de, defender aquele na qual estou
representando com: argumentos e atitudes.
Assim a espiritualidade soa Atos consiste no martírio. “O sangue dos mártires é a
semente dos cristãos” (Tertuliano, Apologético, 50,13). Cito ainda: “O martírio é o
supremo testemunho dado em favor da verdade da fé; designa um testemunho que vai
até à morte. O mártir dá testemunho de Cristo, morto e ressuscitado, ao qual está unido
pela caridade. Dá testemunho da verdade da fé e da doutrina cristã. Suporta a morte com
um ato de fortaleza. ‘Deixai-me ser pasto das feras, pelas quais poderei chegar à posse
de Deus” (Santo Inácio de Antioquia, Epistula ad Romanos, 4, 1: SC 10bis, p. 110
Funk, 1, 256).

Espiritualidade Paulina

O ponto central do ensinamento de São Paulo sobre a mensagem do cristianismo


para toda a humanidade é a herança da tradição religiosa do AT cuja transmissão para a
posteridade fica a cargo da religião cristã, e não do judaísmo ou de quaisquer
movimentos de religiosidade. A espiritualidade paulina consiste em despojar-se do
homem velho é praticar a renúncia à concupiscência (inclinação para o Mal) da natureza
humana; e revestir-se do homem novo pelo Batismo, ou seja, unir-se a Jesus Cristo pela
Eucaristia e por ele a Deus, amando-O e ao próximo.
Na aparição em Damasco, Paulo experimentou Cristo como um poder que o
empregava a seu serviço.Assim pode e deve o Apóstolo dar de continuo testemunho de
que Jesus é o Senhor, cuja glória e poder dominador experimentou. Por intermédio de
Annanias e por ocasião de sua visita a Jerusalém, foi ele introduzido na doutrina de
Cristo dos primeiros cristãos. Esta aparece tanto em suas alocuções relatadas nos Atos,
como em suas cartas, por exemplo, no princípio da carta aos Romanos, em 1Cor 15 e
também no seu hino a Cristo da carta aos Filipenses. Assim Paulo é uma testemunha da
tradição e ao mesmo tempo um teólogo que reflete sobre ela e a desenvolve.
Paulo, não conheceu Jesus segundo a carne, contudo testifica que o Filho de
Deus enviado no tempo nasceu de uma mulher (Gl 4, 4) e, portanto, é um homem um
judeu, e está sujeito a lei. Ponto central da pregação de paulina é a crucificação e a cruz
de Jesus Cristo (Gl 1, 3; 1Cor 2, 2).
É em Paulo, que encontramos a Cristologia mais desenvolvida do cristianismo
primitivo; no entanto o título de “Filho do Homem” não aparece em seus escritos – ao
menos na forma em que nos é familiar nos Evangelhos. Das duas noções judaicas que
tem suas raízes comuns na ideia de “primeiro homem”, Paulo parece não ter
conhecimento senão aquela que se refere a Adão. Com efeito, é especialmente neste
aspecto do problema que Paulo se interessa.

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Paulo se concentra primordialmente no homem celestial encarnado, no
“segundo Adão”. É que Paulo pode olhar para trás, em direção ao “Filho do Homem”
que já apareceu. Porém, dá grande importância à relação entre o Encarnado e o “último
homem” que há de vir no fim dos tempos. Vê-se isto claramente nas passagens de 1Cor
15, 45ss.
Paulo trouxe a solução cristã ao problema judaico da relação entre o Filho do
Homem e Adão, de maneira totalmente em acordo com a consciência que Jesus tinha de
si mesmo. O elemento absolutamente novo é que, antes de tudo, o Filho do Homem se
vê identificado com um homem histórico que viveu sobre a terra em um momento
determinado da história do mundo. Portanto já não se trata do eterno retorno do homem
celestial, ensinado por certos meios judeus-cristãos, nem tão pouco do mito gnóstico da
descida à terra de um ser celestial disfarçado de homem.
“Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa
fé… ainda estais nos vossos pecados” (1 Cor 15, 14.17). Com estas fortes palavras da
primeira Carta aos Coríntios, São Paulo faz compreender que importância decisiva ele
atribui à ressurreição de Jesus. De fato, neste acontecimento está a solução para o
problema apresentado pelo drama da Cruz. Sozinha, a Cruz não poderia explicar a fé
cristã. Aliás permaneceria uma tragédia, indicação do absurdo do ser. O mistério pascal
consiste no fato de que aquele Crucificado “ressuscitou ao terceiro dia segundo as
Escrituras (1 Cor 15, 4) assim afirma a tradição protocristã. Encontra-se aqui o fecho da
abóbada da cristologia paulina:  tudo gira em volta deste centro gravitacional. Todo o
ensinamento do apóstolo Paulo parte do e chega sempre ao mistério d’Aquele que o Pai
ressuscitou da morte. A ressurreição é um acontecimento fundamental, quase um
axioma prévio (cf. 1 Cor 15, 12), com base no qual Paulo pode formular o seu
anúncio (querigma) sintético:  Aquele que foi crucificado, e que assim manifestou o
amor imenso de Deus pelo homem, ressuscitou e está vivo entre nós.
É importante compreender o vínculo entre o anúncio da ressurreição, do modo
como Paulo o formula, e o que é usado nas primeiras comunidades cristãs pré-paulinas.
Nele pode-se ver a importância da tradição que precede o Apóstolo e que ele, com
grande respeito e atenção, deseja por sua vez transmitir. O texto sobre a ressurreição,
contido no cap. 15, 1-11 da primeira Carta aos Coríntios, realça bem o nexo entre
“receber” e “transmitir”. São Paulo atribui muita importância à formulação literal da
tradição; no final do trecho em questão ressalta:  “Tanto eu como eles, eis o que
pregamos” (1 Cor 15, 11), dando assim relevo à unidade do querigma, do anúncio para
todos os crentes e para todos os que anunciarem a ressurreição de Cristo. A tradição à
qual se refere é a fonte da qual haurir. A originalidade da sua cristologia nunca é em
desvantagem da fidelidade à tradição. O querigma dos Apóstolos preside sempre à
reelaboração pessoal de Paulo; qualquer sua argumentação parte da tradição comum, na
qual se expressa a fé partilhada por todas as Igrejas, que são uma só Igreja. E assim São
Paulo oferece um modelo para todos os tempos sobre como fazer teologia e como rezar.
O teólogo, o pregador não cria novas visões do mundo e da vida, mas está ao serviço da
verdade transmitida, ao serviço do facto real de Cristo, da Cruz, da ressurreição. A sua
tarefa é ajudar-nos a compreender hoje, segundo as antigas palavras, a realidade do
“Deus conosco”, portanto a realidade da verdadeira vida.
É oportuno esclarecer:  São Paulo, ao anunciar a ressurreição, não se preocupa
em apresentar uma exposição doutrinal orgânica não quer escrever um manual de
teologia mas enfrenta o tema respondendo a dúvidas e perguntas concretas que lhe eram
apresentadas pelos fiéis; portanto, um discurso ocasional, mas cheio de fé e de teologia
vivida. Nele encontra-se uma concentração sobre o essencial:  nós fomos “justificados”,
ou seja, tornados justos, salvos, pelo Cristo morto e ressuscitado por nós.

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Sobressai antes de tudo o fato da ressurreição, sem o qual a vida cristã seria
simplesmente absurda.
Naquela manhã de Páscoa aconteceu algo de extraordinário, de novo e, ao
mesmo tempo, de muito concreto, marcado por sinais muito claros, registrados por
numerosas testemunhas. Também para Paulo, como para os outros autores do Novo
Testamento, a ressurreição está ligada ao testemunho de quem fez uma experiência
direta do Ressuscitado. Trata-se de ver e de sentir não só com os olhos ou com os
sentidos, mas também com uma luz interior que estimula a reconhecer o que os sentidos
externos afirmam como dado objetivo. Portanto, Paulo como os quatro Evangelhos dá
importância fundamental ao tema das aparições, as quais são a condição fundamental
para a fé no Ressuscitado que deixou o túmulo vazio. Estes dois fatos são
importantes:  o túmulo está vazio e Jesus apareceu realmente. Constituiu-se assim
aquela cadeia da tradição que, através do testemunho dos Apóstolos e dos primeiros
discípulos, chegará às gerações sucessivas, até nós.
A primeira consequência, ou o primeiro modo de expressar este testemunho, é
pregar a ressurreição de Cristo como síntese do anúncio evangélico e como ponto
culminante de um itinerário salvífico. Paulo faz isto em diversas ocasiões:  podem-se
consultar as Cartas dos Atos dos Apóstolos onde se vê sempre que o ponto essencial
para ele é ser testemunha da ressurreição. Gostaria de citar só um texto:  Paulo, feito
prisioneiro em Jerusalém, está diante do Sinédrio como acusado. Nesta circunstância na
qual está em questão para ele a morte ou a vida, ele indica qual é o sentido e o conteúdo
de toda a sua pregação:  “É pela nossa esperança, a ressurreição dos mortos, que estou a
ser julgado” (At 23, 6). Paulo repete continuamente nas suas Cartas esta mesma frase
(cf. 1 Ts 1, 9 s.; 4, 13-18; 5, 10), nas quais faz apelo também à sua experiência pessoal,
ao seu encontro pessoal com Cristo ressuscitado (cf. Gl 1, 15-16; 1 Cor 9, 1). Mas
podemos perguntar-nos:  qual é, para São Paulo, o sentido profundo do acontecimento
da ressurreição de Jesus? Que nos diz, à distância de dois mil anos? A afirmação “Cristo
ressuscitou” é atual também para nós? Por que a ressurreição é para ele e para nós hoje
um tema tão determinante? Paulo responde solenemente a esta pergunta no início
da Carta aos Romanos, onde começa referindo-se ao “Evangelho de Deus… que diz
respeito a seu Filho, nascido da estirpe de David segundo a carne, estabelecido Filho de
Deus com poder pela sua ressurreição dos mortos” (Rm 1, 3).
Paulo sabe bem e diz muitas vezes que Jesus era Filho de Deus sempre, desde o
momento da sua encarnação. A novidade da ressurreição consiste no fato de que Jesus,
elevado da humildade da sua existência terrena, é constituído Filho de Deus “com
poder”. O Jesus humilhado até à morte de cruz pode agora dizer aos Onze:  “Foi-me
dada toda a autoridade sobre o céu e sobre a terra” (Mt 28, 18). Realiza-se o que diz
o Salmo 2, 8:  “Pede, e eu te darei as nações como herança”. Começa, portanto, com a
ressurreição o anúncio do Evangelho de Cristo a todos os povos começa o Reino de
Cristo, este novo Reino que não conhece outro poder a não ser o da verdade e do amor.
A ressurreição e a extraordinária estrutura do Crucificado. Uma dignidade
incomparável e elevadíssima:  Jesus é Deus! Para São Paulo a identidade secreta de
Jesus, ainda mais do que na encarnação, revela-se no mistério da ressurreição. Enquanto
o título de Cristo, isto é, de “Messias”, “Ungido”, em São Paulo tende a tornar-se o
nome próprio de Jesus e o do Senhor especifica a sua relação pessoal com os crentes,
agora o título de Filho de Deus ilustra a íntima relação de Jesus com Deus, uma relação
que se revela plenamente no acontecimento pascal. Pode-se dizer, portanto, que Jesus
ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos (cf. Rm 14, 9; 2 Cor 5, 15) ou, por
outras palavras, o nosso Salvador (cf. Rm 4, 25).

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Tudo isto está repleto de importantes consequências para a nossa vida de fé:  nós
somos chamados a participar até ao íntimo do nosso ser em toda a vicissitude da morte e
da ressurreição de Cristo. Diz o Apóstolo:  “morremos com Cristo” e cremos que
“viveremos com Ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado de entre os mortos, já
não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele” (Rm 6, 8-9). Isto traduz-se numa
partilha dos sofrimentos de Cristo, que anuncia aquela plena configuração com Ele
mediante a ressurreição pela qual aspiramos na esperança. E o que aconteceu também a
São Paulo, cuja experiência pessoal é descrita nas Cartas com tons tão prementes
quanto realistas:  “para conhecê-lo, conhecer o poder da sua ressurreição e a
participação nos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte, para ver se
alcanço a ressurreição de entre os mortos” (Fl 3, 10-11; cf. 2 Tm 2, 8-12).
A teologia da Cruz não é uma teoria é a realidade da vida cristã. Viver na fé em
Jesus Cristo, viver a verdade e o amor obriga a renúncias todos os dias, a sofrimentos. O
cristianismo não é o caminho do conforto, mas antes uma escalada exigente, mas
iluminada pela luz de Cristo e pela grande esperança que nasce d’Ele. Santo Agostinho
diz:  “Aos cristãos não é poupado o sofrimento, aliás, a eles cabe um pouco mais,
porque viver a fé expressa a coragem de enfrentar a vida e a história mais em
profundidade. Contudo só assim, experimentando o sofrimento, conhecemos a vida na
sua profundidade, na sua beleza, na grande esperança suscitada por Cristo crucificado e
ressuscitado”. Portanto, o crente encontra-se situado entre dois polos:  por um lado, a
ressurreição que de certa forma já está presente e ativa em nós (cf. Cl 3, 1-4; Ef 2, 6);
por outro, a urgência de se inserir naquele processo que leva todos e tudo à plenitude,
descrita na Carta aos Romanos com uma imagem ousada:  assim como toda a criação
geme e sofre como que dores de parto, também nós gememos na expectativa da
redenção do nosso corpo, da nossa redenção e ressurreição (cf. Rm 8, 18-23).
Em síntese, podemos dizer com Paulo que o verdadeiro crente obtém a salvação
professando com a sua boca que Jesus é o Senhor e crendo com o seu coração que Deus
ressuscitou dos mortos (cf. Rm 10, 9). É antes de tudo importante o coração que crê em
Cristo e na fé “toca” o Ressuscitado; mas não é suficiente trazer a fé no coração,
devemos confessá-la e testemunhá-la com a boca, com a nossa vida, tornando assim
presente a verdade da cruz e da ressurreição na nossa história. Assim, de fato, o cristão
insere-se naquele processo graças ao qual o primeiro Adão, terrestre e sujeito à
corrupção e à morte, vai-se transformando no último Adão, o celeste e incorruptível
(cf. 1 Cor 15, 20-22.42-49). 

Cartas Católicas

As cartas católicas do segundo testamento são as seguintes: Tiago; 1 e 2 Pedro;


1,2 e 3 João e Judas. As epístolas do novo testamento são de autoria incerta, mas têm
sido atribuídas as figuras bem conhecidas da Igreja Primitiva: o apóstolo Pedro, o
apóstolo João, filho de Zebedeu e Judas irmão de Jesus. A primeira das duas cartas de
Pedro é escrita a comunidades espalhadas por uma vasta área da Ásia Menor, 
mencionadas como "exilados da dispersão" 1Pd 1,1; são judeus que viviam fora da
Palestina.  Se realmente é de Pedro, fornece evidência de sua atividade missionária, da
qual pouco se lê em outras partes do novo testamento. Ela também daria à sustentação a
versão muito antiga de que ele foi martirizado durante uma visita, não registrada de
outro modo, a Roma.  Alguns discordam, porém que o grego literário da carta é
sofisticado demais para alguém que começou a carreira como pescador Galileu por isso
não refuta, porém, autoria de Pedro, já que seu estilo pode ter sido corrigido pelo escriba
Silvano, ou Silas que na verdade registrou o texto 1Pedro 5,12.

47
Além disso, Pedro havia há muito tempo deixado seu primeiro ofício para trás ao
compor a carta.
A carta é escrita para estimular os cristãos que evidentemente se sentiam isolados
no ambiente hostil, onde eram estranhos e exilados 1Pd 2,11. Tinham sofrido
perseguição dos vizinhos e das autoridades civis, que “se surpreendem de que não vos
junteis mais a eles no excesso da dissipação" 1Pd 4,4.  Indicam a Perseguição do ataque
geral do Estado Romano, o autor poderia estar se referindo a perseguição feita pelo
Imperador Nero em 64 d.C., a qual se diz que o próprio Pedro morreu. Alguns eruditos
supõe que o autor viveu bem depois de Pedro, na época da perseguição de 112 d.C na
Ásia menor, sobre o Imperador Trajano (98-117 d.C). Em vista de suas provações Pedro
exorta aos leitores a levar uma vida que não de Margem a ofensas, a manter-se unidos e
amar uns aos outros mesmo em face de outros ataques. Eles são instados a seguir Jesus,
apresentado como a figura do servo sofredor no livro de Isaías. Pedro lhes assegura que
suas aflições não durarão muito, pois Cristo logo voltará 1Pedro 1,5-6.
É amplamente aceito que 2Pedro não é do apóstolo, mas um dos muitos textos
produzidos pela Igreja Primitiva e deliberadamente atribuídos a um de seus famosos
fundadores. Ele reflete a situação que só surgiu após a morte de Pedro, que o
cristianismo enfrentou ao passar de um ambiente judaico para o outro
predominantemente Gentio. Não há consenso geral quanto a sua data, embora 2Pedro
3,4 diga que os falsos Mestres que negam Cristo foram condenados pela primeira vez
muito tempo atrás; isto implica que a carta foi escrita após a primeira geração de
cristãos, em 80-90 d.C ou depois. A referência as cartas de Paulo como escrituras
também indica que segunda Pedro foi escrita após a morte de Paulo que ocorreu talvez
em 60-65 d.C e, portanto provavelmente também depois da morte de Pedro.
A obra começa com uma saudação padrão usada nas cartas da época. Toma
também a forma de testamento de despedida, gênero comum da literatura Judaica.
Tipicamente, esses textos apresentavam pretensos pensamentos finais de figuras
bíblicas. Com o estilo desses testamentos, 2Pedro dá a entender que foi escrito numa
época em que o apóstolo considerava a morte eminente 2Pedro 1,14. Ele incluiu um
resumo de seus ensinamentos, bem como uma mensagem final que denuncia
amargamente a obra de falsos Mestres 2Pedro 2,1-3. Esses Mestres parecem ter sido
pessoas que desejavam livrar o cristianismo de certos traços, em particular a esperança
apocalíptica da volta de Jesus 2Pd 3,3.  O autor explica que a segunda vinda sua parece
demorar de um ponto de vista humano, pois "com o Senhor um dia é como mil anos , e
mil anos como um dia Segunda Pedro 3,1-8.  Dá tempo aos pecadores para arrepender-
se segunda Pedro 3,9.
Uma razão para ver segunda Pedro como obra relativamente tardia é o uso que faz
da carta de Judas, por exemplo, comparar segunda Pedro 2,1 18 e Judas 4-13; o autor de
Judas descreve a si próprio como irmão de Thiago, em geral entendido como Thiago,
irmão de Jesus.  Fosse ou não outro dos irmãos de Jesus, embora estudiosos afirmem
que a palavra irmão da época também significava parente próximo, Judas quase
certamente tinha origem Cristã Judaica e Palestina. Não é uma carta de verdade, mas um
tratado geral, devotado a combater os ensinamentos sobre os falsos que teriam infectado
na comunidade cristã.
Esses ensinamentos não são claramente descritos, mas envolve comportamento
licencioso, Judas 4,7 e desrespeito aos anjos v. 8.  A polêmica contra falsos
ensinamentos se baseia nas escrituras, e mais na Bíblia Hebraica que na Septuaginta
grega. Judas vê episódios bíblicos em que Deus pune seus oponentes vv. 5,7 e 11 como
profecias do destino que espera os heréticos e sua própria época. Familiarizado com
obras apocalípticas judaicas da Palestina e Cita uma delas, o

48
primeiro livro de Enoque familiarizado com obras apocalípticas judaicas da Palestina e
Cita uma delas, o primeiro livro de Henoc 14,15, além de se referir a uma lenda sobre 
morte de Moisés que pode ter sido no passado o final da obra “O testamento de Moisés”
v. 9.  
As três cartas tradicionalmente atribuídas ao autor do quarto Evangelho não
possuem pistas reais de sua autoria e origem: 1João é anônima, e o autor das outras
cartas só se descreve como “ancião”. As três compartilham temas e vocabulário e foram
creditadas a João devido às muitas semelhanças com seu evangelho. O início de 1João
lembre o prologo do evangelho; termos importantes dele, como: vida, luz e amor, se
destacam nas cartas, em especial 1João; que é muito mais longa que as outras duas e
aborda os que negam que Jesus “veio na carne” 1João 4,2. Isso parece antecipar a
heresia docética, do século II, que sustentava que o corpo de Cristo era apenas aparente
e não real. 1João afirma que a humanidade completa e real e defende que a Igreja seja
um corpo harmonioso, unida pelo amor mútuo.
Ambos os temas são também enfatizados em 2João, que se dirige à Igreja
personificada como a “dama eleita”. Ele se liga a 3João pelo autor comum, “o ancião”,
embora a terceira carta seja escrita a um indivíduo chamado Gaio, para quem se solicite
que dê aos emissários do ancião a hospitalidade recusada por Diótrefes, o líder da
congregação à qual tinha sido mandados.

Apocalipse

O autor se autonomeia João e diz que recebeu a revelação na ilha de Patmos, onde
afirma ter sido preso “devido à palavra de Deus e ao testemunho de Jesus”. Patmos é
conhecida por ter sido usada pelos Romanos como colônia penal. O apocalipse começa
com as cartas individuais as sete congregações da província romana da Ásia, em frente à
ilha de Patmos. Com exceção da grande igreja de Éfeso, fundada por Paulo, a vida cristã
nessas cidades  só é descrita em detalhes deste livro do novo testamento. Todas eram
centros administrativos importantes que são relacionadas do sul para norte e então de
volta, fechando o círculo. Seja como for, o número 7 é um símbolo de perfeição e
completude, que busca representar toda a igreja. Assim, às  sete  cartas, embora
dirigidas cada uma a uma congregação, são destinadas também a todas as igrejas.
O autor mostra bom conhecimento do cenário e das tradições de cada cidade
particular e tem uma mensagem específica para cada congregação cristã. Três das
igrejas são alertadas conta falsos mestres, descritos como nicolaítas.  Pouco se fala
sobre seus vícios, mas eles são associados à Balaão e Jezabel e acusados de defender a 
licenciosidade  sexual e o consumo de alimentos sacrificados a ídolos, problemas que
também foram enfrentados por Paulo. A referência a Pérgamo como local "onde Satanás
está entronizado" pode ser um aviso contra adoração ao imperador: Pérgamo foi o
primeiro centro deste culto na Ásia Menor. Mas o quadro geral é de grupos
razoavelmente pacíficos e bem estabelecido que estão, no entanto, em risco de se
acomodar e de sucumbir às tentações de seu ambiente religioso e social.
A Igreja primitiva acreditava que o apocalipse foi escrito durante o reinado do
imperador romano Domiciano 81-96 d.C. Domiciano certamente insistia da divindade
da linhagem imperial, e o culto ao imperador, supremo objeto de ataque no Apocalipse,
era universal na Ásia  Menor em sua época.  No entanto é muito duvidoso que
Domiciano, como se pensa com frequência, perseguisse os cristãos que se recusaram a
adorá-lo, ao menos em larga escala. Os ataques a fiéis mencionados nas cartas às  sete
Igrejas são atribuídas à hostilidade judaica, não aos romanos. A descrição de Nero a

49
"besta", reflete a difundida lenda de que ele não morreu na verdade em 68 d.C; mas
estava prestes a voltar do oriente com grande exército. Em geral, o autor parece
apresentar eventos futuros em termos do passado: a descrição do ataque gentil a
Jerusalém talvez remeta a guerra judaica de 66-74 d.C. A lista de 7 reis, dos quais 5
cairão Ap 17,9-10, pode ligar nessas condições caóticas do Império Romano após a
morte de Nero (houve cinco imperadores em ano). Assim, o reinado de Domiciano e as
condições da Ásia Menor na época se mantêm como pano de fundo provável para o
Apocalipse.

Observe que as partes em negrito nestes versículos referem-se ao Império


Romano
• BABILÔNIA - o nome da capital do poderoso império Babilônico, que sucumbiu ao
império Persa, era com frequência substituída por Roma, a capital do império Romano.
Era um lembrete de que Roma certamente sucumbiria como acontecera com Babilônia.
• Embriagada com o sangue dos santos - Inúmeros imperadores Romanos promoviam
grandes espetáculos, ocasião em que o sangue de grande número de cristãos era
derramado.
• As sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada - A cidade de
Roma se estendia por sete colinas.
• A grande cidade que domina sobre os reis da terra - no período em que o Novo
Testamento foi escrito, Roma dominava sobre os inúmeros reinos que conquistara ao
redor do mar Mediterrâneo. A melhor data para se colocar o livro de Apocalipse são os
últimos anos do primeiro século do Cristianismo. O contexto é a Ásia Menor (Turquia
Ocidental).

Temos bom conhecimento da situação:


• Judeus e pagãos imaginavam que os féis seguidores de Jesus diziam: “Somos melhores
que vocês!”
• O imperador de Roma tentava aplicar o culto ao imperador, lei esta que os cristãos não
podiam cumprir.
• Ambas as situações levaram o povo de Deus à morte, ao exílio e à extorsão de seus
bens.
• A perseguição aconteceu na Ásia Menor porque o Cristianismo ali era mais forte.
• Com episódios horrendos acontecendo, os cristãos começavam a perguntar: “Será que
Deus perdeu o poder?”
Apocalipse é Deus desvendando Sua resposta a esta situação. Leia Apocalipse 1.1, 4, 9
e 22.8.
• João era um cristão judeu que residira na Galileia.
Era opinião unânime na igreja Primitiva de que o autor de Apocalipse era João, o
apóstolo.

Saiba mais sobre: alguns Imperadores Romanos


Mais dados sobre alguns imperadores Romanos:
*Julio César - líder romano que procurou transformar a República Romana em
Império.
*César Augusto - Imperador na época do nascimento de Jesus.
Tibério - Imperador na época da morte e ressurreição de Jesus.
*Nero - Nos dias de João, muitos romanos temiam que Nero fosse ressuscitar dentre os
mortos e retornar do exílio com uma multidão vinda do leste para atacar o Império.

50
Alguns estudiosos entendem que João faz referência a essa lenda em Apocalipse 13.3.
Domiciano - primeiro imperador a decretar perseguição aos cristãos em todo o império.
Inúmeras interpretações (maneiras de ler o livro) têm sido dadas:
INTERPRETAÇÃO FUTURISTA
• Os Futuristas dizem que Apocalipse fala apenas para o fim dos tempos.
• No fundo eles ignoram a Igreja do primeiro século.
• Prestam pouca atenção aos princípios de interpretação bíblica.
INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA
• Os Historicistas afirmam que Apocalipse é uma linha reta da história da igreja
estendendo-se do primeiro século ao tempo presente.
• Historicistas em geral se preocupam apenas com a história da Europa Ocidental.
INTERPETAÇÃO PRETÉRITA
• Os Preteristas afirmam que Apocalipse quase sempre diz respeito apenas ao primeiro
século.
• Os Preteristas afirmam que Apocalipse tem pouco a dizer sobre a parusia (Segunda
Vinda de Cristo), o fim do mundo e o juízo final.
INTERPRETAÇÃO IDEALISTA
• Os Idealistas entendem que Apocalipse não se prende a um contexto histórico, mas é
relevante para todos os tempos.
• Idealistas entendem que as sete igrejas são símbolos das igrejas em todos os tempos.
• Idealistas dizem também que Apocalipse trata de problemas enfrentados por igrejas
em todas as eras.
INTERPRETAÇÃO DRAMÁTICA
• Esta interpretação sustenta que Apocalipse é um drama cósmico que descreve
princípios eternos.
• Assim sendo, quem está certo? Considere o seguinte:
• Apocalipse foi escrito para ajudar o povo de Deus a ter coragem num mundo
pecaminoso.
• Apocalipse aplicou-se de forma especial às igrejas do primeiro século e o será para
aquelas dos tempos do fm.
• Como se pode ver, Apocalipse é pertinente a todos os cristãos e dá a certeza da vitória
final de Deus na vida do Seu povo e do mundo.
• A melhor forma de entender Apocalipse é imaginá-lo um pneu que gira em torno de si
e ao mesmo tempo se move para frente.
OS SÍMBOLSEUS SIGNIFICADOS
Números:
• 3½ (metade de 7)- período de tempo definidamente limitado.
• 4 significa o mundo criado
• 6 significa imperfeição (isto é, desejando ser como 7 - o número de Deus - mas
incapaz de)
• 666 é uma intensificação de 6 significando o pior mal que possa existir (em
Apocalipse 12-13, João retrata o mal como trio antitrinitário que atua contra o povo de
Deus. Esta tríade é formada pelo “dragão” (ou seja, Satanás), a “primeira besta a subir
do mar” (isto é, o amplo poder político como o dos imperadores romanos que
perseguiam a Igreja) e “a segunda besta subindo da terra” (ou seja, falsos profetas que
emergem de dentro da Igreja). A tripla unidade - 666 - pode representar os membros
deste trio antitrinitário, cada um tentando ser como a Santíssima Trindade.)
• 7 significa as obras que apenas Deus pode fazer e efetivamente faz ou fez.
• 10 significa tudo de
• 1000 significa tudo, absolutamente tudo de

51
• 12 é empregado para povo de Deus - as 12 tribos no Antigo Testamento, 12 apóstolos
no Novo Testamento
• 144 é uma combinação de 12s (12 x 12) e 10s (10 x 10 x 10) significa todo,
absolutamente todo o povo
de Deus nos tempos do Antigo e do Novo Testamento.
• A adição de dois números juntos significa que ambos são tidos como o resultado
• O quadrado ou o cubo de um número intensifica seu significado (isto é, se 10
significa tudo de, então
1000 significa tudo, absolutamente tudo de...)

O código do Apocalipse

Dragão Diabo
Candelabros Igrejas
Incenso Orações
Branco Vitória
Preto Fome
Amarelo Morte
Espada / boca de Jesus Palavra de Deus

Cores:
• preto é fome
• amarelo é morte
• branco é vitória

Objetos:
• Armagedom - no Apocalipse significa literalmente a montanha de Megido, nome
simbólico para a batalha final entre Deus e as forças do mal
• Babilônia - representa Roma e seus imperadores que perseguiram os cristãos
• Livro ou pergaminho - é o registro celeste
• Tigelas - carregam coisas do céu à terra e vice-versa.
• Dragão - representa o diabo
• Olho - é símbolo para conhecimento
• Gogue e Magogue - representam a totalidade do mundo anticristão
• Meretriz - prostituta ou “fornicadores” representam pessoas de dentro da Igreja que
deveriam ser féis ao
Senhor e sua Palavra, ou seja, eles são os “falsos profetas”
• Virgem - cristãos féis que se recusam a cultuar outra coisa que não a Trindade
• Chifres - representam poder, como os chifres de um animal
• Incenso - é a oração
• Jóias - representam glória
• Candelabros - são as igrejas
• Terra representa as religiões não-cristãs organizadas
• Água viva - equivale à vida e verdade
• Mar - representa governo humano maléfico
• Selos - designam algo como propriedade privada. Na antiguidade, porções de argila
pressionadas por anéis
de sinete ou selos cilíndricos eram usadas para atestar propriedade. Para selar um
52
pergaminho, uma porção
de argila era colocada sobre os barbantes que amarravam o pergaminho e depois
carimbada.
• Água - estagnada representa a morte
• Trombetas - anunciam um evento
• Lagar - retrata o juízo de Deus e o inferno. No lagar o suco ou sangue das uvas era
pisoteado para se
fabricar vinho. No juízo de Deus, o sangue dos pecadores é derramado na morte eterna
sob o fardo esmagador da sua ira.

O código do Apocalipse

Dragão
Candelabros
Incenso
Branco
Preto
Amarelo
Espada / boca de Jesus
Diabo
Igrejas
Orações
Vitória
Fome
Morte
Palavra de Deus

Hebreus
Até 50 anos atrás se dizia que esta Carta era de São Paulo, mas com os
novos estudos, hoje já não se afirma o mesmo. Contudo, é uma carta canônica
(reconhecido como revelado), é Palavra de Deus. O grande escritor cristão de
Alexandria, Orígenes (+234) admitia que Paulo fora o autor da Carta, mas não o
redentor, e assim explicava a diferença de estilo das demais Cartas do apóstolo.
Entretanto, o conteúdo da Carta é paulino. A Carta é dirigida aos hebreus
convertidos ao Cristianismo, especialmente aos sacerdotes juntos convertidos,
ameaçados pela perseguição que começava por volta do ano 64 de Nero. Talvez
esses sacerdotes convertidos estivessem desanimados e tentados a voltar ao
judaísmo. O autor da Carta lhes escreve a fim de fortalecer-lhes a fé e a certeza
na mensagem de Jesus Cristo. O objetivo central da Carta é mostrar a primazia
da Nova Aliança em Jesus Cristo sobre a Antiga Aliança. Aparece aí uma
verdadeira Cristologia que mostra Cristo como homem de Deus. Devem ser
discípulos admiradores de Paulo em gerações posteriores. Seguem com
radicalidade sua tese central, isto é, a salvação pela fé. Faz inclusive, referencia
a Timóteo, um dos principais missionários da equipe de Paulo (13,23). Há
também semelhanças do estilo de escrita com os escritos joaninos.
A Carta foi escrita por volta dos anos 64-66. Devemos lembrar que em 70
o general romano Pompeu destruiu o Templo de Jerusalém; e, a partir daí não
haverá mais os cultos judaicos em Jerusalém como eram antes. Provavelmente
deve ter sido escrita em Roma, uma vez que no bilhete anexado ao texto, diz que

53
“os da Itália vos saúdam” 13,24. No entanto, o texto cita Timóteo 13,23, de
quem não temos nenhuma referência de quem tenha se encontrado em Roma.
Por isso o lugar da redação pode ser em uma comunidade paulina, por exemplo,
Éfeso, onde segundo 1Tm 1m3 Timóteo está a frente da comunidade. Hebreus
apresenta Jesus como único sumo sacerdote e rei da justiça e da paz. Ao assim
negar qualquer mediador além de Jesus, seja rei ou sacerdote. Apresenta também
o sacerdócio comum dos fiéis, aqueles que são batizados participam do múnus
do sacerdócio de Cristo. Dessa forma atualizam a aliança de YHWH (Yaweh-
Deus de Israel) com os hebreus libertos da escravidão do faraó (Ex 19,4),
passando a ser, como eles, “um reino de sacerdotes e uma nação santa” Ex 19, 5-
6.

Místicos Antigos

Não é difícil entender a ação do Espírito Santo como aquela que torna
possível o sair de si (ex-tasis) e o permanecer unido. O Espírito Santo torna
possível que o Pai e o Filho se comuniquem e se abram, não só dentro da
comunidade divina, mas frente ao homem, ao mundo e ao tempo
(MOLTMANN, 1978, p.79). Deus, uno e trino, comunidade de amor, vive o
mistério da interação entre as pessoas (da Trindade)  que se necessitam em sua
diferença e não se anulam em uma uniformidade nem em uma individualidade
estéril. Santo Agostinho quis expressar essa função do Espírito Santo dentro da
comunidade divina como o Amor. Ao falar da Trindade, afirma: “Aqui temos
três coisas: o Amante, o Amado e o Amor” (AGOSTINHO, 1948, p.529-535
apud FORTE, 1996, p.36); um Pai Amante, um Filho Amado e o vínculo que os
mantêm unidos, o Espírito do Amor.
A missão do Espírito, como também a missão do Filho, consiste na
glorificação de Deus e na libertação do mundo. Deus é glorificado na libertação
e redenção de toda a criação; Ele não quer ser glorificado sem que sua criação e
a humanidade sejam liberadas ao mesmo tempo (MOLTMANN, 1978, p. 79).
Deste modo, esta participação na vida de Deus a que nos referimos e o processo
de comunhão que ela implica são função específica do Espírito.
Partindo dessa definição da espiritualidade a partir da compreensão do
mistério trinitário, após analisarmos antropologicamente (estudo do
conhecimento do homem) e perscrutarmos a Sagrada Escritura, apresentaremos
uma aproximação trinitária às diversas formas de participação dos cristãos na
vida de Deus, que é o que denominamos espiritualidade cristã. Esta participação
torna as pessoas capazes de entrar na dinâmica vital própria de Deus.
As grandes correntes da espiritualidade cristã são expressões da ação de
Deus no meio de seu povo, para responder aos desafios próprios de cada
momento histórico. Os carismas são presentes de Deus para a construção da
comunhão. Nunca são propriedades exclusivas de pessoas ou grupos
particulares. Por isso, é fundamental conhecer a história específica em que cada
carisma é dado à Igreja, para saber quais as necessidades da comunidade e qual
pode ser seu alcance na vida dos cristãos naquele determinado momento
histórico.
A aproximação que queremos oferecer à história da espiritualidade cristã
destaca três grandes dinâmicas que descobrimos na história da Igreja, cada uma
delas com uma ênfase particular, mas não exclusiva nem excludente, na relação

54
com Deus: através da oração (o Pai), na realização da missão (o Filho) e na
construção da comunhão (o Espírito Santo).
Uma primeira dinâmica, que acentua a busca de Deus na oração, na
solidão, no encontro íntimo e pessoal, pode ser vista de modo mais claro, mas
não exclusivo, nas origens da espiritualidade cristã e nas escolas da Igreja
Antiga e Medieval. Uma segunda dinâmica espiritual, que procura Deus,
sobretudo na missão e no serviço aos mais fracos e mais necessitados de nossa
sociedade, é mais típica das expressões da espiritualidade moderna. E,
finalmente, uma dinâmica que procura Deus, sobretudo na construção da
comunhão com os outros seres humanos e com toda a criação, mais
característica do período pós-Concílio Vaticano II.
Assim, estas três expressões da espiritualidade cristã não podem ser
entendidas a partir da exclusão mútua, especialmente quando correspondem à
dinâmica existente entre as pessoas divinas e à forma como nós podemos
participar da vida de Deus. A partir dessa tripla compreensão das expressões da
espiritualidade cristã, propomos um caminho que deve ser lido integralmente,
sem excluir ou adotar um tempo histórico, pois esta separação são recortes para
melhor entendermos a história, mas que há inúmeras maneiras de sondarmos
estes momentos.
Etnogeográfico (espanhola, francesa, latino-americana);
doutrinal ou de verdades preferidas da fé (trinitária,
cristológica, pentecostal, eucarística, mariana); ascético-
prático ou virtudes preferidas (humildade, pobreza);
antropológico e psicológico (intelectualista, afetiva); dos
estados de vida e de profissões (leiga, presbiteral,
religiosa, dos médicos, dos trabalhadores); histórico
cronológico (paleocristã, medieval, moderna); dos
fundadores de ordens ou congregações (brasiliana,
agostiniana, das ordens medicantes)9
Queremos aqui em todas elas analisar apenas do ponto de vista da história
da espiritualidade cristã, entendendo a ação divina em cada momento e alguns
místicos relevantes para o seu tempo.
As espiritualidades no cristianismo antigo
A primeira expressão da vida espiritual cristã tem uma relação muito
estreita com a pregação dos apóstolos e o que poderíamos chamar de
espiritualidade evangélica ou apostólica, que foi se desenvolvendo em meio às
perseguições da segunda metade do primeiro século: fruto dessa experiência
espiritual e da vida cristã dessas comunidades primitivas foram os escritos do
Novo Testamento. Esse primeiro desenvolvimento da  espiritualidade cristã
propunha as interpretações iniciais do que significa seguir o Senhor e as
implicações para a vida das comunidades. Mais tarde, no segundo e terceiro
séculos, os padres apostólicos10 e apologistas11 tinham a tarefa de explicar a fé
9
MONDONI, Danilo. Teologia da Espiritualidade Cristã. São Paulo, Loyola, 2000.
10
São cristãos leigos, sacerdotes, judeus cristãos, Bispos e outros responsáveis por escolas catequéticas
(no século I) na qual por cartas e homilias com caráter pastoral e litúrgico instruem a suas comunidades.
Exorta à unidade, organização da Igreja, a conversão, penitencia e até o martírio.
11
Já possuem um caráter mais defensivo da fé (no século II), diante dos adversários: judeus e pagãos
heréticos, arianos e gnósticos que estão na Igreja acusando-a: incesto, ritos antropofágicos, crer na
ressurreição de Cristo. Temas dos escritos em geral: cristológicos no intuito de formulação da doutrina
diante das várias teorias.

55
cristã e a forma como o evangelho deveria ser incorporado às culturas grega e
romana, no meio das quais o cristianismo nasceu.
Essa época também foi marcada pelas perseguições e pelo martírio. Além
disso, deve-se ter em mente que se tratava de uma proposta de vida de fé que
estava lentamente abrindo caminho em meio a comunidades simples no contexto
do mundo mediterrâneo. No entanto, o crescimento contínuo do cristianismo
nesses anos deveu-se, sem a menor dúvida, às radicais exigências que supunha o
seguimento. Esta realidade paradoxal foi reconhecida no ditado popular que
afirma: “Sangue dos mártires, semente de cristãos” Tertuliano, Apologético,
50,13
Depois dos longos anos de perseguição e martírio, sobretudo após o Edito
de Milão (313), promulgado pelo Imperador Constantino, e a consequente
integração progressiva dos cristãos nas estruturas do Império romano, muitos
cristãos buscaram, na solidão dos desertos, novas formas de viver a fé de acordo
com as exigências evangélicas. Primeiro de modo individual, com uma vida
eremítica, e mais tarde com uma vida em comum. Os Pais e as Mães do Deserto
acompanharam o caminho de muitos crentes e reuniram suas práticas em regras
que estabeleciam condições e modos de encontrar com Deus na oração e na vida
comum.
Pode-se dizer que a era constantiniana não é simplesmente um tempo
determinado da história, mas também um modo de ser Igreja no mundo; se
desenvolveu uma forma de ser Igreja que se confundia com o poder do Estado;
cristão passou a ser sobrenome para a economia, a cultura, a política, a filosofia
e para a sociedade.
Depois de 313 se iniciam as conversões em massa; das pessoas,
especialmente das altas classes econômicas e intelectuais, e das famílias de
relevância política; foi um tempo de heresias; o espírito mundano foi abrindo
espaço na Igreja, tanto entre os fiéis como no meio da hierarquia.
“A partir do século IV em diante, abre-se espaço para um tremendo contraste em
relação à etapa anterior da Igreja: durante as perseguições, se batizavam somente os
convertidos; a partir de agora a Igreja terá de converter os batizados” (GOMEZ, 1987,
p.168).
Vale a pena recordar, aqui, um texto de Hilário de Poitiers (c.
315-367), escrito na época do imperador Constâncio, filho de
Constantino, que indica a armadilha que o Império colocou para
a vida cristã: Oh Deus! todo poderoso, quem me dera que o
Senhor tivesse me concedido viver nos tempos de Nero ou de
Décio…! Pela misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo, Seu
Filho, eu não teria medo dos tormentos, sabendo que Isaías
havia sido mutilado… Eu teria me considerado feliz ao lutar
contra seus inimigos declarados, já que em tais casos não
haveria dúvida sobre aqueles que incitaram a renegar… Mas
agora temos que combater um perseguidor insidioso, contra um
inimigo enganador, contra o anticristo Constâncio. Este nos
apunhala pelas costas, mas nos acaricia o ventre. Não confisca
nossos bens, dando-nos assim a vida, mas nos enriquece para a
morte. Não nos joga na cadeia, mas nos honra em seu palácio
para sermos escravizados. Não rasga nossa carne, mas destrói
nossa alma com seu ouro. Não nos ameaça publicamente com a

56
fogueira, mas nos prepara sutilmente para o fogo do inferno.
Não luta, pois tem medo de ser vencido. Ao contrário, bajula
para poder reinar. Confessa Cristo para negá-lo. Ele trabalha a
unidade para sabotar a paz. Reprime as heresias para destruir os
cristãos. Honra os sacerdotes para que não haja bispos. Ele
constrói igrejas para demolir a fé. Em todos os lugares ele
carrega o seu nome nos lábios e em seus discursos, mas ele faz
absolutamente tudo o que pode para que ninguém acredite que
Você é Deus. (…) Seu gênio supera o do diabo, com um triunfo
novo e inédito: consegue ser perseguidor sem fazer mártires.
(DE POITIERS, PL 10, p. 580-581, apud GÓMEZ, 1987, p.
170).
Neste contexto, acontece o movimento de fuga mundi, que levou milhares
de cristãos aos desertos. Este modo de vida foi sistematizado a partir da Vita
Antonii (c. 360), escrita por Santo Atanásio e, em seguida, por figuras como
Santo Agostinho (354-430), Cassiano (c. 360-435), o pseudo-Dionísio (séculos
V e VI) e São Gregório Magno (540-604). Mas talvez a síntese mais completa
da proposta monástica seja a de São Bento (480-547), autor de uma regra para os
seus monges, que se espalhou por toda a Europa como um modo de vida e como
um caminho espiritual que tem o único propósito da busca de Deus (SÃO
BENTO, 2006).
Como sabemos a palavra mística não se encontra nem no NT nem nos
Padres Apostólicos e aparece pela primeira vez ao longo do século III. Por outra
parte, a figura de Jesus presente nos Evangelhos, sobretudo nos Sinóticos,
coincide mais com a de um profeta do Reino de Deus do que com a de um
visionário. Os sinóticos parecem acentuar as condições morais e as virtudes que
preparam a vinda do Reino. A mesma “visão de Deus” será atribuída, no Sermão
da montanha, aos “puros de coração”.
Por isso não são raros os autores que excluem a experiência mística das
fontes cristãs e explicam o surgimento da mística a partir de influxos externos,
sobretudo a gnose e o neoplatonismo, tal como sucedeu com o judaísmo. Na
mesma direção orientam-se algumas visões da história da mística cristã que
opõem uma mística psicológica, introspectiva, que se haveria desenvolvido,
sobretudo a partir dos místicos espanhóis do século XVI, à mística objetiva,
escriturística, eucarística dos tempos anteriores (VELASCO, 1999, p.211).
Diferentemente de outras religiões, o Cristianismo nunca equiparou seu
ideal de santidade, sobretudo ou principalmente, com o atingimento dos estados
místicos. Nem tampouco encorajou a busca de tais estados por si mesmos. No
entanto, se vamos buscar em suas origens, vamos encontrar aí uma experiência
religiosa forte, uma experiência mística, enfim. Foi um impulso místico que
inegavelmente propalou aquilo que inicialmente era visto como um movimento a
mais dentro da globalidade sinagogal e foi ganhando dimensões universais. 
Certamente a profundidade mística do novo caminho proposto por Jesus de
Nazaré, iluminado por sua morte e ressurreição, determinou muito de seu
desenvolvimento posterior.
A qualidade  mística da vida de Jesus é muito claramente afirmada nos
evangelhos, mas – segundo L. Dupré – é sobretudo no Quarto Evangelho, escrito
tardiamente, no final do século I, que encontra sua plena expressão (cf. DUPRÉ,
1987, p.251). Neste Evangelho,  as duas principais correntes do misticismo
cristão têm sua fonte: primeiro, na teologia da imagem divina, que chama o

57
cristão à conformação (com Cristo, adorado como Deus e através d’ Ele, com
Deus), e segundo na teologia que apresenta a intimidade com Deus como relação
com o amor em termos universais (cf. DUPRÉ, 1987, p.251).
As cartas de Paulo de Tarso – anteriores inclusive ao Evangelho, que
testemunham o surgimento das primeiras comunidades cristãs –  desenvolvem a
ideia da vida no Espírito (2 Cor 3,18).  O principal dom do Espírito, no
entendimento de Paulo, consiste na “gnose”, aquele insight que faz penetrar no
interior do mistério de Cristo, e capacita o crente a entender as Escrituras em um
sentido mais profundo, revelado. Este insight, que mergulha no interior do
sentido escondido das escrituras, leva à interpretação alexandrina do termo
místico discutido abaixo (cf. DUPRÉ, 1987, p.251).
Na Antiguidade clássica, quando o Cristianismo já havia rompido com a
sinagoga e feito suas primeiras sínteses com o mundo grego, há algumas figuras
que se destacam não apenas pela profundidade de sua experiência mística como
pela reflexão acurada que sobre ela fizeram. Assim, também aqueles que
abriram novos continentes na história da experiência mística cristã.
Gregório de Nissa e Evagrio Pontico tem uma trajetória derivada da de
Orígenes.  O primeiro descreve a vida mística como um processo de gnose
iniciado por um Eros divino, que resulta na plenificação do desejo natural da
alma para com Deus, de quem ela carrega a imagem.  Ainda que aparentada a
Deus desde o começo, a ascensão mística da alma é um lento e doloroso
processo que termina em um não conhecimento obscuro – a noite mística do
amor.  Essa teologia da escuridão, ou “teologia negativa”, seria desenvolvida até
os seus extremos limites por um misterioso sírio que escreveu em grego no sexto
século e que se apresentou a si mesmo como o Dionísio a quem Paulo converteu
no Areópago.  Neoplatônico como nenhum teólogo cristão jamais ousou ser, ele
identificou Deus como o Uno não nomeável. (…) Através da constante negação,
a alma ultrapassa o mundo criado, que previne a mente de alcançar seu último
destino.  A Teologia Mística de Dionísio é mais extática do que introspectiva em
seu conceito: a alma pode alcançar sua vocação de união com Deus somente
perdendo-se a si mesma nos recessos da divina superessência.  A este respeito,
ele difere do misticismo ocidental, o qual influenciou tão profundamente.
O segundo – Evagrio – busca a vida monástica e, como tal, sua
aproximação do deserto se dá por etapas.  Progride até ficar em completa
solidão, dedicado apenas a contemplação.  Para Evagrio a ascensão espiritual
consiste em contemplar Deus em si mesmo, de modo que se vê Deus como num
espelho. O caminho consiste em despojar-se dos pensamentos apaixonados,
depois, mesmo dos pensamentos simples, até a completa nudez de imagens e
conceitos.
Da mesma forma, não se pode esquecer a importância da mística cristã
oriental.  O oriente cristão foi pródigo em práticas importantes que tiveram seu
impacto inclusive no Ocidente.  Como, por exemplo, a prece do coração, a
oração de Jesus, o hesicasmo12, que tem sua origem em Santo Antão, monge do
deserto e pai do monarquismo oriental.
Antão, Dionísio, Máximo o Confessor, Pacômio, Serafim de Sarov, entre
outros, são grandes figuras místicas que marcaram a história do Cristianismo e
mostram uma forma de vivê-lo que é muito mais centrada na espiritualidade do

12
Hesicasmo (em grego: ἡσυχασμός; transl.: hesychasmos, derivado de ἡσυχία, hesychia, "quietude,
quieto, silêncio") é uma tradição de oração solitária na Igreja Ortodoxa e em algumas Igrejas Católicas
Orientais, com as que seguem o rito bizantino

58
que na reflexão intelectual e na ação, como algumas vezes o foi a mística
ocidental.
Agostinho, no século IV, abre uma nova e decisiva etapa na mística cristã.
Descreveu a divina imagem antes em termos psicológicos, usando os termos das
três potencias da alma – memória, inteligência e vontade – para explicar sua
percepção da experiência de Deus.  Deus permanece presente à alma ao mesmo
tempo como origem e como meta suprema.  A presença de Deus neste reino
interior convida a alma a voltar-se para dentro e converter a semelhança extática
em uma união extática. (…) A alma vai sendo então gradualmente unida a Deus.
Até hoje Agostinho é considerado o pai da mística contemplativa que se eleva
para abismar-se na verdade de Deus e que, ao mesmo tempo, se dá no coração.
Foi alguém que uniu a genialidade intelectual à profundidade mística profunda.
Espiritualidade do martírio
O cristianismo difunde-se pelo testemunho dos discípulos e agora o
Império Romano continua a guerra que se inicia com Jesus por chocar esta
cultura. O ataque mais fanático contra o paganismo é o discurso contra os
gregos, de Taciano (século II): funda-se na maior antiguidade as doutrinas
“barbáras” sobre as gregas. Assim como Teófilo de Antioquia, Hermas e
Hipólito. Justino é o exemplo de compromisso e compreensão em relação à
cultura greco-romana: para ele, nos filósofos pagãos existem sementes do Logos
divino. Na mesma linha estão Clemente (fé e saber profano não se opõem, mas
se complementam) Orígenes13 e Lâctancio.
O martírio (martiria, testemunho) sangrento ante os poderes imperiais; é o
testemunho de fé defendida com entrega da própria vida, afirmação absoluta de
que o único verdadeiramente importante é Cristo. As fontes históricas são as
acta dos mártires e os tratados de Inácio de Antioquia, Cipriano, Orígenes e
Tertuliano.
As Atas dos mártires14 são relatos dos sofrimentos dos mártires cristãos. Formam um
subgênero dentro da história dos cinco primeiros séculos do cristianismo. Nascem do
próprio fato das perseguições e costumavam ser lidas às comunidades cristãs nos atos
litúrgicos que comemoravam o aniversário do martírio. Como fontes históricas podem
dividi-las em três grupos:
O primeiro grupo compreende os processos verbais oficiais do tribunal.
Contêm as perguntas dirigidas aos mártires pelas autoridades, suas repostas tal
como a anotavam os escrivães públicos ou os amanuenses do tribunal, e as sen-
tenças proferidas. Depositavam-se esses documentos nos arquivos públicos, dos
quais, algumas vezes, os cristãos conseguiam obter cópias. O nome de Atas dos
mártires (acta ou gesta martyrum) deve ser reservado exclusivamente para esse
13
É Figura de primeira grandeza nos primeiros séculos da vida da Igreja, compara a vida espiritual ao
êxodo dos judeus através do deserto do Egito.  Havendo deixado para trás os ídolos pagãos do vício, a
alma cruza o mar vermelho num novo batismo de conversão.  Passa perto das águas amargas da tentação
e das visões distorcidas da utopia até que, totalmente purgada e iluminada, alcança Terah, o lugar da
união com Deus.  Seu comentário também apresenta a primeira teologia da imagem que foi desenvolvida:
a alma É uma imagem de Deus porque abriga a imagem primal de Deus, que é a Palavra divina.   Da
mesma forma pela qual essa palavra é uma imagem do Pai através de sua presença frente a ele, a alma é
uma imagem através da presença da palavra que nela habita, isto é, através de sua (ao menos parcial)
identidade com ela.  Todo este processo místico vem a consistir numa conversão à imagem, isto é, numa
conversão a uma sempre maior identidade com a Palavra íntima.  O lugar privilegiado que Orígenes dá ao
amor será o elemento que vai distinguir a teologia de Orígenes da filosofia neoplatônica.
14
J. Quasten, Patrología, I, 171-180; Actas de los mártires. Edição bilíngüe. Versão de Daniel Ruiz
Bueno, 1987. 

59
grupo. São fontes históricas imediatas e dignas de crédito que se limitam a
consignar os atos.
A esse tipo pertencem as Atas de São Justino e companheiros  (segunda
metade do século II); as Atas dos mártires escilitanos na África, que contêm as
atas oficiais do julgamento de seis cristãos de Numídia, que foram sentenciados
pelo procônsul Saturnino e decapitados no dia 17 de julho do ano 180. Também
as Atas proconsulares de São Cipriano, bispo de Cartago, executado dia 14 de
setembro do ano 258.
O segundo grupo compreende os relatos de testemunhas oculares ou
contemporâneas. Costuma-se denominá-los paixões ou martyria. A esse grupo
pertencem o Martyrium Policarpi (156); a Carta das Igrejas de Viena e Lião às
Igrejas da Ásia e da Frígia; a Paixão de Perpétua e Felicidade; as Atas dos
santos Carpo, Papilo e Agatônica; as Atas de Apolônio que, na opinião de
Harnak, é “a mais nobre apologia do cristianismo que nos chegou da
Antigüidade”.
O terceiro grupo abrange as lendas de mártires compostas com fins de
edificação e muito depois do martírio. São uma mescla fantástica de verdade e
imaginação. Ou simples novelas sem nenhum fundamento histórico. A esse
grupo pertencem as atas dos mártires romanos Santa Inês, Santa Cecília, Santa
Felicidade e seus sete filhos, Santo Hipólito, São Lourenço, São Sisto, São
Sebastião, Santos João e Paulo, Cosme e Damião etc. O fato de tais atas não
serem autênticas não prova, de forma alguma, que esses mártires não tenham
existido. Indica apenas que não se podem usar esses documentos como fontes
históricas.
Atenção especial merecem as coleções de atas dos mártires da antigüidade
cristã. O primeiro que reuniu uma coleção de atas de mártires foi Eusébio em
sua obra Sobre os mártires antigos. Essa obra se perdeu. Em História
Eclesiástica, Eusébio dá-nos uma síntese da maioria dessas atas. Além disso,
compôs um tratado sobre os mártires da Palestina, vítimas das perseguições
entre os anos 303-311. Um autor anônimo recolheu as atas dos mártires persas
mortos sob Sapor II (339-379). Escritas em siríaco, seus processos e
interrogatórios lembram as relações das autênticas atas dos primeiros mártires.
Em troca, as atas siríacas dos mártires de Edessa são pura lenda.
Assim o mártir é um lugar teológico 15 para a Igreja, um lugar epifânico de
Deus. Celebrar os mártires é exprimir a piedade da cruz gloriosa. Os primeiros
santos do calendário litúrgico foram os mártires e os primeiros altares e igrejas
foram construídas sobre seus sepulcros. Esta escola de espiritualidade é a mais
longa da história da Igreja, pois ainda perdura-se até hoje.
Encontramos na teologia de Santo Inácio de Antioquia a espiritualidade do
martírio: Ser semelhante ao redentor. No caminho para o seu processo em Roma
(já preso), o bispo de Antioquia, na Síria, escreveu sete cartas para as
comunidades cristas da Ásia Menor. Faleceu como mártir em 110 d.C
Se isso tiver sido feito para a manifestação de nosso Senhor,
então eu estou preso para essa manifestação. Por isso me
entregue a morte- pois [estar] perto da espada é [estar] perto de
Deus, e estar em meio as feras é [estar] em Deus. Para viver com
ele eu tudo suporto, se ele me dá força (Aos Esmirnenses, 4,2)16

15
Um teólogo: Melkior Kano, cita a Sagrada Escritura e a Tradição Apostólica como lugares primários da
revelação divina, fonte de conhecimento e experiência de Deus.
16
BENKE, Christoph. Breve Hisória da espiritualidade cristã. Aparecida, SP. Editora Santuário, 2011.

60
Com a palavra imitação Inácio designa o desejo de identificação pessoal
com Cristo sofredor
Para mim é melhor morrer em Jesus Cristo do que ser rei sobre
os confins da terra. Aquele que eu busco que morreu por nós;
aquele que eu quero, que por nossa causa ressuscitou. O dar à
luz está diante de mim. Permitam-me ser um imitador do
sofrimento do meu Deus (Aos Romanos 6,13)17
O discípulo, na perspectiva dele não é apenas aquele que segue Jesus ou
aquele que esta preso: “Mesmo eu que já estou acorrentado [...] ainda não sou
um discípulo. Pois muita coisa falta, para não sermos abandonados por Deus”
(Aos Tralianos 5,2). Ainda cita: “Pois mesmo que eu carregue correntes em
nome (de Jesus), ainda assim eu não estou plenificado em Jesus Cristo. Pois
agora eu começo a ser um discípulo (Aos Efésios 3,1). Tonarmo-nos semelhante
a Cristo ao participar de sua morte. Esta comunhão com Cristo realiza-se em
dois níveis, que estão intimamente relacionados e que se remetem mutuamente:
eucaristia (sacramental) e martírio (histórico-vivencial).
Assim aproximadamente em 160 d.C., o cristão que é executado por causa
da fé é designado como: μάρτυς, mártys, “testemunha” encontra-se a primeira
forma de vida espiritual na época pós-biblica ou pós-apostólica. Encontramos
três dimensões: Cristo sofre, o martírio não é nem busca por plenificação
própria, nem realização pessoal, mas a manifestação vicária do Cristo
crucificado no próprio corpo. O mártir não sofre somente como Cristo ou com
Cristo, mas nele sofre o próprio Cristo. Plenitude do seguimento: para a Igreja
em seus inícios o martírio é a forma mais elevada de encontro com Deus. Inácio
de Antioquia está convencido de que a eucaristia é prelúdio do martírio,
associado ao sofrimento de Cristo. Vale como segundo batismo, o e sangue e
realiza plenamente o perdão dos pecados.

Espiritualidade ascética
Ai se encontra a ascese (em grego: ἀσκέω, treinar) cristã: seguimento
como busca por Deus. Um fundamento bíblico: o ciclo de Elias (1Rs 17-19) ou o
jejum de Jesus no deserto (Mt 4, 1-11). Num contexto filosófico cínico e estoica
(crítica cultural, retorno à natureza), círculos gnósticos 18 (ascese como luta para
17
Idem, 31.
18
O termo “gnóstico” adquiriu sentido pejorativo quando foi aplicado pelos
Padres da Igreja a certos hereges que tiveram notável relevo entre os séculos II
e IV. O primeiro em designá-los assim foi são Irineu, que vê a sua origem na
heresia de Simão o samaritano (Atos 9, 9-24), e diz que os seguidores desse
herege se propagaram pela Alexandria, Ásia Menor e Roma dando lugar a
“uma multidão de gnósticos que emergem do solo como se fossem fungos”
(Adversus Haereses,I, 29.1). Ensinavam O Deus verdadeiro, segundo eles, não
era o Criador do Antigo Testamento; distinguiam diversos Cristos entre os
seres do mundo celeste (éons). Esses gnósticos valencianos julgavam que a
salvação era obtida pelo conhecimento de si mesmo, como uma centelha de
luz divina contida na matéria; julgavam, ainda, que a redenção de Cristo
consiste em despertar-nos para esse conhecimento; e que apenas os homens
espirituais (pneumatikoi) estão destinados à salvação. Isto é um erro, pois a
Igreja considera a fé como ponto de partida para a Salvação.
61
libertar espírito e alma do corpo e das coisas materiais) os convertidos destas
linhas simpatizam-se com a ascese. Grande parte do vocabulário ascético
provém em grande parte da filosofia popular helênica.
Até mesmo de forma velada havia na Igreja a ascese intracomunitária:
homens e mulheres que vivem de forma celibatária, mas permaneciam no
contexto da comunidade. No século III, um número cada vez maior de pessoas
começa a sair das comunidades pela motivação da busca de uma autêntica
salvação pelo seguimento de Jesus. Seu horizonte é escatológico: a mensagem
sobre a irrupção do senhorio de Deus não apenas como uma questão futura, mas
como realidade futura. Como modo de vida quer mostrar a transitoriedade do
mundo.
Para se orientar totalmente nessa direção, mais e mais pessoas acharam
necessário sair de seu contexto conhecido por se tornar alguém que vive só:
μοναχός (monachós), monge. A princípio não tinham como objetivo romper
com a sociedade e a Igreja, mas na solidão manter a busca por Deus (Sl 63,2-3)
para alcançar a profundidade de relação com o divino. Para tal renunciavam
livremente: alimentação, propriedade e vida sexual.
Resumindo as motivações para a ascese no deserto (e no seguimento mais
amplo da vida monástica)
 Desejo de uma vida similar a dos anjos (vita angélica)
 Reconstituição e antecipação do paraíso
 Martírio não sanguinário e segundo batismo
 Vida similar a dos apóstolos (vita apostolica em pobreza e peregrinação)
 Relacionado com isso manifesta-se também uma espécie de saudade da
Igreja primitiva
Seu contexto histórico (sec. III e IV) é a aliança de Roma com o
cristianismo, com uma clara tendência de ser uma Igreja de massas, querer
seguir um estilo mais solitário, longe de criar uma “contraIgreja”, queriam viver
sem perturbações e viver segundo as exigências do Evangelho. Neste tempo
surge um binômio: cristãos ascetas e cristãos não ascetas como atualmente
alguns antagonizam o mosteiro e mundo.

Espiritualidade do deserto
Os primeiros anacoretas (ἀναχωρητής, anachōrētḗs) “vida em
recolhimento”, aquele que vive espacialmente isolado. Ali no final do século III,
aconteceu de forma crescente que homens, e ocasionalmente também mulheres,
abandonassem sua vila natal para à determinada distância construir uma cabana
de eremita. São motivados pela pergunta: “O que devo fazer para alcançar a
Salvação?” e aproximavam dos ascetas para aprender com eles. A primeira
figura historicamente conhecida é Antão, o grande (252-356). Ele havia ficado
rico por conta de uma herança. O bispo Atanásio de Alexandria (seu biográfo)
afirma que sua vida muda após entrar em contato com o Evangelho do jovem
rico:
Depois da morte de seus pais ficou só com sua única irmã, muito mais
jovem. Tinha então uns dezoito a vinte anos, e tomou cuidado da casa
e de sua irmã. Menos de seis meses depois da morte de seus pais, ia,
como de costume, a caminho da igreja. Enquanto caminhava, ia
meditando e refletia como os apóstolos deixaram tudo, e seguiram o
Salvador (Mt 4,20;19,27); como, segundo se refere nos Atos (4,35-
37), os fiéis vendiam o que tinham e o punham aos pés dos Apóstolos

62
para distribuição entre os necessitados, e quão grande é a esperança
prometida nos céus para os que assim fazem (Ef 1,18; Col 1,5).
Pensando estas coisas, entrou na igreja. Aconteceu que nesse
momento se estava lendo o evangelho, e ouviu a passagem em que o
Senhor disse ao jovem rico: “Se queres ser perfeito, vende o que tens e
dá-o aos pobres, depois vem, segue-me e terás um tesouro no céu” (Mt
19,21). Como se Deus lhe houvera proposto a lembrança dos santos, e
como se a leitura houvesse sido dirigida especialmente a ele, Antão
saiu imediatamente da igreja e deu a propriedade que tinha de seus
antepassados: trezentas “aruras”, terra muito fértil e formosa. Não quis
que nem ele nem sua irmã tivessem algo que ver com ela. Vendeu
tudo o mais, os bens móveis que possuía, e entregou aos pobres a
considerável soma recebida, deixando só um pouco para sua irmã 19
Após permanecer em sua vila vai para o deserto e torna-se pai espiritual
(Ἀββᾶ, ábbas, papai), muito procurado. Seus pontos essenciais são: o
Cristocentrismo, ainda que Jesus não tenha vivido como asceta, pode-se
interpretar sua vida a sua atuação pública como um ascético. “Para todos, ele
dizia que não deveriam preferir nada no mundo ao amor de Cristo” (Atanásio de
Alexandre, Vita de Santo Antão, cap. 14). Relação com as Escrituras: é o
centro e fonte de seus escritos e modelo de vivência. Há a regra “o que você
fizer ou o que você disser: para tudo procure um testemunho na Sagrada
Escritura” (Worte der Väter [WdV], n.3). E a presença de outras pessoas.
Também o eremita (aquele que vive no erémos ἔρημος, solidão) necessita de
outras pessoas. O mundo das pessoas está presente de muitas formas na cela.
Muitos passam por necessidades corporais e espirituais. Assim Antão pode
dizer: “É do próximo que nos vem vida e morte. Se ganharmos o irmão
ganhamos Deus. Se, contudo, incomodarmos o irmão, nós pecamos contra
Cristo” (WdV, n.9).
Quem se decide pelo deserto amadurece seu processo de eleição e
conversão, pois na Bíblia é o lugar do encontro com Deus. Aí Israel a primeira
vez contato com Deus, acontece a Aliança, lugar onde Javé procura conquistar
sua noiva (Israel). Desafio para a renovação: “Eu me lembro de sua fidelidade
quando você era jovem: como noiva, você me amava e me seguia pelo deserto,
por uma terra não semeada” Jr 2,2. Como lugar do primeiro amor, o deserto é
uma lembrança perigosa para o povo de Deus: “Por isso eu atrairei para mim,
vou conduzi-la ao deserto e falarei ao seu coração” Os 2,16. Na tradição do
helenismo o deserto é lugar da correta forma de vida: A cidade, assim se
pensava, oferece uma vida não saudável; além disto, a forma de vida dos
moradores desvirtuada era má influencia. Por outro lado é um lugar puro e
limpo, dai o desejo romântico por solidão e vida em reclusão.
Assim o Abbá era entendido como exemplo de Deus e portador do
Espírito, capacitado por Deus com o carisma da palavra e do discernimento.
Aquele que espera ser perguntado. Mantem em estreita ligação a palavra e a
forma de vida. Mais do que dar ordens como um legislador, ensinam com seu
exemplo. Convencem pela simplicidade de seu programa: “o ancião Gregório
disse: Deus pede estas três coisas de cada pessoa batizada: a correta fé da alma, a
verdade da língua e o domínio do corpo” (WdV, n. 174).
Sem grandes sistemas, busca-se simples realizações espirituais como
observar-se a si mesmo, viver na presença de Deus, elevar as Sagrada Escritura a
norma de todos os atos, orar, trabalhar, perseverar. Antão aconselha
19
Idem, 41.

63
Alguém perguntou para o velho Antão o que deveria fazer para
agradar a Deus. O velho deu-lhe a seguinte resposta: Obedece ao
que eu mandar! Para onde fores tem sempre Deus diante dos
olhos. O que fizeres ou o que disseres: para tudo procuras um
testemunho na Sagrada Escritura. Se estabeleceres num lugar,
não te afastes com facilidade. Observa estas três coisas e
encontrarás a salvação (WdV, n.3)
Para os Padres do deserto o trabalho (manual) tem valor elevado, pois
apoia a integração entre a dimensão espiritual e corporal do ser humano. Orar e
trabalhar são igualmente expressão do serviço a Cristo:
Quando o ancião Antão certa vez estava sentado no deserto, com
animo abatido e com ideias funestas, ele disse para Deus:
Senhor, eu quero ser salvo, mas as minhas ideias não o
permitem. O que devo fazer nesta minha atribulação? Como
posso alcançar a salvação? Logo a seguir ele se levantou, saiu
para uma área livre e encontrou alguém semelhante a ele. Ele
estava sentado e trabalhava; depois levantou do trabalho e foi
orar; sentou-se novamente e teceu uma corda; levantou-se
novamente e orou; e eis que ele era um anjo do Senhor, que foi
enviado para dar ensinamento e segurança para Antão. E ele
ouviu o anjo dizer: Faze assim e alcançarás a salvação. Quando
ele ouviu isso, ficou cheio de grande alegria e ânimo, e por meio
de tal agir encontrou a salvação (WdV, n.1)
Assim o trabalho é um requisito na presença de Deus. OS eremitas do
deserto veem o trabalho como meio para:
 Superar a melancolia (inimigo da alma), o abatimento (como consequência do
pecado original), e a desconcentração.
 Produzir reflexão interna: a experiência ensinava que o trabalho duro alarga a
abertura interior para Deus. Vivenciar as próprias limitações corporais conduz à
concentração e à interiorização, ou seja, uma obra espiritual.
 Busca na presença de Deus: “quem sempre tem Deus diante dos olhos e da
consciência não peca, uma vez que a origem de todo o pecado reside no abandono
de Deus”20
 A meditação (em latim: meditari, “refletir sobre algo”): No contexto do
cristianismo primitivo, isto significava decorar e recitar de forma cuidadosa
versículos bíblicos. Durante o trabalho recitava-se e meio voz determinado
versículo, para aprofundá-lo e nele encontra Cristo. Quem constantemente estuda
a Bíblia e medita suas palavras de cor “ora sem cessar”. O planejamento do dia
previa um tempo para ler a Sagrada Escritura (especialmente os Salmos) e
aprendê-la de cor- a leitura espiritual.
 Oração das horas: a oração dos Salmos em hora pré-definidas permite uma
determinada forma de oração. Quem observa tempos de oração regulares ora sem
cessar. Estavam conscientes que havia o perigo de o cumprimento de determinada
tarefa de oração levar a fugir das obrigações.

Espiritualidade Basiliana

20
BENKE, Christoph. Breve Hisória da espiritualidade cristã. Aparecida, SP. Editora Santuário, 2011.

64
Outra escola que lança inúmeros conceitos novos e serve como alicerce para a
continuidade histórica dos místicos é a espiritualidade brasiliana: Basílio de Cesaréia 21 é
marcado por uma tríplice preocupação: organização da caridade num período de fome.
A organização da vida monástica comunitária (cenobitas 22). E a ortodoxia da Igreja em
seu caráter unitivo durante o período das heresias arianas. Veja no seu tempo com muito
custo defende estas verdades de fé:
Antes de tudo a chamada ao mistério de Deus, que
permanece a referência mais significativa e vital para o
homem. O Padre é “o princípio de tudo e a causa de ser
do que existe, a raiz dos vivos” (Hom. 15, 2 de fide: PG 31,
465c), e sobretudo é “o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”
(Anaphora sancti Basilii). Remontando a Deus através das
criaturas, nós, “tomamos consciência da sua bondade e
da sua sabedoria” (Basílio, Contra Eunomium 1, 14; PG 29,
544b). O Filho é a “imagem da bondade do Pai e sigilo de
forma igual a ele” (cf. Anaphora sancti Basilii). Com a sua
obediência e com a sua paixão o Verbo encarnado
realizou a missão de Redentor do homem (cf. Basílio, In
Psalmum 48, 8: PG 29, 452ab; cf. também De Baptismo 1,
2: SC 357, 158)
Consegue realizar ação social em nível de província e criou um estabelecimento
central as portas de Cesaréia (organizou o bairro da caridade), uma nova cidade que o
povo se habitou a chamar de Basilíade; servia-se sopa popular, no meio das construções
tinha uma Igreja; havia um albergue para estrangeiros e abrigo para idosos, um hospital
com uma ala para doenças contagiosas.
Ele recusou a vida solitária pelo fato de ela apresentar perigos e não dar espaço ao
amor. Como para ele o monge devia ser um cristão autêntico e generoso, estabeleceu
seus mosteiros não longe dos cristãos que viviam nas cidades, de modo que estes se
beneficiassem da presença dos monges. Numa Igreja dividida, foi um homem de
reconciliação, contribuindo para “refazer a unidade das Igrejas de Deus” em torno da fé
de Niceia. Foi um dos primeiros a estruturar a oração salmódica: para ele cada um
encontra nos salmos a cura que precisa. Comungava quatro vezes na semana
(lembrando que as instruções sacramentais eram diferentes) e tinha zelo pela eucaristia.

21
Bispo do século IV é admirado tanto pela Igreja do Oriente como pela do Ocidente por sua santidade de
vida, pela excelência de sua doutrina e pela síntese harmoniosa de capacidades especulativas e práticas.
Nasceu por volta do ano 330, em uma família de santos, «verdadeira igreja doméstica», que vivia em um
clima de profunda fé. Estudou com os melhores mestres de Atenas e Constantinopla. Como bispo e pastor
de sua estendida diocese (sucedeu Eusébio de Cesaréia, na Igreja de Capadócia). Basílio se preocupou
constantemente pelas difíceis condições materiais nas quais os fiéis viviam; denunciou com firmeza o
mal; comprometeu-se com os pobres e os marginalizados; interveio ante os governantes para aliviar os
sofrimentos da população, sobretudo em momentos de calamidade; velou pela liberdade da Igreja,
enfrentando os potentes para defender o direito de professar a verdadeira fé (cf. Gregório Nazianzeno,
«Oratio 43, 48-51 in laudem Basili»: PG 36, 557c-561c). Deu testemunho de Deus, que é amor e
caridade, com a construção de vários hospitais para necessitados (cf. Basílio, Carta 94: PG 32, 488bc),
uma espécie de cidade da misericórdia, que tomou seu nome, «Basiliade» (cf. Sozomeno, «História
Eclesiástica». 6, 34: PG 67, 1397ª). Nela fundem suas raízes os modernos hospitais para a atenção dos
doentes.
22
Um cenobita (do grego, κοινόβιο, de κοινός, transl. koinós, "comum", mais βίος, transl. bios, "vida":
'que vive em comunidade', pelo latim tardio coenobĭum,ĭi 'convento, mosteiro' e, daí, cenobīta,ae) é
um monge que vive em comunidades retiradas, geralmente com os mesmos interesses ou princípios.

65
É motivo de imensa alegria poder participar na Eucaristia (Moralia 21,
3: PG 31, 741a), instituída “para conservar incessantemente a
recordação daquele que morreu e ressuscitou por nós” (Moralia 80,
22: PG 31, 869b). A Eucaristia, imenso dom de Deus, tutela em cada
um de nós a recordação do selo baptismal, e permite viver em
plenitude e fidelidade a graça do Baptismo. Por isto o Santo Bispo
recomenda a comunhão frequente, também quotidiana: “Comungar até
todos os dias recebendo o santo corpo e sangue de Cristo é bom e útil;
porque ele mesmo diz claramente: “Quem come a minha carne e bebe
o meu sangue terá a vida eterna” Jo 6,54. Portanto, quem duvidará de
que comungar continuamente da vida não seja viver em plenitude?”
(Ep. 93: PG 32, 484b). A Eucaristia, em síntese, é-nos necessária para
acolhermos em nós a verdadeira vida, a vida eterna (cf. Moralia 21, 1:
PG 31, 737c).
Escreve o grande ascetikon que se tornou modelo monástico do oriente bizantino.
Em síntese trata-se:
 Deus é a medida do bem e da felicidade do ser humano;
 A perfeição cristã refere-se a todos; o que caracteriza o cristão é a fé que
opera mediante ao amor; a vida eterna é “obtida” pelos mandamentos;
 Cristo impõe a renúncia total, a cruz e o seguimento: ao diabo, as paixões
da carne, aos parentes carnais e às amizades humanas;
 Tal renúncia implica a prática da temperança (mãe da castidade), estendida
a tudo o que impede a vida segundo a piedade; na legislação monástica
não recebe nenhum relevo particular;
 Para o alimento se deve considerar as necessidades de cada um: a norma
comum é a simplicidade e a frugalidade;
 As profissões de vida comum é feita uma vez para sempre;
 Tinha um grande zelo pelos jovens na qual escreve uma obra dedicada em
grande parte a eles
A eles dirigiu um Discurso sobre o modo de tirar proveito da
cultura pagã desse tempo. Com muito equilíbrio e abertura, ele
reconhece que na literatura clássica, grega e latina, se encontram
exemplos de virtude. Estes exemplos de vida recta podem ser
úteis para o jovem cristão em busca da verdade, do modo recto
de viver (cf. Ad Adolescentes 3)
Espiritualidade Agostiniana
Vejamos agora sinteticamente a vida de Agostinho23 que tinha muito amor
pela Escritura: a caridade é a regra hermenêutica da Escritura: “Conhece a Deus
quem o ama, não quem o estuda” (Confissões). Zelo pela Igreja e sua lucida
consciência do caminho histórico da Igreja. Assim valorizava a tradição. Deixa
23
Agostinho nasceu em 354 d.C. em Tagaste, no norte da Africa, hoje Souk Ahras, Argelia morre em 430
d.C. Era filho de Patricio, um pagão que foi batizado no leito de morte e de Monica, uma devota cristá,
por quem Agostinho tinha autoestima. Em função de sua educação materna, recebeu desde novo os
ensinamen tos do cristianismo, apesar de somente após os trinta anos ter efetivamente se convertido e
batizado. Foi um obstinado pela verdade e a buscou desde muito cedo. Estudou e lecionou em Cartago
(retórica) quando adolescente, cidade que ele definia como um caldeirão de criminosos amores. Lá
encontrara uma amante que lhe deu um filho, Adeodato (dado por Deus), que morrera ainda jovem, aos
dezoito anos. Envolveu-se com o movimento maniqueísta, como resultado de uma incessante busca a
respeito da origem do mal. O maniqueísmo foi abandonado nove anos depois, quando após um encontro
com o bispo maniqueísta Fausto, teria se decepcionado com o seu conhecimento apenas convencional
(Narrativas místicas: antologia de textos místicos da história do cristianismo. Maria Clara Bingemer e
Marcus Reis Pinheiro (orgs.). São Paulo: Paulus, 2016. Coleção Amantes do mistério)

66
claro em sua maneira de escrever uma ligação afetiva com Deus, devido à
conversão ter sido numa comunidade de amigos: a amizade é um leitmotiv24 em
sua obra. (antes foi adepto do maniqueísmo: dualismo religioso sincretista que
se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império Romano no Século
III d.C. e IV d.C., cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência de
um conflito cósmico entre o reino da luz -o Bem- e o das sombras, o Mal).
A importância de Agostinho na história do cristianismo imensurável. Ele é
chamado de o doutor da Igreja e o mestre do Ocidente. Se com os teólogos de
Alexandria se inicia uma atitude positiva perante a filosofia, como Bispo Hipona
é superada qualquer hesitação a esse respeito, se estabelecem a partir dele os
fundamentos da filosofia cristã. Com Agostinho, a filosofia cristã atinge o seu
apogeu; para ele, a filosofia era um exercício constante da razão buscando a
transcendência, através daquilo que acessível a condição humana. Assim,
Agostinho, como poucos ao longo da tradição crista, conciliar fé e razão, mística
e conhecimento. Bernard McGinn (2012) afirma, contra aqueles que negam a
mística em Agostinho, que este foi um autor que deu considerável atenção ao
elemento místico no cristianismo, sendo por esse razão chamado de “o Príncipe
dos místicos”.
Como bispo de Hipona fundou um mosteiro e submeteu clero à "regra dos
apóstolos". Em 397 codificou o modo de vida de seus monges (Praeceptum):
oração, trabalho intelectual atividade pastoral ou manual; união de coração e de
alma (partilha) e práticas religiosas. Até mesmo o espírito que norteia a
comunidade: o amor é a razão de ser do mosteiro e este deve testemunhá-lo. Os
mosteiros são ancoradouros do amor, onde a cidade de Deus tende a visibilizar-
se entre os seres humanos, são sinais de unidade na Igreja una. No início
Agostinho entendeu a vida no mosteiro como busca comum de Deus, mas
posteriormente finalizou-a como um serviço à Igreja missão de doar Cristo a
cada geração.
Para ele, no mosteiro vive-se como spirituales amatores, e a vida
celibatária associada são a vida social por excelência, pois se renuncia
ao próprio para se viver da caridade; no monaquismo urbano não se
tratava mais de fugir da cidade dos humanos, mas de não contaminar-
se com as seduções do mundo. Para Agostinho a Trindade é a meta da
experiência cristã, Cristo, o caminho, e a Igreja, como fraternidade
universal, o lugar de sua realização25
Apresento rapidamente elementos fundamentais que de modo geral
definem sua espiritualidade e o que especificamente é novidade em sua vida:
 Deus está na raiz de toda existência humana: todo ser humano é impelido pela
força de seu amor ("...oh Deus que sois amado por todo ser que pode amar, quer
seja consciente ou não...", Soliloquia);
 A vida do ser humano se desenvolve numa busca perene de Deus e de si
mesmo. Sua existência é percebida como um paradoxo que se move entre um
desejo infinito e uma capacidade real de extrema indigência. O ser humano é
imagem de Deus no interior (Gn 1, 26-27), e semelhança, no exterior. As virtudes
teologais: fé, a esperança e a caridade (1Cor 13,13) reconstroem no humano a
imagem trinitária;

24
Ideia, fórmula que reaparece de modo constante em obra literária, discurso publicitário ou político, com
valor simbólico e para expressar uma preocupação dominante.
25
MONDONI, Danilo. Teologia da Espiritualidade Cristã. São Paulo, Loyola, 2000. p. 38.

67
 Citando a Regra em geral tem como direção o amor inefável que tem como fonte
a trindade que se endereça aos seres humanos:
O amor é o principio de todo agir (de Deus e dos seres humanos). O
amor social prefere as coisas que se podem desfrutar em comum às
coisas próprias, e entende-se como amor a Deus e ao próximo e como
amor ordenado de si; os outros são amados não como bens próprios,
mas por que estão destinados à cidade de Deus. O amor privado é tudo
aquilo que está fechado em nosso interesse pessoal, amor por aquilo
que é contingente, amor desordenado de si; gera a soberba que está na
raiz de toda frustração e agressividade. “Todos os nossos trabalhos
tendam ao bem comum...Medireis o avanço na vida espiritual pelo cui
dado que poreis nas coisas comuns” (Regra 5,31);
 A vida espiritual consiste a partir da fé converter o homem carnal ao homem
espiritual ou inteligente. Todo ser humano está envolvido na herança de Adão
pecador: este provocou uma situação de morte espiritual, um enfraquecimento da
liberdade, e levou o ser humano a escravo de suas vontades, um estado constante
de guerra entre as aspirações da alma e o sentir corpóreo. O ser humano histórico
é uma imagem deformada, estimulado ao amor de si; sair deste estado significa
dar novamente ao humano sua imagem primeira, criar nele um contínuo processo
de assemelhar-se ao Deus uno e trino;
A vida cristã é uma tensão contínua para o amor de caridade: a piedade
consiste no amor. A via que conduz à caridade é a humildade: esta é a principal
lição de Jesus Cristo e a medida do progresso espiritual, ou seja, como Jesus
Cristo ele é o termo, como humano encarnado do seio do Pai se apresenta como
a via;
Mas esta caridade não tem como fonte uma ideologia, sistema político ou
econômico, um serviço social, ou projeto fundado por alguém com inciativas
específicas como ONG’s, mas para se atingir a caridade necessita-se da oração:
o desejo de Deus é a oração. A oração é sentida como experiência humana do
amor de Deus que se faz presente, como luz interior, gratidão, petição, e como
comunhão humana universal (podendo chegar até onde não se dá a concórdia
entre os fiéis): consiste num trato amoroso com Deus.
Assim o ponto fundante, como já vimos, é o amor, via obrigatória para o
conhecimento interpessoal: faltando a comunhão, a confiança recíproca, resta
apenas a ideia da pessoa. A amizade é a condição normativa para se viver a vida
humana em nível pessoal; fundamenta-se na natureza do ser humano, cujo
grande desejo é amar e sentir-se amado, somente em Cristo as relações pessoais
podem ser fiéis, externas e felizes. Este é o maior bem que serve as
necessidades da vida.
A visão escatológica e eclesiológica apresenta a história com uma
finalidade: culminar com o triunfo da cidade celeste. Sublinha a caducidade de
toda civilização ante a vocação sobrenatural da humanidade. A Igreja (mãe
espiritual) é aproximativa a porção terrestre da cidade de Deus, mas nem todos
os seus membros pertencem à comunidade dos eleitos que vivem à margem da
sociedade visível dos cristãos. A partilha entre amor sui e amor Dei se dá no
fundo do coração, no segredo de Deus;
Para padre Vaz (2000), Agostinho é reconheci somente um mestre da
mística ocidental, dando a ela uma nova expressão latina e genuinamente crista
da estrutura conceitual da contemplação neoplatônica. A mística agostiniana
seria: mística “mistérica paulino-joanina”, na qual o polo objetivo da experiência

68
se manifesta como presença divina no mistério do culto, ou como presença
mistérica no sentido estrito: presença do Senhor nos sacramentos. A Igreja se
torna também fundamental nesse processo místico, já que todo o progresso em
direção a Deus ocorre exclusivamente dentro dela própria. Por tais razões, não
há dúvida de que Agostinho deve ser considerado um místico da tradição cristã.
Encerro citando este texto26 para degustar suas obras que são mais do que
escritos intelectuais, mas verdadeiras experiências contemplativas de Deus em
sua vida:
“Onde habitas, Senhor, na minha memória? Em que recanto dela habitas? Que
esconderijo aí construíste, que santuário edificaste? Deste-me a honra de habitar em
minha memória, mas em que parte? É o que estou procurando. Ao recordar-me de ti,
ultrapassei as regiões da memória que também os animais possuem, porque ai, entre as
imagens dos seres corpóreos, eu não te encontrava. Passei às regiões em que depositei
os sentimentos do espírito, e nem mesmo aí te encontrei. Entrei na sede da própria
alma - pois o espirito também se recorda de si mesmo-e nem ai estavas. Como não és
imagem corpórea, e tampouco sentimento de um ser vivente como alegria, tristeza,
desejo, temor, lembrança, esquecimento e outros semelhantes, assim também tu não
pode ser o próprio espirito, porque és o Senhor e Deus do espírito.E, enquanto todas
essas coisas são mutáveis, tu permaneces imutável acima de todas elas. E te dignaste
habitar na minha memoria desde que te conheci. Mas por que procurar em que parte
habitas, como se na memória houvesse vários compartimentos? E certo que nela
habitas, pois recordo-me de ti desde o dia em que te conheci. E é aí que te encontro
quando me lembro de ti. Todavia, onde é que te encontrei, para poder conhecer-te?
Não estavas na minha memória antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei,
para conhecer-te, sendo em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço.
Que nos distanciamos, que nos aproximemos de ti, espaço não há. Tu, a verdade reina
em toda parte sobre todos aqueles que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a
todas as consultas diversas que te são apresentadas. Respondes com clareza, mas nem
todos entendem claramente. Todos te consultam sobre o que querem, mas nem todos
ouvem sempre o que querem. Servo fiel é aquele que não espera ouvir de ti o que
desejaria ouvir, mas antes deseja aquilo que ouve de ti. Tarde te amei, ó beleza tão
antiga e tão nova! Tarde de mais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te
procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas
criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas
criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito
rompeu minha surdez. Fulguraste e brilhaste, e tua luz afugentou a minha cegueira.
Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho
fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz”
Confissões X,25-27

Espiritualidade Beneditina

26
O livro Confissões é uma célebre obra autobiográfica de Agostinho, na qual ele narra sua própria vida e
sua evolução espiritual, desde sua infância até sua conversão ao cristianismo. É, sem dúvida, o livro mais
lido de Agostinho e narra diversas experiências místicas que ele teria tido enquanto dava vazão a sua
intensa vontade de encontrar a verdade definitiva. Fonte: Confissões. Bragança Paulista: Ed. Univer
sitária São Francisco, 2008. (X. 25-27)

69
Bento de Núrsia27 foi o verdadeiro fundador do monaquismo ocidental
(antes dele foram fundadas ermidas e comunidades cenobitas: alguns autores
chamam de monaquismo primitivo). É um fenômeno autóctone (que surgiu ao
mesmo tempo em vários lugares) com características especificas em cada lugar
(Egito, Síria, Palestina, capadócia). Ele aperfeiçoou, com certa independência, as
regras de Pacômio e Basílio. A união de trabalho e oração constituiu o aspecto
novo do monaquismo beneditino, pois no oriente o trabalho apenas preenchia os
momentos livres do monge. Os principais componentes da espiritualidade
monástica que emergem da Regra e da vida de Bento podem ser reunidos em
torno da escuta, da oração, da humildade e da figura do abade. Cito aqui a partir
de um livro28 características essenciais dos beneditinos:
 O monge é caracterizado como um homem em escuta. Deve tolher a máscara
que as fobias e as paixões desordenadas lhe impuseram para ouvir sua própria voz,
com suas instancias profundas. Ouvir os irmãos significa acolhe-los como são,
estimá-los como um dom de Deus. A escuta de Deus realiza-se de modo eminente
na acolhida de sua Palavra no coração. A escuta do abade é o momento privilegiado
no qual se pode verificar e construir a escuta de si, dos irmãos e de Deus;
 A oração é a opus Dei, a ocupação principal do monge; na opus divinum a mente
deve concordar com os lábios. Para a oração, Bento se concentra na liturgia das
horas, mas também dá espaço à oração silenciosa. A familiaridade com Deus é
favorecida pela assiduidade da lectio divina (leitura da Escritura ou de obras de
espiritualidade monástica e de edificação);
 A humildade é o fundamento e o sustentáculo da vida monástica. Bento traça
uma escala de perfeição, fundada no exercício da humildade, como ascensão à
plenitude do amor. Ser flexível aos irmãos, dobrar-se às suas justas exigências, sem
fazer das ideias próprias medidas absolutas, é sinal, condição e consequência da
humildade. Seu grau mais alto é a obediência sem hesitação, pois isto é próprio
daqueles que não amam nada nem ninguém acima de Cristo;
 O abade faz às vezes de Cristo (o serviço abacial obtém sua qualificação a partir
da conformidade com Cristo): é pai, imita o bom pastor, é juiz, quer ajudar mais do
que manobrar, é doutor, é mestre da comunidade, e deve ser mais amado do que
temido;
 A comunidade monástica, sob a direção do abade, é pensada como uma família
em Cristo;
 O dia se alterna entre o oficio divino, o trabalho manual e a formação espiritual.

27
Nasce em 24 de março de 480 em Núrsia e falece em 21 de março de 547 (66 anos) era irmão gêmeo
de Santa Escolástica. O papa São Paulo VI designou-o patrono da Europa em 1964, sendo também
patrono da Alemanha. É venerado não apenas por católicos, como também por ortodoxos e anglicanos.
Fundou a Abadia de Monte Cassino, na Itália, destruída durante a Segunda Guerra Mundial e
posteriormente restaurada. O que conhecemos de Bento provém exclusivamente de um retrato espiritual
que o papa Gregório Magno, em 593/594, redigiu para o se segundo livro de seus Quatro Livros do
Diálogo, uma das obras mais lidas da Idade Média. Como pontos biográficos relativamente firmes de
Bento figuram seu nascimento em torno de 480/490, a chegada em Monte Cassino em torno de 530 e a
sua morte entre 550 e 560. Segundo o de Gregório, Bento, como filho de pais socialmente bem situados,
possui meios suficientes para estudar as artes liberais em Roma. Ele, contudo interrompe o tempo de
estudo em Roma, abandona o mundo e torna-se eremita cm Subiaco. Experiências de inveja e intriga
fazem-no partir novamente. A última etapa conduz Bento para o Monte Cassino. Aqui ele se torna pai
espiritual de seus monges, aos quais ele deixa como testamento uma regra monástica (Regula Benedicti,
abreviado RB).
28
MONDONI, Danilo. Teologia da Espiritualidade Cristã. São Paulo, Loyola, 2000. p. 41.

70
Para Bento, o mosteiro é uma "escola". Aí se ensaia “o serviço ao Senhor"
(Scola dominici serviti): “Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do
Senhor. Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado”
(RB. prefácio, 45-46).
Esta escola deve estar aberta para aqueles que “verdadeiramente procuram
a Deus”. Primeiramente se deve provar a motivação. Por isso com mestre de
noviciado deve ser colocado um "irmão experiente, o qual: “seja apto a obter o
progresso das almas e que se dedique a eles com todo o interesse. Que haja
solicitude em ver se procura verdadeira- mente a Deus, se é solícito para com o
Ofício Divino, a obediência e os opróbrios. Seja-lhe dadas a conhecer,
previamente, todas as coisas duras esperas pelas quais se vai a Deus” (RB 58,5-
8)
O objetivo de aprendizagem desta escola, portanto, busca por Deus e
caminho para Deus no caminho da obediência (RB 71.1). Este caminho mostra-
se sempre de novo como retorno para Cristo. Pois buscar por Deus e caminhar
em direção a Deus significam, para Bento, “não preferir nada a Cristo”.
“Ponham em ação castamente a caridade fraterna: temam a Deus com amor;
amem a seu Abade com sincera e humilde caridade nada absolutamente
anteponha a Cristo - que nos conduz juntos para a vida eterna” (RB 72,8-12)
Para Bento, a direção está voltada para o Cristo presente (RB prólogo
14.18: 14,23; 19.1) e a ligação interna para com ele deve estar no centro Todas
as prescrições da regra pretendem dar espaço suficiente para a realidade de
Cristo nas pessoas e fomentar uma gradativa transformação em Cristo. O monge
encontra a Cristo nas Sagradas Escrituras, serve-o no serviço ao próximo
(especialmente nos doentes e hóspedes do mosteiro (RB 36 e 53), obedece-o na
pessoa dos abades e dos coirmãos).
Bento assume a rigidez de obediência exterior de práticas monásticas mais
antigas, como se pode ver na "Regra do mestre" (base textual para a Regra de
Bento), colocando-a moral e teologicamente em nível mais elevado.
Características especiais de sua regra são o equilíbrio e a medida sábia
(discretio). Deve-se evitar a austeridade exterior e qualquer competição ascética.
Especialmente o abade deve deixar-se conduzir pela discretio:
Seja prudente e refletido nas suas ordens, e quer seja de Deus, quer do
século o trabalho que ordenar, faça-o com discernimento e equilíbrio,
lembrando-se da discrição do santo Jacó, quando diz: Se fizer meus
rebanhos trabalharem andando demais, morrerão todos num só dia.
Assumindo esse e outros testemunhos da discrição, mãe das virtudes,
equilibre tudo de tal modo que haja o que os fortes desejam, e que os
fracos não fujam. (RB 64,17-19)

A vida monástica é estruturada de forma precisa. A prioridade está


colocada na leitura espiritual da Escritura, no trabalho e de forma especial a
oração das horas. Pois "nada preferir a Cristo” significa para Bento nada preferir
ao culto a Deus:
Na hora do Oficio Divino, logo que for ouvido o sinal, deixando tudo
que estiver nas mãos, corra com toda a pressa. Portanto nada se
anteponha ao Ofício Divino. (RB 43,1,3) Cremos estar em toda parte a
presença divina e que “os olhos do Senhor veem todo lugar os bons e
os maus”. Creiamos nisso, principalmente e sem dúvida alguma
quando estivermos presentes ao Ofício Divino [...] Consideremos,
pois, de que maneira cumpre estar na presença da Divindade e de seus

71
anjos: e tal seja a nossa presença na salmodia, que nossa mente
concorde com nossa voz. (RB 19.1-2.6-7)
O ponto central da vida de oração é o culto comunitário no mosteiro com
hinos, salmos e leituras (RB 8-18). Para as comunidades dos monges não existe
atividade superior ao louvor a Deus. Façamos uma breve parada de reflexão. O
que significa isso para o tema do seguimento? Quais as mudanças de ênfase
podem ser detectadas. Apresento estas respostas a partir da obra de Chistopher
Benke29
 Também para Bento, o chamado de Jesus para o seguimento, ou ouvir da
Palavra de Deus e o direcionamento para o Cristo, que foi elevado e haverá de voltar, é
o ponto essencial do seguimento.
 Diferente do que nas formas bíblicas de comprometimento (saída,
peregrinação), o monge permanece vinculado a determinado mosteiro, tornando-se
sedentário (latim: stabilitas loci). Se pensarmos no pano de fundo histórico, a
vinculação do indivíduo a um lugar assim como a porta do evangelho às exigências das
migrações dos povos e suas rupturas guerra dos godos, invasão dos lombardos,
inúmeras destruições, um tempo rico em pestes e crises de fome.
 Bento interpreta seguimento segundo a palavra de Jesus, que recomenda sempre
dar preferência a oração: “Jesus disse a eles que deveriam orar em todo o tempo e nisso
ser perseverantes” Lc 18,1. A Jerusalém celestial (Ap 21.1-22.5) é trazida à terra no
amplo louvor a Deus na meditação das Sagradas Escrituras e no trabalho (mandato
cultural).

Espiritualidade Medieval
Com o surgimento do método escolástico aparecem as primeiras análises e
classificações da vida espiritual, em geral, e da oração, em particular, com o
cartuxo Guido II e, sobretudo com a escola parisiense dos cônegos regulares de
São Vitor.
Chega-se a definir a vida religiosa como estado de perfeição, confirmando
a ideia larvada durante séculos de que a santidade é monopólio de um estado de
vida.
Hugo e Ricardo, a partir de um fundo platônico-agostiniano, contribuíram
para a elaboração da mística católica: veem na ação a obra do Verbo, sua palavra
exterior, e em cada criatura uma sílaba que a exprime e a partir da qual o ser
humano deveria elevar-se ao Criador; como o pecado original desfigura a
imagem do criador do universo, vê na humanidade de Cristo novo sinal que
Deus concedeu ao ser humano para chegar a Ele: a humanidade de Cristo
estimula a imitação e conde contemplação amorosa, na qual a alma é desposada
por Deus.
A partir do século XIII os elementos dos séculos XI e XII independentes
um do outro, se unem e se fundem. Os religiosos, em vez de se isolarem em
claustros ou ermidas, partilham a existência de seus contemporâneos, lançam-se
ao mundo pelo fato de ele ser o reflexo do além e por seu valor imanente.
Os artífices desta transformação são os dominicanos e os franciscanos.
Ambos proíbem a propriedade, dedicam-se ao apostolado, e testemunham uma
submissão total à Igreja e à sua hierarquia. Fundados para combater a heresia, os
dominicanos valorizam os estudos e orientam-se para a especulação e a busca da

29
BENKE, Christoph. Breve Hisória da espiritualidade cristã. Aparecida, SP. Editora Santuário, 2011.
p.60

72
verdade. Edificados sobre o despojamento integral, os franciscanos podem entrar
em comunhão com o universo e amar todos os seres.
A espiritualidade dominicana teve um caráter doutrinal, contemplativo e
apostólico, expresso na fórmula tomista: “Contemplare et contemplata aliis
tradere”. Seu caráter original foi confirmado e desenvolvido pelo influxo de
Santo Tomás, que realizou a união do pensamento especulativo e da piedade
ardente.
Para Tomás de Aquino a atuação das virtudes morais é uma premissa
indispensável à vida contemplativa: o êxito contemplativo encontra um
obstáculo insuperável na veemência das paixões e das ocupações externas
(distrações), e tais impedimentos só podem ser superados pela prática das
virtudes morais. Graus da contemplação: prática das virtudes, atos preparatórios
(leitura, oração), consideração das obras divinas, contemplação das virtudes
divinas em si mesmas. O objeto da contemplação é a verdade divina; nem o
místico pode perceber diretamente a essência divina, pois ela está fora da
possibilidade de conhecimento, ao ser humano cabe uma contemplação
imperfeita, como um início de beatitude: a visão de Deus torna-se possível por
meio de um intermediário. Fala também da hipótese de uma visão imediata de
Deus, na qual a única luz do intelecto humano deveria ser um lume da glória de
Deus comunicado momentaneamente ao ser humano. A pregação é uma
continuação da contemplação, porque falar de Deus ainda é falar com Deus.
A vida de Francisco significou uma reação religiosa contra os perigos e
males da cultura urbana: a primazia do humano sobre o institucional, o desprezo
das riquezas que coisificam o ser humano, o valor do simples e natural perante o
artificialismo das necessidades de consumo, o despojamento de todo prestígio e
hipocrisia para se voltar à verdade original, o amor à pobreza como fonte de
liberdade interior, o amor a todo ser vivo, a paz entendida como amor positivo e
universal a todos os irmãos. Foi um louvor ao Senhor através de suas criaturas
(estas não são somente símbolos, mas realidades vivas, filhas de Deus).
Francisco foi uma das pessoas mais abertas às alegrias da vida: cantou e exaltou
todas as criaturas como transparência da gloria e do amor de Deus.
Uma novidade de importância social e espiritual foi à instituição da Ordem
Terceira, oferecendo aos leigos um tipo de vida de oração, caridade e penitência.
A conjunção dos dados tradicionais à difusão da lírica mediterrânea e à
introdução das obras da filosofia antiga provocaram o florescimento da mística,
ou das místicas, pois a variedade das Circunstâncias gerou a diversidade de
tendências e doutrinas: misticismo afetivo das beguinas e freiras holandesas e
alemās Hadewijch e Gertrudes), misticismo especulativo dos dominicanos
Eckhart), e misticismo prático dos clérigos dos Países Baixos Groot e Kempis).
Os itinerários da alma até Deus se resumem nas concepções do diálogo, da união
e da imitação.
O movimento de volta ao evangelho penetrou todas as classes da
sociedade. Nos países do norte motivou muitas mulheres ao abandono do mundo
e à vida de meditação e contemplação, vivendo em casas, mas sem votos. Desde
fins do século XIII os sodalícios das beguinas e dos begardos 30 na Renânia;
encontrados nos Países Baixos, no norte da França e na no século XIII puseram-
se sob a direção espiritual dos dominicanos e franciscanos. A espiritualidade

30
Os begardos foram um movimento religioso cristão que surgiu por volta do ano de 1215 na Alemanha,
estendendo-se pela França, Holanda e Espanha. Foram grupos de pregadores errantes que denunciavam a
corrupção do clero e pregavam uma vida fiel ao Evangelho e a experiência dos primeiros apóstolos.

73
destes se dá por meio da presença de Deus como ser vivo, com quem se partilha
existência. O florescimento da mística nupcial revela a vitalidade de religiosa
dos países germânicos.
Os dominicanos penetraram neste meio e acolheram as mulheres piedosas
que outras ordens recusavam, assumiram sua direção e procuraram, com a ajuda
da dialética, elaborar uma teoria da experiência espiritual (Eckhart, Suso,
Tauler).
Para Eckhart 1260-1327 Deus é o ser absoluto, a plenitude, a perfeição, o
ser supremo mas sem nome inefável que supera toda expressão humana
possível). O desejo de Deus é justificado com a doutrina da emanação: como o
Pai gera o Filho, gera também o ser humano. O retorno a Deus se dá quando a
alma obtém a participação divina, isto é, na união mística; a encarnação de Deus,
as boas obras, as devoções favorecem o nascimento de Deus na alma e da alma
em Deus.
A alma divide-se em parte inferior (princípio vital), superior (as potências
da inteligência e da vontade), e profunda onde se acende a centelha da alma e se
realiza a união com Deus.
A oração ajuda a buscar Deus no fundo da alma e a viver em conformidade
com sua vontade. No retorno a Deus, para conduzir a alma à união com Deus,
insiste na renúncia a toda coisas para reconquistar o próprio eu; o homem, livre
do próprio eu, deixa o espaço a Deus, que pode assim renascer sobre o vazio
deixado pelo próprio eu e, tornado filho de Deus, empreender o retorno a Deus
(Gelassenheit: capacidade de abandonar tudo, que gera a verdadeira e total
liberdade interior: a alma torna-se disponível à ação transformadora de Deus)
Fatigados da logomaquia (luta de palavras dos escolásticos, e atento em
estreitar contato com a massa, muitos mestres se esforçaram em propor meios
cômodos de entreter e inflamar a vida da alma). Tal tendência gerou uma escola:
a devotio moderna.
Gerard Groote 1340-1384 recomendava como primeira condição à
iniciação espiritual a conversão interior acompanhada do empenho de despojar-
se do velho homem para revestir-se do novo; este deve assumir como fim
essencial do cristão a conformidade e a configuração a Cristo; a Escritura impele
o ser humano a seguir Jesus Cristo em sua humanidade, que é a porta de ingresso
da via espiritual. A alma que se punheta no caminho de Cristo prescrevia
ruminar a paixão do Senhor.
Alguns dos ouvintes de Groote passaram a se reunir de vez em quando
para colóquios espirituais; outros passaram a ter a vida em comum e, como não
queriam mendigar, viviam do próprio trabalho (especialmente cópia de
manuscritos). Os Ir mãos da Vida Comum, denominação autônoma dos Amigos
de Deus, provinham de uma comunidade referida a Gerard Groote; para eles foi
escrita a Imitação de Cristo, atribuída a Tomás de Kempis, a fim de que pudesse
constituir-se em pe pequeno manual para a piedade do leigo consagrado (o autor
da Imitação procura entrar no caminho de Cristo, valorizando ao longo de sua
ascensão os sofrimentos e as tribulações inevitáveis da existência para
configurar-se sempre mais a Cristo; a conversão total a Cristo desenrola-se no
caminho de uma vida de amor a Ele).
A espiritualidade seguiu um movimento inverso ao da cultura, e
especialmente à atividade intelectual: enquanto ela ia Cada vez mais ao abstrato,
a espiritualidade insistiu sempre mais na pessoa e na vida do Salvador. Assim
Apresento a história introdutória por alguns místicos na qual renomados autores

74
consideram os pilares deste tempo segundo a obra de Christoph Benke 31. O
momento exato que indica a passagem da Antiguidade para a Idade Média é uma
discussão que não foi definitivamente resolvida, comumente entendida como um
processo que ocorreu desde a segunda metade do século V e o início do VI,
particularmente a partir da queda do último imperador romano do Ocidente,
Rômulo Augusto, deposto pelos alemães no ano 476. Esta transição política da
Europa, que seguiu à queda do Império Romano no Ocidente, foi acompanhada
por processos culturais, sociais e religiosos que foram interpretados como o
início da Idade Média.
As expressões da espiritualidade cristã nesse período foram uma
continuidade do caminho da vida monástica. Manteve-se a tradição segundo a
qual homens e mulheres buscavam um encontro cada vez mais profundo com
Deus através da convivência, do trabalho, da vida austera e, acima de tudo, da
oração em comum. Consequentemente, ao longo deste período, que para alguns
se estende até o século XV, houve muitos destaques na espiritualidade cristã,
mas vale a pena mencionar os processos missionários na Irlanda (séc. V) e
Inglaterra (séc. VI), e os movimentos de renovação do monacato, como o que
aconteceu em Cluny (século X).
Mais tarde, aparecem a figura de Bernardo de Claraval 32 (1091-1153) e a
reforma cisterciense, que buscava um novo rigor na vivência da Regra de São
Bento, dando mais força à segregação do mundo, à solidão, ao silêncio, à
austeridade na vida pessoal e comunitária e ao trabalho simples. Um século
depois (XII), veio à fundação da Cartuxa e um renascimento do eremitismo na
Europa, insistindo mais na oração e ascese pessoais e na pobreza.
Ainda que em termos históricos não se tenha concluído o ciclo da Baixa
Idade Média, há um fenômeno que faz pensar em uma nova etapa do caminho
espiritual cristão. Até aqui, o destaque, ainda que não de modo exclusivo, esteve
orientado à busca de Deus através da oração e de outras práticas ascéticas e
espirituais, incluindo a vida em comum. A partir do século XII, com o
surgimento dos cônegos regulares e, logo depois, com a criação das ordens
mendicantes, no século XIII, aparece um elemento que vai ocupar o centro da
espiritualidade cristã: a missão.
Mestre Eckhart – místico ousado, posto mesmo em suspeita pela
hierarquia eclesiástica – experimenta e afirma que Deus é ser e ser no sentido
estrito apenas Deus é.  Para Eckhart, a criatura qua não existe. (…) Assim, Deus
é totalmente imanente na criatura como sua própria essência, ainda que
totalmente transcendendo-a como o único ser (…) Apenas a auto expressão
ilimitada de Deus em sua eterna Palavra (o Filho) é sua perfeita imagem (…) A

31
BENKE, Christoph. Breve Hisória da espiritualidade cristã. Aparecida, SP. Editora Santuário, 2011.
32
A Idade Média foi de uma riqueza impressionante em termos de mística. No século XII Bernardo de
Claraval, ainda muito jovem, decide ser monge da Ordem dos Cistercienses – novo ramo da antiga
Ordem de São Bento (os beneditinos). Contemporâneo de Pedro Abelardo (1079-1142), bebe sua
formação na Bíblia e nos Padres da Igreja. Para Bernardo, a aquisição dos elementos da doutrina cristã
não deveria acontecer racionalmente, por meio do método dialético, mas através de uma experiência
imediata com Deus, isto é, através de uma experiência mística. A experiência era baseada na fé e essa era
entendida como antecipação da vontade. A mística de Bernardo não foi desenvolvida em tratados, antes
ela se espalha pelos seus sermões. Trata-se de um misticismo de amor, que tem no Cântico dos Cânticos a
fonte inesgotável que irriga sua teologia e que é combinada com a linguagem poética na qual formula seu
pensamento. A experiência mística, para Bernardo de Claraval, é, portanto, a união amorosa entre a alma
e Deus.

75
mente (…) atualiza plenamente esta imanência (…) Antes que presença, Eckhart
fala de identidade (…) O ser da alma é gerado em um eterno agora com (na
verdade, dentro de) a divina Palavra. (…) Na verdade a alma espiritual não mais
prepara um lugar para Deus, pois “Deus é ele mesmo o lugar onde Ele trabalha”
(DUPRÉ, 1987, p.253). Teve muitos seguidores, dos quais um dos mais ilustres
foi Johannes Tauler.  Durante sua juventude como monge dominicano, Tauler
manteve estreito contato com Mestre Eckhart, cuja atividade foi intensa em
Estrasburgo entre os anos 1313 e 1326.  A teologia mística de Tauler tem como
suporte a mística Eckhartiana centrada na noção do grunt, a fusão do humano
em Deus.  Difere desse, entretanto, no acento menor sobre as explorações
filosófico-teológicas de temáticas como a divina natureza. E mantém certa
originalidade em relação à mística Eckhartiana por enraizá-la na vida da Igreja,
sobretudo em sua dinâmica sacramental.  Entendeu o seguimento de Cristo como
processo que abarca uma experiência mística de abandono por Deus que, embora
estranha a Eckhart, pode ser encontrada em outros místicos medievais, sobretudo
mulheres.
Outra mística muito influenciada por Eckhart foi Marguerite Porete,  que
viveu entre a segunda metade do século XIII e início do século XIV. Pertenceu
ao Movimento Beguinal, que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa
leiga na Renânia e Países Baixos. A única obra de sua autoria que conhecemos
– O Espelho das almas simples –  é uma alegoria mística sobre o caminho que
conduz a alma à união perfeita com seu Criador e Senhor e estrutura-se como
um diálogo em que os principais interlocutores são Amor, Razão e a Alma
aniquilada personificados. Seu grande tema é o aniquilamento, descrito como o
estado em que as almas simples adquirem a mais plena liberdade e o saber mais
alto. De Deus, recebe mais saber do que o contido nas escrituras, mais
compreensão do que a que está no alcance, capacidade ou no trabalho humano
de alguma criatura. A alma, sendo nada, possui tudo e não possui nada, vê tudo e
não vê nada, sabe tudo e não sabe nada. Marguerite Porete foi condenada à
fogueira por heresia.
Hildegard de Bingen inaugura um outro tipo de mística, que faz fronteira
bem próxima com a ciência. Sua mística combinava percepções sensoriais de
várias espécies com um conteúdo alegórico-teológico intenso e profundo. Suas
visões lhe surgiam em plena consciência desperta, vendo-as através de seus
sentidos espirituais enquanto permanecia de posse de seus sentidos corporais, e
também eram-lhe causa de sofrimento ou exaustão físicos, muito agravados
quando ela se recusava ou tardava a colocá-las por escrito. A obra mística de
Hildegard se constrói a partir de suas visões: primeiro, são descritas e, depois,
interpretadas. Trata-se de visões cosmológicas, nas quais se assiste à Criação e
ao fim dos tempos. A ambivalência própria do símbolo e a polivalência
significativa estreitam-se na interpretação, sempre conforme a teologia cristã,
mas, nas descrições, sua intensidade e riqueza ficam patentes.
O maior nome da mística medieval é, sem dúvida, Francisco de Assis.  É
ele o primeiro a explicitar a ligação entre mística e conduta moral. Sua mística
tem como centro a pobreza – a quem ele chama de Dama e com quem diz estar
desposado – e o serviço aos pobres. Abandona também o estilo de Igreja
organizada fortemente na sua hierarquização piramidal para se tornar frater,
irmão de todos, sem nenhum título hierárquico. Francisco construirá toda uma
fraternidade com os pobres, vivendo com eles e como eles.  Estabelecerá com os
últimos da terra uma comunhão que não é só de ajuda material, mas de sentidos:

76
“(…) toca-os, beija-os, come com eles da mesma panela, sente a sua pele (…)”.
E seu caminho autenticamente pascal, já que passa por uma ascese
“crucificante” que de tudo se despoja chegando à nudez mais radical em
comunhão com o Crucificado, recebe como graça uma dilatação interior que lhe
permite comungar em maior profundidade com a beleza do mundo até sentir-se
em comunhão com o universo inteiro.  Disso dão testemunho alguns de seus
escritos, como o Cântico do Irmão Sol.
Assim apresento introdutoriamente a mística medieval em seu contexto
para lermos alguns autores propriamente. A obra que nos inspira é de Danilo
Mondoni sacerdote jesuíta. Devido à complexidade busquei aproximar-se ao
máximo aos detalhes sendo fiel ao texto.
Séculos VI-VIII
Os mosteiros se desenvolveram como centros de vida litúrgica e educação
cultural, e suas maiores produções consistiram em orações e cânticos. As
pessoas cultas limitaram-se a salvar a antiga cultura clássica e religiosa.
Como meio para a evangelização, a Igreja contou com os missionários
(grupos de monges enviados oficialmente pelo papa): dentre esses destacaram-se
Agostinho, Columbano e Bonifácio.
No início deste período a ignorância afeta mais o povo que os pastores,
bispos e abades. O baixo clero reside quase todo no mundo rural, sob as ordens
do senhor feudal, para servir a uma igreja fundada por ele, e assemelha-se aos
demais servos e colonos que trabalham nos campos. O alto clero rende tributo ao
sistema feudal e constitui-se em grande senhor, ao mesmo tempo servidor do rei
e do imperador.
A ignorância e a passividade conduzem ao individualismo da piedade. Na
celebração, o clero separa-se cada vez mais do povo. Os ritos não são celebrados
pela comunidade, mas pelo sacerdote em favor da comunidade. Há uma invasão
da mentalidade do AT, provocada, sobretudo do pelas cristandades celta e anglo-
saxã (descanso no domingo, coroações de reis, submissão do povo ao sacerdote,
pureza legal).
O Deus dos povos cristãos germânicos é um senhor terrível juiz dos
humanos, protetor contra as forças do mal quando cumpre o dever - e castigador
quando se rompe o pacto de fidelidade; é o garantidor da verdade, o defensor
dos inocentes juízos de Deus (ordálios), prova do fogo, da água, do ataúde, e o
duelo. A fé significa fidelidade mútua (vassalagem): Deus tem de ajudar o fiel, e
a graça é algo a que se tem direito como mérito pelas boas obras. O pecado é a
ruptura do pacto de fidelidade; por isso Deus tem de castigá-lo socialmente, e
tem de ser aplacado com o sacrifício (esmola, jejum, peregrinação, oração).
As orações passam a ser dirigidas a Cristo. Há o floresci mento de
mediadores e da devoção aos anjos protetores dos seres humanos e das cidades.
Os santos interessam enquanto mediadores, intercessores e protetores das
cidades (as litanias dos santos foram introduzidas por Alcuíno). Incrementa-se o
culto das relíquias, visitas a santuários e a trasladação de corpos. Povos
analfabetos criam uma simbiose entre cristianismo e práxis pagãs sincretistas e
supersticiosas.
No século VII, aparecem as missas privadas, que se popularizam no século
seguinte. Multiplicam-se as missas votivas e os altares (altaristas). Modifica-se a
prática penitencial: confins são e penitências privadas tornam-se habituais.

Séculos IX-X

77
Com o império carolíngio, o norte da Europa substituiu o sul como centro
político e literário. A história religiosa do ocidente conheceu um momento de
florescimento, mas depois, no século X, precipitou-se no caos.
O renascimento cultural e espiritual acastelava-se nas catedrais e abadias,
que se constituíram como centros de piedade, estudo e arte, e, após a decadência
do império, permaneceram como únicas luzes na noite profunda dos séculos IX
e X.
Nos tempos carolíngios, junto ao ordo monasticus, unificado sob a regra
de São Bento, situa-se o ordo cannonicus, uma tentativa de experiência de vida
comum para o clero secular, ordo laicorum, para o qual se escrevem alguns
tratados de vida espiritual de caráter mais moralizante. Jonas, bispo de Orléans
foi o autor do primeiro tratado dirigido exclusivamente leigos: De institutione
laicorum (830), com a predominância conselhos sobre a moral conjugal e a
sexualidade, e De institutio regia (para o bom governo dos príncipes); em 842,
Dhuoda esposa de Bernardo, príncipe de Septimania, escreveu Manual para meu
filho (SC 225), um manual de teologia e de moral para uso de um leigo
(influência dos sete dons do Espírito no processo de perfeição).
A politica nutriu-se da Bíblia e de Santo Agostinho: Carlos Magno intende
encaminhar à Jerusalém celeste o povo que a Providência lhe confiou, ou
construir com ele a cidade da paz e da justiça. Nas letras as melhores produções
foram peças litúrgicas.
Nesse catolicismo prevalece a ética: os escritores reduziram ao máximo as
exposições doutrinais e insistiram sobre as regras de comportamento. Apenas
instruída, a massa recaía no formalismo e na superstição identificação entre
santo e fazedor de prodígios; relíquias e amuletos.
No início do século X, em Cluny, Gorge e alhures, os monges lançaram
uma reforma: para reerguer a Igreja e seus membros é necessário reconduzi-los
às origens; a reforma se resume em viver integralmente o evangelho. Para pôr
remédio à decadência e anarquia do século X, o ideal era remodelar a criação,
desfigurada pelo pecado, à imagem e segundo a visão de Deus, e de instaurar
desde já o reino de Cristo. Para a sociedade civil isto significava unidade, paz e
justiça; para os eclesiásticos, fidelidade à vocação; para a Igreja, liberdade,
primado e controle do estado; e para seus ministros, vida comunitária e
despojada.
Desde o século XI, o crescimento demográfico e o êxodo eram uma nova
economia, fundada no comércio e na estria e proporcionaram uma nova classe
social: a burguesia. Nascem às cidades vilas novas e livres, independentes dos
deres civil e eclesiástico. Ares democráticos, nova economia cultura, ânsia de
viver e desfrutar dos bens temporais que circulam em abundância, cria uma nova
mentalidade. As universidades se originam como necessidade de ampliar os
estreitos redutos das escolas monásticas e episcopais. A cultura se universaliza e
se torna mais leiga. Simultaneamente, e como protesto contra o enriquecimento
da Igreja e dos burgueses, surgem os movimentos pauperistas 33 e anticlericais:
33
Eles contestavam asperamente o modo de viver dos sacerdotes e dos monges dessa época, acusados de
terem traído o Evangelho e de não praticarem a pobreza como os primeiros cristãos, e estes movimentos
opuseram ao ministério dos Bispos uma sua «hierarquia paralela». Além disso, para justificarem as
próprias opções, difundiram doutrinas incompatíveis com a fé católica. Por exemplo, o movimento dos
Cátaros ou Albigenses voltou a propor antigas heresias, como a desvalorização e o desprezo do mundo
material – a oposição contra a riqueza torna-se rapidamente oposição contra a realidade material enquanto
tal –, a negação da vontade livre, e depois o dualismo, a existência de um segundo princípio do mal
equiparado a Deus.  Discurso na audiência geral de quarta-feira, em 13 de Janeiro de 2010, Papa Bento

78
leigos começaram a ensinar e soerguer os costumes; sem mandato oficial,
revoltam-se quando as autoridades religiosas querem controlar seu
comportamento; impõem-se às multidões pelo ardor, ascetismo e caridade
(cátaros ou albigenses, e valdenses).
No século XI, muitos cônegos passaram a viver em comum e submeteram-
se à regra de Santo Agostinho. Um grande número de monges retornou aos
ancestrais: uns decidiram-se pela observância literal da regra beneditina
(cistercienses), outros remontam aos padres do deserto e, às vezes, ao
eremitismo (cartuxos),
A partir do século XI, as obras de caridade tornam-se a razão de ser de
uma série de grupos religiosos e leigos. Numa época em que as estradas eram
ruins e a segurança precária, alguns pensam em ajudar os viajantes, peregrinos e
mercadores: surgem hospedarias, instalam-se congregações hospitaleiras. Os
novos institutos acolhem os necessitados.
O renascimento da literatura espiritual começou nos séculos XI e XII. As
virtudes recomendadas nestes séculos procedem na mesma disposição
fundamental: o despojar-se de Sie das coisas. Reformadores e místicos são
tocados pela humildade e pobreza de Cristo: humildade significa renúncia ao
pessoal, submissão da vontade própria; o despojamento efetiva das riquezas
aparece cada vez mais como à condição sine qua non (sem a/o qual não pode
ser) da salvação.
Na literatura religiosa dos séculos XI e XII, os exercícios espirituais
ocupam mais lugar do que as virtudes. Uma dupla missão os assinalava: nutrir as
virtudes, e manter e estreitar união com Deus. A análise da técnica da vida
espiritual depende do temperamento do escritor: uns como Bernardo, são mais
práticos; outros, como os vitorinos, apegam-se mais à teoria. Das leituras,
meditações e orações há um tríplice objeto: a criação, Cristo e a Virgem. O
mundo aparece como uma teofania. Há uma predileção crescente pelo Cristo
mediador redentor, pela humanidade de Jesus; a devoção a Cristo-homem, que já
se encontra em Pier Damiani, densifica-se por volta do ano 1000, e Bernardo dá
consistência à nova mentalidade; a festa de Corpus Christi coroou este
movimento. Da liturgia, a ave-maria passa à devoção privada, e os autores
(Eadner, Bernardo) desenvolvem as razões de se venerar Maria.
Bernardo 1112-1153 o doctor melífluo, foi polifacético: místico, poeta,
organizador, pregador popular, escritor combativo, “controversista” e
“polemista”, monge, fundador de mosteiros, teólogo e mestre espiritual; se em
teologia foi um compilador dos Padres, em espiritualidade foi um inovador.
Apresenta um quadro completo da vida espiritual: um itinerário que vai do
conhecimento de si à posse de Deus, da humildade ao êxtase, do pecado à glória.
Embora sendo autor principalmente místico, não se esquece da ascese: o ardor
místico toma corpo e forma na devoção à humanidade de Jesus e à Virgem.
Por volta do século XIV, o mundo ocidental mergulhou em um período de
crise econômica, demográfica e de valores.  O clero católico havia enriquecido e
mostrava costumes dissolutos. Nos Países Baixos, surgiram grupos de homens e
mulheres que viviam em recolhimento e praticavam a pobreza, a humildade, a
obediência e a abnegação.  Tinham o objetivo de reformar a Igreja oficial com
sua vida e seu ensino.
Essas atitudes deram início ao movimento chamado Devotio Moderna que
se espalhou por toda a Europa Ocidental e cuja obra de referência é um pequeno

XVI

79
livro chamado A Imitação de Cristo. A obra destinava-se a todos, sem exceção,
mas principalmente àqueles desejosos de transformar e santificar o seu
quotidiano.

SEGUIMENTO AO CRISTO POBRE MOVIMENTOS DE


POBREZA NA IDADE MÉDIA

O fenômeno de muitos homens e mulheres, de diferentes classes sociais,


que se converteram ao seguimento a Jesus em pobreza voluntária é decisivo para
um novo começo no século XI. São chamados de "pobres de Cristo". O novo
disso é que grande parte não assume a tradicional forma de vida monástica, mas
como leigos buscam, de uma forma inusitada, seguir ao pobre Jesus.
Os movimentos de pobreza eram um fenômeno de massa, e um reflexo
religioso de transformações sociais: desmantelamento do mundo feudal,
surgimento da burguesia, formação da cultura citadina, de desenvolvimento da
economia monetária, nova riqueza e nova pobreza com novas contraposições
sociais. Fica evidente: as antigas respostas são insuficientes.

Os “pobres de Cristo”: Simplicidade do evangelho


O modo como a Igreja do poder, antes nobre e depois clerical, se
apresentava suscitava cada vez mais rejeição. Contra o clero mundanizado, os
“perfeitos” levantavam sua forma de vida ascética, simples e condizente com o
modelo apostólico. Sua vida pretendia ser seguimento comprometido a Jesus.
Disso resultavam comunidades de vida de seguimento a Jesus, que não raras
vezes optar por sair das estruturas civis e eclesiásticas. Eligius Leclere descreve
esta forma de “Subcultura” da seguinte forma: Em muitos lugares e sem
sistemas ou formas definidas, surgem grupos de base, comunidades de base que,
por reação contra o poder e a riqueza do alto clero, querem voltar à
simplicidade pobreza do evangelho e ao estilo de vida das comunidades do
cristianismo primitivo; querem, pois, retornar a uma forma de rela mais
fraterna e livre. Os diversos movimentos não se originam da burguesia
abastada, mas do povo simples e das camadas sociais recém-formadas,
portanto de simples trabalhadores socialmente invisíveis. Eles são como uma
onda profunda, que sobe das profundezas da alma cristã popular começa a
mexer na instituição Igreja. Os humilhados ou pobres lombardos, pobres
católicos, valdenses ou até os camponeses da Lorena, que em grupo estudam o
Novo Testamento, todos eles são, cada qual a seu modo, testemunhas da
vontade única e comum que era voltar à simplicidade do evangelho! Todos
estão em busca da comunidade cristã fraterna e missionária, que carrega algo
da Igreja primitiva.
Em resumo: os pobres de Cristo querem voltar às raízes bíblicas e
evangélicas. Traços marcantes desse radicalismo religioso são: Influências
dualistas: muitas vezes eram tênues os limites entre a interpretação ascética do
evangelho e dualismo34 (maniqueísta). Daí a afirmação não cristã que o Deus e
Pai de Jesus Cristo não quer ter nada a ver com este mundo malvado e ruim. Por
isso o seguimento a Jesus inclui uma radical separação em relação a esse mundo
e ao consagrar-se a uma vida no âmbito espiritual e divino. Consequência:
34
Dualismo cosmovisão segundo a qual a realidade é constituida por dois pri cipes contrapostos
(formas de ser), um bom e um mau. E importante na história da fe cristá como a heresia dos maniqueistas
(designado segu Lotomania metade do século III dC.).

80
menosprezo da propriedade e inimizade ao corpo. Se não fosse feito nada contra
o dualismo, teria havido deformações heréticas do seguimento a Jesus, como no
caso dos cátaros.
Fuga eremítica do mundo: remontando-se às origens (Padres do deserto,
regra de Bento), uma parte do movimento monástico distanciou-se dos ricos
mosteiros do período. Junto com os convertidos do mundo, os novos pobres de
Cristo embrenhavam-se em lugares selvagens das matas e montes. Segundo
exemplo dos Padres do deserto, eles queriam seguir a Jesus nos "desertos
verdes".
Plenitude espiritual por meio de vida ascética: a pobreza dos pobres de
Cristo é uma crítica ao alto e baixo clero da Igreja poderosa e nobre. De forma
semelhante à tendência rigorista dos inícios da Igreja, a validade da
administração dos sacramentos deveria estar vinculada com a santidade do modo
de vida sacerdotal. No serviço sacerdotal somente deve ser admitido quem é
santo e vive de modo "apostólico", e isso significa: pobre e celibatário.
Em muitos grupos dos pobres de Cristo, o seguimento a Cristo evolui para
um novo modelo de vida religiosa e social - e isso sem a estrutura monástica.
Especialmente os valdenses trazem algo novo.

Por exemplo: os valdenses


Os valdenses tiveram o maior crescimento numérico ali onde a Economia
mais floresce, e isso em todas as camadas sociais. Pedro Valdo (falecido antes
de 1218) era um rico comerciante de Lião, que colocou seu patrimônio a serviço
dos pobres. O evangelho do jovem rico (Mc 10,17-31) foi decisivo para a
mudança de rumo de sua vida (1173). A interpretação de Valdo sobre a pobreza
ultrapassa o usual.
Oh! cidadãos e amigos, eu não sou alucinado como vocês pensam, mas eu
me vinguei destes meus inimigos, que me haviam transformado em escravos
para que eu desejasse mais o dinheiro do que a Deus ...Nos renegamos o mundo
e, conforme o Senhor o recomendou. damos nosso patrimônio aos pobres, e
decidimos ser pobres de modo que não nos preocupamos pelo dia de amanhã,
nem aceitamos ouro ou prata de outrem, a não ser a alimentação e vestimenta
de cada dia35.
Até aí pobreza fazia parte do campo da ascese. Valdo reconhece na
pobreza não somente renúncia, mas muito mais libertação! Onde a propriedade
escraviza uma pessoa, a pobreza pode ser vivida como uma redenção bem-vinda,
como Reiner Strunk esclarece: “A pobreza não somente introduz ao seguimento
a Cristo, mas ela mesma constitui todo o sentido e todo o conteúdo do
seguimento ao pobre Cristo. Por isso, vive-se essa pobreza não na reclusão de
um mosteiro, mas na orientação missionária em relação ao mundo por parte de
pregadores leigos pobres e peregrinos. Esse seguimento expressamente objetiva
o ambiente público, quer estar nas ruas, entre as pessoas. Há uma profunda
convicção que, com essa forma de vida do pobre Cristo e de seus apóstolos, está
sendo oferecida uma libertação, uma redenção, e não algo que fosse opressor
ou gerador de medo”36
Será que o mundo não tem direito a essa mensagem libertadora? Assim
pensavam os pobres de Cristo. A disputa desencadeada por essa questão acerca

35
BENKE, Christoph. Breve Hisória da espiritualidade cristã. Aparecida, SP. Editora Santuário, 2011.
p.90
36
Ibidem

81
da pregação leiga dura até a metade do século XII. A cultura citadina e o
ambiente dos pobres de Cristo criam ofundo sobre o qual aparece Francisco de
Assis (1182-1226).

Francisco de Assis
“Quem se aproxima dele deve pensar em Cristo". Esta frase de Romano
Guardini 18851968 sobre Francisco caracteriza de forma acertada uma das mais
fascinantes figuras da Igreja, ou até da humanidade como um todo. Francisco é a
simples imitação da vida de Jesus.
Giovanni Bernardone, nascido em 1181/82, chamado por seu pai de
Francesco (“pequeno francês”), estava destinado para uma carreira no comércio
de tecidos de seu pai. Musicalmente dotado, tornou-se o ponto central dos jovens
elegantes de Assis. As canções dos trovadores entusiasmavam-no tanto quanto o
mundo dos cavaleiros. A experiência de prisão por um ano após uma guerra
entre cidades, doença e especialmente o encontro com leprosos abriram-lhe os
olhos e permitiram-lhe vivenciar uma conversão. Os esforços para reconstrução
de igrejas em ruinas distanciaram-no de seus amigos, levando também à ruptura
com seu pai (1206). Francisco passou a integrar o grupo dos penitentes e passou
a viver de maneira reclusa. No evangelho do envio dos discípulos (Mt 10) ele
viu expressa, em 1209, uma nova forma de vida em pobreza e pregação
apostólica itinerante. Os primeiros companheiros juntaram-se a ele. O papa
Inocêncio III deu-lhes permissão oral para a pregação de arrependimento.
Surgiu um novo movimento de renovação da Igreja, que experimentou
rápido crescimento. Após diversas viagens missionárias, Francisco entregou a
balcão da ordem e passou a viver no Monte Alverne totalmente dedicado
Oração. Ele faleceu em 1226 em Assis, e já em 1228 foi declarado santo.
Realização direta do evangelho - esse é o programa de Francis idade,
fraternidade e pobreza são imprescindíveis. Com isso já amos mencionando
alguns traços da espiritualidade franciscana.

Viver o evangelho
Segundo suas próprias indicações, a experiência fundamental de Francisco
foi o encontro com um leproso. Inicia-se uma reorientação de vida que, como
processo, dura a vida inteira:
O Senhor deu a mim, ao irmão Francisco, iniciar a vida em
arrependimento: pois quando eu vivia em pecado era-me muito amargo ver
leprosos. E o próprio Senhor me conduziu até eles, e eu lhe mostrei
misericórdia. E quando me afastei deles, aquilo que me parecia ser amargo
transformou-se em doçura da alma e do corpo. E depois demorei algum tempo e
abandonei o mundo. (Testamento 1).
Orientado pelo exemplo veterotestamentário, o “abandonar o mundo”
(exivi de saeculo) pode ser considerado como o "êxodo franciscano". A ruptura
com a sociedade da época leva Francisco ao direto seguimento a Jesus. Para lá -
e para nenhum outro lugar - Francisco se sente atraído. Por isso ele ora:
Concedei-nos a nós míseros praticar por vossa causa o que
reconhecermos ser a vossa vontade e querer sempre o que vos agrade, a fim de
que, interiormente purificados, iluminados e abrasados pelo fogo do Espírito
Santo, possamos seguir as pegadas de vosso Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo.
(Carta à Ordem, 50-51).

82
Para Francisco, seguimento significa "viver segundo a forma do santo
Evangelho" (Testamento 14). A norma de sua vida e de seu agir reside no
consequente seguimento a Cristo. Portanto, a regra de Fran cisco consiste
somente de textos do evangelho (jovem rico, sermão de envio, aceitação da
cruz). Francisco identifica tão fortemente o seguimento a Jesus Cristo com
pobreza, que ambos se tornam para ele conceitos intercambiáveis. Seu legado
para as irmãs de Clara afirma:
Eu, Frei Francisco, pequenino, quero seguir a vida e a pobreza do
Altíssimo Senhor nosso Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe, e nela perseverar
até o fim. (Ultima vontade para Santa Clara, 1)
As diferentes estações de sua vida (Foligno, Assis, Porciúncula) acarretam
roupagens sempre mais pobres para Francisco. Por fim ele morre nu, estirado
sobre o assoalho.
Seguimento em pobreza e não violência
Francisco estabelece uma ligação entre pobreza e não violência. Renúncia
à propriedade significa renúncia à autodefesa. Em conversa com o bispo de
Assis, Francisco esclarece:
Senhor, se nós possuíssemos qualquer patrimônio nós necessária mente
deveríamos ter armas para nos proteger. Disso, contudo, resultam brigas e
intrigas, e por meio disso o amor a Deus e ao próximo é fortemente impedido. E
por isso nós não queremos possuir nada neste mundo. (Lenda dos Três
Companheiros, cap. IX, 35).
Seguimento ao pobre Cristo é seguimento ao Cristo desprotegi do. Quem
age sem violência pode construir paz. Método e objetivo devem coincidir.

Viver fraternalmente
Segundo o sermão do envio de Mateus 10, tão importante Francisco, ele
quer que sempre haja dois irmãos juntos. Esta a emergente comunidade crista,
que causa impacto, não segue o modelo eclesial da comunidade primitiva de
Jerusalém. O que está diante de Francisco é o Jesus peregrino e sem lugar fixo,
que, sem uso de violência e estabelecendo paz, peregrina pela Palestina e
anuncia o reino de Deus. De sua pregação do reino de Deus também faz parte a
visão da criação fraternalmente interligada. O famoso Canto ao Sol aponta para
Cristo, pois Francisco não postula nenhuma experiência de Deus ou mística da
natureza desvinculada de Cristo.

Solidariedade com os pobres


Em Francisco, a Cristologia também é a chave para a “mística da pobreza”.
E, na necessidade social e na miséria dos pobres, mostra-se o rosto de Jesus.
Francisco nunca queria esquecer que o encontro com o leproso, que foi decisivo
para ele, foi um evento quase-sacra mental. A presença de Cristo manifesta-se
nos pobres, mendigos doentes. Francisco sente-se cada vez mais atraído para
eles à margem da sociedade. O caminho em direção aos pobres não é um
caminho de obrigação moral, mas um caminho com promessa e esperança.
Permanecer na Igreja
Francisco tem uma sensibilidade aguçada para os descaminhos possíveis
de vários movimentos de pobreza de seu tempo. Contra tendências dualistas, ele
sublinha a estrutura da encarnação - em todos os níveis. Deus, Jesus Cristo,
Igreja, palavra e sacramento constituem um todo orgânico. Ele adverte contra a
tentativa de retirar algum destes elementos.

83
A palavra do crucificado, que Francisco ouviu em 1206 cm São Damião
(“Francisco, não vês como minha casa está sendo destruída? Vai e levanta-a
novamente!”), é entendida por ele inicialmente de forma literal. Gradativamente
nela reconhece a tarefa de renovação de toda a Igreja. Francisco entende este
trabalho de renovação como sofrimento com o pobre e desamparado Senhor na
cruz:
Desde aquela hora seu coração tornou-se tão vulnerado e
comovi do, lembrando a paixão do Senhor, que sempre,
enquanto viveu, trouxe os estigmas do Senhor Jesus em seu
coração, como depois se patenteou evidentemente pela
renovação dos mesmos estigmas maravilhosamente realizada em
seu corpo e demonstrada com a maior clareza. (Lenda dos Três
Companheiros, cap. V, 14)
Como consequência extrema do seguimento ao Cristo pobre e sofredor,
praticado no sentido de integralidade, Francisco experimenta uma conformação
física com seu Senhor: durante dois anos ele carrega, escondidas por causa de
medo, as marcas das chagas do crucificado.
“Seguir as pegadas e a pobreza do Senhor”: Francisco sido programa numa
atmosfera de bondade cordial, júbilo e cisco, o apostolado do seguimento
consiste nisso que “ele conduz às pessoas com júbilo e alegria para o amor de
Deus” (Exortações 20,2). Ao irmão Leo ele escreve: “De qualquer modo que te
parecer que agrada ao Senhor Deus, e seguir seus vestígios e pobreza, que o
faças com a bênção de Deus e a minha obediência. E, se te for necessário para
tua alma ou por alguma outra consolação tua, e quiseres vir a mim, Leão, vem!”
(Carta ao Frei Leão 3-4)

Espiritualidade da Pobreza
“Pobreza” como programa:
Para os pobres de Cristo, para Francisco e para muitas mulheres medievais
religiosamente motivadas, o Cristo pobre é a imagem dominante para o segui
mento a Jesus. Segundo a compreensão da época, o afastamento em relação à
propriedade é o traço marcante do seguimento.
Para as origens: Francisco formula a saudade de muitas pessoas
religiosamente entusiasmadas de entrar novamente contato direto, sem nenhuma
exigência que atrapalhe, com o evangelho, isto é com Cristo. Francisco -
realização direta do evangelho.
Simplicidade: com a pobreza retorna a simplicidade no se seguimento a
Jesus. O Cristo pobre é simples, é diretamente acessível, digno de ser amado.
Seguir a ele significa dedicar-se novamente à vida simples. A dimensão
institucional (ciência, sociedade, Igreja, teologia) passa para plano secundário
nesta forma de seguimento.
Mobilidade: se Bento ressaltou a estabilidade necessária ao mosteiro e sua
forma de comunidade, com Francisco retorna a mobilidade (cf. o discurso de
envio de Jesus) no discipulado.
Compassio, memoria, imitatio: o que em Bernardo de Claraval já estava
presente é refinado em Francisco, Boaventura e outros escritos dessa escola. A
partir do seguimento nasce a compassio, o sofrer junto por causa de Cristo. O
sofrer junto é elemento da presentificação (memoria) do sofrimento de Cristo.
Ela conduz à imitação (imitatio).

84
MULHERES NO SEGUIMENTO A JESUS – MOVIMENTO
RELIGIOSO DE MULHERES NA IDADE MÉDIA
Sob o ponto de vista religioso. na idade Média é um tempo muito rico.
Interesse vivo e insatisfações religiosas tomaram conta de todas as camadas da
população, fazendo surgir novas e autônomas formas de manifestação religiosa.
A pesquisa mais recente fala do "despertar religioso da mulher e do movimento
religioso de mulheres nos séculos XIII e XIV. Este formou-se basicamente fora
dos mosteiros. Como representantes para o desejo das mulheres de andar por
novos caminhos no seguimento a Jesus pode-se mencionar as beguinas. O termo
abrangente, "mística medieval de mulheres", expressa muito bem o desejo de
muitas mulheres religiosamente motivadas por experiência espiritual mais
intensiva. Muitas alcançaram assim o âmbito fronteiriço de fenômenos místicos
extraordinários.

O experimento das beguinas


O movimento religioso de mulheres da Idade Média não conhece nem uma
figura fundadora nem um lugar de fundação. É conhecido que a partir da metade
do século XII frequentemente grupos de mulheres se reuniam para uma vida
religiosamente orientada, e isso no âmbito da crescente cultura citadina. E
discutido se fatores econômicos (comércio mais intenso?) ou populacionais
(excesso de mulheres?) desempenharam papel importante.
O objetivo primordial desses grupos de mulheres era a experiência direta
de Deus por meio de uma vida segundo o evangelho e c seguimento ao Cristo
pobre. Sua vida espiritual estava marcada por leitura pessoal das Escrituras,
ascese e efetivo amor ao próximo. Com fruto desta busca ha significativos
testemunhos de "espiritualidade mística". Estas mulheres não queriam atuar de
forma apostólica.
Em termos de acompanhamento espiritual, as beguinas foram inicialmente
apoiadas por ordens (premostratenses, cistercienses). Depois que estas se
retiraram do acompanhamento espiritual a mulheres, passou a haver
comunidades autônomas de mulheres. Elas não viviam segundo a regra de uma
ordem, contudo viviam de forma celibatária, em pobreza, observando
determinada ordem de oração e jejum. A decisão por vida celibatária tornava as
mulheres suspeitas de heresias, especialmente aos olhos do clero diocesano:
Justamente por causa disso as mulheres, que sozinhas ou em comunidades
viviam em pobreza voluntária e celibato para assim seguir ao evangelho, eram
chamadas com o mesmo nome herético dado aos cátaros no sul da França:
beguinas.
O movimento das beguinas, cujas origens estão situadas no início do
século XIII especialmente nos Países Baixos, Bélgica, norte da França, norte da
Itália, Boêmia bem como nas ricas cidades ao longo do rio Reno, oferecia uma
forma de religiosidade feminina fora dos mosteiros: comunidades de mulheres
em vida comunitária similar a monástica, mas sem adesão a uma ordem
existente, e sem aceitação uma regra confirmada pela direção da Igreja. As
mulheres estavam mente asseguradas, supridas em termos materiais e podiam se
seu desejo por uma vida em conformidade com Cristo. Herbert Grundmann
explica:

O movimento das beguinas, portanto, não é uma forma especial


de vida religiosa intencional e planejada, mas o resultado do

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movimento religioso de mulheres, na medida em que não eram
incluídas em uma nova ordem religiosa [...] Consequentemente,
as beguinas constituíam uma interessante forma intermediária
entre as ordens religiosas deste período, não pertencendo por si
ao esta do monacal, uma vez que não se tratava de uma ordem
aprovada, mas também não faziam parte do laicato..., uma vez
que as beguinas abandonavam [o mundo], faziam voto de
celibato e levavam [uma vida religiosa] em comunidades, a qual
era legalmente reconhecida, mas organizada segundo regras
domésticas especiais das distintas comunidades, regras a cuja
observância os membros se comprometiam por voto.

O movimento das beguinas atraiu mulheres de todas as camadas e ida des.


Mulheres nobres jovens rebelavam-se contra o casamento. Mulheres de ricas
famílias patrícias fugiam da riqueza (por vezes por meio da separação do
marido) para não terem “parte no patrimônio injustamente adquirido”.
O enriquecimento era visto como contradição ao evangelho. Ao invés
disso, elas realizavam trabalhos (domésticos) com as próprias mãos,
acompanhavam moribundos ou pediam esmolas. A síntese de vida espiritual e
civil possibilitava simultaneamente a ligação com o restante da sociedade.
Dois motivos principais foram responsáveis para que, em torno 550,
começasse a cessar o movimento das beguinas como amplo movimento popular:
sua posição jurídica incerta e a eventual proximidade com círculos heréticos.
Hoje o movimento religioso feminino das beguinas está sendo reavivado em
vários lugares (Bruges, Essen).

Espiritualidade mística de mulheres


Lembrando que mística é uma forma de manifestação da espiritualidade
crista. Tem seu fundamento último no fato de uma pessoa crente viver de forma
totalmente voltada para Deus e estar totalmente aberta para ele. A mística parte
do fato de alguém poder ser tocado por Deus em seu cerne pessoal:
Deus tem o suficiente em tudo; somente no tocar as almas nunca está
satisfeito. (Matilde de Magdeburg, A fluída Luz de Deus, IV, 12)
Ser assim tocado por Deus - é dele a iniciativa - é um mistério indizível.
Exprimíveis e descritíveis são as formas de manifestação originadas por esse
toque, aquilo que a pessoa experimenta como reflexo dentro de si. A origem no
cerne pessoal do ser humano “profundura da alma” é algo primário; os
fenômenos psíquicos sobre postos são secundários. Causa e forma de
manifestação, portanto, não são idênticas. O que em espiritualidade mística pode
ser expresso e descrito é culturalmente condicionado. A consequência é uma
grande variedade em termos de linguagem, imagens e formas práticas. O ponto
de referência comum é Deus uno e trino, e sua revelação em Jesus Cristo.
Para o período de 1200 a 1450 há testemunhos textuais de muitos países
sobre experiências místicas femininas. Trata-se de um fenômeno em toda a
Europa. Apresentamos alguns países e suas representantes:
 Bélgica e Países Baixos: beguinas, cistercienses, Ludgarda de Tongeren,
Hadewijch.
 Sudoeste da Alemanha: dominicanas.
 Saxônia: mosteiro Helfta, Matilde de Hackeborn, Gertrudes a grande de
Helfta, Matilde de Magdeburg.

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 Norte da Itália: Rosa de Viterbo, Margarida de Cortona.
 França: Margarida de Porete.
 Inglaterra: Juliana de Norwich; Margery Kempe.
A mudança de vida de muitas mulheres convenceu muitas pessoas da
época. Biógrafos reconheciam a elas o atributo da santidade. A biografia
espiritual ("Vita") de Maria de Oignies (falecida em 1213). Foi escrita por
Jacques de Vitry (1240), uma importante personalidade dos inícios do
movimento das mulheres, apresenta no prólogo informação sobre a intensa
vivência “religiosa de mulheres santas” (sanctae mulieres) na diocese de
Lüttich. Jacques de Vitry testemunha as seguintes variantes de dons místicos
extraordinários:
Também viste mulheres que sobem a Deus em tão especial e maravilhosa
expressão de amor que adoeceram de tanto desejo, e durante anos não
conseguiram levantar-se da cama. Elas não tinham outro motivo para sua
enfermidade a não ser Ele, pelo qual suas almas se consumiam em saudade,
docemente descansando com o Senhor. Tanto quanto foram fortalecidas no
espírito, tanto também foram enfraquecidas no corpo. No coração diziam - ainda
que quisessem silenciar com a voz: “Sustentai-me com tortas de uvas, fortalecei-
me com maçãs, porque estou doente de amor” (Ct 2,5).

Uma mulher recebeu tão grande dom das lágrimas que, toda Vez
que Deus estava em seu pensamento, dessa meditação jorra uma
enxurrada de lágrimas, de modo que nas faces já havia canais de
lágrimas por causa do frequente derramar-se das mesmas. Ainda
assim elas não esvaziavam a cabeça, mas preenchiam
entendimento com uma força, adoçavam o espírito com unção
morosa, refrescavam até maravilhosamente o corpo, e no ataque
santo de sua torrente alegravam toda a cidade de Deus. As
outras, por seu lado, eram tomadas por tal embriaguez de
espírito que descansavam em silêncio durante quase todo o dia,
enquanto o Rei estava no seu lugar à mesa, não tendo elas nem
palavra nem sensibilidade para coisas externas. A paz de Deus
dominava-as e soterrou seu sentido de tal maneira que não
acordam com gritos, e também não sentiam nenhum machucado
corporal que fossem batidas de maneira forte. [...] Eu vi outra
que por vezes ficava vinte e cinco vezes fora de si durante o dia.
Mesmo na minha presença ela ficou fora de si mais que sete
vezes. Ela permaneceu na mesma posição em que se encontrava,
sem se mover sem cair [...] Quando voltava a si era tomada por
tamanha alegria que se via forçada a mostrar a alegria interna
com dança corporal da mesma forma como Davi saltava após
cada versículo: “Meu coração e minha carne jubilavam no
verdadeiro Deus”. (Jacques de Vitry, Vida de Maria de Oignies,
Prólogo)

Jacques ressalta que no caso dos evidentes carismas das beguinas de


Lüttich se trata de variantes autênticas da ação da graça divina.
Disso se pode depreender: a experiência religiosa e o preenchimento
interior com todas as forças do corpo e da alma desempenhavam um papel
importante para as "santas mulheres” (“mística da vivência").

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Vivência extática, audição e visão etc. passam a estar no centro das
atenções nos século XIV e XV. Isoladamente há representantes que ressaltam o
fator racional-especulativo na desejada união com Deus (Hildegard de Bingen,
Margarida de Porète). Na baixa Idade Média, algumas mulheres sentem-se
chamadas a interferir ativamente na vida da Igreja ou de um país (Brígida da
Suécia, Catarina de Siena). Das realizações da mistica feminina na Europa faz
parte, não por último, sua contribuição para a poesia medieval, como o mostra
Matilde de Magdeburg (1207/08-1282).

BERNARDO DE CLARAVAL

No quadro histórico da mística na Idade Média encontramos Naquele que


pode ser considerado um dos grandes representantes do pensamento medieval:
Bernardo de Claraval. Não é exagero dizer que ele foi um dos nomes mais
importantes do misticismo cristão. Nasceu no castelo de Fontaine, próximo de
Dijon, na França, no crepúsculo do século XI, em 1090. Sua família originava-se
da mais alta nobreza da Borgonha. Dos sete filhos (sendo que seis eram homens)
de Tescelin Sorrel e Aleth Montbard, Bernardo foi o terceiro. Aos nove anos de
idade, iniciou seus estudos na Escola Canônica de Châtillonsur-Seine, onde se
destacou, sobretudo, na literatura. Isso lhe permitia estudar melhor a Bíblia e
dedicar-se por algum tempo à poesia. Por suas conquistas acadêmicas, Bernardo
era admirado e elogiado pelos professores.
Após a morte da mãe, quando Bernardo estava com dezenove anos, foi
tomado pela ideia de se retirar para uma existência de oração e solidão,
decidindo assim ingressar na vida religiosa.
Em 1112, aos 22 anos, Bernardo resolveu ser monge da Ordem dos
Cistercienses-novo ramo da antiga Ordem de São Bento (os beneditinos). As
regras da ordem cistercienses eram muito rigorosas e Bernardo, igualmente
rigoroso, seguia muito bem a todas. Fato curiosamente marcante aqui é a sua
capacidade de persuasão, pois Bernardo convence quatro irmãos e mais vinte e
sete parentes e amigos a também entram para o Mosteiro depois Cisterciano. Sua
irmă permaneceu na vida secular, ma teve a permissão de seu marido e também
se tornou freira no convento beneditino de Jully-les-Nonnains.
Quando terminou seu noviciado, Bernardo foi, juntamente com outros
doze monges, enviado para fundar um mosteiro Langres, que se tornou Claire
Vallée (mais tarde evoluir para Clairvaux, que em português se tornou Claraval).
Essa nova ab dia fundada em 1115 associou seu nome, Abadia de Claraval a de
Bernardo. Em pouco tempo, sob sua direção, se tornou o importante centro
monástico cisterciense, com várias ramificações pela França. Clairvaux,
portanto, foi a matriz ou casa mãe de outras 68 abadias cistercienses. Assim, a
fama de Bernardo lo se espalhou e ele se tornou consultor de monarcas e de
papas Um de seus discípulos, Eugenio III 11451153 foi eleito papa e Bernardo
escreveu a ele o tratado De consideratione, em cinco livros, sobre atitudes e
deveres de um pontífice.
No final da década de 1110 ocorreu a fundação no Oriente da Ordem dos
Cavaleiros do Templo de Salomão, conhecida como os Templários. Alguns anos
mais tarde, Bernardo de Claraval tornou-se um defensor do ideal da Ordem dos
Templários ao tomar conhecimento do objetivo dos monges guerreiros. Foi ele o
responsável por fazer chegar ao papa Honório IIi objetivo dos Templários e,
assim, conseguir o apoio e o reconhecimento da Igreja. Foi no Concílio de

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Troyes, em 1128, que aconteceu o encontro entre Bernardo e o pontífice.
Bernardo de Claraval exerceu forte influência nesse Concílio e, com isso,
conseguiu o reconhecimento da Igreja sobre os Templários. Coube também a ele
escrever o estatuto da Ordem.
Além de sua capacidade intelectual e destacada disciplina, Bernardo de
Claraval também é conhecido por sua especial devoção a Maria, chamada por
ele de "Rainha do Céu", a quem dedicou muitas obras. Conforme a tradição, dele
procedeu tríplice exclamação, após ouvir seus irmãos cantando Salve Regina: "O
clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria!".
Quanto ao aspecto teológico e doutrinal, Bernardo, que viveu no mesmo
século de Pedro Abelardo 10791142 foi contrário à aplicação do seu método
dialético às doutrinas cristãs, pois, para Bernardo de Claraval, a aquisição dos
elementos da doutrina cristã não deveria acontecer racionalmente, por meio do
método dialético, mas através de uma experiência imediata com Deus, isto é,
através de uma experiência mística. Ele bus cava como fonte de sua formação a
Bíblia e os Padres da Igreja.
Com predileção quase que exclusiva pelo Cântico dos Cânticos e também
por Agostinho, Bernardo de Claraval fundou mais de setenta mosteiros, que se
espalharam por toda a Europa, e de outros que se filiaram à Ordem. Foram mais
de quinhentas abadias cistercienses e mais de setecentos monges ligados a ele.
Morreu em 20 de agosto de 1153, aos 63 anos.
A respeito do pecado narra esta bela reflexão: Para Bernardo, com o
pecado (afastamento de Deus, escravidão de si mesmo), a imagem de Deus se
corrompe não se destrói, e a semelhança se perde; porém pode reconstruir-se
com a conversão e a união amorosa com o Verbo. "Sou livre porque sou
semelhante a Deus, sou miserável porque sou contrário a Deus" (Sermões sobre
os Cânticos, 81,9). Deus é o autor da revelação, e o livre-arbítrio é a pura
capacidade de salvação, cooperando com seu consentimento consentir é salvar.
Se caminho da perfeição, duas opções se apresentam ao ser humano: humildade-
verdade, que conduz ao amor de Deus e ao desprezo de si mesmo, e soberba-
mentira, que conduz ao amor de si e ao desprezo de Deus. Como Bento,
descreve os doze graus da humildade, identificando-a com a verdade. O amor,
que mais do que dom de Deus é Deus mesmo, é o principio e a meta da vida
cristã, o termômetro para medir a temperatura espiritual da alma. Os graus da
perfeição sintetizam-se nos quatro graus do amor (carta a Guigo, abade da
grande cartuxa): amor carnal: amor próprio; amor servil e temeroso: o ser
humano ama a Deus por si mesmo; amor filial: o ser humano ama a Deus por ele
mesmo; e amor místico: o ser humano somente ama a si mesmo por Deus, um
amor que Deus infunde no coração humano ("...unindo-se a ele, os dois serão um
só espírito" = matrimônio espiritual). A união com Deus é obra das três pessoas
divinas: da união com o Verbo nasce a humildade, com o Espírito a caridade, e a
perfeição se consuma na união esponsal com o Pai. Nos 86 sermões sobre o
Cântico, Bernardo desenvolve o tema da união progressiva da alma com o
Verbo: essa se converte em verdadeira esposa transformada em Cristo-Verbo,
mediante o amor (Cristo é o esposo, e a alma a esposa). A máxima união
culmina no êxtase, no qual a alma sai de si mesma, os sentidos adormecem, e a
alma afasta-se de si mesma.
São Bernardo tem uma linha de escrita esponsal: Meu amado para mim e
eu para ele. O que não é de se duvidar é que, neste lugar, o amor mútuo dos dois
se inflama. Mas, neste amor, em um está a suma felicidade e, no outro, uma

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admirável consideração. É que não se faz entre iguais este acordo e associação.
Além disso, quem se gloriaria desta prerrogativa de amor que lhe foi concedida e
que, por sua vez, Lhe devolve? Quem presume conhecê-lo claramente, a não ser
aquele que, com especial pureza da mente e santidade do corpo, em si mesmo
mereceu experimentar algo semelhante? Isso está nos afetos. A razão não o
alcança, nem a conformidade. Quão poucos são os que dizem: nós, que com a
face descoberta refletimos a glória de Deus e na sua imagem somos
transformados de esplendor em esplendor, tal como pelo Espirito do Senhor
(2Cor 3,18).

MARGUERITE PORETE
Marguerite Porete, mística e teologia medieval, viveu entre a segunda
metade do século XIII e o início do século XIV. Procedente do Condado de
Hainaut, cidade de Valenciennes, região do Reno, teria pertencido ao
Movimento Beguinal, movimento espiritual que se desenvolveu como
alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinas
viviam em comunidades e sobreviviam do próprio trabalho tecelagem, bordado,
costura, ensinamento de crianças e serviços de damas idosas. Do ponto de vista
da espiritualidade, eram adeptas do evangelismo, perspectiva que se constitui a
partir da emergência dos movimentos mendicantes no seio da expe ciência
religiosa cristã e implica a vontade de conhecer textos biblicos na sua
literalidade, a liberdade de pregação, o amor à pobreza, a contestação do mundo
e a valorização do estilo de vida mais que a doutrina.
O movimento espiritual das beguinas foi um movimento marginal.
Reprovado pelo Concilio de Viena (1311), foi alvo de perseguições pela Igreja
oficial que acusava as mulheres que faziam parte de movimento de se perderem
em especulações loucas sobre a Trindade, a essência divina e outros dogmas, e
em pontos da doutrina sobre os sacramentos.
Pouco se sabe sobre a beguina Marguerite Porete. O que se pode dizer de
sua biografia está apoiado em sua única obra, O Espelho das Almas Simples e
aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor, e no
processo que sofreu. Supõe-se que tenha recebido uma formação solida, a dos
litterati que correspondia à formação dos clérigos. Marie Bertho, num trabalho
em que procura fazer uma reconstrução do ambiente religioso e universo mental
da obra de Marguerite, formulou a hipótese de que ela poderia ter sido uma
copista profissional, o que explicaria a existência de vários exemplares de sua
obra, cuja produção seria inviável para alguém que na dispusesse de boa renda e
também da sua erudição. É provável que Marguerite tivesse contato com os
monges cistercienses da abadia de Villers, centro monástico situado na área
francófona do condado de Hainaut, famoso por seu apoio as mulheres religiosas
e por sua biblioteca. O processo inquisitorial sofrido por Marguerite Porete tem
inicio com a condenação de seu livro por teólogos da Universidade de Paris em
11 de abril de 1309. Vinte e um mestres em teologia são convocados pelo
inquisidor Guillaume de Paris para fazer o julgamento de um livro de que se
retiraram quinze artigos suspeitos. Não se pode saber pelos documentos se esses
teólogos tiveram acesso à obra ou se apenas julgaram os artigos isolados. Antes
do processo oficial, o livro já havia sido condenado por Guy de Colmieu, bispo
de Cambrai que, em 1306, fez queimar o livro em praça pública na cidade de
Valenciennes em presença de sua autoria e proibiu, sob pena de excomunhão,
que ela difundisse ou pregasse suas ideias.

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Consta que Marguerite teria sido detida em meados de 1308 por Philippe
de Marigny, sucessor de Guy de Colmieu, e enviada a Paris, acusada de
propagar o livro aos simples e de enviá-lo ao Bispo de Châlons sur Marne nos
anos que sucederam à primeira condenação. Marguerite teria ficado detida em
Paris para ser julgada pelo Tribunal da Inquisição. O inquérito teoria ido
conduzido pelo inquisidor geral do reino, o dominicano Guillaume de Paris.
Segundo as atas do processo, Marguerite teria se recusado obstinadamente a
prestar juramento e a sofrer inquérito regulamentar, fato que levou o inquisidor a
pronunciar a excomunhão maior. Por um ano ela permanece nessa recusa.
Um ano após a primeira condenação dos artigos do livro pelos mestres em
teologia da Universidade de Paris, realiza-se uma segunda consulta. Marguerite
permanece em silêncio. Acaba, portanto, sendo julgada e condenada não com
base em um depoimento próprio, mas no testemunho de três bispos: Guy de
Colmieu, Philippe de Marigny, Jean de Châteauvillain, e do inquisidor de
Lorraine. Marguerite Porete morreu queimada na Place de Grève, em Paris, no
dia 1° de junho de 1310, impres sionando a audiência, comovida, conforme o
testemunho das crônicas da época, por seu silêncio e pelos sinais de penitência,
de nobreza e devoção:
Porquanto não tenha ela querido abjurar deste libelo ou dos erros nele
contidos, nem mesmo tenha aceitado a sentença de excomunhão contra ela
exarada pelo Inquisidor que a condenava por sua torpeza herética, nem tenha
querido comparecer perante ele, apesar de suficientemente advertida, e por um
ano ou mais tenha sustentado a sua pertinência e finalmente tenha endurecido na
sua militância (militia), finalmente, perante a plateia popular de Gravia, perante
o clero e o povo especialmente convocados para esse feito, pelo conselho dos
peritos foi exposta e entregue ao braço secular O preposto (prefeito) de Paris de
imediato a assumiu sob sua autoridade e fez morrer pela manhã na fogueira.
Entretanto, como testemunharam os olhares que a viram, ao morrer ela mostrou
sinais de penitência, de nobreza e devoção, e assim muitos dela se compadece, e
piedosamente se comoveram até as lágrimas37 69
O livro de Marguerite Porete tem sido, desde meados do século XX, objeto
de estudo de historiadores que a têm considerado como fonte importante para a
compreensão dos movimentos espirituais na Idade Média tardia. O estudo mais
importante sobre essa obra é o de Romana Guarnieri, que em sua pesquisa sobre
o Movimento do Livre Espirito foi capaz de identificar o tratado de Marguerite
Porete que, após a condenação e o fim trágico, preservado em diferentes
mosteiros como um tratado anônimo.
“Quanto ao estilo, a obra é um espelho medieval", isto é, uma instrução
religiosa que, como outros "espelhos", ilumina a vida moral ou espiritual. Mas
não é só isso, é também, por outro lado, e isso torna o livro especialmente
interessante, um romance de amor, um romance alegórico cortês depositário de
uma cultura laica veiculada pela linguagem vulgar; um romance, como outros,
que mistura os gêneros épico, cortês, alegórico e é escrito tanto em versos
quanto em prosa.

37
Testemunho de crônica do século XIV citado por VERDEYEN, P SJ. "Le Proces d'inquisition contre
Marguerite Porete et Guiard de Cressonessart (1309-1310)". In: Revue d'histoire ecclésiastique, 81, 1986,
p. 89.

91
O livro constitui-se numa alegoria mística sobre o caminho que conduz a
alma à união perfeita com seu criador e Senhor estrutura como um diálogo em
que os principais interlocutores são Amor, Razão e a Alma aniquilada
personificados.
Seu grande tema é o aniquilamento, descrito como o estado em que as
almas simples adquirem a mais plena liberdade e o saber mais alto. Aniquilando-
se, reconhecendo-se nada, a alma amorosa de Deus se abre para ter sua razão e
vontade transformadas. De Deus recebe mais saber do que o contido nas
escrituras, mais compreensão do que a que está no alcance, capacidade ou
trabalho humano de alguma criatura. A alma, sendo nada, possui tudo e não
possui nada, vê tudo e não vê nada, sabe tudo e não sabe nada. Nisso consiste,
para essa autora, a liberdade perfeita, recebida gratuitamente de Deus, ao mesmo
tempo que conquistada pela alma, num itinerário doloroso que implica o
desprendimento de tudo o que representa alguma segurança: os mandamentos, as
virtudes, os conselhos, a natureza, o espírito e finalmente o desprendi mento da
vontade, do desejo, que é o grande motor que vai alavancando a alma ao
encontro com a Deidade. Pois, para ela, a alma que não se dispõe a perder sua
vontade não está preparada para falar à “Dama Divino Amor” em sua câmara
Secreta. A bem-amada é aquela que não teme perda nem ganho, senão somente
pelo bom prazer de Amor, pois, de outro a encontraria seu próprio interesse, e
não o dele.
Nesse itinerário descrito por Marguerite Porete, dissolução e
transformação de Amor são movimentos contraditórios de uma alma elevada à
vida divina depois de tombada, pela revelação a verdade sobre si mesma, ao
abismo da maior humilhação. A alma aniquilada pela descoberta de si como
nada encontra a plenitude na unidade com o amor misericordioso de Deve que
vem a ela e a habita. Em seu não saber e em seu nada querer, encontra o tesouro
escondido, contido na Trindade; a saber, a transformação por força do amor faz
com que ela seja o que convém a ela ser. A perspectiva de Marguerite lida,
assim, com a paradoxal mensagem crista que busca unidade com Deus, no
entanto, sem apagar a diferença básica entre Deus e o ser humano e a
singularidade de Jesus Sendo transformada por Amor em Amor, a alma,
perfeitamente livre, é de uma amável nobreza na prosperidade, de uma alta
nobreza na adversidade, e de uma excelente no pobreza em todos os lugares, e
por isso — tira aqui a autora as consequências arriscadas que a levaram a uma
problemática relação com a Igreja em sua dimensão institucional — não procura
mais a Deus. A alma, sendo livre, mais que livre, perfeitamente livre,
supremamente livre pela transformação operada nela, não procura mais Deus
porque se encontra transformada em Deus. Vivendo, agora, da vida divina, tem
clareza sobre a relatividade de mediações que atravessou, submetendo-se a elas
até o esgotamento.
Transformada, a alma aniquilada, ao final do livro, compõe uma canção.
Usando como recurso a poesia trovadoresca, Mar guerite Porete encerra sua obra
anunciando que Deus Longeperto (Loingprés) é Cortesia, e que o Espírito Santo,
o Amor de Deus nela, é delicadeza, doçura, bondade, beleza. Nessa conclusão
poética, ela usa a poesia para finalizar a dificil tarefa que e anunciar Deus,
cantando as transformações que ele nela, sem ela, tem operado. A alma
aniquilada é, aqui, trovadora que canta seu amor infinito a Deus, o rei
absolutamente transcendente, impossível ao seu pensar e ao seu desejar, ao
mesmo tem que louva a Deus, de imensa delicadeza (Fin Amour, cortesia), o

92
Espírito Santo que, habitando nela, a transforma para a vida de perfeita
liberdade, tornando-a espelho do Filho.

Aniquilamento

Porque sou a soma de todo o mal, pois contenho em minha própria


natureza o que a maldade é, portanto, sou pura malda- de. E ele, que é a soma de
todo a natureza, toda a bondade. Portanto, ele é todo bondade. Assim sou a
maldade total e ele a bondade total, e devemos esmolas aos mais pobres, sob
pena de tomar deles o que é deles por direito. Deus não pode cometer uma
injustiça, pois se renegaria. Desse modo, sua bondade é minha, por causa de
minha necessidade e por justiça de sua pura bondade. Já que sou a maldade total
e ele é a bondade total, é necessário que eu tenha a totalidade de sua bondade
antes que minha maldade possa ser estancada. Minha pobreza não pode se
contentar com menos. E sua bondade não me permitiria mendigar, uma vez que
é pujante e forte. Eu seria forçada a mendigar se Ele não me desse a totalidade
de sua bondade, já que sou maldade total.
Pois qualquer coisa menor do que a totalidade da abundância de sua
bondade não poderia preencher o abismo de minha própria maldade. Desse
modo, recebo em mim da sua bondade, por bondade, a totalidade da sua bondade
divina, e a recebi sem começo e a receberei sem fim.

Os sete estados de alma

Eu tenho dito que existem setes estados de alma, alguns mais difíceis de
compreender que outros e sem comparação entre eles, porque isso que
poderíamos dizer de uma gota de agua ao lado do mar inteiro em sua imensidão,
poderíamos dizer do primeiro estado de graça ao lado do segundo, e assim por
diante nos outros, sem comparação entre eles. Entretanto, e os quatro primeiros,
não há um tão grande que a alma não viva aí em grande escravidão. Mas o
quinto é na liberdade da caridade, porque ele é desembaraçado de todas as
coisas; e o sexto é glorioso, porque a abertura do doce movimento que dá o
amado Loin-Près não é outra coisa viva que uma visão do Deus quer que a alma
tenha de sua própria glória que ela possuirá eternamente. E é porque ele Lhe
mostra por sua bondade no sexto estado o que pertence ao sétimo; essa
manifestação provém do sétimo estado e procura o sexto, mas ela é dada tão
rápido, que mesmo a quem é dada não percebe de modo nenhum o dom que lhe
e feito.

O quinto estado, porta de entrada para o país da liberdade perfeita

O quinto estado é aquele no qual a Alma considera que Deus é, ele por
meio de quem todas as coisas são, e ela não é, se não é onde todas as coisas são.
E essas duas considerações lhe trazem uma perplexidade maravilhosa. Ela vê
que ele é a bondade total que colocou nela uma vontade livre, nela que não é
senão maldade total.
Portanto, a Bondade divina colocou nela a vontade livre, por pura bondade
divina. Assim encerrada dentro daquela que não é senão na maldade está a livre
vontade do ser de Deus, que é o ser, e que quer que aquele que não tem ser tenha
ser por meio desse dom. Por isso a Bondade divina emana perante ela um

93
extático transbordamento da Luz divina. Esse movimento da Luz divina, que é
espalhado dentro da Alma por meio da luz, mostra à Vontade da Alma a
correção daquilo que é a compreensão do que não é para assim mover a vontade
da alma do lugar onde ela está e não deveria estar e remete-la para lá onde ela
não está de onde veio e onde deve estar.
Agora a Vontade vê, pela luz do transbordamento da Luz divina (a Luz se
dá a tal Vontade para remeter a Deus essa Vontade, que não pode retornar sem
tal Luz), que não pode se beneficiar se não se separar de sua vontade própria.
Pois sua natureza é má, em virtude da tendência para o nada para o qual a
natureza esta inclinada e a vontade a colocou em menos que o nada. Agora a
alma vê essa inclinação e essa perdição do nada de sua natureza e de sua própria
vontade. Por meio da Luz, ela vê que a Vontade deve querer somente a vontade
divina, sem outro querer, e que por isso lhe foi dada essa vontade. Por isso, a
Alma se separa dessa vontade e a vontade se separa da Alma e se remete se dá e
se entrega a Deus, lá onde teve sua origem, sem nada reter de seu, para realizar a
perfeita vontade divina, que não pode ser realizada na Alma sem tal dom, de tal
forma que a Alma não tenha guerra ou deficiência. Esse dom realiza nela essa
perfeição e a transforma na natureza do Amor, que a deleita com uma paz total e
a satisfaz com o alimento divino Por isso, ela não se preocupa mais com a guerra
da natureza, pois sua vontade foi, com despojamento, recolocada no lugar de
onde foi tomada, onde por direito deve estar. E essa Alma sempre esteve em
luta, pelo tempo no qual reteve dentro dela a Vontade fora de seu ser.
Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da abundancia da
compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada. E assim ela é tudo, pois
vê por meio da profundidade da compreensão de sua própria maldade, que é tão
profunda e tão grande que ela aí não encontra nem começo, nem meio, nem fim,
exceto um abismo abissal sem fundo.
Não encontra a si mesmo quem não pode encontrar a si mesmo. E quanto
mais alguém se vê em tal compreensão maldade, mais compreende, na verdade,
que não pode compreender sua maldade, nem o menor ponto que faz dessa Alma
um abismo de maldade, um precipício onde ela se abriga e se manifesta. Tal é a
inundação do pecado que contém em si toda a perdição. Assim, tal alma se vê,
sem se ver. E quem faz com que se veja a si mesma? É a profundidade da
humildade, que a coloca no trono e reina sem orgulho. Lá, o orgulho não pode
mais penetrar porque ela vê a si mesma e assim não se vê. Esse não ver faz com
que ela se veja perfeitamente
Agora essa Alma descansa nas profundezas, onde não há mais fundo, e por
isso é profundo. Essa profundeza lhe faz ver muito claramente o verdadeiro Sol
da altíssima bondade, pois ela não tem nada que lhe impeça essa visão. A
Bondade divina se mostra a ela por bondade e a atrai, transforma une pela
conjunção da bondade, na pura Bondade divina, da qual é senhora. A
compreensão dessas duas naturezas das quais falamos, a Bondade divina e a
maldade (da Alma), e o instrumento que lhe deu essa bondade. Por isso ela
desep somente um o Esposo de sua juventude, que é um A Misericórdia fez as
pazes com a firme Justiça, transformando tal Alma em sua bondade. Agora ela é
tudo e, assim, na nada, pois seu Bem-Amado a fez uma.
Agora essa Alma caiu do amor no nada, sem o qual ela não pode ser tudo.
A queda é tão profunda, se ela caiu corretamente, que a Alma não pode se erguer
de tal abismo. Também não deve fazê-lo, ao contrario, deve aí permanecer. E a
Alma perde o orgulho e a juventude, pois o espírito tornou-se velho e não a

94
deixa mais entregar ao prazer e a frivolidade, pois à vontade que frequentemente
a fazia desdenhosa, orgulhosa e impenetrável na elevação da contemplação do
quarto estágio, a deixou. Mas o quinto estágio a fez avançar e mostrou a Alma a
si mesma. Agora ela se vê com acende a Bondade divina, o que a faz ver a si
mesma. E esses dois olhares lhe tiram a vontade, o desejo e as obras de bondade.
Por isso ela está em repouso e em posse de um estado de liberdade que, por
excelente nobreza, a faz descansar de todas as coisas.

JOHANN ECKHART

Mestre de fato e de direito, nasceu na Turingia, região da atual Alemanha,


em 1260. Ainda muito jovem, entrou ara a Ordem Dominicana, de modo que em
1277, com apenas dezessete anos, foi mandado a Paris para estudar artes, o que
na época incluía lógica, música, gramática, astrologia, geometria e aritmética.
Voltou posteriormente a cidade para lecionar por duas vezes - a primeira entre
1293 e 1294, e a segunda em 1311, quando assumiu a cátedra – e também para
seu doutoramento em teologia, quando conquistou o título de Meister (Mestre),
entre os anos de 1302 e 1303. Durante mais de três décadas exerceu atividades
eclesiásticas e administrativas da mais alta envergadura, como o e ensino de
teologia e a exegese dos textos bíblicos, administração orientação espiritual dos
conventos dominicanos da Saxônia e as funções de vigário geral da Ordem
Dominicana, o que implica a direção espiritual de uma grande população
feminina de religiosas dominicanas, de membros das ordens terceiras e de
beguinas.
Em 27 de março de 1329, pelo papa João XXII, foi condenado pela
Inquisição por "querer saber mais do que era necessário”, e 28 das 120
proposições de Eckhart, retiradas do Livro das divinas consolações, foram
declaradas heréticas ou suspeitas de heresia. Eckhart morreu um ano antes de
saber que seria considerado culpado pela Inquisição e excomungado. Entretanto,
ainda em 13 de fevereiro de 1327, fez a seguinte declaração de fé e ortodoxia:
Eu, Mestre Eckhart, doutor em sagrada teologia, protesto diante
de todas as coisas, tomando a Deus como testemunha, que eu
sempre reprovei todo erro sobre a fé e toda a corrupção dos
costumes, tanto quanto pude, já que tais erros seriam e são
contrários à minha condição de mestre e contrários também à
minha Ordem. Se, portanto, se encontrar alguma proposição
errônea em fé e moral que eu tenha por acaso escrito, dito ou
pregado, em privado ou em público, em qualquer tempo ou
lugar, direta ou indiretamente, eu a revoco aqui explicita e
publicamente diante de todos e de cada um dos que aqui estão
presentes, como não escritas ou ditas38

Uma das coisas mais surpreendentes em Eckhart é a escoIha do vernáculo


do médio alto-alemão em boa parte de seus escritos, com a adaptação de
conceitos e abstrações do latim para a língua vulgar da época. Note-se que
estamos entre os séculos XIII e XIV, nos domínios de um homem da Igreja, em
que o latim era a língua divina, a única digna para a reflexão teológica e
filosófica, o que leva alguns a traçar um paralelo entre Eckhart e Dante quanto à
38
Narrativas místicas: antologia de textos místicos da história do cristianismo. Maria Clara Bingemer e
Marcus Reis Pinheiro (orgs.). São Paulo: Paulus, 2016. Coleção Amantes do mistério.

95
importância que aquele teria na construção da língua e da cultura alemã. É
preciso mencionar, também, o público a que o Meister se dirigia, em sua maioria
pessoas simples e iletradas, certamente pouco preparadas para os altos voos
intelectuais exigidos por sua pregação. Eckhart recebeu ainda em vida, diversas
criticas por isso foi acusado de ter exposto questões de difícil compreensão a
pessoas incapaz zes de compreender mensagens tão profundas, quando o mais
ajuizado era ter reservado a especulação teológica-filosófica para o ensino em
latim, que era a língua universal dos sábios. A essas críticas o Meister responde:
“Dir-se-á que não se deve falar ou escrever sobre doutrinas profundas para os
iletrados. A isso digo: se não é lícito instruir os iletrados, nunca ninguém se fará
letrado, e já não haverá quem possa ensinar ou escrever. Com efeito, é por isso
que se cuida de instruir os iletrados para que, de iletrados, se tornem iletrados.
Se nada houvesse de novo, nada ficaria velho”.
Em seus tratados e sermões, uma ideia que é constante é a da unidade e
simplicidade do Uno, desse Um que se encontra além de toda multiplicidade e
que constitui a fonte e origem de toda diferenciação. Se cada criatura nega a
outra para se afirmar em sua individualidade, Deus nega a própria negação, pois
na medida em que é a causa de todos as coisas, ele “é Um e nega todo outro,
pois nada está fora de Deus” (Sermão 21). Todo criado é percebido por Eckhart
como em permanente dependência ontológica na medida em que não possui ser,
exceto dessa maneira relacional em que uma coisa é aquilo que nega ao outro
ser: entretanto, mesmo esse ser-lhe “emprestado” de forma transitória, no devir
próprio de todas as coisas marcadas pela temporalidade.
Tentando compreender a Unidade dentro do dogma cristão da trindade, o
Meister propõe uma distinção entre Divinitas (Gottheit) e Deus (Gott), sendo
Gottheit o fundo (Grund) no qual não há distinção, alteridade, operação, relação
ou nome. E Gott (Deus) seria essentia cum relatione, principium, atividade que
se exterioriza na Trindade e na criação de todas as coisas visíveis e invisíveis. A
possibilidade de ser de cada criatura é salvaguardada pela sua preexistência
como imagem originaria em Deus, antes da sua própria criação, momento de
uma diferenciação primeira e nascimento do Filho e de todas as criaturas,
geradas como imagens em Deus. Em seu devir permanente, a criatura recebe o
ser de Deus, na medida em que participa de sua natureza por meio daquilo que
Eckhart vai chamar ora de centelha ou faísca (vünkelin vünke, em latim
scintilla), castelo da alma (burgelin der sele) ou fundo da alma (grunt der sele).
Da unidade divina deriva sua pobreza; da pobreza divina, a exigência de
desprendimento (abgeschiedenheit) e abandono (gelassenheit) mística, pois é
apenas a partir desse desprendimento extremo que “o homem alcança aquilo que
ele era eternamente e sempre continuará sendo” (Sermão 52).

O desprendimento, a completa disponibilidade e a total liberdade

“Tenho lido muitos escritos, tanto de mestres pagãos como de profetas do


Antigo e do Novo Testamento, e procurei com sinceridade e com todo o
empenho a mais alta e a melhor das virtudes, ou seja: a que capacite o homem
a melhor e mais estreitamente unir-se a Deus e tornar-se por graça o que Deus
é por natureza, e que mais o assemelhe a imagem que dele havia em Deus e na
qual não havia diferença entre ele e Deus, antes que Deus produzisse as
haturas, E quando perscruto todos aqueles escritos, tanto Quanto a razão mo
permite e é capaz de percebê-lo, outra sa nao encontro senão esta que o puro

96
desprendi mento ou total disponibilidade tudo supera, pois de certa oma todas
as virtudes visam à criatura, ao passo que o rendimento está desvinculado de
todas as criaturas Eis por que Nosso Senhor disse a Marta: "Unum est ne-
cessarium" (Lc 10,42), isto é: Marta, quem quer ter ar e ser puro deve possuir
uma coisa: o desprendimento cu a perfeita liberdade. Os mestres louvam
grandemente a caridade, a exemplo de
São Paulo, que diz: "Seja qual for a obra que eu faça, se não tiver a
caridade, nada sou" (cf. 1Cor 13,1s). Quanto a mim, mais que toda a caridade,
louvo o desprendimento, E isso porque, em primeiro lugar, o que há de melhor
na caridade é que ela me força a amar a Deus, ao passo que o desprendimento
força Deus a me amar. Orar, é preferivel, de muito, forçar Deus a vir a mim do
que forçar-me a ir a Deus. E isso porque Deus pode entrar mais intimamente
em mim e unir-se melhor comigo do que eu poderia unir -me com Deus. Que o
desprendimento força Deus a vir a me, provo-o assim: a cada coisa agrada
estar no lugar que lhe é natural e próprio. Mas o lugar natural e próprio de
Deus é a unidade e a pureza nascida do desprendi mento. É necessário, pois,
que Deus se dê a um coração desprendido. Em segundo lugar, louvo o
desprendimento mais que a caridade porque a caridade me força a suportar
todas as coisas por causa de Deus, ao passo que o des prendimento faz com que
eu não seja acessível senão a Deus. Ora, não ser acessível senão a Deus vale
muito mais do que suportar todas as coisas por causa de Deus. Pois no
sofrimento o homem visa (ainda), de certa forma, criatura da qual se origina o
sofrimento humano, ao passo que o desprendimento está completamente
desatado de toda criatura. E que o desprendimento não dá acesso senão a
Deus, eu o provo assim: o que deve ser acolhido deve ser acolhido em alguma
coisa. O desprendimento porém, tão perto está do Nada que coisa alguma e
sutil o bastante para nele ter lugar, a não ser Deus somente. Só ele, com efeito,
é simples e sutil o bastante para bem caber no coração desprendido. E por isso
que o desprendimento não dá acesso senão a Deus.
Acima de muitas outras virtudes, os mestres louvam também a humildade.
Eu, porém, louvo o desprendimento e a total disponibilidade sobre toda
humildade; e isso porque pode haver humildade sem desprendimento, mas não
pode haver desprendimento perfeito sem humildade perfeita, pois a humildade
perfeita tende à anulação do próprio eu. Mas o desprendimento toca tão de
perto o Nada que não há o que se interponha entre o desprendimento perfeito e
o Nada. Eis por que não pode haver desprendimento perfeito sem humildade.
Ora, duas virtudes sempre valem mais do que uma só. O segundo motivo que me
induz a louvar o desprendimento sobre a humildade é que a humildade perfeita
se inclina a todas as criaturas e, nessa inclinação, o homem sai de si, em
direção às criaturas, enquanto o desprendimento permanece em si mesmo. Ora,
jamais o sair de si é tão nobre que o permanecer em si mesmo não seja mais
nobre ainda. Por isso dizia o profeta Davi: "omnis gloria eius filiae regis ab
intus", isto é: toda a glória da filha do rei Ihe vem do interior (SI 44,14). O
desprendimento perfeito ou a total disponibilidade não pretende submeter-se
nem sobrepor se a criatura alguma; não quer estar abaixo nem acima, o que ele
quer é estar ali por si mesmo, sem querer nem mal a ninguém, sem querer ser
igual ou desigual a criatura alguma, sem querer ser isto ou aquilo: quer apenas
ser e nada mais. Quanto a ser isto ou aquilo, ele não o quer, pois quem quer
isto ou aquilo quer ser alguma coisa, ao passo que o desprendimento não quer
ser coisa alguma. Por isso deixa estarem todas as coisas, sem importuná-las.

97
Resultado intermediário: Acentos da espiritualidade medieval
O mundo de fé da Idade Média diferencia-se da espiritualidade dos inicios
da Igreja. Uma causa para esta mudança residia no fato de que o cristianismo
tinha de realizar trabalhos de tradução: a revelação bíblica e a cultura da
Antiguidade deveriam agora desenvolver-se no mundo germânico. O desafio
consistia em concretizar fé e vida espiritual em um novo “espaço histórico”.
Assim como os Santos Padres acentuaram o contraste entre a existência Cristã e
o mundo com base na expectativa da iminência do reino, agora interessava mais
o tema da criação. O destaque das perspectivas da criação - mundo e ser humano
provêm da mão criadora de Deus e para lá retornarão - traz novos temas
espirituais natureza, cultura, profissão, emoção, politica, poder. Os movimentos
medievais de leigos não por último são expressão do desejo de seguir a Jesus em
cada profissão e em cada atividade.
Obviamente: quem por motivos de afirmação do mundo e de gozo nas
coisas do mundo entra para o campo de poderes do mundo corre o perigo de
dissolver-se por completo no mundo. Contra esse pano de fundo deve-se ver a
espiritualidade da “fuga do mundo”. Ela é um corretivo crítico e lembra que o
estar-a-caminho e a cruz fazem parte da fé cristã. A Idade Média evidencia uma
amplitude de formas de expressão espirituais. Vamos ressaltar algumas:
Correlação E a estreita correlação entre criação e redenção, entre mundo e Igreja, entre
natureza e graça, entre razão e fé marca a teologia e a espiritualidade.
Escolástica: a tradicional sistematização racional da fé cristã também é aplicada a
orientações da vida espiritual.
Descoberta do indivíduo: o ser humano experimenta-se enquanto indivíduo. A teologia
acentua uma visão pessoal do ser humano.
Desejo da experiência de Deus: espiritualidade torna-se algo pessoal, subjetivo e
interior. Cristo é noivo da alma. O caminho para o interior: a atenção está voltada para o
caminho da alma para Deus. O sujeito crente recolhe-se mais para o interior, para os
próprios espaços da alma.
Emancipação do leigo: a burguesia tem dinheiro. Está sedenta por erudição e
interessada em questões religiosas.
Busca pela concretude da fé: a herança germânica fundamenta o desejo por expressão e
experimentação emocional (sacramentos, ofícios, santos, Maria, relíquias, lugares de
peregrinação, terra santa, levantamento da hóstia como ponto alto da missa, procissões).
Inclinação para a figura de Jesus historicamente verificável: até o século XI é
importante à obra da redenção; agora é ressalta da a pessoa que realizou a obra. Este e
outros motivos levam ao fato de que nas Igrejas antigas a espiritualidade é orientada
pela Páscoa enquanto que a Idade Media cultiva mais uma piedade de Natal e da Paixão.
Sofrer junto: o desejo de sofrer junto com o Cristo sofredor faz surgir representações
dramáticas da paixão de Jesus, tais como colocação de lápides, jogos da Paixão,
veneração das chagas de Jesus etc.
Mediações: anjos, santos, relíquias e especialmente Maria tornam-se conteúdos próprios
de veneração.

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Para o final da Idade Média vale em especial
Desviar para coisas periféricas: onde Cristo não é mais o centro da
espiritualidade vivida e começam a aparecer temas periféricos. No final da Idade
Média a superstição viveu uma fase de alta conjuntura (práticas mágicas,
substâncias curativas, objetos maravilhosos etc.). A confiança exacerbada em
atos de devoção, realizados determinado número de vezes, fez surgir uma
piedade exagerada baseada nas obras. A religiosidade está muito marcada por
grande interesse em fenômenos religiosos externos e extraordinários.
Ruptura: ensino de fé e experiência da fé, teologia e espiritualidade,
teologia e Sagrada Escritura, piedade sacramental e pessoal estão dissociados.
Para o crente do final da Idade Média, a Bíblia e a comunidade litúrgica não são
grandezas absolutamente necessárias.

Devotio moderna: Seguimento como caminho para dentro


Depois do florescimento das ordens mendicantes, certo ideal do
seguimento a Jesus perdeu em força. Desintegrou-se uma unidade até então
autoevidente entre fé e vida. Com a procura de uma percepção sensorial de
religião combinava o aumento de fenómenos místico extraordinários (visões,
audições, profecias). O período da ciência teológica da escolástica tardia
ramifica-se em concepções sistemáticas sem relação com a vida concreta Sob
estas condições, a “piedade moderna” (latim: devotio moderna) buscou
estabelecer, no final (outono) da Idade Media, uma nova forma de reconectar-se
come seguimento a Jesus.
O ponto inicial da devotio moderna foi uma casa da irmandade das
beguinas nos Países Baixos. Ali Geert Grote (1340-84) ajudou "os irmãos e as
irmãs da vida comum a estabelecer uma espécie de regra. O movimento de
leigos misturava formas de vida monásticas e burguesas: celibato (sem voto),
obediência a um superior, roupas uniformizadas, tempos de meditação, ao lado
de contato com a vida publica e com o trabalho. O objetivo era a união de
espiritualidade com atividade burguesa. "Modernas" são as tendências à
experiência, a ativação de forças afetivas e a orientação para o autocontrole.
Observava-se muito atentamente o desdobramento da vida espiritual pessoal. O
cultivo da meditação sistemática e o desenvolvimento de seu método são típicos
da devotio moderna. O documento mais importante é o A Imitação de Cristo,
que, com exceção da Bíblia, é o livro mais difundido do cristianismo. A autoria
de Tomás de Kempis 13801471 é discutida. Em si sem originalidade teológica, a
influência de A Imitação de Cristo sobre a história da piedade é enorme. O
centro da devotio moderna é o Jesus histórico e a imitação amorosa e
contemplativa de sua vida: “Seja pois, o nas principal empenho meditar sobre a
vida de Jesus Cristo” (A Imitação de Cristo 1 1.2)
A contemplação da vida e do sofrimento de Jesus conduz ao se cimento do
Cristo humilde. Rejeita-se todo tipo de religiosidade externa. O objetivo é
“conhecer Jesus por dentro”
O reino de deus está dentro de vós, diz o Senhor (Lc 17.21). Con
verte-te a Deus de todo o coração, deixa este mundo miserável, e
Tua alma achou descanso. Aprende a desprezar as coisas
exteriores e entrega-te às interiores, e verás chegar a ti o reino de
Deus. Pois o reino de Deus é a paz e o gozo no Espirito Santo

99
(Rm 14. 17), que não se dá aos ímpios. Viriato Cristo para
consolar-te, se lhe preparares no teu interior digna moradia.
Toda a sua glória e formosura está no interior (SI 44.14), e só aí
o Senhor se compraz. (A Imitação de Cristo Il 1.1)
Uma pessoa convertida encontra a força criadora da vida interior e da
vivência da religião. Distanciamento em relação ao mundo externo é
incontornável:
O homem interior antepor o cuidado de si a todos os outros
cuidados, e quem se ocupa de si com diligencia facilmente deixa
de falar dos outros. Nunca serás homem espiritual e devoto, se
não colares dos outros, atendendo a ti próprio com especial
cuidado. Se de ti só e de Deus cuidares, pouco te moverá o que
se passa por fora. Onde estás, quando não estás contigo? E,
depois de tudo percorrido, que ganhaste se esqueceste a ti
mesmo? Se queres ter paz e verdadeiro sossego, é preciso que
tudo mais dispenses, e a ti só tenhas diante dos olhos. (A
Imitação de Cristo II 5,4)
O caminho para o interior necessita de um modelo sagrado, especial mente
do exemplo de Cristo. A imitação (imitatio) de uma vida santa não busca uma
forma de vida exterior, mas uma correspondência interior meditativa. Trata-se,
pois, de inserir-se na vida interior do modelo: “Se uma só vez entraras
perfeitamente no interior de Jesus gozarás um pouco de seu ardente amor, não
farias caso do teu proveito ou dano, ao contrário, te alegrarias com os mesmos
opróbrios; porque o amor de Jesus faz com que o homem se despreze a si
mesmo” (A Imitação de Cristo I 1.10)
O objetivo da dedicação meditativa e a vivencia e a experiência enquanto
sentimentos: “Ninguém sente tão profundamente o sofrimento de Cristo como
aquele que passar por sofrimento similar” (A Imitação de Cristo II 12.6)
Para a devotio moderna, a contemplação da vida de Jesus significa a
meditação de sua vida interior. As virtudes de Jesus são humildade. Paciência,
modéstia, portanto, valores interiores. O seguimento a Jesus não se refere ao
caminho de Jesus, a suas exigências e promessas, mas a suas virtudes interiores.
Assim:
A concentração nas virtudes de Jesus (seguimento como imitação de um exemplo ético)
trouxe consigo uma forte orientação ética.
Com o objetivo de trazer de volta a Sagrada Escritura para dentro da prática espiritual
(leitura na língua vernácula), no seu cristocentrismo e em sua crítica a formas exteriores
de religiosidade, a devotio moderna antecipou vários objetivos da Reforma.
Críticos acusam A Imitação de Cristo de unilateralidade o intelecto (em contraposição
ao emocional), a natureza (cm contraposição à graça), o corpo (em contraposição ao e
espírito), a comunidade (em contraposição ao indivíduo são desconsiderados). Contudo:
se nessa unilateralidade não residisse também uma grande força espiritual, esse livro
não teria tido tão grande irradiação, nem teria influenciado tão decisivamente as
espiritualidades voltadas ao mundo como as de Inácio de Loyola e de Dietrich
Bonhoeffer (cf. Cartas da prisão).

Espiritualidade moderna
A reforma gregoriana iniciada na passagem do milênio produziu, entre
outras coisas, um processo de renovação da vida do clero e da vida monástica,
que já destacamos. Esse processo teve como efeito uma transformação na vida

100
da Igreja e dos cânones regulares que conjugaram, de forma inédita, a vida
monástica e o ministério clerical, buscando a presença de uma fé mais aberta no
mundo. Junto a essa novidade no caminho espiritual cristão está o nascimento
das ordens mendicantes, que são um desenvolvimento desta dinâmica espiritual
que busca sair da clausura do monastério para viver em meio à sociedade,
atendendo suas necessidades mais urgentes. As ordens mendicantes têm como
características uma vida de pobreza pessoal e comunitária, uma atividade
apostólica ou missionária, uma vida fraterna menos estruturada e uma maior
mobilidade, o que contrasta com a estabilidade da vida monástica.
As escolas franciscana, dominicana e carmelita são as mais conhecidas e
representam uma novidade que modifica a dinâmica espiritual cristã. Não se
pode perder de vista que o nascimento dessas ordens religiosas ocorreu sem que
as formas de vida monástica e as espiritualidades que as alimentavam deixassem
de existir. As novas formas de vida e de busca de Deus, agora mais centradas na
missão, abrem caminho em meio a um mundo que também foi se modificando,
em direção a uma sociedade menos rural e mais centrada nas aldeias que foram
surgindo.
Nessa fase da história surgiram também as ordens militares, os Cavaleiros
de Malta, a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, a Ordem dos Templários e dos
Cavaleiros do Santo Sepulcro. Da mesma forma, surgiram ordens hospitalares,
como a da Santíssima Trindade e a dos Mercedários. Todas elas, com a intenção
de responder às necessidades de sua época, para as quais não havia resposta
dentro da Igreja a partir da perspectiva da espiritualidade.
A dinâmica de transformação social, política, econômica e cultural deste
período propiciou uma maior comunicação entre as pessoas, criando propagação
maior das devoções populares e das associações de crentes, em torno de projetos
comuns, ordens terceiras, irmandades, grêmios, associações e movimentos
espirituais com maior autonomia frente às grandes instituições eclesiásticas. Os
leigos se tornaram independentes dos mosteiros, paróquias e conventos e
buscaram novas fontes de alimento espiritual. Nesse tempo, movimentos como
os begardos, as beguinas, os Irmãos do Espírito Livre e outras formas de vida
espiritual floresceram sob a proteção dos religiosos das novas ordens
mendicantes. Pelo seu espírito independente e seu afastamento de fontes
clássicas da vida espiritual, alguns destes movimentos se tornaram suspeitos de
heresia e foram condenados pela Igreja.
Deve-se notar, nesse período, a contribuição da escola renano-flamenga,
com figuras como os dominicanos Eckhart (c. 1260-1327), Taulero (c. 1300-
1361) e Suso (c. 1295-1365), que viveram e sistematizaram experiências
espirituais muito profundas que serviram de guia para a busca de um povo
simples. Essa escola, unida à figura de João de Ruysbroek (1293-1382), deu
origem ao que se conhece como a Devotio Moderna, que é “uma reinterpretação
de toda a vida cristã no meio desse contexto de rupturas com tudo o que havia
constituído a estrutura da cristandade medieval” (GÓMEZ, 1987, p.28-29). Essa
corrente renovadora da espiritualidade propunha ênfase maior na prática das
virtudes, chegando a apresentar uma ruptura entre a vida de piedade e a teologia.
O caminho em direção a Deus não era a reflexão teórica, mas a vida de
penitência e caridade prática.
Podemos destacar como características da Devotio Moderna a grande
importância que é dada à interioridade, que faz com que se desenvolva uma
piedade mais privada e subjetiva e se rechace o sacramental e o litúrgico; a

101
solidão, o silêncio e o desprezo do mundo são mais importantes. Frente a uma
tendência mais racional e especulativa, a Devotio Moderna desenvolve o aspecto
afetivo e dá mais relevância ao que vem do “coração”. Ao buscar a proximidade
com Deus, leva-se em consideração a vontade, o coração e a devoção, e menos a
reflexão e a razão. Neste sentido, a ascese é fundamental; valoriza-se mais o
esforço da vontade do que a ação direta da graça, que faz com que a Devotio
Moderna desenvolva um moralismo prático. Por outro lado, concentram-se na
meditação das virtudes e exemplos de Jesus, tal como se encontram em uma
leitura simples (e sensível) dos Evangelhos. Daí a importância e centralidade da
“imitação de Cristo” como um modelo da vida do crente.
Seguindo os passos desta proposta de espiritualidade popular, espalhada
por toda a Europa, acontece na Espanha um período de grandes reformas,
lideradas inicialmente por membros das ordens mendicantes, mas dando lugar,
mais tarde, a grandes figuras como Inácio de Loyola (1491-1556), Juan de Ávila
(1499-1569), Teresa de Jesus (1515-1582) e João da Cruz (1542-1591). Este
período significou um fortalecimento da experiência espiritual a partir de uma
perspectiva eclesial e missionária em um contexto europeu que vivia o
rompimento da Reforma protestante.
No século XVII, o dinamismo da espiritualidade cristã esteve centrado na
França, onde floresceram propostas como a de Francisco Sales (1567-1662),
conhecida como o “humanismo devoto”, ou a do cardeal Bérulle (1575-1629) e
alguns de seus seguidores – João Jacobo Olier (1608-1657), João Eudes (1601-
1680) e Vicente de Paula –, reconhecidos também como representantes da
“Escola francesa”.
Um capítulo à parte poderia ser escrito com o desenvolvimento, durante os
séculos XVI e XVII, da espiritualidade da Reforma protestante, que tinha sua
própria dinâmica sob a liderança de Martinho Lutero, João Calvino e da escola
Anglicana, para mencionar apenas os autores mais proeminentes. Na qual não
trabalharemos, pois não nos interessa.
Os séculos XVIII e XIX permitiram o nascimento de uma espiritualidade
iluminista, desenvolvida no ritmo das transformações desses séculos. Surgiram
escolas espirituais que responderam às necessidades da juventude, como a de
João Bosco (1815-1888); da pastoral paroquial, com figuras como João Maria
Vianney (1786-1859) e Antonio Maria Claret (1807-1870); de fortalecimento
dos leigos com uma proposta de contemplação ativa, como a de Charles de
Foucauld (1858-1916); e de um sentido cósmico de salvação, como proposto por
Teilhard de Chardin (1881-1955).
Poderíamos sintetizar a dinâmica da espiritualidade cristã desde o final da
Idade Média até o fim da era Moderna como uma infinidade de buscas para
realizar a missão de Cristo no mundo. A busca por Deus através da oração
continuou sendo base de todas as propostas, mas a missão de Cristo no meio do
mundo tornou-se o centro das buscas espirituais.
É impossível apontar datas exatas ou momentos específicos de mudanças
históricas, nem é possível dividir os momentos na história da espiritualidade
cristã com precisão. Mas, com o Concílio Ecumênico Vaticano II, vemos o
nascimento de uma nova etapa no desenvolvimento da espiritualidade cristã, que
tentaremos caracterizar para encerrar a síntese proposta neste texto.
Segue resumidamente características de alguns místicos:
A Idade Moderna, com seu movimento de secularização e autonomia do
ser humano em relação ao mundo teocêntrico da Idade Média, produziu, no

102
entanto, grandes místicos.  Em primeiro lugar estariam os do círculo espanhol:
João da Cruz e Teresa de Ávila. Juan de La Cruz nasceu em 1542, em
Fontiveros, Espanha. Oriundo de uma família de aristocratas empobrecidos,
ingressa na Ordem Carmelita aos 21 anos, certamente impulsionado pelos ideais
de solidão e contemplação absoluta dos primeiros eremitas fundadores da
ordem.
Sua mística tem como uma das categorias centrais a noite escura, a qual,
em clara contraposição à metáfora da luz, tantas vezes relacionada
ao insight cognitivo que emancipa o humano das trevas da ignorância, fala da
negação das possibilidades de conhecimento que é assumida como método para
uma experiência que não é nem sensível nem inteligível, não sendo catalogável
pelo nosso sistema de cognição. Apóstolo do absoluto desprendimento e do
absoluto amor, João da Cruz conjuga essas duas características em uma mística
que se encontra na esfera da passividade, onde a dicção mística assume-se
feminina, discurso apaixonado de quem experimenta o pathos da Presença
divina.
Teresa de Ávila foi à primeira mulher a receber o título de doutora da
igreja, por decreto de Paulo VI. Ao lado de João da Cruz, foi a reformadora da
Ordem do Carmo, fundando as Carmelitas Descalças, mais próximas do ideal
místico contemplativo que originalmente orientava a Ordem. Há em Teresa uma
profunda consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência
mística, mas para a própria espiritualidade cristã. Em sua autobiografia, Teresa
defende firmemente a valorização do corpo contra teorias “platonizantes” que
pregavam uma espiritualidade etérea, diz-nos a Santa: “(…) nós não somos
anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra (…) é
desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal.
(…) em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem, e
o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia” (JESUS, 1997, p.203-4).
Essa consciência do corpo como lócus onde a experiência mística se dá aparece
tanto em sua prosa, notavelmente na autobiografia Vida, como em sua lírica, que
se destaca pelo pathos que a atravessa. Esses são versos que impressionam pelo
erotismo místico, pois são, como a própria Teresa o confessa em um de seus
poemas, “nacidos del fuego del amor de Dios que em sí tenía”.
Contemporâneo dos dois místicos acima citados, Iñigo
López, posteriormente Inácio de Loyola, inaugurou uma mística mais
sintonizada com a modernidade e seu novo estilo de vida.  Como cortesão, levou
até os 26 anos vida de vaidades e “mundanidade”. Foi em uma batalha contra os
franceses, em Pamplona, no ano de 1521, que uma bala de canhão atingiu-lhe
gravemente uma das pernas e ele foi obrigado a recolher-se ao castelo de
Loyola, onde viviam seu irmão e sua cunhada, pessoa muito religiosa.  Durante a
longa convalescença, como não houvesse livros de cavalaria que o
entretivessem, começou a ler a Vita Christi do cartuxo Ludolfo de Saxônia e
a Legenda Áurea sobre a vida dos santos.
Uma vez curado, depôs suas armas de cavaleiro e vestiu o burel de
peregrino, passando a andar pelos caminhos da Espanha em penitência e oração,
e analisando e refletindo sobre as experiências que Deus lhe fazia viver. Em suas
andanças teve experiências luminosas e também passou por longos períodos de
trevas e aflição.  Isso lhe deu grande conhecimento sobre a vida no Espírito e
passou a anotar suas experiências e sistematizá-las, a fim de que servissem a
outros.  Assim nasceram as primeiras meditações do famoso livro que escreverá

103
e que se chamarão Exercícios Espirituais, um dos mais importantes livros de
espiritualidade do ocidente cristão, que será um instrumento de formação de
muitos e muitas que desejam crescer na vida espiritual.  Fundou a Companhia de
Jesus, ordem missionária que presta especial obediência ao Papa para o maior
serviço de Deus e das almas.
Ângelus Silesius nasceu na Polônia, em 1624, dentro de uma tradicional
família luterana, tendo como nome de batismo Johannes Scheffer. O
pseudônimo veio depois, com a conversão ao catolicismo (em 1653, aos 28
anos), e faz referência à Silésia, sua terra natal. Em 1653, em circunstâncias não
muito claras, Scheffer converte-se ao catolicismo, começando a escrever sua
grande e única obra mística O Peregrino Querubínico. Pertencendo à mesma
tradição apofática de Eckhart, as imagens desérticas comparecem nos poemas de
Silesius como figuras de uma necessária aporia: a necessidade de ir além Deus,
ultrapassando toda forma de relação objetal entre um eu humano e um Tu
divino.
Aparecem, a partir daí, não tanto grandes figuras individuais místicas, mas
correntes espirituais destinadas a ajudar as pessoas a crescer na sua relação com
Deus, como a “Introdução à vida devota” de São Francisco de Sales e outras.
Os séculos XVII e XVIII na França conheceram algumas figuras místicas
um tanto atípicas, mas cuja contribuição à história mesma do cristianismo, não
se pode ignorar.
Blaise Pascal nasceu em Clermont-Ferrand, França, em 1623.  O talento
precoce para as ciências físicas levou a família a Paris, onde ele se consagra ao
estudo da matemática, notabilizando-se nessa ciência para a qual deu notável
contribuição. Convertido ao jansenismo, desenvolve enorme fervor religioso. Na
sequência de uma experiência mística, em finais de 1654, faz a sua “segunda
conversão” e abandona as ciências para se dedicar exclusivamente à filosofia e à
teologia, num período marcado pelo conflito entre jansenistas e jesuítas.
Recolhe-se posteriormente à abadia de Port-Royal-des-Champs, centro do
jansenismo.  Grande crítico de Descartes, Pascal desenvolve uma mística do
coração, sendo sua a célebre frase “O coração tem razões que a própria razão
desconhece.” Sua visão jansenista faz com que sua mística seja muito
impregnada de um rigorismo moral que o faz ser marcado por uma obsessão da
culpa e da condenação. Moderno, Pascal é herdeiro de Agostinho quanto à
mística e também ao rigor moral, além de fazer da ciência parte integrante de
sua mística.
Jean Joseph Surin nasceu em 1600 e morreu em 1665. Era jesuíta e um
grande diretor espiritual.  De temperamento obsessivo, a vida espiritual o
consumia. Sua missão de ser exorcista no convento das ursulinas de Ludun,
atormentadas pelo demônio, tanto o afetou que o fez oferecer-se a si mesmo para
ser possuído pelo demônio a fim de expiar os crimes terríveis que ali se
cometiam por sua maléfica ação. Foi assim atormentado até o fim de sua vida,
mergulhando em profundas desolações e vivendo em uma tênue fronteira entre a
mística e a loucura. Quando pregava, no entanto, Deus falava por sua boca. Nos
últimos anos de sua vida viveu verdadeira santidade, permanecendo absorvido
na abundância das divinas comunicações.
Além disso,  ainda no século XVII, surgiu na França uma devoção
particular que teve origem nas experiências de uma mística: Margarida Maria
Alacocque, uma religiosa da Ordem da Visitação.  Ela recebeu grandes
revelações por parte de Jesus Cristo, que lhe mostrou os segredos de seu coração

104
e a incumbiu de propagar esta devoção ao Coração de Jesus pelo mundo inteiro.
Esta devoção propagou-se rapidamente, recebendo apoio de papas e bispos e
também o ativo suporte da Companhia de Jesus, que ajudou a divulgá-la e
praticá-la.

Santa Teresa de Ávila


Segundo este autor é possível elucidar resumidamente o ciclo místico de
Teresa em três momentos (ALVAREZ, 2000b, p.1302-1326):
1º Vida de Teresa em família: 1515-1535;
2º Carmelita no convento da Encarnação: 1535-1562;
3º Escritora e fundadora do novo Carmelo: 1562-1582.
Vida em família: 1515-1535
Teresa de Ahumada nasceu em Ávila (Espanha) no dia 28 de março de
1515, filha de D. Alonso Sánchez de Cepeda com sua segunda esposa, D.
Beatriz de Ahumada. Foi batizada no dia 4 de abril. Viveu em família numerosa.
Eram dois irmãos do primeiro casamento de seu pai e nove do segundo
casamento. Seus pais são descritos por ela como “virtuosos e tementes a Deus”
(SANTA TERESA, V 1,1, 1995, p.27).
No Livro da Vida, Teresa nos narra que foi despertada pela leitura “com a
idade de seis ou sete anos” (V 1,1, p. 27) e lia a vida dos santos, com seu irmão
– Rodrigo, poucos anos mais velho. Com ele, decide fugir de casa para a “terra
dos mouros”, com o intuito de morrerem mártires e experimentarem a glória
eterna do céu. Gostavam de repetir juntos: “para sempre, sempre, sempre!” (V
1,4, p.28). Mais tarde, ao relembrar estes acontecimentos, Teresa identificará a
presença de Deus a conduzi-la: “ficava impresso em mim, em tão tenra idade, o
caminho da verdade” (V 1,4, p.28).
Adolescente, lia livros de cavalaria com sua mãe e deixava-se absorver por
essa leitura (SANTA TERESA, V 2,1, 1995, p.30). A morte de D. Beatriz foi
um duro baque. Teresa contava treze anos (embora, num lapso de memória,
escreva que tinha doze) e, ao perceber “o que havia perdido” (SANTA
TERESA, V 1,7, 1995, p.29), escolhe para si “outra mãe” (SCIADINI, 2015,
p.29). Dirige-se a uma imagem de Nossa Senhora, N. Sra. da Caridade, e lhe
suplica que fosse ela a sua mãe. Aos 16 anos, após alguns acontecimentos
familiares, em que entram em cena uma parenta de caráter duvidoso, mas da
qual Teresa passa a gostar para conversas e entretenimentos, e um incipiente
amor que poderia “resultar em casamento” (SANTA TERESA, V 2,9, 1995,
p.33), seu pai decide interná-la no colégio das freiras agostinianas. Ali, pouco a
pouco, a vocação religiosa de Teresa amadurece (SANTA TERESA, V 3,2,
1995, p.34).
Com 18 anos Teresa decide entrar como carmelita no mosteiro da
Encarnação, mas, ao dizê-lo a seu pai, recebe forte oposição. Decide esperar um
pouco, porém, sem mudar de ideia. No mesmo ano em que seu irmão Rodrigo,
grande amigo desde a infância, parte para a América, Teresa leva adiante o seu
propósito – sai de casa também ela, “bem de manhã” (SANTA TERESA, V 4,1,
1995, p.37), sem o conhecimento do pai, e entra para a Encarnação. Tinha então
20 anos.
Carmelita no mosteiro da Encarnação: 1535-1562
Foi na Encarnação, mosteiro da Ordem Carmelita que chegou a ter quase
200 pessoas, que Santa Teresa passou 27 anos, a maior parte de sua vida, dos 20
aos 47 anos de idade. Ali recebeu sua formação como religiosa, sofreu anos de

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enfermidade e viveu um processo espiritual de lutas e amadurecimento, não
isento de incoerências e mediocridade. Ali iniciou a vida mística intensa, com
graças extraordinárias e projetou a fundação de um novo Carmelo. Mais tarde,
voltará à Encarnação como priora.
Alguns acontecimentos são ressaltados por ela mesma. Contrai grave
doença (com cerca de 23 anos), cujo processo de cura levará quase cinco anos.
No momento mais grave, após um tratamento doloroso com uma curandeira nas
proximidades de Ávila, chegam a lhe abrir uma sepultura no convento da
Encarnação. Teresa nos narra como, porém, as irmãs “receberam viva quem
esperavam morta; o corpo, no entanto, estava pior do que morto” (SANTA
TERESA, V 6,2, 1995, p.47). A partir daí lhe sobrevém grande fraqueza, da qual
vai melhorando aos poucos, mas fica “paralítica por quase três anos” (SANTA
TERESA, V 6,2, 1995, p.47). Neste tempo, desenvolve grande devoção a São
José e sente-se curada graças a ele (SANTA TERESA, V 7,8, 1995, p.50).
A morte do pai lhe sobrevém logo depois, ao final de 1543. D. Alonso
morre assistido por Teresa (SANTA TERESA, V 7,16, 1995, p.58).
Segue-se um processo tumultuado na oração e nas buscas por realização,
em que Teresa se vê singrando “um mar tempestuoso, caindo e levantando”
(SANTA TERESA V 8,2, 1995, p.62). A oração convive com incoerências
pessoais e o ambiente na Encarnação não propicia ajuda consistente e solidária
para viver as dificuldades espirituais e existenciais.
Na quaresma de 1554, aos 39 anos, Teresa vive uma conversão diante de
um “Cristo com grandes chagas” (SANTA TERESA, V 9,1, 1995, p.66), fato
que a fortalece por dentro. Inicia-se novo período de vida, com coerência ética e
graças místicas. Experimenta grande sentimento da presença de Deus em si
mesma e da presença dela, Teresa, em Deus: “não podia duvidar de que o
Senhor estivesse dentro de mim ou que eu estivesse toda mergulhada nele”
(SANTA TERESA, V 10,1, 1995, p.70). Locuções internas, êxtases, visões se
sucedem. A “graça do dardo”, conhecida como transverberação do coração,
concede a ela especial experiência do amor de Deus (SANTA TERESA, V
29,13, 1995, p.194). No processo de discernimento das experiências, Teresa
sempre dialoga com teólogos e pessoas experientes na oração, de várias ordens
religiosas.
As graças místicas acontecem concomitantemente ao nascimento do
projeto de fundação de um novo mosteiro, cuja gênese se dá num pequeno grupo
de amigas e familiares (SANTA TERESA, V 32,10, 1995, p.217). Teresa vai,
firme e decididamente, dando corpo a esse projeto.
Deste tempo é também a redação dos primeiros escritos teresianos: as
primeiras Relações e a primeira redação do Livro da Vida, hoje perdida.
Escritora e fundadora do novo Carmelo: 1562-1582
Este período compreende os últimos 20 anos da vida de Teresa, dos 47
anos de idade até sua morte, aos 67 anos, em sua última viagem. É o tempo da
maturidade humana e espiritual de Santa Teresa, em que ela exerce intensa
atividade como escritora e empreende a fundação dos Carmelitas Descalços.
Tudo o que hoje temos da Santa de Ávila – fundações e obras – foi realizado
neste período. Ao fundar o novo Carmelo, adota o nome Teresa de Jesus.
Teresa de Jesus funda dezessete mosteiros, quinze deles pessoalmente: São
José de Ávila (1562), onde Teresa permanece cinco anos, “os anos mais calmos
da minha vida” (SANTA TERESA, F 1,1, 1995, p. 597); Medina del Campo
(1567); Malagón (1568); Valladolid (1568); Toledo (1569); Pastrana (1569);

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Salamanca (1570); Alba de Tormes (1571); Segovia (1574); Beas (1575);
Sevilla (1575); Villanueva de la Jara (1580); Palencia (1580); Soria (1581);
Burgos (1582). Outorga a Ana de Santo Alberto a fundação em Caravaca (1576)
e, a Ana de Jesus, em Granada (1582). Sonha fundar em Madri, projeto não
realizado em vida.
A decisão de fundar inclui também mosteiros masculinos – “eu não parava
de pensar nos mosteiros dos frades (…). Resolvi então tratar do caso
sigilosamente com o prior de Medina” (SANTA TERESA, F 3,16, 1995, p.609).
Para isso, associa São João da Cruz à sua obra.
Cada fundação é envolta em intrincada rede de decisões, providências e
circunstâncias. Envolve autorizações eclesiásticas, problemas jurisdicionais,
contatos com a população civil, compras e reformas de casas, aquisição de
objetos de culto e mobiliários. Há dificuldade de transporte nas viagens,
condições climáticas adversas, relações humanas facilitadoras, conflitos
comunitários – para exemplificar alguns dos desafios encontrados pela
fundadora. Grande parte desta grande empreitada está registrada no Livro da
Vida (fundação do Carmelo de São José) e, particularmente, em Fundações.
Escrita sempre com vida, graça e riqueza de detalhes. Em sua atividade
fundadora, Teresa “percorre os caminhos de Castela, La Mancha e Andaluzia.
Associa Frei João da Cruz à sua obra. Amplia sua rede de relações humanas nos
diversos estratos da vida social. (…) Enfrenta corajosamente situações
conflitivas” (ALVAREZ, 2000b, p.1310). A vida de Teresa de Jesus se desdobra
em missão.
Concomitantemente à atividade fundadora, Teresa de Jesus redige seus
livros e cartas (vide abaixo).
No retorno de sua última fundação, Burgos, em direção a Ávila, é obrigada
a passar por Alba de Tormes. Em sua última eucaristia exclama: “é chegada a
hora, esposo meu, de que nos vejamos” (ALVAREZ, 2000b, p.1325).  Ali
morre, no Carmelo de Alba, no dia 4 de outubro de 1582, aos 67 anos. Segundo
a reforma gregoriana do calendário, o dia seguinte é 15 de outubro – dia em que
a Igreja celebra a grande Santa.
Em 24 de abril de 1614, Teresa de Jesus é beatificada pelo papa Paulo V;
em 12 de março de 1622, canonizada na Basílica de São Pedro, em Roma, pelo
papa Gregório XV.
Em 27 de setembro de 1970, o papa Paulo VI proclama Santa Teresa de
Jesus Doutora da Igreja (PAULUS PP VI, 1970).
Obras de Santa Teresa de Jesus
Teresa é verdadeira escritora. Possuiu bagagem teológica e literária
adquiridas por leituras, liturgias e diálogos frequentes com teólogos. Ela mesma
escreve que, na adolescência, “se não tivesse um livro novo, em mais nada
encontrava contentamento” (SANTA TERESA, V 2,1, 1995, p.30). A isso se
soma sua observação sensível do cotidiano, da vida, das pessoas e da natureza. É
escritora com forte estilo pessoal e pluralidade de gêneros, segundo o contexto
concreto das redações. Grande parte de seu êxito editorial deve-se à persuasão
de sua linguagem, rica em beleza e elegância, criativa em símbolos, estimulante
sem ser moralista e fina em bom humor.
Mas é a experiência de Deus que determina a urgência profética da sua
escrita, suas inspirações mais profundas, o discernimento dos conteúdos e a
linguagem mística, sempre aquém da realidade sobrenatural experimentada, em
si mesma inefável (PEDROSA-PÁDUA, 2011b, p.33-34). A ação da graça na

107
interioridade humana, nas relações e no cosmos – isto é o que Santa Teresa tenta
comunicar. Ela é profeta dos “segredos de Deus” (SANTA TERESA, 5M 1,4,
1995, p.489).
A seguir, são apresentadas suas principais obras.
Livro da Vida
O Livro da Vida é o primeiro grande livro de Santa Teresa, escrito
provavelmente em 1565, tendo a autora 50 anos de idade e estando no Mosteiro
de São José. Há informações sobre uma redação anterior, que não chegou a nós.
É escrito em primeira pessoa, rico em dados autobiográficos e, por isso, também
conhecido como sua autobiografia. Nele, narra o processo de sua vida mística e
o começo de sua atividade fundadora.
Trata-se de uma autobiografia pouco convencional, em que o objetivo de
Teresa de Jesus não é propriamente narrar sua vida. Sequer são mencionados os
nomes dos seus pais e irmãos. São exceções, referidas explicitamente, São
Francisco de Borja – jesuíta, citado como “Padre Francisco, que era duque de
Gandia” (SANTA TERESA, V 24,3, 1995, p.157) e São Pedro de Alcântara –
franciscano, referido como “santo homem de grande espírito, Frei Pedro de
Alcântara” (SANTA TERESA, V 27,3, 1995, p.173), com os quais Teresa se
encontrou pessoalmente; no Prólogo, cita São João de Ávila, como o “Padre
Mestre Ávila” (SANTA TERESA, 1995, p.291).
O objetivo principal de Santa Teresa ao escrever o livro é narrar a história
de seu encontro com Deus pela oração e os dinamismos que esse encontro
provoca. Trata-se do relato de sua vida enquanto história pessoal de salvação e
envio em missão. Este é o cerne da existência e da obra teresiana. O encontro
com Deus se dá como uma aventura que se inicia na infância, atravessa a
adolescência e passa à vida adulta, com buscas, desencontros, anos em luta pela
coerência entre oração e vida, momentos dramáticos de discernimento, entrada
na vida mística intensa e profunda, com experiências sobrenaturais purificadoras
– locuções, êxtases, visões, a transverberação do coração e o encontro com a
humanidade de Cristo, “livro vivo” (SANTA TERESA, V 26,5, 1995, p.171).
Trata-se de um encontro dinamizador de seu próprio ser mulher e de seu envio
na missão escritora e fundadora.
Em meio à narrativa de sua vida, a autora discorre alguns temas doutrinais,
sendo os mais importantes: os graus da oração, em que Teresa utiliza o símbolo
da alma como um jardim e da oração como forma de regá-lo (capítulos 11 a 21);
a centralidade da sagrada humanidade de Cristo em todos os graus da vida
mística (capítulo 22).
Caminho de Perfeição
Caminho de Perfeição foi redigido duas vezes. Ambas as redações são
conservadas e sua leitura é acessível ao leitor contemporâneo. A primeira, o
códice de El Escorial, encontra-se na Biblioteca do Real Monastério de El
Escorial. Trata-se de um livro mais espontâneo, com linguagem familiar. O
primeiro leitor censurou o autógrafo teresiano com cerca de 50 rasuras ou
observações. Teresa preferiu reescrever o livro, ao invés de simplesmente acertar
a primeira redação (MAROTO, 1978, p.269-310). Assim temos o códice de
Valladolid, conservado nas Carmelitas Descalças na cidade de Valladolid. Trata-
se de uma redação mais cuidada, pensada para um público maior. A redação das
duas versões foi feita, provavelmente, no ano de 1566, estando Teresa de Jesus
no mosteiro de São José.

108
O livro é escrito em perspectiva pedagógica e endereçado àquelas e
àqueles que se determinam a levar uma vida de oração. Neste livro ecoam as
vicissitudes da Reforma e o sentido militante e eclesial do novo Carmelo:
“Decidi-me então a fazer o pouco que posso (…) ajudaríamos no que
pudéssemos a esse Senhor meu” (SANTA TERESA, C 1,2, 1995, p.302). Com
relação às mulheres, Caminho denuncia a situação subordinada em que se
encontravam e traça forte defesa teológica da sua dignidade (SANTA TERESA,
CE 4,1, 1994, p.531).
Alguns temas doutrinais merecem destaque: os pressupostos existenciais e
éticos para ser uma pessoa de oração: uma vida pautada pelo amor, pelo
desapego e pela humildade (capítulos 4 a 15); a defesa da oração de
recolhimento e vários conselhos para colocar-se no caminho dessa oração
(capítulos 19 a 26); o comentário à oração do Pai Nosso (capítulos 27 a 42).
Castelo Interior ou Moradas
Castelo Interior é o livro da maturidade humana e espiritual de Teresa de
Jesus e completa a trilogia doutrinal da Santa: Livro da Vida, Caminho de
Perfeição, Castelo Interior ou Moradas. É também um livro síntese de suas
grandes convicções. Foi escrito em 1577, quando a autora contava 62 anos.
O título já contém a natureza, autora e destinatárias do livro. Tudo de
próprio punho: “Este tratado, chamado Castelo Interior, foi escrito por Teresa de
Jesus, monja de Nossa Senhora do Carmo, para suas irmãs e filhas, as monjas
carmelitas descalças” (SANTA TERESA, 1995, p.438). Apesar desta dedicatória
familiar, o livro é, como ela mesma o chama, um “tratado” de teologia espiritual
e mística, e desde o início foi cercado de interesse por parte de teólogos e
pessoas de outras áreas do conhecimento, como a literatura. Castellano Cervera
o considera um modelo indutivo de antropologia teológica (1981, p.117-131).
No símbolo do castelo interior se articulam quem é a pessoa humana
diante de Deus, quem é o Deus que a habita e o desenvolvimento da dinâmica do
encontro entre “Deus e a alma” (SANTA TERESA, 1M 1,3, 1995, p.442). Esta
dinâmica é narrada em termos de graus de intensidade ou moradas, sendo a
primeira a mais exterior e a sétima a mais interior. Nessa última, encontramos a
experiência, ainda não acontecida quando da redação das grandes obras
anteriores, do matrimônio espiritual, como união forte e permanente com Deus,
através de Jesus Cristo (SANTA TERESA, 7M 2,1, 1995, p.570). A sétima
morada é a culminância da dinâmica já presente nas moradas anteriores. Nela há,
simultaneamente, maior experiência e conhecimento de Deus e da sagrada
humanidade de Cristo, profundo autoconhecimento, conversão ética e
desenvolvimento das capacidades de amor e serviço.
Símbolo menos abrangente, porém de grande importância no livro, é o da
metamorfose do bicho-da-seda numa “borboletinha branca” (SANTA TERESA,
5M 2,7, 1995, p.495), indicando a vida nova em Cristo.
Fundações, Cartas e escritos menores
O livro das Fundações é iniciado em 1570, quando Teresa de Jesus
empreende sua segunda fundação, e finalizado no ano de sua morte, 1582. Ali
estão registradas as motivações e as principais circunstâncias que envolvem o
trabalho fundacional de Teresa. Mas não só isso, também a narração de histórias
das pessoas envolvidas, nomes em profusão, gestão das questões financeiras,
acontecimentos eclesiásticos, vicissitudes trazidas pelo sol, chuvas e neve
naquelas difíceis estradas. A obra adquire características de novela e crônica. Na
narrativa há doutrina, há humor, há interesse pelas pessoas e pelas coisas de

109
Deus. É possível acompanhar o processo de discernimento, espiritual e prático,
necessário para levar a cabo cada fundação teresiana.
As Cartas acompanham todo o processo das fundações e a redação dos
demais livros. As edições modernas trazem em torno de 450 cartas escritas pela
Santa, no período de 1561 até menos de um mês antes de sua morte, em 1582.
Sabemos que elas podem ter chegado a 15.000 ou mais. O teor destas cartas
começou a ser valorizado apenas no século XX, em que as pequenas coisas,
como o cotidiano, o afeto, as relações, a saúde e os negócios, passaram a ser
consideradas fonte importante de conhecimento histórico e antropológico. Para a
espiritualidade, esta valorização significou uma formidável virada teológica em
direção à ação de Deus no prosaico da vida. A santidade é resgatada como
vivência do amor concreto e vocação de todos, vivida no interior das relações
humanas. O epistolário teresiano oferece um excelente material para o
conhecimento da pessoa de Teresa, de sua santidade no cotidiano, além de ser
um testemunho do contexto histórico em que ela viveu.
Além desses livros, Teresa se dedica a textos sobre sua experiência de
Deus, como Exclamações da alma a Deus, Conceitos do amor de Deus
(Meditação sobre o Cântico dos Cânticos) e Relações. Em Certame e Resposta
a um desafio sobressaem o bom humor e a habilidade de Teresa em estabelecer
articulação entre as pessoas. As Poesias são escritas por motivos variados, da
experiência profunda de Deus à recreação em festas litúrgicas e circunstâncias
da vida conventual. Há também textos legislativos, como Constituições e Modo
de visitar os Conventos.
Enfim, os escritos de Santa Teresa de Jesus são o testemunho de alguém
que viveu intensamente a intimidade com Deus e que, como os profetas,
necessita falar para que outros e outras pessoas possam também vivê-la.
Eixos principais da mística Teresiana
Aqui são tratados os seguintes eixos: a oração como amizade; o
recolhimento; a centralidade da “sagrada humanidade” de Cristo; a presença de
Deus na pessoa humana; mística e amor concreto.
A oração como amizade
Santa Teresa dá uma contribuição original ao magistério sobre a oração, ao
afirmá-la como relação e amizade. O texto do Livro da Vida condensa essa
noção de oração: “(…) é tratar de amizade – estando muitas vezes tratando a sós
– com quem sabemos que nos ama” (SANTA TERESA, V 8,5, 1995, p 63). A
oração-amizade é uma prática oracional que deve ser cultivada “a sós” e de
maneira frequente; é também uma forma de vida em permanente relação
dialógica com Deus, fonte de vida e amor. Cristo faz-se companheiro de
caminho: “juntos andemos, Senhor; por onde fordes, terei de ir; por onde
passardes, terei de passar” (SANTA TERESA, C 26,6, 1995, p.376). Por isso, a
oração como amizade é encontro pessoal, transformante e dinâmico (HERRAIZ
GARCIA, 2002, p.55).
O recolhimento
A oração-amizade se realiza através do recolhimento, ou entrada dentro de
si mesmo para o encontro com o Cristo mestre e amigo. “Chama-se
recolhimento, porque a alma recolhe todas as faculdades e entra em si mesma
com seu Deus; seu divino Mestre vem ensiná-la…” (SANTA TERESA, C 28,4,
1995, p.381). A contemplação perfeita do Mestre é uma dádiva (SANTA
TERESA, C 25,2, 1995, p.373) que sinaliza o desejo de Deus em estar e se
comunicar com a pessoa. Este dom deve ser acolhido e cultivado na prática

110
habitual do recolhimento, em que acontece a educação progressiva do olhar, da
escuta e do falar interiormente com Cristo (SANTA TERESA, C 26,3 et seq.,
1995, p.375).
Ao mesmo tempo, há a necessidade de cultivo das atitudes primordiais: a
humildade, o desapego e o amor concreto. Elas são a base do caminho do
recolhimento e, sem elas, a oração não encontra terreno sólido (SANTA
TERESA, C 4,4, 1995, p.312).
A centralidade da “sagrada humanidade” de Cristo
A experiência de Cristo é central na mística teresiana. É diante da imagem
de Cristo, com grandes chagas, que se dá a conversão definitiva de Santa Teresa
à vida de oração e à coerência de vida (SANTA TERESA, V 9,1, 1995, p.66).
Cristo se manifesta a ela como um “livro vivo” (SANTA TERESA, V 26,5,
1995, p.171) e a relação com Deus implica uma experiência cada vez mais
profunda com o Cristo dos Evangelhos. Culmina numa união inseparável, o
“matrimônio espiritual”, que significa entrega a Cristo em amor concreto e
servidor (SANTA TERESA, 7M 2,1, 1995, p.570). Na doutrina teresiana, a
humanidade de Cristo, Filho encarnado, deve ser considerada em toda a vida
espiritual, mesmo no auge da contemplação. É pela vida, morte e ressurreição de
Cristo que o amor de Deus se revela, Cristo é o caminho para Deus. Além disso,
há uma razão antropológica para a centralidade da sagrada humanidade na vida
espiritual: “não somos anjos, pois temos um corpo” (SANTA TERESA, V
22,10, 1995, p.145). Apenas na sagrada humanidade o místico encontra apoio
concreto para o pensamento, para a oração e para a própria dinâmica da vida e
do amor. A encarnação possibilita a valorização do corpo e das realidades
corpóreas e uma mística de integração entre corpo e alma, para além da
linguagem frequentemente dualista da época de Santa Teresa (PEDROSA-
PÁDUA, 2015, p.239 e 317).
O desenvolvimento doutrinal sobre a centralidade da sagrada humanidade
de Cristo, Filho de Deus encarnado, encontra-se em dois capítulos centrais da
obra teresiana: o capítulo 22 do Livro da Vida e o capítulo sétimo das
sextas Moradas.
A presença de Deus na pessoa humana
A presença de Deus na pessoa humana é o núcleo experiencial e doutrinal
que dá sentido e unifica a mística teresiana. A partir dela, Santa Teresa conhece
um Deus próximo, presente, amigo, transformante e que se revela cada vez mais
como Deus comunhão e comunicação – trinitário. No início deste processo,
escreve ela no Livro da Vida, acontecia que, estando em oração, colocando-se
mentalmente ao lado de Cristo, outras vezes lendo, vinha-lhe um “sentimento da
presença de Deus” (SANTA TERESA, V10,1, 1995, p.70). A experiência da
presença de Deus foi tão importante que será repetida em Caminho de
Perfeição, Moradas e outros escritos. Em Moradas, a pessoa humana é
apresentada como um castelo de diamante ou de um cristal muito transparente e
Deus, como o sol, está presente no centro irradiando sua luz (SANTA TERESA,
1M 1,1, 1995, p.441). Para Santa Teresa, o Deus vivo e comunicante se faz
perceber e sentir na alma, e essa é como “uma esponja que se embebe de água”
(SANTA TERESA, R 45, 1995, p.830).
Pouco a pouco esta presença de Deus no interior humano vai se revelando
como presença trinitária (SANTA TERESA, R 54, 1995, p.833). Na experiência
mística teresiana, Deus habita o humano, é amor que se comunica pessoalmente,
através das pessoas divinas. Teresa de Jesus é “trinficada” (CUARTAS, 2008,

111
p.163). O aprofundamento no conhecimento de si mesma é, ao mesmo tempo,
abertura à alteridade de Deus, do mundo, do próximo (SANCHO, 2012, p.75).  
Deus, comunidade de pessoas que se amam, comunicam e conhecem, volta-se à
pessoa humana para fazê-la participar desta comunidade pelo conhecimento,
comunicação-experiência, amor e serviço (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p.175).
Mística e amor concreto
A inter-relação entre a mística e o amor concreto, vivida na prática, é clara
na doutrina de Santa Teresa. O amor concreto é critério da verdadeira mística: “é
nos efeitos posteriores que se conhecem essas verdades na oração, pois eles são
o melhor crisol para prová-las” (SANTA TERESA, 4M 2,8, 1995, p.479). Por
outro lado, a mística tem por objetivo a prática do amor concreto. A verdadeira
união com Deus é o amor a Deus e ao próximo, afirma Teresa nas
quintas Moradas, em suas grandiosas páginas sobre a pedagogia do amor cristão
(SANTA TERESA, 5M 3,7, 1995, p.501 et seq.). Tanto o itinerário da
experiência ordinária do seguimento de Cristo, quanto o itinerário da experiência
mística da união com Cristo, no matrimônio espiritual, desembocam no
imperativo do serviço e das obras, como fica claro nas sétimas Moradas: “Pois
isto é oração, filhas minhas; para isto serve este matrimônio espiritual: para fazer
nascer obras, sempre obras” (SANTA TERESA, 7M 4,6, 1995, p.583). Mais
adiante: “Desejo, irmãs minhas, que procuremos alcançar exatamente esse alvo.
Apreciemos a oração e ocupemo-nos dela, não para nos deleitar, mas para ter
essas forças para servir”. E acrescenta: “Marta e Maria devem andar sempre
juntas” (SANTA TERESA, 7M 4,12, 1995, p.584-585).
Santa Teresa e os pobres            
A contemplação e o seguimento de Cristo realizam em Teresa uma
conversão progressiva aos pobres e à vivência da pobreza evangélica. Trata-se
de um caminho espiritual, enraizado em sua experiência cristã.
A vida de Cristo se radicaliza em sua vida. Encontramos em seus escritos
um testemunho que se assemelha ao de São Francisco: “Sinto em mim uma
grande lástima e desejo de remediar a sua situação [dos pobres], a ponto de, se
seguisse a minha vontade, dar-lhes minha própria roupa. Nenhum asco tenho
deles; trato com eles e os toco” (SANTA TERESA, R 2,4, 1995, p.783). Uma
solidariedade lhe brota de dentro, de um coração que passa a sentir diferente e
uma mente que passa a pensar diferente. Vive uma verdadeira
conversão, metanoia, cuja fonte é Deus: “vejo que é um dom de Deus” (SANTA
TERESA, R 2,4, 1995, p.783).
Não apenas isso. A pobreza torna-se para ela um compromisso de novas
relações, pautadas na igualdade e na solidariedade. Atualizando esta exigência
para o seu contexto histórico e eclesial, institui em suas comunidades uma forma
de vida não pautada pela diferença que vem das origens familiares e de riqueza:
“Quem tiver a linhagem mais nobre deve ter o nome do pai menos vezes na
boca”. Teresa advoga a igualdade: “todas devem ser iguais” (SANTA TERESA,
C 27,6, 1995, p.380). A vida comunitária era caracterizada por estrita pobreza:
“a pobreza que Santa Clara institui em seus mosteiros também está presente
neste (…)” (SANTA TERESA, V 33,13, 1995, p.228). Temos assim um
caminho iluminador para a mística latino-americana: abertura ao dom do Cristo
crucificado, compromisso de viver a pobreza, transformação concreta das
relações pautadas na discriminação e dominação de uns sobre os outros. Não se
trata de assistencialismo, nem de compromisso exterior, mas de um caminho
espiritual e concreto. Infelizmente certas ideologias na América Latina

112
usurparam o conteúdo de santa Tereza para politizar e fundamentar suas
pervertidas ideias a respeito de misturar política e religião.

Inácio de Loyola
Um breve olhar para o nascimento de Inácio (1491) aponta para o especial
momento histórico: reconquista e conquista, renascer reforma fomentaram
enormes transformações nas relações entre nações estados, tanto em termos de
religião quanto em termos de autocompreesão do ser humano. Antes a paisagem
espiritual estava colorida pelo “outono da Idade Média”: indulgência,
peregrinações, veneração exacerbada de relíquias, de Maria e de santos,
feitiçaria e magia por vezes deslocam demais o olhar para o simples seguimento
a Jesus. Os impulsos da devotio moderna são efetivos, mas não têm
sustentabilidade suficiente para suscitar uma espiritualidade condizente aos
“novos tempos”.
Inácio era basco. Numa "família principal” basca, inicialmente lhe estava
destinada uma carreira secular como funcionário da corte e oficial.
Retrospectivamente, Inácio afirma que estava "submetido às vaidades do
mundo" e estava especialmente interessado em exercícios com armas "com um
grande e vaidoso desejo de colher honrarias" (Relato do Peregrino 1).
Gravemente ferido por ocasião do sítio de Pamplona, começa para Inácio um
tempo de reflexão. A transformação interior pela qual passou durante o tempo de
enfermidade leva-o a Montserrat (confissão geral) e depois para um tempo de
maturação em Manresa. Ali Inácio ora e reflete sobre as relações sutis do
"discernimento dos espíritos”, desgasta-se com escrúpulos e rigorismo, sendo
abençoado com grandes confortos e iluminações do espírito. No seu cerne, os
"Exercícios Espirituais" surgiram ali.
Como fruto destes tempos intensos, Inácio assume atividades pastorais,
que, contudo, terminam devido à Inquisição, pela qual mais tarde Inácio será
citado mais oito vezes. Inácio segue para Paris e inicia o estudo de teologia aos
37 anos, reunindo ali alguns seguidores. Em & ordenado sacerdote. Após a
confirmação papal da “Companhia de Jesus”, por ele fundada (1540), lidera a
ordem dos jesuítas superior-geral até sua morte em 31 de julho de 1556. Inácio
não legou uma doutrina espiritual sistemática. Como fontes existem os
Exercícios Espirituais, o Relato do Peregrino (uma espécie de autobiografia da
época entre 1521 a 1540), o Diário Espiritual, muitas cartas, bem como a
Constituição da Companhia de Jesus. Além disto, existem suficientes
testemunhos dos primeiros seguidores e auxiliadores (Nadal, Polanco etc.).
Inácio é protótipo para uma espécie de seguimento a Jesus, que não existia até
então: buscar e encontrar Deus em todas as coisas, o que conduz a uma mística
do serviço.
Criaturalidade
Em Manresa foi dada a Inácio a perspectiva da criaturalidade de todas as
realidades:
Certa vez, com grande alegria espiritual, foi-lhe dado a compreender o
modo como Deus criou o mundo: parecia-lhe ver algo branco, a partir do que
saíam alguns raios, com os quais Deus fazia a luz. (Relato do Peregrino, 29).
Inácio amava a natureza como Francisco, e estava profundamente convencido de
que a criação como um todo é boa. Esse é um dos motivos para o fato de a
espiritualidade inaciana estar voltada ao mundo. Logo no início dos “Exercícios
Espirituais”, Inácio situa o ser humano mais precisamente, o ser humano como

113
criatura no centro: “O ser está vinculada a Deus, e sem Deus nada pode ser,
conhece a sua criaturalidade (“Não há nenhuma coisa criada em si somente no
criador.” Exercícios 316), e com isso está estabelecida uma determinada relação
como mundo. Isso possibilita encontrar Deus em todas as coisas. Na fé, todas as
boas coisas do mundo tornam se parábola da comunhão com Deus.
Para Inácio, o Deus uno e trino é uma realidade viva, com a cu ele teve
vários encontros na forma de visões. Deus comunica se na criação e na
encarnação para a salvação dos homens. Em Jesus Cristo - para Inácio criador
crucificado, portanto simultaneamente criador e redentor -, Deus chama a cada
pessoa individualmente. Para que Deus chama? Para que os homens a ele se
unam para sua maior honra Assim a Inácio foi permitido ver:
Quando certo dia, alguns quilômetros antes da chegada a Roma, se
demorava orando numa Igreja, experimentou tal transformação na sua alma e tão
claramente teve uma visão de como Deus Pai o fazia estar próximo de seu filho
Jesus, que não teve mais nenhuma duvida de que Deus Pai o havia colocado na
companhia de seu Filho (Relato do Peregrino. 96)
Inácio não vê como privilégio pessoal a graça que lhe foi concedida. Com
o fato se expressa algo válido em termos gerais: quem crê e foi batizado tem,
pela fé, parte na relação de Jesus com Deus, e ali está abrigado. Ele se sabe
amado por Deus com aquele mesmo amor com o qual Deus Pai está voltado para
o Filho. O homem, portanto, está junto com Cristo diante de Deus e, por meio
dele, tem acesso ao Pai, E mais: o homem é chamado a colaborar, ao lado de
Cristo, na “Companhia de Jesus, na obra da salvação”.

Sentir o chamado de Deus


O maior legado de Inácio ao mundo - os “Exercícios Espirituais” tem aí
seu lugar. Eles são uma ajuda a sentir esse chamado de Deus o seguimento
pessoal e para a missão própria de cada um. Antes, porém, trata-se da ordenação
da própria vida, desfazendo-se de “tendências não ordenadas”. Também a
postura da “indiferença” deve ser procurada, uma “liberdade interior purificada e
constante” (Gis bert Greshake). No contexto dos “Exercícios Espirituais”, isso se
dá na constante contemplação dos mistérios da vida de Jesus e no diálogo
pessoal com Jesus Cristo. Assim como Bernardo de Claraval, Inácio destaca o
pro me (para mim): quando uma pessoa se deixa resposta em agradecimento e ao
seguimento a Jesus.
Para Inácio, a Trindade de Deus não é uma doutrina teológica abstrata, mas
um momento decisivo de sua vivência teológica. Na Trindade, no “quadro”
deste evento relacional divino, realiza-se a de cisão para a salvação da
humanidade (Exercícios, 102-109). Aqui se realiza o envio: Encarnação e envio
do Espírito são iniciativas da Trindade. Esta linha deve ser continuada com o
envio dos discípulos, com O envio de Inácio e com o envio de todos os cristãos!
Todos os “envios”, em termos individuais, para lugares concretos e para tarefas
concretas, tem a sua origem na Trindade. O chamado pessoal de Jesus para seu
seguimento tem como conteúdo que Cristo busca reunir “colaboradores e
amigos” (c. “Reflexão sobre as duas bandeiras”, Exercícios, 136-148). Seu envio
objetiva colaborar para a salvação do mundo. Os “Exercícios Espirituais
objetivam colocar a pessoa à disposição deste envio. Isso por sua vez tem
significado para a forma de oração especificamente inaciana. Ela está orientada
para uma fé condizente com o agir.

114
Buscar e encontrar a Deus em todas as coisas39
Se o passo para o segmento pessoal a Cristo tiver sido dado e se o envio
pessoal foi encontrado, então tudo no mundo - tudo mesmo - pode tornar-se
transparente para a presença de Deus. As coisas e o mundo têm uma
“linguagem” própria, que deve ser lida no se descrito. Deus não está somente no
âmbito da sacralidade, mas ser buscado e encontrado em todos os espaços. Suas
pegadas encontram-se nas experiências e encontros, nas alegrias e nos
sofrimentos da vida profana. Se a pessoa entende sua vida como culto a Deus,
então trabalho e oração, âmbito religioso e profano não precisam mais es tar
dissociados. Tudo pode transformar-se em instrumento para servir mais a Deus
em sua honra e para a salvação dos homens. Por isso Inácio escreve aos
estudantes da ordem que eles:
(...) podem exercitar-se em buscar a presença de nosso Senhor em todas
as coisas, assim como na relação com outra pessoa, no caminhar, no ver, no
degustar, no ouvir, e não compreender e em tudo o que fazemos: pois é verdade
que sua majestade divina está em todas as coisas por meio de sua presença,
poder e essência. E meditar desta maneira, encontrando a Deus nosso Senhor
em todas as coisas, é mais fácil do que nos levantarmos para as coisas divinas
abstratas, acercando-nos delas somente com dificuldade. E este bom exercício,
na medida em que nos prepara, possibilitará grande proximidade do Senhor,
ainda que seja em breve oração. E, além disto, podemos exercitar-nos em
oferecer muitas vezes a Deus, nosso Senhor, os estudos e suas dificuldades, na
medida em que buscamos aceitá-los por amor a Ele, colocando nossa vontade
em segundo plano a fim de servir a sua majestade, na medida em que ajudamos
aqueles por quem ele morreu. (Car- 1854 - Werkausgabe 1, 350)
Para o dirigente de uma casa de estudos, Inácio faz saber o que a ser
observado no tocante à vida espiritual de um jovem estudante da ordem:
No tocante à oração e à meditação, eu vejo que [...] em não ha vendo
necessidade especial por causa das tentações às quais ele dá ocasião, é melhor
buscar e encontrar a Deus em todas as coisas que se faz, do que dedicar muito
tempo às coisas relacionadas com a oração. E este espírito, ele [Inácio]
gostaria de ver nos membros da Companhia: não perceber menos devoção em
qual quer ação de amor ou de obediência do que na oração e na me digitação.
Pois eles não precisam fazer nenhuma coisa senão por causa do amor e do
serviço a Deus, nosso Senhor. (Carta 1848 Werkausgabe 1, 344)
“Tudo para a maior glória de Deus”: toda a vida, o trabalho cotidiano, o
repouso, tudo pode servir ao louvor a Deus.
Mística da ação
O novo nesta perspectiva é: ação já não é fruto de contemplação anterior,
mas o próprio agir inclui o mistério de Cristo. A ação somente existe em sentido
pleno quando ar evidencie como lugar da contemplação, A o transforma se em
revelação mística de Deus Por causa disso, Anton Rotzetter designa a
espiritualidade inaciana como “espiritualidade da abertura”. A oração cultivada
39
A fórmula “procurar Deus em todas as coisas” deve ser entendida no contexto da mística de
Cristo de Inácio, Onde Inácio fala do “Criador e Senhor”, ele se refere a Cristo: “Por isso a
fórmula fundamental de Inácio se chama Cristo (...), mais exatamente: “procurar a Cristo em
todas as coisas”. Em seu sentido básico significa olhar todas as realidades do mundo de forma
crente a partir de Cristo e em direção a Ele”. BENKE, Christoph. Breve Hisória da
espiritualidade cristã. Aparecida, SP. Editora Santuário, 2011. p.139

115
no contexto do trabalho apostólico e a preocupação por causa da Salvação do
próximo conduz mais profundamente a comunhão com Deus. A contemplação
está inserida na vida ativa quem no agir vive de forma contemplativa buscar e
encontrar a Deus em todas as coisas, Um colaborador intímo de Inácio, Jerônimo
Nadal, testemunha:

que ele [Inácio] percebia a presença de Deus em todas as coisas,


ações e conversações com um sentido aguçado para a dimensão
espirituais, observando esta presença, tornando-se, assim,
contemplativus in actione (unido com Deus em todo agir). Ele
costumava expressar isso dizendo: em todas as coisas devemos
encontrar a Deus. (In examen annotationes, in: MHSI Epp Nadal
4, 651)

A missão da Companhia de Jesus


“Ajudar as almas” (Inácio) e para maior glória de Deus procurar a salvação
do próximo - nisso consiste a missão da Companhia de Jesus. Ela está
totalmente direcionada ao apostolado. Isso não existia desta forma na história da
vida das ordens religiosas. Tudo está subordinado a este objetivo. Pelo fato de as
formas tradicionais da vida monástica (hábito, cultos solenes, oficio divino em
comum) não oferecerem a mobilidade necessário para isso, os jesuítas não
vivem em mosteiros, A ruptura de Inácio em direção a uma espiritualidade que
acentua o envio ao mundo e a mística da ação acontece no seguinte contexto
histórico:
Humanismo: Erasmo de Roterdã (1469-1536) escreve um manual da
espiritualidade leiga com a ideia fundamental de chegar “ao invisível por meio
do visível”. Viver de forma espiritual não está mais restrito à prática de atos
diretamente religiosos, mas pode ser realizado em qualquer ambiente.
Reforma: Inácio e Lutero (tem algumas coisas em comum). Isso não quer
dizer que um se inspirou no outro. Além do cristocentrismo, o que os liga é a
convicção de que Deus quer mostrar-se e comunicar-se ao ser humano de forma
individual. Para Inácio, contudo, está claro que o chamado do indivíduo se dá no
contexto da Igreja católico-romana. Enquanto Lutero (para dizer de forma
simplificada) confia tudo à palavra de Deus, para Inácio, a Igreja é o lugar em
que atua o Espírito Santo. A Igreja apresenta as dimensões objetivas e garante
que o indivíduo não se aferra à própria subjetividade.
Barroco: a espiritualidade do barroco afirma tudo o que é terreno -
natureza, pátria, amor, matrimônio, profissão, trabalho, comunidade, povo etc.
Tudo o que é humano e profano retorna a Deus. Disso dá testemunho também a
riqueza dos costumes religiosos.

ENGAJAR-SE UM PELO OUTRO DIANTE DE DEUS SEGUIMENTO COMO


AÇÃO VICÁRIA

Em qual horizonte espiritual deveria traduzir-se o seguimento a Jesus na


Modernidade? Jürgen Moltmann é a diferença entre Renascença e Modernidade
da seguinte forma: “A Renascença inicia com uma libertação por meio da
religião; a Modernidade por sua vez se entende como libertação da religião” A
Renascença trouxe “nova” liberdade para as pessoas. Com ela o mundo ganha

116
cada vez mais importância própria diante de Deus. Na mesma medida em que
crescia a importância do mundo, desapareceu a sensibilidade para a realidade de
Deus. A isso se acrescenta ainda guerras religiosas, iluminismo, revolução
francesa e secularização. Tudo isso levaria, na Modernidade - dito de forma
simplificada a uma gradativa perda de transcendência. A crítica à religião
(Marx, Nietzsche, Feuerbach etc.) proclamava como evangelho a morte de Deus.
Na dissociação entre mundo Igreja, entre mundo secularizado separado de Deus
e espiritualidade particular ou eclesiástica dissociada do mundo, surgiu o modelo
da “ação vicária, tomado do agir redentor de Cristo e entendido como adequado
aos novos tempos”.

Algumas sínteses
A espiritualidade crista na Modernidade vê-se confrontada com a pergunta
pelo que pode romper a autorreferencialidade do mundo fechado em si mesmo.
Seguimento em um mundo sem Deus - como isso pode acontecer?
"Morte de Deus”: adiante da moderna crítica à religião e à "realidade" de
um mundo sem Deus, a espiritualidade cristã aposta no testemunho do
seguimento. A falta de transcendência ela contrapõe a continuidade da fé.
Ação vicária: as pessoas crentes assumem conscientemente a escura
experiência de um mundo sem Deus. Em comunhão com pessoas que não creem
ou que duvidam da fé, eles perseveram no distanciamento de Deus. Também
Cristo assumiu sobre si na cruz (todo) a noite do abandono por Deus (“Deus
meu, por que me abandonaste?”), levando-a para dentro da luz da ressurreição.
Compassio: “narcose” ou “agonia” (R. Schneider)? Evitar o sofrimento e
não querer saber de nada? Proteger-se com “narcoses” sempre mais
diversificadas? Ou participar da comunhão com as vítimas, adentrar
voluntariamente o sofrimento de outras pessoas e em casos extremos não excluir
a dor da morte? O seguimento a Cristo na Modernidade decide-se pela
compassio. Solidariedade: a comunhão em pobreza e sofrimento fortalece a
solidariedade das pessoas entre si, bem como a solidariedade com o Cristo pobre
e sofredor. Mais tarde, o Concílio Vaticano II acolherá esses impulsos
(espiritualidade da communio, solidariedade com os pobres).
Deus semper minor: a teologia da cruz ganha sempre maior importância.
O seguimento a Jesus deve ser medido segundo o caminho do auto-
esvaziamento de Deus (cf. Fp 2,6-11). Em seu Filho, Deus desce ao ateísmo do
mundo e das pessoas. Quase irreconhecível como Deus, ele realiza justamente
aqui a salvação.

JOÃO DA CRUZ
Nasceu Juan de Yepes Alvarez em 1542, em Fontiveros, Espanha.
Oriundo de uma família de aristocratas empobrecidos ficou órfão ainda na
infância enfrentando.com sua família diversas dificuldades financeiras que os
levaram se mudar para Medina del Campo (1551), onde Juan de Yepes teve seus
primeiros estudos num orfanato para crianças humildes. Durante a juventude,

117
desempenhou diversas atividades for carpinteiro, alfaiate, escultor em madeira,
pintor e auxiliar de enfermeiro num hospital para pobres.
Aos 21 anos, ingressou na Ordem Carmelita, certamente impulsionado
pelos ideais de solidão e contemplação absoluta dos primeiros eremitas
fundadores da Ordem. Inicia na grande Universidade de Salamanca seus estudos
de filosofia e teologia, sendo um avido leitor de poesia, da Bíblia e de místicos
como São Gregório Magno e pseudo-Dionísio, o Areopagita.
Aos 25 anos faz seus votos nessa Ordem, tomando-se frei Jodo de São
Matias, mas logo se desilude com o relaxamento da vida monástica em que
viviam os conventos carmelitas, onde os ideais contemplativos que tanto o
haviam atraído se haviam convertido em dócil sociabilidade que não satisfazia
sua vocação de místico Em 1567, conhece Teresa de Ávila, que chega a
Medicina para fundar um monastério de Carmelitas Descalças. São João então
alia-se a carmelita para iniciar a Reforma do Carmelo, resgatando-o fervor
místico e contemplativo original dessa Ordem. Assim, em novembro de 1568,
muda-se para Duruelo e juntamente com outros freis e auxiliado por Teresa de
Jesus inaugura o primeiro Carmelo Reformado masculino, os Carmelitas
Descalços, e passa a ser chamado de São João da Cruz.
Em 1577, São João é sequestrado por estranhos e mantido encarcerado
durante nove meses numa pequena cela escura e sem quaisquer confortos. O
motivo da prisão e o descontentamento com a reforma da Ordem Carmelita que
São João e Teresa de Ávila estavam empreendendo. Na absoluta solidão de sua
pequena e escura cela, permanece por nove meses, parcamente alimentado,
sendo flagelado e injuriado constantemente, num buraco de seis pés de largura e
dez de comprimento, sentindo no corpo o terrível inverno de Toledo Ali, com a
alma mergulhada na noite escura da desesperança, São João inicia sua produção
mistico-poética com o parco papel e tinta que um carcereiro mais misericordioso
lhe dá. Assim, ao fugir da prisão, em lances dramáticos que incluem uma corda
feita com cobertores e a descida pelo alto muro da prisão, ele tem na memoria os
versos do Cântico espiritual, de modo que, ao encontrar refugio entre os
Carmelitas Descalços, não é sobre a prisão e fuga que lhes noticia, antes lhes
recita os versos ainda inacabados do cântico, poema que tem como subtítulo
Canções entre a alma e o esposo, desde já anunciando a metáfora estruturante do
poema a esposa é a alma, a que ama (amante), e o esposo (o amado) é o próprio
Deus.
Apesar de nem todos os comentadores de São João concordar com a
escrita do poema na prisão, ainda que possam concordar com a inspiração do
tema e a feitura de alguns versos ali, o episódio da prisão em Toledo interessa
pela influência decisiva que terá na simbologia da noche oscura, central na
poética e na mística de São João. Em clara contraposição à metáfora da luz,
tantas vezes relacionada ao insight cognitivo que emancipado humano das trevas
da ignorância, a imagem da noite escura falada negação das possibilidades de
conhecimento que e assumida como método para uma experiência que não é
nem sensível nem inteligível, não sendo catalogável pelo nosso sistema de

118
cognição. Em 1591, São João novamente caiu em desgraça junto às autoridades
eclesiais, enfrentando graves dissabores e calúnias e sendo deposto de todos os
seus cargos administrativos no Carmelo. Após penosa doença, faleceu no
Convento de Ubeda, Andaluzia, em 1591, aos 49 anos de idade. Foi canonizada
em 1726, apenas 135 anos após sua morte, e declarado Doutor da Igreja em
1926.
Sua obra abrange um conjunto de poesias, que surgem primeiro, e quatro
obras em prosa, que são comentários aos poemas, quais sejam: Subida do Monte
Carmelo, Noite escura, Cântico espiritual e Chama viva de amor. Os
comentários possuem um caráter pastoral e didático-doutrinário, pois se
destinam a pessoas com quem São João convivia e/ou exercia orientação
espiritual. Além disso, os comentários aos poemas representam um primeiro
esforço hermenêutico de reflexão sobre suas experiências de místico tomado
pelo amor de Deus e de pastor comprometido com a formação espiritual de seu
rebanho, enquanto os poemas são a expressão lírica do anseio místico que move
o coração humano em direção ao divino.

Alguns textos importantes:


O poema Cântico espiritual se apresenta como metáfora do processo
místico que conduz o homem mortal e Deus. Aquele a quem se deve amar sobre
todas as coisas, com nosso coração: alma, força e entendimento. No Comentário
ao Cântico espiritual, São João propõe a seguinte classificação: nas primeiras
estrofes (I-V) tem-se a via purgativa, em que a alma expõe suas feridas
espirituais e declara que essas feridas amorosas apenas podem ser curadas com a
presença e a figura do amado, nas estrofes intermediarias tem-se uma via
iluminativa (VI-XIII), na qual o amado fala pela primeira vez, e a alma
novamente tem como interlocutores as forças anímicas da natureza e também
seres mitológicos (como as ninfas da Judeia), já agora pacificada pela
recordação do que o amado representa em sua vida – “No Amado acho as
montanhas, / os vales solitários, temorosos, as ilhas mais estranhas, os rios
rumorosos, /e o sussurro dos ares amorosos...”- e por fim, nas últimas estrofes a
via unitiva XIV-XV), onde amante e amado por fim se encontram num locus
amenus anteriormente preparado para eles.
Cântico espiritual
(Tradução Maria Clara Bingemer)

Esposa Onde te escondeste. Aquele a quem mais quero


Amado, e me deixaste gemendo? Dizei-Lhe que adoeço, sofro e morro
Como o cervo fugiste
Havendo-me ferido; Buscando meus amores,
Comi atrás de ti chamando, havias ido. Irei por estes montes e ribeiras,
Nem colherei as flores,
Pastores, os que fordes Nem temerei as feras,
La longe em rebanhos ao outeiro, E passarei os fortes e fronteiras
Se porventura virdes
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Pergunta às criaturas
Oh! Bosques e espessuras, Resposta das criaturas
Plantadas pela mão do amado! Mil graças derramando
O prado de verduras, Passou por estes bosques apressado,
De flores esmaltado! Apenas com sua figura,
Dizei se por vós ele passou. Vestidos os deixou com sua formosura.
Se no Cântico espiritual as metáforas são de uma doce melancolia por causa da
ausência do amado, no poema Noche oscura muda-se o campo semântico para a
incognoscibilidade e perigo presentes nas imagens noturnas, reafirmando uma trajetória
que o místico se sente impelido a fazer: sair da doméstica tranquilidade cotidiana para
uma escuridão que ilumina justamente pelo que faz apagar.
Na economia imagética de São João, a noite será uma das imagens mais poderosas
e de maior expressividade, uma imagem negativa que fala de um processo de negação
gradual e progressiva que avança até o ponto limite que é a afirmação absoluta. Para o
poeta místico, a noite é uma via estreita, um caminho de perfeição de amor por que
“passa a alma para chegar à alta e ditosa união com Deus" (Comentário a Noite escura,
2002, p. 27).
Noite escura
(trad, de Maria Clara Bingemer)

Em uma noite escura Em meu peito florido,


Com ânsias em amores inflamada, Que inteiro para ele apenas se guardava,
Ó ditosa ventura! Ali ficou dormindo, E eu o acariciava,
Saí sem ser notada, E o vento dos cedros refrescava.
Estando já minha casa sossegada.
O ar da ameia,
Às escuras, e segura Quando eu espalhava seus cabelos,
Pela escada secreta, disfarçada, Com sua mão serena A meu pescoço
Ó, ditosa ventura! feria,
As escuras, e emboscada, Estando já E todos os meus sentidos suspendia.
minha casa sossegada.
Fiquei e me esqueci,
Na noite ditosa O rosto reclinei sobre o amado:
Em segredo, que ninguém me via, Cessou tudo, e deixei-me,
Nem eu olhava nada Sem outra luz e Deixando meu cuidado
guia Entre as açucenas esquecido.
Senão a que em meu coração ardia.

Aquela me guiava
Mais certo que a luz do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem sabia,
Em lugar onde ninguém parecia.

Ó noite que guiaste;


Ó noite amável mais do que a alvorada:
Ó noite que juntaste
Amado com amada,
Amada no amado transformada!

120
Santa Margarida Maria Alacoque

Para a visitandina Margarida Maria Alacoque 1618-1600 amor de Deus por nós,
sempre misericordioso e fiel, é continuamente ultrajado e desconhecido dos seres
humanos “Eis o coração que tanto amou os homens e deles só recebe ingratidões”. Para
ela, o ato de reparação significa opor-se ao pecado por se a serviço do amor. A devoção
ao Coração de Jesus n do mosteiro de Paray-le Monial aos demais mosteiros ordem e
depois ganhou toda a Igreja, tornando-se uma das devoções mais queridas dos fiéis,
incentivando ao máximo a piedade eucarística Surgiu vigoroso o culto ao Santíssimo
Sacramento (a festa de Corpus Christi foi particularmente propicia às manifestações
dessa piedade). Prosseguiu o interesse pela devoção à Virgem Maria, estimulado
especialmente pelas congregações marianas.
Na Rússia do século XVI, dentro do monaquismo, havia duas tendências zelosas
da reforma: a corrente tradicionalista (José de Volokolamsk) e os fautores de uma nova
reconstrução, mais livre, no sentido do hesicasmo (Nilo Sorskij). A partir do século
XVII, os contatos dos orientais com a civilização racionalista europeia produziram, num
primeiro momento, in certezas e hesitações. Enquanto os ocidentais procuraram
verificar os fundamentos racionais da fé, os orientais retornaram à convicção mística de
que a fé e a vida são metalógicas, ou seja, de que o ponto de encontro entre Deus e o ser
humano é o Coração (espiritualidade do coração).
A partir de meados do século XVII a posição dos místicos e tornou cada vez mais
crítica: foi o tempo no qual o psicologismo e o intelectualismo invadiram a piedade
francesa, tempo em que muitos autores viam a vida Cristã sob o ângulo do moralismo; a
existência de vias místicas não era negada, mas eram vistas como milagrosas e
excepcionais, sem medida comum com a espiritualidade normal. No conjunto,
desconfiava-se de tudo que não fosse consciência clara e pensada. A estruturação da
vida espiritual como ciência, ou a sistematização cientifica da vida espiritual, começou
no século XVII: o acervo tradicional de doutrinas espirituais foi assumido por
profissionais da ciência- teológica, que impuseram o método escolástico a esse material.
As Sumas e Cursos geralmente consistiam em comentários e sínteses dos grandes
mestres: são autênticos manuais entregues aos membros de determinada ordem
religiosa, como introdução ao conhecimento de seus mestres (José del Espíritu Santo:
Cursos theologiae mysticae scholasticae, 6 vol).
O século XVII testemunhou também a divisão da ciência espiritual em ascética e
mística. Uma tímida corrente aproveitou-se da palavra ascética para tratar sob esta
epígrafe todo o caminho da vida espiritual (Cristóbal Schorrer); uma outra quis reunir
teologia e espiritualidade (Vicente Contenson). No entanto, em termos de clarificação
pedagógica e metodológica, a separação definitiva só ocorreria no século seguinte.

ESPIRITUALIDADE CONTEMPORÂNEA
Século XIX

121
A partir de 1815 levou-se a cabo a restauração, um período de certa estabilidade
política e social. Mas a mentalidade do Antigo Regime já não se presta mais a isso, pois
a nova história estava em marcha. Dos princípios da revolução sobre as liberdades de
consciência, culto e religião, deduziu-se a se separação entre Igreja e Estado, e a
concepção laicista do Estado. O século XIX herdou do século precedente um senso
difuso de desvalorização da mística: a opinião comum nutria preconceitos em relação à
mística e pensava-se que as graças contemplativas e místicas fossem quase um luxo
espiritual. A espiritualidade, privada de solida reflexão dogmática, refugiava-se na
ascética e nos preceitos práticos. As energias espirituais estavam apontadas mais para as
devoções. O amplo espaço reservado ao sentimento religioso baseava-se também na
frequência mais assídua aos sacramentos e exercícios de piedade.
As pessoas do século XIX tiveram de reconstruir sua história e readaptar-se à
nova mentalidade. Foi um período místico e missionário, no qual se destacaram: no
apostolado juvenil, João Bosco; no apostolado paroquial e pastoral, João Maria Vianey;
no laicato católico, Frederico Ozanan, no reencontro da Igreja anglicana com a católica,
Henry Newman, como espírito profético, Rosmini; na renovação da vida religiosa e da
liturgia, Guéranger; na fecundidade da vida contemplativa, Teresa de Lisieux; como
contemplativo na ação, Charles de Foucauld João Bosco 18151888 recapitulou as
correntes de espiritualidade de seu tempo: educador, fiel à Virgem, sustentador do
papado, padre exigente, homem de oração, místico, missionário, animador da educação
na e pela confiança. O cristianismo de Foucauld 1858-1916 descobre a vida oculta de
Jesus, o mistério de Nazaré. O amor a Jesus oculto gera a contemplação e a adoração
silenciosa da presença eucarística, o desejo da pobreza, a imitação dos sofrimentos de
Cristo, e o serviço aos mais pobres e humildes por meio da amizade e do testemunho
silencioso. Em Teresa de Lisieux 18731897 o menino é síntese de amor doçura. Ela
ensina a nunca perder de vista a infância espiritual, a própria pequenez e fragilidade, a
desejar ser esquecido e não contar em nada, a nutrir-se do amor misericordioso de Deus.
Cresceu o número de congregações religiosas dedicadas a viver e propagar a devoção
mariana. No campo leigo, destacou-se a congregação das Filhas de Maria. Aumentou a
devoção à Sagrada Família e a São José. As devoções clássicas não sofreram solução de
continuidade. 
 
Século XX 
O século XX foi marcado pelas grandes guerras, pela explosão da bomba atômica,
chegada do ser humano à lua, exemplo ração do espaço, descolonização e
independência de muitos países, e pela divisão do mundo em blocos e em situações
econômicas e culturais diferentes. Nesse mundo tão pluralista, a espiritualidade
continuou sendo uma realidade querida, bus cada, e também desprezada. As linhas de
força da espiritualidade contemporânea podem ser resumidas da seguinte maneira:
sentimento eclesial e comunitário, ânsia do absoluto, retorno às fontes da vida cristã
(Bíblia, Liturgia e Padres), abertura ao mundo e engajamento. A tensão se dá entre dois
componentes da mensagem cristã: presença ou fuga do mundo, valor da pessoa e função
da comunidade. Dentre os movimentos que influenciaram na configuração da
espiritualidade contemporânea destacaram-se: o americanismo, o modernismo, o
problema místico (unicidade da via mística versus contemplação infusa e adquirida),
litúrgico, bíblico, patrístico, mariano, ecumênico, missionário, e leigo. Em princípios do
século, na França e na Espanha, A. Saudreau P. Poulain assinalaram o inicio das
discussões sobre a natureza da vida mística e o chamado de todos à contemplação.
Farges e Maritain passaram a pesquisar as relações entre as místicas cristãs e não
122
cristãs. Entre as duas guerras à atenção voltaram-se à natureza e ao método da teologia
espiritual (Stolz, Mager...).
Em contraposição à visão maniqueísta e neoplatônica da vida espiritual, firmou-se
uma espiritualidade de imersão na vida, que descobriu o valor cristão do mundo, do ser
humano te sua história. Tal caminho foi propiciado pela nova teologia (Teilhard,
Chenu). Teilhard de Chardin 1881-1955 plantou as sementes da espiritualidade do
futuro: suas investigações científicas como arqueólogo e antropólogo na China e África
levaram-no à conclusão de que a espiritualidade da vida cristã se desenvolve em diálogo
com o mundo e a cultura; estabeleceu as bases para a elaboração de uma espiritualidade
do mundo ao afirmar que a natureza é sagrada e que, após a encarnação, nada mais é
profano.
O movimento litúrgico remonta ao século XIX: Guéranger programa a liturgia
como forma particular de espiritualidade e oração; Festugière tende a delinear a liturgia
como forma de vida espiritual. Expandiu-se com o centro Maria Laach, com Herwegen
e Casel, e com um grupo de alemães sob Romano Guardini. A encíclica Mediator Dei
pôs em foco os problemas teológicos, pastorais e espirituais que lhe estavam
implicados; a partir daí o movimento desenvolveu-se sob o aspecto pastoral e
aprofundou as relações entre liturgia e espiritualidade, tendendo a recuperar aquilo que
se dissolve em fins da Idade Média. 
A Bíblia voltou a ser a fonte direta da piedade e da vida espiritual. Antes de 1940
a exegese era dominada pelos problemas de crítica literária e cronologia, e por
preocupações arqueológicas e filológicas; posteriormente tratou-se de ressaltar suas
riquezas doutrinais e vitais. A preocupação de convergir o estudo da Bíblia para a
espiritualidade reabilitou a Escritura como forma de lectio divina e como parte
privilegiada da vida espiritual. No âmbito da doutrina espírita, o movimento bíblico
apresentou as seguintes características: preferência pelos valores escriturísticos que
tinham relação imediata com os problemas ascético-místicos, e preocupação de radicar
na Escritura as devoções e estruturas da espiritualidade tradicional. 
A Igreja apenas digeriu os novos posicionamentos e situações com o Vaticano II:
esse Concílio ressalta a dignidade d pessoa humana, como ser criado e redimido, e
afirma somente o mistério do Verbo encarnado explica o mistério de ser humano (GS
22), e que a plenitude do ser humano está na união com Deus (GS 19,1). A teologia do
homem novo, do novos céus etc., originou a antropologia teológica; as raízes da virada
antropológica devem ser buscadas na descoberta de le sus, homem para os demais, e no
seguimento de Jesus. 
O Vaticano II redescobriu o Espirito Santo. A ruptura de 1054 privara o ocidente
desse hálito de mistério e transcendência que respira a teologia e a espiritualidade
orientais; a partir do século XIII a teologia ocidental se racionalizou e o teólogo perdeu
o contato vital com a palavra de Deus e a tradição. A redescoberta do Espírito é um fato,
assim como a dimensão trinitária da espiritualidade. A acentuação dos aspectos místicos
e pneumatológico, abriu perspectivas à espiritualidade, que tendeu a concentrar-se na
caridade, nos sacramentos, a ser mais escatológica, ecumênica, dinâmica e apostólica,
socialmente mais engajada e responsável, Em termos de espiritualidade, a novidade do
Vaticano II foi a volta às fontes: Escritura (a constituição dogmática Dei Verbum propôs
a Escritura como prova das teses dogmáticas e indicou o primado da Palavra de Deus na
Igreja), liturgia (fruto do movi mento litúrgico, a constituição Sacrosanctum Concilium
estabeleceu o principio básico da liturgia como cume para o qual tende toda a ação da
Igreja), e Igreja (as noções teológicas de povo e corpo, contidas na constituição
dogmática Lumen Gentium, superaram a dimensão jurídica da Igreja como sociedade
perfeita). Paralelamente ao retorno às fontes, outra orientação que repercute no campo

123
da espiritualidade é a abertura ao mundo Tal esforço se traduz na vontade de presença e
aproximação u nova mentalidade Após o Concilio proliferaram as dimensões da
militância da transcendência, da descoberta da Igreja como comunhão, do compromisso
libertador, da essencialidade do Espírito na vida Na década de 1960, um ar secularizante
e dessacralizador slodiu na história do cristianismo: Van Buren, Altizer, Cox, e outros
espirituais da secularização criticaram a religião, a teologia e a espiritualidade. 
Potenciada pelo Vaticano II, surgiu à espiritualidade da ação, com a ruptura das
dicotomias e antinomias clássicas entre ação e contemplação, sacro e profano. O
emergir da mentalidade foi propiciado pelos cristãos (que se aproveitaram de tal
oportunidade para esfacelar a Teologia do Vaticano II: a Fraternidade de São Pio X com
Lebvrevianos e por outro lado com a Teologia da Libertação) assim classificadas para o
socialismo, pelas comunidades de base e comunidades populares. Infelizmente no Brasil
( América Latina e Europa) influenciado pela Teologia da libertação, onde teve raiz nas
CEB’s, aconteceu um modo da Igreja evangelizar em comunidades pequenas e acabou
se tornando palanque político para eleger candidatos de diferentes partidos, perdendo
seu sentido primeiro. Seus ideais contradizem a Doutrina da Igreja Católica: Moral
Cristã, Bioética, Eclesiologia, Liturgia, Escatologia e Mariologia, na qual confundem os
fieis. Sem contar com a distorção enfática da Doutrina Social da Igreja que desejam o
Paraíso terrestre desconsiderando a Civitas Dei, como Santo Agostinho trabalha em suas
obras.
Um dos indicadores e paradigmas mais férteis no Concilio e pós-Concílio foi à
irrupção dos pobres na Igreja como sujeitos evangelizadores e libertadores. Um núcleo
doutrinal importante foi à teologia esboçada em Medellín e Puebla. Após alguns anos
de iconoclastia, crítica e abandono das devoções clássicas, a religiosidade popular
retornou com força. Nos anos de 1970, assistiu-se ao despertar religioso: descobriu-se o
gratuito, o festivo; ressurgiu a dimensão ritual e simbólica da existência humana;
renasceu o gosto pela experiência espiritual e religiosa, a mística oriental, os êxtases, à
volta à natureza e a ânsia da comunhão ecológica. Dentro do cristianismo brotaram os
movimentos de renovação carismática e os grupos de oração. O anseio pela experiência
e transmissão mistagógica do cristianismo, pela fusão entre teologia e espiritualidade,
coincidiu com o “reavivamento” da religião.
A espiritualidade se pôs o problema da santidade no mundo, ou da integração dos
valores terrenos no ideal de santidade. No plano da vida religiosa isto se concretizou nos
Institutos Seculares, aprovados em 1947. Esta nova forma de vida religiosa revela uma
das características de fundo da espiritualidade contemporânea, que tende a realizar no
mundo os ideais de presença e testemunho, conciliando a sede do absoluto com os
valores terrenos. Atualmente, entre os grupos que configuram a sociedade e a Igreja, a
espiritualidade tem sido vivida diversamente: 
a) os arcaizantes continuam vivendo a espiritualidade tradicionário, em confusão
simbiótica com a teologia natural, a magia e a superstição; 
b) os integralistas, nostálgicos da religião, olham com entusiasmo para o passado
espiritual e se opõem a qualquer reforma ou adaptação; 
c) os radicais continuam sendo excessivamente críticos; 
d) e, enfim, os grupos dinâmicos procuram renovar-se. Dentro da ambiguidade, da
polivalência do termo, grupos dispares, que também entendem a espiritualidade de
maneiras diferentes, estão se voltando para ela.
O assim chamado século sem Deus – o século XX – não está vazio da presença e
da experiência de Deus por parte das pessoas. Mas essa presença e essa experiência
acontecem e se fazem visíveis de maneira diferente.  Os místicos não mais são
encontrados principalmente dentro dos claustros ou das ordens religiosas. Podem ser

124
vistos em fábricas, em meio ao ritmo barulhento e estressante das máquinas e indústrias.
Ou nas ruas com os mais pobres e deserdados do assim chamado “progresso”. Ou na
prisão, devido a sua atividade e compromisso, considerado perigoso por autoridades
estabelecidas. Ou no inferno dos lagers e gulags de todas as origens e formas. Ou seja,
em situações muito seculares.
Thomas Merton nasceu em 1915, no Sul da França, filho de artistas, Owen e Ruth:
ele, neozelandês; ela, norte-americana. Ainda em meados dos anos 1930, Merton
interessou-se por assuntos religiosos – na infância, passara por denominações
protestantes, não criando vínculos. Após manifestar curiosidade por religiões orientais,
voltou-se aos clássicos da espiritualidade cristã. Em 1938, converteu-se ao catolicismo
romano.
No final de 1941 optou pela vida monástica, sendo admitido entre os trapistas da
Abadia do Gethsêmani, no Kentucky. No claustro, Merton foi autorizado a escrever,
passando a ser autor de sucesso.  Além da teologia e da profunda espiritualidade que se
pode encontrar em seus escritos, tratou de diversas questões candentes da cada vez mais
plural sociedade contemporânea: direitos civis e segregação racial, não violência,
pacifismo e o risco de uma hecatombe nuclear, despertar da consciência ecológica no
planeta, diálogo ecumênico e as relações entre culturas ocidentais e orientais. Sua
preocupação era unir contemplação e ação e fazer dialogar a tradição cristã com outras.
Neste espírito, viajou para o Oriente, em 1968, visitando a Ásia. Faleceu eletrocutado
em Bangkok, quando tomava parte de encontro inter-religioso entre cristãos e budistas.
Charles de Foucauld nasceu em Estrasburgo, França, em 1858.  De meio
aristocrático, ficou órfão cedo e tornou-se militar.  Perdeu a fé e levou uma vida
dissipada, até deixar o Exército e ir ao Marrocos.  Ali, o testemunho da fé muçulmana o
levou a recolocar-se a questão: Deus existe? Converteu-se aos 28 anos e começou uma
vida de sempre maior busca de Deus, em um processo de descida kenótica ao lugar mais
pobre e mais difícil.  Entrou na Trapa e saiu.  Tornou-se eremita e viveu em Nazaré
trabalhando como carpinteiro para seguir Jesus em sua vida oculta.
Sua mística está centrada no amor por Jesus, na devoção eucarística e no
aniquilamento da pobreza e da obscuridade para seguir Jesus mais radicalmente. 
Instala-se na Argélia e leva uma vida isolada do mundo numa zona de Tuaregues, em
um diálogo testemunhal com a população muçulmana. Não procurava converter
ninguém, mas apenas amar, “gritar o Evangelho” com sua vida. Tem a intenção de criar
uma nova ordem religiosa, o que sucede apenas depois da sua morte: os Irmãozinhos de
Jesus. Morre assassinado por assaltantes de passagem em 1º de dezembro de 1916. Foi
beatificado pelo Papa Bento XVI em 13 de novembro de 2005.
Existem ainda aqueles que foram sim um sinal de Deus em seu tempo e que
atualmente são colocados como “socialistas” mas que lutaram por uma causa nobre,
pois tinham voz profética sem ter envolvimento ou defenderem partidos políticos. Em
tempos mais recentes, no continente latino-americano, estas grandes figuras místicas
apareceram no contexto de uma Igreja que se voltou para os pobres,  e uniu
indissoluvelmente Evangelho e justiça social.
Algo profundamente significativo ocorreu com ele em 1956, e que por ele é
considerado como uma conversão. Foi um profundo êxtase místico que transformou sua
vida. Significou uma inaugural experiência contemplativa, que se conjugava com um
projeto solidário ao serviço de seu povo. A partir daí decidiu entrar na Trapa, onde sob a
guia de Merton desenvolveu uma sintonia entre vida contemplativa e vida ativa.
Por razões de saúde, teve que abandonar a Trapa e, depois de várias mudanças de
lugar, estabeleceu-se no arquipélago de Solentiname, na Nicarágua, onde criou uma
comunidade monástica que visava a uma presença espiritual distinta, com envolvimento

125
vivo na comunidade dos pobres. Sua mística é uma “mística cósmica”, de abertura ao
mundo e de sensibilização ao real. Tem uma perspectiva que envolve um olhar
profundamente aberto para a realidade, para o cosmos e para o seu tempo. É também
uma mística centrada na experiência do Deus da vida, núcleo de sua trajetória espiritual.
Há que citar outros místicos, que não optaram pela vida contemplativa, mas que se
destacaram por um profetismo ardente em favor dos pobres e das vítimas de toda
injustiça, oriundo de sua vivência mística.  São eles: Dom Oscar Romero, arcebispo de
San Salvador, que com suas homilias mobilizava o país inteiro e contrariava os
interesses dos poderosos, nacional e internacionalmente, e terminou morto enquanto
celebrava missa, no momento da consagração, por um atirador de elite contratado por
um mandante interessado em calá-lo. Seus diários e homilias são um precioso exemplo
de um homem inteiramente dócil à vontade de Deus e cuja única preocupação era
construir seu Reino.
No Brasil há outros místicos inteiramente comprometidos com os pobres. 
Destacam-se as figuras de Dom Helder Câmara, bispo de Olinda e Recife, que deixou
uma vasta obra de escritos místicos, poéticos e proféticos.  Silenciado pela ditadura
militar, percorreu o mundo defendendo a causa dos pobres e da paz. Também Dom
Luciano Mendes de Almeida, arcebispo de Mariana,  reconhecido por sua santidade, que
unia uma enorme inteligência a uma profunda mística e dedicação pessoal e amorosa
aos mais pobres.  Escolheu como lema de seu episcopado: “Em nome de Jesus”.  Da
mesma forma Dom Pedro Casaldáliga , bispo de São Felix do Araguaia, que é, além de
místico, poeta e escritor exímio, tendo composto duas missas, uma sobre a mística dos
povos indígenas (Missa da terra sem males) e outra sobre a mística dos povos
afrodescendentes (Missa dos Quilombos). Seus poemas são todos eles prenhes de uma
mística profunda e ardente, ao mesmo tempo que profética e comprometida. Penso
pessoalmente que aquilo que fizeram foi uma tentativa de unir a oração e contemplação,
mas que ainda caminharemos e muito para chegar lá, pois ainda a Igreja necessita
avaliar algumas novas sínteses que ajudem o cristão de hoje a encontrar na fé o
amadurecimento de suas decisões, pois percebe-se enormemente a perda de sentido por
parte do ser humano. Estão “enfadados” das utopias: econômicas, sociais, científicas,
antropológicas, culturais e políticas.

Teresa de Lisieux: A noite da distância de Deus

Teresa Martin, nascida em 1873, provinha de uma família abastada. Com quatro
anos de idade faleceu sua mãe. Apesar de dificuldades, cm 1888 ela entra para o
convento carmelita de Lisieux (também quatro de suas irmãs entram para o convento);
em 1890 ela professou os votos. Na noite de Sexta-Feira Santa de 1896 manifesta-se em
Teresa a tuberculose pulmonar, uma enfermidade comum na época. Ela faleceu em 30
de setembro de 1897. Suas últimas palavras foram: “Eu te amo”.
Vários textos e cenas da História de uma Alma, a autobiografia de “Teresinha”,
são mundialmente conhecidos (“Chuva de rosas”). Ainda que designada como
“Teresinha” para diferenciá-la de Teresa de Ávila. Ela não é uma santa simples. Na
linguagem, ela permanece presa a sua época. Contudo, em suas afirmações ela vai muito
além do mundo do século XIX, que chegava ao fim.
Aqui não podemos apresentar de forma adequada nem seu caminho espiritual nem
sua importância para a teologia. Interessa-nos o aspecto do seguimento na Modernidade.
Para isso, sem querer reduzir o destino de Teresa a sua morte, e decisiva a Sexta-Feira

126
Santa de 1896. Foi quando lhe sobreveio a noite da fé. Antes ela tinha tido momentos de
duvidas quanto à existência de Deus. Agora lhe escapa o que sempre lhe havia dado
segurança: a certeza do céu. A agonia do radical conflito de fé dura até a morte.
Teresa busca a causa para a experiência dessa noite primeiramente em sua culpa
pessoal. Depois vincula sua escuridão na fé com aquelas pessoas “que não tem a fé”:
"Via-me então na posse de uma fé tão viva, tão lucida, que a
ideia do céu constitui toda a minha felicidade. Não podia
conceber que houvesse ímpios, carentes de fé. Julgava que
falassem contra sua própria convicção, ao negarem a existência
do Céu [...] Nos dias tão alegres do tempo pascal. Jesus deu-me
a conhecer que realmente existem almas que não tem fé e que
por abuso de graças pedem esse precioso tesouro [...] Permitiu
que minha alma fosse invadida pelas mais densas trevas, e que o
pensamento do Couto doce para mim, já não fosse senão motivo
de luta e tormento. A provação não duraria alguns dias, algumas
semanas. Só desapareceria à hora marcada belo Bom Deus...e
hora ainda não chegou (..] É preciso passar por esse lúgubre
túnel para ter uma ideia de sua escuridão." (História de uma
alma - Manuscritos autobiográficos, 275-276, Paulus, 1979)

Desta forma, a descrença torna-se de certa forma acessível para Teresa. Ela que
tinha uma consciência bem elaborada acerca de sua missão para a renovação da Igreja,
sabe-se agora solidaria com aquelas pessoas que igualmente se encontram na noite da
fe:

Corro, entretanto, para o lado de Jesus, digo-lhe que estou


disposta a derramar até a derradeira gota de sangue para
professar que existe um Céu. Declaro-lhe que sou feliz de não
gozar o belo Céu na terra, a fim de que ele o possa abrir aos
incrédulos por toda a eternidade. Entretanto se por absurdo vós
mesmo desconhecêsseis meu sofrimento, ainda assim me
sentiria feliz de tê-lo, se por meio dele eu pudesse impedir ou
reparar uma única falta cometida contra a fé... (Ibidem 279)

Teresa não busca uma perfeição só para si. Entende sua missão como participação
na missão universal de Jesus. Nascida em uma época de crença na ciência, de ateísmo e
de materialismo, e falecida três anos antes da crítica à religião de Nietzsche, ela sente o
hálito da morte de um mundo sem a proximidade de Deus. Com isso Teresa chegou bem
próximo do problema existencial do ser humano moderno: dúvida radical acerca de
Deus, perda da transcendência. A esta dúvida radical ela contrapõe sua perseverança no
amor.
Teresa alarga o estreito contexto da Igreja de seu tempo e expande o horizonte da
esperança. Ela tem esperança pelos pecadores e está disposta a pagar um preço alto por
eles. Semelhante ao servo sofredor, "que carregou nossos pecados" (Is 53,4), sua forma
de seguimento consiste em deixar entrar em si a doença do pecado e a escuridão da

127
descrença. Pois na cruz Cristo assumiu sobre si todas as noites do distanciamento de
Deus em todos os tempos, a fim de iluminá-las com a luz da ressurreição.
Assim, ação vicária é uma palavra-chave para entender o seguimento especial da
pequena Teresa. Ela sofre em solidariedade com os pecadores e com aqueles que não
podem (mais) crer, ou que duvidam de Deus, o que constitui a noite do distanciamento
de Deus. Nisso ela vê sua missão apostólica.

Edith Stein40

Edith Stein nasce em Breslau, Alemanha, no dia 12 de ou- Outubro de 1891. E a


filha mais nova de uma família de doze irmãos. Seus pais são judeus praticantes, e Edith
bebe todos os tesouros da fé israelita no seio de sua família Sua vida se desenvolve em
um ambiente sadio, cercada do amor familiar. Muito capaz intelectualmente, Edith
estuda história, filologia e psicologia experimental, mas, atraída pela reflexão filosófica,
depois de dois anos de intensa aplicação na Universidade de Breslau, prefere estudar em
Gotinga, onde se torna a discípula predileta do grande filosofo alemão Edmund Husserl.
Tendo se convertido ao catolicismo, em 1921, a partir da leitura do livro sobre a vida de
Santa Teresa de Ávila, narrada por esta, sua reflexão se volta para a busca do
entendimento daquela Verdade que tanto buscava, mas até então somente do ponto de
vista da logica racional. E conclui que a Verdade que buscava era precisamente aquele
Deus de quem e para quem a santa havia vivido. Recebe o batismo em 1922. Tornando-
se católica, continua buscando mais a Deus, e finalmente em 1933 entra no Carmelo de
Colônia. Como religiosa carmelita, experimenta o cristianismo reavivando sua fé
judaica. Jesus Cristo e aquele que vem concretizar as promessas salvíficas do Deus de
Israel, o verdadeiro e único Deus, conforme as Escrituras judaicas.
Nesse encontro entre judaísmo e cristianismo, Edith Stein - como pensadora que é
- reencontra em dimensão mais professado, junto por ela profunda aquele Deus Um e
Único com a sua família e o seu povo, desde a infância Ela agora professa um Deus que
é Um. Único e Trino. A fé em Jesus Cristo a leva inevitavelmente a professar a lê na
Trindade, pois Jesus Cristo – seu Salvador -é o Filho de Deus que se fez homem para a
salvação de todos os homens, a partir de Israel. Seu espírito, achegado a reflexão
filosófica, não se contenta sem uma explicação que ela vai buscar pelos dois caminhos
que conduzem a verdade: a filosofia e a teologia. Para tal, vai haurir das fontes
indispensáveis da patrística, em particular de Santo Agostinho, para depois recorrer
também ao pensamento de Santo Tomás. Com permissão de seus superiores, continua
suas pesquisas mesmo após sua entrada no Carmelo, onde toma o nome de Irma Teresa
Benedita da Cruz.

40
Irma Jacinta Turolo Garcia possui Graduação em Letras - Português Inglês e em Pedagogia, Mestrado e
Doutorado em Filosofia. Cursou, na Pontificia Universidade Lateranense de Roma, em nível de Pós-
Doutorado, disciplinas Filosóficas e participou do Grupo Internacional de Pesquisas. Atualmente é
professora da Universidade do Sagrado Coração e professora visitante da Universidade de São Paulo
(USP) no Laboratório de Psicologia Clínica, além de participar do programa de Pesquisa Filosófica do
Centro Italiano de RICERCHE FENOMENOLOGICHE, em Roma, Itáilia. Tem diversas publicações em
português e italiano tratando temas de Filosofia, Pedagogia e Teologia. 

128
O encontro do judaísmo e do cristianismo em Edith Stein a conduz ao lugar
teológico por excelência desse encontro: a cruz de Cristo. Esta cruz retrata em Edith
Stein a imagem não apenas de todo o sofrimento do povo judeu, nas perseguições,
discriminações e tentativas de eliminação, como tem sofrido ao longo de sua trajetória
histórica de povo eleito, de povo amado por Deus, como retrata também o sacrifício do
próprio Cristo, depois o de seus amigos e o de sua Igreja, que testemunham na história
humana, não raro em meio à sacrifícios, cruentos ou incruentos, o chamado de Deus à
meta querida por ele para a concretização plena da salvação do ser humano: o Reino de
Deus. Reino que se constrói na historia da salvação Reino sinalizado pela cruz de
Cristo, que Edith Stein testemunhou não ser um fim em si mesmo, mas a porta que dá
acesso à salvação prometida a todos os homens e mulheres, a partir daquele que Edith
Stein reconhece e acolhe em seu coração como o messias de Israel.
Os tempos da perseguição nazista se tornam ferozes. Edith, já como carmelita,
acompanha angustiadamente os acontecimentos que esmagam sempre mais seu povo,
Sente que seu destino está ligado ao destino deste povo no seio do qual nasceu e que
nunca deixou de amar apesar de sua conversão. Vive concreta mente a convicção que
havia expressado ao solicitar o ingresso no Carmelo, quando a priora a avisar que não
poderia realizar as atividades e o bem que fazia no mundo: “Não é a atividade humana
que nos salva, mas somente a Paixão de Cristo. Participar dela é a minha única
aspiração” Pede à superiora a permissão de oferecer sua vida pela redenção de seu povo
e o faz.
Em 9 de novembro de 1938, o partido nacional-socialista inicia seu ataque,
tomando abertamente atitudes violentas contra os judeus. Estes são expulsos de suas
casas e torturados, suas casas são queimadas, assim como as sinagogas e as suas lojas.
Edith deve deixar o convento de Colônia, onde vive para proteger as irmãs de
represálias. Ela é levada para um convento em Echt, na Holanda.
Em 1940, as tropas alemãs invadem a Holanda, e a solução final está em marcha.
Em julho de 1942, a situação se agrava, No dia 2 de agosto de 1942, a SS vai buscar
Edith e sua irmã Rosa no convento e as leva presas. São levadas ao campo de
concentração de Amersfoort (Holanda) e de lá transferidas para o Campo de Westerbork
(Holanda). A partir desse momento, os judeus são tratados cruelmente e se percebe com
clareza que também está em curso uma represália contra os católicos motivada por um
escrito pastoral dos bispos holandeses condenando duramente os acontecimentos
provocados pelos alemães.
Em meio a todos os sofrimentos e privações do campo. Edith ajuda os outros em
todo momento. Consola, é afetuosa com mulheres, com crianças. Ainda tem alguma
esperança de que a intercessão do Consulado Suíço consiga mudar de alguma maneira
as coisas. Mas depois conclui que não vale a pena esperar Não aceitam o pedido de
liberdade interposto pelo consulado No dia 7 de agosto Edith e levada com outros
judeus num trem em direção ao campo de extermínio de Auschwitz. Por alguns
documentos se sabe que sua sentença de morte e mar: cada para o dia 9. Edith Stein
morreu - assim como todos os judeus que a acompanham-na câmara de gás.
Sobre este texto (carta de Edith a Pio XI -12 de abril de 1933- tradução do
italiano), que é autoexplicativo, não há muito que dizer Edith Stein percebe o que está

129
acontecendo na Alemanha e antevê os sofrimentos dos judeus e dos cristãos igualmente
Decide escrever ao papa e certifica-se de que a missiva chegou às mãos dele. Não
recebe resposta, e suas intuições vão se confirmando uma a uma com o tempo.
Em 15 de fevereiro de 2003, foram abertos quatro Fundos do Arquivo Secreto
Vaticano referentes às relações da Igreja católica com a Alemanha, durante o
pontificado de Pio XI (1922-1939). Três cartas conservadas no Arquivo da Sagra da
Congregação dos assuntos eclesiásticos extraordinários (Congregazione per gli Affari
Ecclesiastici Straordinari. Arch AA EE.SS. Germania 6431092 /33) fazem parte do
conjunto, do qual destacamos a carta de Edith Stein ao papa, em alemão, em duas folhas
datilografadas e sem data. Com ela, uma folha com pequena carta, com o emblema do
Abade de Beuron, om data de 12 de abril de 1933. Escrita em latim e assinada por
Raphael OSB, Arch Abbas (número de protocolo 1092/33), a carta e endereçada ao
secretário de Estado, cardeal Eugenio Pacelli. Este apresenta a carta que a autora lhe deu
para ser entregue ao Santo Padre. O terceiro documento é a fotocopia da carta do
cardeal Eugenio Pacelli em resposta a carta do Abade de Beuron. Da importância dessa
carta, considerada profética, tanto do ponto de vista histórico quanto da perspectiva
filosófica, diversos estudiosos trataram nos últimos anos. Ver por exemplo, Edith Stein
e il nazismo, de Angela Ales Bello e Philippe Chenaux (Roma: Citta Nuova, 2005).

Santo Padre!

Como filha do povo judeu, que pela graça de Deus, há onze anos, é filha da Igreja
católica, eu ouso exprimir ao Pai da cristandade aquilo que preocupa a milhões de
alemães. Há muitas semanas que nós somos espectadores, na Alemanha, de
acontecimentos que mostram um total menosprezo pela justiça e pela humanidade,
para não falar do amor ao próximo. Durante anos, os chefes do nacional-socialismo
pregaram o ódio contra os judeus Agora que eles conseguiram o poder e armaram os
seus seguidores entre os quais figuram alguns elementos criminosos conhecidos - eles
recolhem o fruto do ódio que semearam. Que se cometiam violências, até pouco tempo,
era admiti do pelo regime. Não podemos ter ideia de até que ponto isso ocorre porque
a opinião pública está amordaçada Do que eu posso julgar por mim mesma, sobre a
base de minhas relações pessoais, sei que não se trata absoluta mente de casos
isolados. Sob a pressão de vozes provenientes do exterior, o Regime passou a métodos
mais “suaves" e tem emitido ordens para que “não se toque em um cabelo de qualquer
judeu" Este boicote - que nega às pessoas a possibilidade de desenvolver uma atividade
econômica, privando-as da dignidade de cidadão e da pátria - tem empurrado muita
gente ao suicídio: cinco casos foram trazidos ao meu conhecimento, somente dentre os
que me estão mais próximos. Estou convencida de que se trata de um fenômeno geral
que provocará muitas outras vítimas. Pode-se pensar que os infelizes não terão tido
bastante força moral para suportar seu destino. Mas se a responsabilidade cai em
grande parte sobre aqueles que os empurraram a tal gesto, ela recai também sobre
aqueles que se calam. Tudo isso que aconteceu e que acontece cotidianamente te vem
de um governo que se define como "cristão". Não somente os judeus, mas também
milhares de fiéis católicos da Alemanha -e, eu penso, do mundo inteiro- aguardam até

130
depois de semanas e esperam que a Igreja de Cristo faça ouvir a sua voz contra um tal
abuso do nome de Cristo. A idolatria da raça e do poder do Estado, com a qual o radio
martela quotidianamente as massas, não é uma heresia aberta? Esta guerra de
extermínio contra o sangue judeu não é ela um ultraje à santíssima humanidade de
nosso Salvador, da bem-aventurada Virgem e dos apóstolos? Não é isso uma oposição
absoluta ao comportamento de Nosso Senhor e Redentor, que, mesmo sobre a cruz,
orou por seus perseguidores? E não é isso uma mancha negra na crônica deste Ano
Santo, que deveria se tornar o ano da paz e da reconciliação? Todos nós que olhamos
a atual situação alemã como filhos fiéis da Igreja receamos o pior para a imagem
mundial da própria Igreja, se o silêncio se prolongar por mais tempo. Nós estamos
também convencidos de que este silêncio não pode por muito tempo obter a paz do
atual governo alemão. A guerra contra o catolicismo se desenvolve na surdina e com
os meios menos brutais do que contra o judaísmo, mas de modo não menos sistemático.
Não se passará muito tempo antes que um católico não possa mais ter um emprego, a
menos que se submeta, incondicionalmente, à nova corrente.

Aos pés de Vossa Santidade, pedindo a bênção apostólica.


Dra. Edith Stein
Docente do Instituto Alemão de Pedagogia cientifica do Colégio Mariano de Munster

No Domingo da Paixão de 1939, Edith Stein sentiu-se pressionada interiormente a


um ato de consagração pessoal. O Domingo da Paixão, segundo as normas litúrgicas, é
o domingo que se segue ao Domingo de Ramos. Desde então, no centro da liturgia, está
a figura do Cristo sofredor. Uma das ideias fundamentais da espiritualidade de Edith
Stein foi aderir a "grande obra da redenção” através da união com ele (cf. ESGA II, n.
234). Outra justificativa de seu sacrifício de expiação era certamente a situação
identificada na politica interna e externa do Terceiro Reich. Em 30 de janeiro de 1939,
Hitler, num di curso perante o Parlamento da grande Alemanha, em Berlim ameaça
“exterminar a raça judaica na Europa". A política poder de Hitler ja havia trazido
sucesso perturbador. Em 16 de março de 1939, em Praga, anunciou a criação do
“Protetorado do Reich" da Boêmia e da Morávia, da mesma forma, alguns d antes, o
território de Memel havia sido forçado a "cair dentro Reich". Quando o Papa Pio XII
(Eugenio Pacelli, 1876-1958) no dia seguinte ao de sua eleição, que ocorreu em 2 de
março de 1939, proferiu sua primeira mensagem de rádio na Capela Sistina, lançou um
apelo para "a paz entre todas as nações na grande família da humanidade".
Edith Stein escreveu o texto de sua consagração com caneta-tinteiro no verso de
um postal em branco (Argu Edith Stein, Colônia, S/A 54). V.R. significa "Vossa Revern
cia", como se costumava dirigir-se à priora, chamada 20i de "madre. Na época em que o
texto foi escrito, a abadessa era Ottilia Thannisch.
+ Querida Madre, peço que V.R. permita oferecer-me ao Coração de Jesus como
sacrifício de expiação para a verdadeira paz: se possível, que o poder do Anticristo se
esgote diante de uma nova guerra mundial e que uma nova ordem possa ser construída.
Eu faria isso hoje. Porque é a décima segunda hora. Eu sei que eu sou um nada, mas
Jesus quer, e ele certamente irá chamar muitos outros a fazer o mesmo.
131
Domingo da Paixão, 26/03/1939 + [374]

Como Edith Stein entende sua vocação de carmelita (outubro 1938) aparece numa
carta parcialmente publicada em português em uma revista comemorativa da OCD.

Há uma vocação que consiste em sofrer com Cristo, e assim colaborar com ele em sua
obra redentora. Quando estamos Unidos ao Senhor, somos membros do Corpo Místico
de Cristo. Cristo continua a viver em seus membros e continua sofrer neles. O
sofrimento levado em união com o Senhor e sofrimento dele, inserido na grande obra
da Redenção, e por isso frutífero. Este é o pensamento básico de toda vida religiosa,
porém especialmente da vida do Carmelo: interceder pelos pecadores por um
sofrimento voluntário e alegre, e colaborar assim na redenção da humanidade.

Edith Stein aqui analisa sua experiência mística e as repercussões interiores que
esta lhe provoca. Descreve a alegria que experimenta sentindo-se habitada por Deus. O
texto se encontra num estudo elaborado por Edith Stein, publicado em 1922, no quinto
volume da revista coordenada por E Husserl, Jahrbuch für Philosophie und
phänomenologische Forschung. O tema era as "Contribuições para uma fundamentação
filosofica da psicologia e das ciências do espírito". A tradução abaixo se baseia na tra-
dução italiana de Psicologia e Scienze dello Spirito, Citta Nuova, 1999. Na nova edição
alema, ESTA, Band 6, Philosophischen Schriften, p. 76

“Há um estado de repouso em Deus, de total suspensão de toda atividade espiritual, no


qual não se fazem planos, nem se tomam decisões, e não só não se age, mas se entrega
todo o futuro ao querer divino e a pessoa se abandona inteiramente a seu destino.
Experimenta-se esse estado depois de uma vivência que, ultrapassando as próprias
forças, consumiu totalmente as energias vitais e espirituais da pessoa e retirou dela toda
a possibilidade de ação. Comparado ao cessar a atividade por falta de impulso vital, este
repouso em Deus é qualquer coisa de completamente novo e particular. Antes, era o
silêncio da morte. Em seu lugar se instaura um sentimento de intima segurança, de
libertação de toda preocupação, obrigação e responsabilidade em relação ao agir. E,
quando nos abandonamos a este sentimento, eis que uma vida nova começa, aos poucos,
a nos plenificar e - sem esforço algum da vontade - impulsiona a novas realizações. Esse
fluxo vital me parece expandir-se com uma força ativa que não é a minha e que, sem me
fazer violência alguma, se torna ativa em mim. A única condição necessária para um tal
renascimento espiritual parece ser essa capacidade passiva de acolhida que está no
fundo da estrutura da pessoa que se libertou do mecanismo psíquico”.

THOMAS MERTON41

41
Marcelo Timotheo da Costa, Doutor em história pela PUC-Rio

132
Nascido em 1915, no Sul da França, era filho de artistas, Nowen e Ruth: ele,
neozelandês; ela, norte-americana. Em 1916, o prolongamento da Grande Guerra
motivou a ida da família para os EUA. Em 1931, a morte do pai - Ruth falecera dez
anos antes-levou Thomas a fixar residência na Inglaterra, tutelado por parentes. Em
1933, ele ingressou na Universidade de Cambridge. Dali seria expulso, provavelmente
por haver engravidado moça solteira.
Volta à América do Norte, retomando os estudos em Columbia, onde se graduou
em Humanidades (1938) e obteve o mestrado em inglês, com dissertação sobre William
Blake (defendida em 1939). Nesses anos, escreve para a Columbia Review e a revista
humorística Jester, entregando-se também a intensa atividade boêmia. A mesma época,
despertou para questões políticas, tendo passagem fugaz pela Young Communist
League. Ainda em meados dos anos 1930. Merton se interessou por assuntos religiosos -
na infância, passara por denominações protestantes, não criando vínculos. Após
manifestar curiosidade por religiões orientais, voltou-se aos clássicos da espiritualidade
crista. Em 1938, converteu-se ao catolicismo romano.
Logo após a conversão, desejando tornar-se sacerdote, foi recusado pelos frades
franciscanos (é provável que a vida pregressa do candidato tenha impedido sua
admissão na Ordem). No final de 1941, radicalizando a escolha religiosa, optou pela
vida monástica, sendo admitido entre os trapistas da Abadia do Gethsemani, no
Kentucky. Ali, foi ordenado sacerdote em 1949. No claustro, Merton foi autorizado a
escrever. Sua primeira obra publicada, a precoce autobiografia A montanha dos sete
patamares (1948), alcançou notável sucesso de critica e público. Muitos outros livros
virão. Neles, além da teologia e espiritualidade católica romana tout court (expressão
francesa: sem mais, simplesmente), tratou de diversas questões de apelo junto à cada
vez mais plural sociedade contemporânea: direitos civis e segregação racial, não
violência, pacifismo e o risco de uma hecatombe nuclear, despertar da consciência
ecológica no planeta, diálogo ecumênico e as relações entre culturas ocidentais e
orientais.
Assuntos variados, ligados pela preocupação de unir contemplação e ação ara
Merton, estava em jogo cruzar cristianismo e modernidade, construindo uma reflexão
que fosse, simultânea mente, fiel à tradição cristãs e de interesse ao homem do século
XX Neste espirito, ele viajou para o Oriente, em 1968, e visitou a Índia (onde esteve
como já exilado Dalai Lama), Sri Lanka, Singapura e Tailândia. Faleceu acidentalmente
eletrocutado em Bangkok, quando tomava parte de encontro ecumênico entre cristãos e
budistas.
Cito aqui alguns testemunhos do autor místico de nosso século que considero
essenciais para conhecê-lo:

A montanha dos sete patamares, 1948


Quando retornei a Havana, descobri outra coisa, outra coisa bastante mais
importante. E essa experiência abriu-me outra porta [..] um caminho para um mundo
infinitamente novo, um mundo que estava inteiramente fora desse nosso e que o
transcende infinitamente, que não era o mundo, mas o próprio Deus. Eu estava na igreja
de São Francisco, em Havana. Era domingo. Eu havia comungado numa outra igreja,
creio que a de El Cristo, agora aqui em São Francisco estava para ouvir outra missa. O
recinto estava lotado. Lá na frente, diante do altar, havia fileiras e mais fileiras lotadas

133
de crianças. Não me lembro de se era ou não uma Primeira Comunhão, mas eram
crianças que estavam na idade de fazê-la. Eu estava bem nos fundos da igreja, porém
podia ver as cabeças de todas aquelas crianças. Chegou a hora da Consagração. O
sacerdote ergueu a hóstia, depois, ergueu o cálice. Quando ele pousou o cálice sobre o
altar, um frade vestindo hábito marrom e cíngulo branco surgiu e se colocou diante das
crianças, e todas elas exclamaram em coro: "Creo en Diós..", "Creo em Deus, Pai todo-
poderoso, criador do Céu e da Terra...
Credo. Mas aquele brado "Creo en Diós!", ele foi alto, e claro, e repentino, e
alegre e triunfante: foi um brado sonoro, aquele que deram as crianças cubanas, uma
jubilosa afirmação de fé.
Então, tão repentino e definitivo como o brado, e mil vezes mais claro, formou-se
em minha mente uma certeza, um entendimento, a compreensão do que havia
acontecido sobre o altar, durante a Consagração a compreensão de que Deus se fizera
presente por intermédio das palavras ditas na Consagração, de maneira que o fez
pertencer a mim. Que certeza era essa! Era tão intangível e, contudo, me atingia como o
ribombar do trovão. Era uma luz tão in tensa que não se compara a nenhuma outra luz
visível, e tão profunda e tão intima que parecia a neutralização de toda experiência
menor.
Porém o que mais me impactou foi que essa luz era de certo modo “comum” - era
uma luz (e foi, sobretudo isso que me deixou sem fôlego) que era oferecida a todos, para
cada pessoa, e não havia nada de especial ou estranho nela. Era a luz da fé aprofundada
e reduzida a uma extrema e súbita evidência.
Era como se eu tivesse sido inesperadamente iluminado após ser cegado pela
manifestação da presença de Deus. A razão dessa luz cegar e neutralizar era o fato de
não haver, nem simplesmente poder haver nela, algo de sensação ou imaginação.
Quando chamo isso de luz, é uma metáfora que estou utilizando bem depois do fato.
Mas, no momento, outra coisa impressionante sobre esta certeza era que ela desarmava
todas as imagens, todas as metáforas, toda a confusão de classificações e ilusões com as
quais construímos naturalmente nosso pensa mento. Ela ignorava toda experiência dos
sentidos para atingir diretamente o coração da verdade, como se um súbito e imediato
contato houvesse se estabelecido entre meu intelecto e a Verdade, que estava agora
física, real e substancialmente diante de mim sobre o altar. Mas tal contato não foi algo
especulativo e abstrato: foi concreto e empírico e pertenceu à ordem do conhecimento,
sim, mas mais ainda à ordem do amor.
Outra característica dessa luz é que ela foi algo bem acima e para além do nível de
qualquer desejo ou apetite que eu jamais tivera ciência. Estava purificador de toda
emoção e limpo de todas as coisas que tivessem o sabor de anseios carnais. Foi um
amor tão limpo e direto como uma visão e ele voou direto rumo à possessão da Verdade
que ele amava.
E o primeiro pensamento articulado que me veio à mente foi: “O Paraíso está bem
aqui diante de mim: o Paraíso, o Paraíso!”. Durou apenas um momento, mas deixou
uma alegria capaz de conter a respiração, uma paz e uma felicidade puras que duraram
horas e foi algo que jamais esqueci. O estranho sobre essa luz era que, embora parecesse
tão “comum” no sentido que mencionei, e tão acessível, não havia modo de recapturá-

134
la. Na verdade, eu nem mesmo sabia por onde começar para tentar reconstruir a
experiência ou trazê-la de volta se o quisesse, exceto fazendo atos de fé e de amor. No
entanto, era fácil de ver que nada poderia fazer para conferir a qualquer ato de fé aquela
qualidade peculiar de súbita evidência: aquilo fora um dom e teria que vir de algum
outro lugar, além e acima de mim.

Chiara Lubich
A Obra de Maria, ou Movimento dos Focolares, nasceu em 1943, na cidade de
Trento (Itália), por obra de Chiara Lubich, uma professora que reuniu algumas amigas
junto a si para percorrer um itinerário de fé e de vida e nele experimentar a perene
novidade do Evangelho, fonte de unidade e de renovação profunda da pessoa como um
todo. A partir daquele primeiro núcleo, o Movimento conheceu uma contínua e
constante difusão, e hoje compreende alguns milhões de pessoas no mundo inteiro,
bispos, sacerdotes e religiosos, famílias, homens e mulheres consagrados, jovens,
unidos no "focolare", como em Nazaré.
E de se perguntar o porquê dessa difusão tão singular, dessa vitalidade do
Movimento que se apresenta como um dos componentes mais dinâmicos da Igreja no
alvorecer do Terceiro Milênio. Qual é o seu segredo, a sua essência mais profunda, o
âmago de onde jorra tanta energia espiritual, tanta luz, tanto frescor evangélico ou amor
compartilhado na feliz simplicidade fraterna que me tocou, há muitos anos, no primeiro
encontro com Chiara, e que me comove em todos os encontros com o Movimento, do
Brasil às Filipinas, da Nigéria ao Canadá.
Eis aqui, então, o significado e o valor deste precioso texto de Chiara Lubich, que
quer elucidar justamente as raízes espirituais, teológicas e históricas do Movimento dos
Fo colares. Mais do que um ensaio sobre o Movimento, é um "cântico", escreve a
Autora, “um hino de alegria e de gratidão”, “uma carta de amor” a Jesus crucificado e
abandonado, Título, singular e sugestivo, O grito: Jesus crucificado e abandonado na
história e na vida do Movimento dos Focolares, desde o seu nascimento, em 1943, até o
raiar do Terceiro Milênio, leva-nos e impulsiona-nos para o âmago de toda a
experiência dos focolares o encontro com o Ama do, o Crucificado, que grita na cruz:
"Deus meu, Deus meu por que me abandonaste?" (Mt 27,46).
O livro é o relato desse encontro, vivenciado por Chiara Lubich em primeira
pessoa e depois partilhado com todos os que aderem ao Movimento. Na primeira parte
do volume, a Autora lê o texto evangélico do Abandonado na cruz, indagando sobre
todos os seus aspectos, do exegético e teológico, do espiritual ao da reflexão patrística.
O mistério abissal do sofrimento de Deus e em Deus é central para entender o
sofrimento dos homens, redimido pela morte e pela ressurreição de Cristo. A união
profunda e inefável do Pai com o Filho no Espírito, vivida também no momento da
Cruz, do abandono, torna-se assim modelo da união dos cristãos, dos discípulos fiéis a
Cristo, que têm a coragem de tomar cada um a própria cruz, todo dia, para seguir o
Senhor e testemunhá-lo na vida por meio de um estilo marcado pela comunhão,
caracterizado pela vocação que leva todos, crianças e jovens, adultos e idosos, gente de
todas as idades, raças, camadas sociais, culturas, todos, enfim, homens e mulheres, da
diversidade à unidade em nome de Cristo

135
Junto ao texto evangélico da crucificação, a invocação de Cristo ao Pai: “Que
todos sejam uma coisa só" (Jo 17,21) constitui, portanto, a outra referência incessante
da espiritualidade dos focolares. Criar e sustentar a unidade - a comunhão não somente
entre católicos, mas com os outros cristãos e também com aqueles que, enquanto
homens e mulheres de boa vontade, procuram a verdade - é a missão do Movi mento e é
a vocação à qual nos sentimos chamados quando nos encontramos com o Cristo
crucificado. Por conseguinte, refazemos com Chiara Lubich o caminho do Movimento
pelas etapas mais significativas e importantes, marcadas por dificuldades,
incompreensões e provações, mas também pelos sinais da Providência que orientam e
sustêm o caminho, alargando-o para os horizontes de toda a Igreja e do mundo inteiro.
A constante que acompanha toda a sua história, nos é assim proposta pela Autora:
“Ora, se observarmos o nosso Movimento, vemos que ele [...] parte de um desejo de
amor: amar a Deus, redescoberto como Amor, como Pai [...]. Também para nós, esse
amor se traduzia e se traduz em fazer a vontade de Deus, que se resume no Mandamento
Novo: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei (Jo 15,12)". O amor é o semblante de
Jesus crucificado, e amar criando espaços de comunhão na cidade é o modo de
testemunhar a própria fé e a própria adesão sincera a Cristo abandonado na cruz por
amor a nós, propter nostram salutem!
João Paulo II abalizadamente confirma essa vocação para o amor, em 19 de
agosto de 1984, ao dirigir-se assim aos focolares: “O amor é [...] a centelha inspiradora
de tudo aquilo que se faz com o nome Focolare, de tudo aquilo que vocês são, de tudo
aquilo que vocês fazem no mundo. [...] O amor abre o caminho. Auguro que esse
caminho seja sempre mais largo para a Igreja, graças a vocês”. Realmente, o caminho
do diálogo e da comunhão é hoje mais amplo graças também ao empenho do
Movimento dos Focolares, inserido no coração de todas as culturas por meio das
Mariápolis, Cidades de Maria, a Mãe que, como o céu, envolve tudo e todos, porque em
todos quer formar o seu Filho, Jesus Cristo, A aurora do Terceiro Milênio, caracterizada
pela graça pela alegria do Grande Jubileu, anuncia uma época nova para a Igreja, uma
era que o papa Paulo VI já anunciara e vislumbrar, a da Civilização do Amor.
Ao anúncio da "morte de Deus”, que parecia dominante nos últimos dois séculos,
corresponde hoje o anúncio de uma nova aliança, de uma amizade renovada e
aprofundada, visto que por intermédio de Cristo abandonado e crucificado, "ja nela"
aberta entre Deus e o homem, como o define Chiara, o Pai olha para nós e nós podemos
voltar a contemplá-lo e a nos regozijar com sua presença. "Pai, que todos sejam um!" é
a oração de Cristo, mas também a invocação com que Chiara fecha o livro, abrindo
assim para a esperança o limiar do Terceiro Milênio. Quem o ler não poderá deixar de
se apossar da sua prece, endereçando, assim, a sua carta de amor ao Senhor crucificado
que, abandonado na cruz, não abandona o homem, mas se torna seu redentor e
companheiro de viagem nas sendas da história, iluminada pela luz do Verbo Encarnado
no seio de Maria Santíssima, e aquecida pelo fogo do Espírito de Amor do Pai, rico de
Misericórdia, e do seu Filho Jesus, crucificado e abandonado, o Ressuscitado.
Roma, Santa Páscoa de 2000 Card. Paul Poupard
No seu texto a cruzes da Igreja, relaciona uma das marcas deste carisma: Jesus
abandonado com a unidade da Igreja. Tirada dos ombros a cruz da nossa Obra e como

136
conformação da atividade dialogal que nos fizera assumir, especialmente nos últimos
anos, Ele, que é Deus, nos disse, por intermédio do papa, num dos encontros, que é
chega da à hora de assumirmos as mesmas cruzes da Igreja. As cruzes da Igreja!
A Igreja, que existe para toda a humanidade, não é mais apenas a Igreja pela qual
a hierarquia e as ordens religiosas respondem. A esta altura, nós também somos
corresponsáveis por ela e pela humanidade. Mas éramos realmente capazes de carregar
com a Igreja a sua cruz? Tínhamos ombros suficientemente robustos para arrastar com
ela essa cruz ao longo de um novo Calvário?
Toda a nossa esperança estava e está em Jesus Abandonado. Sabíamos que a
Igreja não é Igreja se não estiver crucificada. Disse Paulo VI: “A Paixão do Senhor,
cabeça da Igreja, continua em seus membros, em seu Corpo Místico, a Igreja. Vós
sabeis que esta é a história da Igreja, e não somente historia passada, mas história
presente, em não poucas regiões do mundo”

As duas dimensões da Igreja


Enfim, se pensarmos não apenas na Igreja como por ção de humanidade restrita a
seu aspecto institucional, mas na Igreja difundida por toda a terra, então, as suas cruzes
coincidem com as da humanidade inteira.
E A Igreja é assim. Segundo são Tomás, “...todos os homens predestinados à
salvação são de algum modo, membros de Cristo e, por isso, a Igreja. Corpo Místico de
Cristo é constituída por todos os homens existentes desde o princípio do mundo e dos
que existirão até o fim dele”. (Suma Teológica, III. q. 8, a. 3, ad1)
Pertencer à Igreja não se mede, portanto, pelo pertencer a uma instituição, mas
pelo pertencer a Cristo, que, antes de mais nada, é determinado por Ele. (Canobbio,
1991, p. 22-23)
Não é só isso. Até os que estão do outro lado deste mundo vivem na Igreja de um
modo ou de outro, e muitas vezes ela se deve ocupar deles. Penso, por exemplo, no que
estão no purgatório. Também nos dias de hoje, a Igreja, na plenitude de sua dimensão,
tem a sua cruz e, apesar das transformações notórias, vivemos numa época dramática
para ela e para o mundo. A própria Igreja, portanto, apresentava-se e apresenta-se a nós
como um grande Jesus Abandonado que deve ser amado.
Além dos vários semblantes que os quatro diálogos nos revelavam, víamos outro,
que se alastra pela terra inteira, no infinito fracionamento, às vezes violento, daquela
fraternidade universal inscrita no DNA de cada homem e que Cristo veio a terra para
recompor na unidade. Por isso, constitui uma verdadeira paixão para nós trabalhar, por
amor a Jesus Abandonado, com todos aqueles com os quais estamos em diálogo, para a
fraternidade universal.

Jesus Abandonado é tudo - chamá-lo pelo nome


De textos escritos durante o verão de 6 de setembro de 1949
É maravilhoso viver Jesus Abandonado no momento presente e chamá-lo pelo
nome. Observei que Jesus Abandonado é tudo: é todos os amores, é todas as dores, é
todas as virtudes, é todos os pecados (fez-se “pecado” fez-se - por amor - todos os
pecados), é todas as realidades.
Por exemplo: Jesus Abandonado é o mudo, e surdo, o cego, o faminto, o cansado,
o desesperado, o traído, o falido, o medroso, o sedento, o tímido, o louco e todos os
vícios! A escuridão, a melancolia...
É a coragem, é a Fé, o Amor, a Vida, a Luz, a Paz, o Gáudio, a Unidade, a
Sabedoria, o Espírito Santo, a Mãe, o Pai, o Irmão, o Esposo, o Tudo, o Nada, o afeto, o

137
efeito, o ofuscamento, o sono, a vigília, etc. E todas as coisas mais opostas, princípio e
fim, o infinitamente grande e pequeno... observa-se que nunca é igual.

Concílio de Trento e Concílio Vaticano II: Princípios da


hermenêutica da continuidade e descontinuidade
Concílio de Trento e o Missal de São Pio V
Os termos “Missal de São Pio V”, “Missal tridentino”, “Missal tradicional”,
“Missal de sempre”, “Missal gregoriano”, “Missal romano clássico” e também missal
da forma antiquior (da forma mais antiga), do usus antiquior (uso mais antigo) ou
do vetus ordo (velho ordo) formam o campo lexical em torno daquela forma de
celebração eucarística que Bento XVI designou como “missa segundo a forma
extraordinária do rito romano”. Com essa classificação, Bento XVI esclareceu que o
Missal Romano, promulgado por Paulo VI em 1969, é a expressão ordinária da lex
orandi da Igreja Católica de rito latino. Todavia, desde 2007 e por força do Motu
Proprio Summorum Pontificum, abriram-se possibilidades mais amplas da celebração
segundo o usus antiquior, consolidada na edição típica do Missal Romano de 1962, sob
o pontificado de João XXIII. Não se trata de dois ritos distintos, mas de duas formas
diferentes do mesmo rito. Por causa do seu amplo uso e de sua importância histórica,
conservaremos nesse verbete a designação “Missal de São Pio V”. Essa designação
também é empregada pela Instrução geral do Missal Romano (IGMR n.8).
Foi a partir do século X que termo “missal” e seus correlatos (liber missalis,
missale plenum, missale plenarium) se tornaram frequentes para indicar os livros
litúrgicos dotados de todos os textos eucológicos e escriturísticos necessários para a
celebração da missa. O termo missal surgiu por motivos de ordem prática que
produziram a fusão dos vários textos prescritos para as missas num único volume
portátil. Anteriormente, tais textos encontravam-se separados, parte deles nos
sacramentários, que também traziam as orações eucarísticas e o rito de comunhão, e as
outras partes nos lecionários, saltérios e antifonários.
O crescente desuso e olvido da concelebração eucarística, o fenômeno da
multiplicação das “missas privadas” por motivos devocionais, sobretudo o sufrágio dos
defuntos, ocasionaram a edição de fascículos com séries de missas (libelli missarum)
com numerosas missas quotidianas pelos defuntos e outras missas votivas. A praticidade
desses livretos, por dispensarem o manuseio dos volumosos sacramentários e antigos
lecionários, caiu no gosto do clero religioso e secular. Dessa forma, já no século XIII
estava concluída a transição que estabeleceu a preferência pelo missal como o livro
litúrgico do altar.
Coube sobretudo aos franciscanos, em suas atividades missionárias e expansão de
fundações conventuais, espalhar por toda a Europa aquele que se tornou o missal mais
difundido até então. Trata-se do Missale secundum consuetudinem curiae, ou seja, o
missal da Capela Papal que, por sua vez, reproduzia fielmente o missal vigente no
pontificado de Inocêncio III (1198-1216). Com o advento da imprensa, este missal
recebeu sua primeira edição impressa em 1474 e foi posteriormente a referência
fundamental para a elaboração do Missal de São Pio V, em 1570.
O século XVI foi profundamente agitado pelos eventos decorrentes da Reforma
Protestante, iniciada por Lutero em 1517. A onda de contestações teológicas também
atingiu a práxis litúrgica da Igreja romana. Por outro lado, já existia um consistente
movimento de renovação teológica e pastoral no próprio âmbito romano. Tal renovação
exigia esclarecimentos doutrinais, aprofundamento espiritual e normas disciplinares em
138
relação aos sacramentos, sobretudo a eucaristia. É nesse contexto que se realiza o
Concílio de Trento (1545-1563) e a consequente edição de livros litúrgicos revisados. É
desse ambiente que emerge o Missal Romano de São Pio V.
No que se refere à eucaristia, ainda que com matizes variados, o protestantismo
nascente questionou a compreensão tradicional sobre a presença de Cristo no
sacramento eucarístico e rechaçou o entendimento da missa como atualização do
sacrifício do calvário, oferecido de forma incruenta e mística sobre o altar por meio do
ministério dos sacerdotes. O Concílio de Trento defendeu e reafirmou a doutrina
católica sobre a missa, ressaltando a presença real de Cristo sob as espécies eucarísticas
e o caráter sacrifical da missa (DH  1738-1743, 1751-1754). Catalogou-se também uma
série de abusos a serem evitados na missa e indicou-se o modo correto de sua
celebração (BOROBIO, 1993, p.232-240).
Desde o período medieval, os numerosos abusos litúrgicos constituíam uma
dolorosa chaga aberta na vida da Igreja. O concílio tridentino empenhou-se em coibir a
irreverência e o descuido bem como punir o sacrilégio, a superstição e a avareza que
frequentemente deturpavam os atos litúrgicos (JUNGMANN, 2010, p.145-149). Coube
ao papa Pio IV (1499-1565) receber oficialmente a pesada incumbência de uma grande
revisão da práxis litúrgica, mas foi o seu imediato sucessor, o papa Pio V (1504-1572)
quem efetivamente a realizou.
A finalidade precípua da revisão litúrgica tridentina era a salvaguarda da ortodoxia
doutrinal e a eliminação dos abusos. A revisão e edição dos livros litúrgicos reformados
foi o caminho escolhido. Buscando realizá-lo, tinha-se como meta restaurar os ritos
litúrgicos em conformidade com a antiga norma dos Santos Padres. Os limites da
pesquisa, naqueles tempos verdadeiramente difíceis, fizeram com que S. Pio V optasse
por conservar aquelas formas históricas da tradição litúrgica às quais tiveram acesso os
eruditos de então. Diante dessa tradição litúrgica impugnada pelos reformadores, optou-
se também por introduzir o mínimo de modificações nos ritos sagrados. Por isso, “o
missal de 1570 pouco difere do primeiro missal impresso em 1474 que, por sua vez,
reproduz com fidelidade o do tempo do papa Inocêncio III” (IGMR n.7). A limitação
imposta aos liturgistas tridentinos também se referia às fontes pesquisadas: “além disso,
os manuscritos da Biblioteca Vaticana, ainda que sugerissem algumas correções, não
permitiam que se fosse além dos comentários litúrgicos medievais, na investigação dos
antigos e provados autores” (IGMR n.7).  Ponto culminante desse processo se deu em
1570 com a bula Quo primum tempore, em que Pio V promulgou o missal revisado,
posteriormente associado ao seu nome.
A compreensão sobre a “norma dos Santos Padres”, isto é, a práxis litúrgica dos
Pais da Igreja, foi a diretriz inspiradora da revisão que gerou o Missal de São Pio V. A
compreensão da liturgia da Igreja antiga foi grandemente ampliada e enriquecida com o
posterior avanço da pesquisa litúrgica. As numerosas edições críticas dos venerandos
sacramentários do período patrístico, assim como a redescoberta dos livros litúrgicos
hispânicos e galicanos, resgataram do esquecimento eucologias de grande valor
espiritual até então ignoradas. Igualmente as tradições dos primeiros séculos, anteriores
à formação dos ritos do Oriente e do Ocidente, são agora melhor conhecidas, após a
descoberta de numerosos documentos litúrgicos. Além disso, o progresso dos estudos
patrísticos lançou sobre a teologia eucarística a luz da doutrina dos Padres mais
eminentes da antiguidade cristã (IGMR n.8).
Destarte, “a norma dos Santos Padres” não exige apenas que se conserve o que os
nossos antepassados mais recentes nos legaram. Esses “antepassados recentes”, assim
compreendeu Paulo VI, são os promotores da grande revisão litúrgica tridentina. É
139
igualmente imperioso que “se assuma e se julgue do mais alto valor todo o passado da
Igreja e todas as manifestações de fé, em formas tão variadas de cultura humana e civil
como as semitas, gregas e latinas” (IGMR n.9), o que implica uma compreensão integral
do que realmente é a Tradição da Igreja e sua relação com os processos naturais de
revisão e reforma dos seus ritos litúrgicos: “esta visão mais ampla nos permite perceber
como o Espírito Santo concede ao Povo de Deus uma admirável fidelidade na
conservação do imutável depósito da fé, apesar da enorme variedade de orações e ritos”
(IGMR n.9).
Controvérsias em torno do Missal de São Pio V
A promulgação do Missal Romano de Paulo VI, em 1969, tornou-se o ponto de
partida de uma controvérsia que se estende até os nossos dias. Controvérsia que opõe
não só o Missal de Paulo VI ao Missal de Pio V, mas se desdobra na insólita afirmação
de um antagonismo entre o Concílio Vaticano II (1962-1965) e a restante Tradição da
Igreja. O ponto inicial dessa controvérsia foi o Breve exame crítico do Novus Ordo
Missae, elaborado pelos cardeais Alfredo Ottaviani e Antonio Bacci naquele mesmo
ano de 1969. As afirmações contidas nesse exame crítico eram da maior gravidade e
projetavam uma tremenda suspeita de heresia em relação ao Missal de Paulo VI. Nele
encontramos a chocante acusação de que o novo missal se afasta de maneira
impressionante, no conjunto e no particular, da teologia católica da santa missa. Pese
ainda mais a condição do principal signatário do exame crítico: o cardeal Alfredo
Ottaviani, pró-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé até 1968. O polêmico
exame crítico exprimia a opinião de um grupo de teólogos ligados ao arcebispo francês
Marcel Lefèbvre (1905-1991), marcado pela rejeição radical tanto do Missal Romano de
Paulo VI quanto do Concílio Vaticano II. Os cardeais Ottaviani e Bacci apadrinharam o
texto, assumindo-o como próprio. A chamada “intervenção Ottaviani” é, ainda hoje, a
fonte privilegiada de argumentações contrárias ao Novus Ordo Missae.
Analisemos brevemente algumas objeções apresentadas pelos que se valem do
Missal de São Pio V para rejeitar o Missal de Paulo VI. A primeira delas é referente à
perpetuidade da bula Quo primum tempore de São Pio V. Nesse documento, parece que
o referido papa fixa uma forma imutável para o Ordo Missae (a forma de celebração da
missa) e nessa imutabilidade empenha toda a sua autoridade pontifícia, proibindo
quaisquer modificações posteriores nos ritos e cerimônias codificados pelo missal de
1570. Na prática, os tradicionalistas costumam afirmar uma pretensa intangibilidade do
Missal de Pio V, canonizada pela Quo primum tempore. Todavia, uma estreita
interpretação dessa perpetuidade não se sustenta. Em resposta oficial, datada de 11 de
junho de 1999, a Congregação para o Culto Divino esclareceu que nenhum papa pode
fixar perpetuamente um rito. Além disso, o próprio Concílio de Trento, ao refletir sobre
a administração dos sacramentos, afirmou que a Igreja pode aperfeiçoar as celebrações
litúrgicas modificando e estatuindo novos elementos, desde que não se altere a
identidade específica dos sacramentos. Pode fazer isso levando em conta a utilidade dos
que recebem os sacramentos conforme a variedade das coisas, tempos e lugares (DH
1728). Do ponto de vista canônico, quando um papa escreve perpetuo
concedimus, deve-se sempre entender “até que seja ordenado de outro modo”. É próprio
da autoridade soberana do Pontífice Romano não ser limitado pelas leis meramente
eclesiásticas, muito menos pelas disposições dos seus predecessores. Um papa está
limitado, evidentemente, pela imutabilidade das leis divina e natural, além da própria
constituição da Igreja (cf. RIFAN, 2007, p.45-46).
Foi essa compreensão que tiveram os vários sucessores do papa Pio V quando
modificaram ou introduziram elementos no missal por ele promulgado em 1570.

140
Fizeram isso sem contradizer a bula Quo primum tempore. Assim, a título de
exemplificação, em 1604, Clemente VIII aboliu uma oração prescrita para o sacerdote
ao entrar na igreja, a palavra omnibus nas duas orações posteriores ao Confiteor e a
eventual menção do nome de um imperador no Cânon Romano. Leão XIII acrescentou,
ao término da missa, as orações leoninas, e outras adições foram feitas por Pio X, em
1904, e Pio XI, em 1929. Todavia, foi Pio XII que, em 1951 e 1955, empreendeu a
maior modificação litúrgica anterior ao Vaticano II com uma notável reforma das
celebrações da Semana Santa. Por fim, João XXIII, já nos albores do Concílio, inseriu,
em 1960, o nome de São José no Cânon Romano.
Outra objeção frequente que opõe indevidamente o Missal de Pio V ao Missal de
Paulo VI é a “questão do ofertório”. No Missal de Pio V, a preparação e a apresentação
das oblatas são acompanhadas por longas orações que realçam claramente o caráter
sacrifical da missa. O Missal de Paulo VI optou por orações mais breves em que se
bendiz Deus pelos dons do pão e do vinho que se tornarão corpo e sangue do Senhor. A
objeção tradicionalista afirma que a mudança do ofertório destruiu o caráter sacrifical da
missa que, com isso, deixou de ser católica e, portanto, se tornou ilícita ou mesmo
inválida. Tal objeção, eivada de preconceitos, é refutada com a constatação de que a
principal menção do sacrifício tem seu lugar próprio não no ofertório, mas na anamnese
do próprio Cânon. O chamado “ofertório” originalmente era uma singela preparação das
oblatas sobre o altar. Até o século X, predominou o gesto realizado em silêncio. Nos
séculos seguintes elaboraram-se as orações que posteriormente foram incluídas no
Missal de Pio V (BOROBIO, 1996, p.335-338). Após o Concílio Vaticano II, vários
liturgistas advogaram a eliminação das palavras desse rito, retomando a simples
elevação em silêncio, mas Paulo VI insistiu na recuperação de fórmulas breves e
enraizadas nas mais antigas fontes da liturgia cristã e que revelam a verdadeira natureza
desse momento: a apresentação das oblatas sobre o altar (TABORDA, 2009, p.142-
144).
A chamada “questão do mistério pascal” é provavelmente a mais forte objeção
tradicionalista levantada contra o Missal de Paulo VI. Afirmam que o novo missal é
heterodoxo, pois sua teologia enfatiza a celebração do mistério pascal de Cristo. Por sua
vez, o Missal de Pio V é ortodoxo por conservar e expressar cabalmente a teologia do
sacrifício expiatório de Cristo, perpetuado de forma incruenta sobre os altares. O então
cardeal Ratzinger classificou como estranha e despropositada a oposição lançada entre
as categorias “mistério pascal” e “sacrifício” (RIFAN, 2007, p.53-54). Essa anômala
oposição é o argumento central, defendido pela Fraternidade São Pio X, de que existe
uma verdadeira ruptura dogmática entre a liturgia renovada a partir do Concílio
Vaticano II e a liturgia anterior (FSSPX a, p.55-68). Em outros termos, a acusação de
heterodoxia lançada sobre o Missal de Paulo VI se funda no julgamento de que agora
tudo se interpreta a partir do mistério pascal, que usurpou o lugar do sacrifício
expiatório de Cristo. Tal acusação não se sustenta e é evidente o mal-entendido. A
categoria mistério pascal não substitui, abole ou relativiza a importância e a realidade do
sacrifício de Cristo. A Páscoa de Cristo é o mistério salvífico em toda a sua amplitude e
onde o seu sacrifício verdadeiramente se situa.
 O termo mistério pascal conduz claramente às realidades que se deram entre a
quinta-feira santa e a manhã de Páscoa: a ceia como antecipação da cruz, o drama do
gólgota e a ressurreição do Senhor. A categoria mistério pascal compreende esses
eventos como um acontecimento unitário que manifesta toda a obra de Cristo. Obra
salvífica que possui um eminente lugar histórico, mas simultaneamente o transcende.
Uma vez que esse acontecimento único e transcendente é o mais perfeito culto prestado

141
a Deus, pode se tornar culto divino e estar presente em todos os instantes da história
pois foi assumido pelo próprio Deus em seu mistério de salvação. A teologia pascal do
Novo Testamento dá a entender isso: o episódio aparentemente profano da crucificação
de Cristo é um sacrifício de expiação, um ato reconciliador realizado pelo Deus feito
homem. A teologia da páscoa é uma teologia da redenção, uma liturgia do sacrifício
expiatório situado no centro do mistério pascal (RIFAN, 2007, p.54). Demonstra-se
assim que a oposição entre o sacrifício e mistério pascal é artificial e inconsistente.
Das controvérsias à separação
A polêmica em torno do Missal de Pio V conheceu um crescendo de tensões e
rupturas, sobretudo em torno da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), fundada
pelo arcebispo francês Marcel Lefèbvre. Esta fraternidade foi aprovada em 1970 pelo
bispo de Lausanne (Suíça) e recebeu uma carta laudatória da Congregação para o Clero
em 1971. O posicionamento extremamente crítico em relação ao Concílio Vaticano II e
a rejeição do novo rito da missa, pejorativamente taxada como “missa nova”, ocasionou
um afastamento progressivo de Lefèbvre e seus seguidores em relação a Roma.
Suas declarações programáticas são incisivas. A FSSPX adere “de todo o coração,
de toda a alma, à Roma católica, guardiã da Fé católica e das tradições necessárias à
manutenção desta Fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade”. Mas recusa,
“ao contrário, e sempre [se recusará] a seguir a Roma de tendência neomodernista e
neoprotestante que se manifestou claramente durante o Concílio Vaticano II e, após o
Concílio, em todas as reformas que dele se originaram” (FSSPX a). Tamanho
distanciamento culminou com Dom Marcel Lefèbvre sendo suspenso a divinis, em
1976, por insistir em formar e ordenar padres dentro dessa perspectiva de rejeição ao
Vaticano II. Posteriormente, em 1988, a situação se agravou com a sua
excomunhão latae sententiae em virtude da ordenação de quatro bispos sem o
necessário mandato pontifício, evento que ficou conhecido como o “cisma
tradicionalista”.
A Missa de São Pio V tornou-se, desde então, uma verdadeira bandeira de luta. A
sua conservação, defesa e expansão converteu-se não somente na razão da existência da
FSSPX, mas em verdadeiro princípio operativo em relação à Igreja atual, sempre
avaliada negativamente e reconhecida como inclinada ao modernismo apóstata. Dessa
forma, não se trata apenas de conservar a missa tridentina, mas de se engajar num
programa de restauração da Igreja a partir do paradigma compreendido pela FSSPX
como a “autêntica Tradição da Igreja”. O retorno à tradição conformada ao modelo
tridentino é assumido como o único caminho de superação da profunda crise da Igreja.
As palavras do padre Davide Pagliarini, Superior da FSSPX, são significativas e
reveladoras; “devemos ter a coragem de reconhecer que mesmo uma boa postura
doutrinária não será suficiente, se não vier acompanhada de uma vida pastoral, espiritual
e litúrgica coerente com os princípios que queremos defender” (FSSPX b). A missa
tradicional pedirá uma reconfiguração da Igreja a partir do modelo supostamente
tridentino e interpretado como a melhor expressão da Tradição. Prossegue Pagliarini:
“concretamente, é preciso que passemos para a missa tridentina e a tudo o que ela
significa; é preciso irmos à missa católica e tirar dela todas as consequências” (FSSPX
b). Estas consequências abrangem todo o conjunto da vida eclesial contemporânea e
formam um verdadeiro programa de restauração: “não se trata de restaurar a missa
tridentina porque é a melhor opção teórica; é uma questão de restaurá-la, de vivê-la e de
defendê-la até o martírio, porque somente a Cruz de Nosso Senhor pode tirar a Igreja da
situação catastrófica em que ela se encontra” (FSSPX b). Compreendido dessa forma, o
pretendido retorno à tradição implica em rompimento com numerosas realidades tidas

142
como as grandes conquistas do último Concílio. Tais conquistas são interpretadas como
grandes males que devem ser expurgados. As consequências lógicas dessa restauração
seriam a rejeição total da reforma litúrgica pós-conciliar, a suspensão da caminhada
ecumênica, a reinterpretação da liberdade religiosa, o questionamento da colegialidade
episcopal e das conferências episcopais, a suspeita generalizada em relação ao
magistério e sínodos pós-conciliares, a recuperação da teologia escolástica e da
“filosofia perene”, a postura combativa e apologética diante do mundo contemporâneo e
da secularização. Em suma: uma mudança radical da cosmovisão católica existente
desde o Concílio Vaticano II. O instaurare omnia in Christo, interpretado dentro dessa
lógica, tem esse escopo radical. O polo irradiador dessa restauração é a Missa de São
Pio V com todas as consequências que se tiram dela nesse horizonte de compreensão.
Começa-se pela liturgia tradicional e conclui-se com o derrube do Vaticano II.
Todavia, nem todos os adeptos da liturgia tradicional se sentiram identificados
com o radicalismo dessa proposta, sobretudo a ampla e veemente rejeição do Concílio
Vaticano II. O risco por eles antevisto era não só de uma mentalidade reacionária e
cismática, mas também das piores formas de sectarismo e isolamento voluntário,
promovendo uma equivocada defesa e a preservação da fé católica. Daí o surgimento de
várias iniciativas de diálogo com Roma e de acolhida e inclusão dos fiéis
tradicionalistas na plena comunhão eclesial.
Em 1984, João Paulo II concedeu que, mediante um indulto e sob condições
específicas, o Missal de São Pio V pudesse ser usado regularmente. Através do Motu
Proprio Ecclesia Dei afflicta (1988) o mesmo papa normatizou a recepção dos
tradicionalistas que romperam com Dom Marcel Lefèbvre em virtude da excomunhão
em que esse arcebispo e os bispos por ele ordenados incorreram. Tal fato mergulhou a
FSSPX numa complicada situação canônica que perdura até hoje, apesar da retirada da
excomunhão em 2009. É de 1988 o surgimento da Fraternidade Sacerdotal São Pedro,
fundada a partir de egressos da fraternidade lefebvriana, e vinculada diretamente à Santa
Sé, dedicando-se ao apostolado junto aos fiéis tradicionalistas que desejaram manter a
plena comunhão com Roma. Também nessa perspectiva surgem outras agremiações
centradas no uso exclusivo da liturgia tradicional: o Instituto Cristo Rei e Sumo
Sacerdote (1990) e o Instituto Bom Pastor (2006). Com a proximidade do Grande
Jubileu do ano 2000, intensificaram-se os diálogos e as tratativas de vários grupos
tradicionalistas com a Santa Sé. No Brasil, este movimento de superação da ruptura
resultou na criação de uma circunscrição eclesiástica que possui bispo próprio em plena
comunhão com Roma e conserva para o seu clero e fiéis a liturgia romana tradicional. É
Administração Apostólica São João Maria Vianney, erigida em 2001 e sediada em
Campos dos Goytacazes, RJ.
O “mundo tradicionalista” não é uniforme e monolítico, mas amplo e
diversificado. Abriga em si desde as posições mais radicais de oposição e rejeição ao
Concílio Vaticano II até posturas mais abertas ao diálogo e à interação. Seu ponto de
convergência é o Missal de Pio V. Seu eixo de tensão, conflito e dispersão passa pela
hermenêutica do Vaticano II.
Em busca da reconciliação e da paz litúrgica: Bento XVI e a Summorum
Pontificum
Dentro do processo acima delineado, já no pontificado de Bento XVI, merece
especial destaque a Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio Summorum
Pontificum, sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma realizada em 1970.
Partindo da afirmação de que o Missal de Paulo VI é a expressão ordinária da lex
orandi da Igreja Católica de rito latino, admite-se o Missal de São Pio V (em sua edição
143
de 1962) como a expressão extraordinária da mesma lex orandi. Em seu venerável e
antigo uso deve gozar da devida honra, mas sem que tal disposição gere a divisão da
liturgia da Igreja pois são dois usos (ordinário e extraordinário) do único rito romano
(SP n.1). Assim, Bento XVI estabeleceu que “é lícito celebrar o Sacrifício da Missa
segundo a edição típica do Missal Romano promulgada pelo Bem-Aventurado João
XXIII, em 1962, e nunca ab-rogada como forma extraordinária da liturgia da Igreja”
(SP n.1). Estabelece também que todo sacerdote católico, nas missas celebradas sem o
povo e excetuados os dias do tríduo pascal, pode celebrar conforme esse missal sem
necessidade de nenhuma permissão da Sé Apostólica ou do seu Ordinário (SP n.2).  Os
religiosos, em suas comunidades individuais ou como institutos ou sociedades, podem
ter tais celebrações frequente, habitual ou permanentemente, mediante aprovação dos
superiores maiores e seguindo as normas do direito e as leis e estatutos particulares (SP
n.3). Fiéis podem ser admitidos às celebrações desde que o peçam espontaneamente e
sejam observadas as normas do direito (SP n.4). Nas paróquias onde haja um grupo
estável de fiéis que prefira a forma extraordinária, que os párocos ou reitores de igrejas
acolham tal pedido, harmonizando o bem desses fiéis com a atenção ordinária da
paróquia, sob a direção do bispo, porém “evitando a discórdia e favorecendo a unidade
de toda a Igreja” (SP n.5 §1). Se tal grupo de fiéis não obter o que pede, informe o bispo
diocesano sobre o fato. “Pede-se vivamente que o bispo satisfaça o desejo deles. Se ele
não puder prover tal celebração, seja o assunto referido à Pontifícia Comissão Ecclesia
Dei” (SP n.7). Da mesma forma, o pároco pode conceder licença para o uso do ritual
mais antigo na administração dos sacramentos do batismo, matrimônio, penitência e
unção dos enfermos “se requer o bem das almas” (SP n.9 §1). “Aos Ordinários concede-
se a faculdade de celebrar a Confirmação usando o Pontifical Romano antigo” (SP n.9
§2) e aos clérigos é igualmente lícito usar o Breviário Romano promulgado em 1962
(SP n.9 §3). O Ordinário do lugar, se considerar oportuno, pode erigir uma paróquia
pessoal “para as celebrações, segundo a forma mais antiga do Rito Romano, ou nomear
um capelão” (SP n.10).
Junto da Summorum Pontificum, Bento XVI enviou uma “Carta aos Bispos”,
também datada de 7 de julho de 2007, pormenorizando as razões de sua decisão,
esclarecendo pontos controversos e estimulando uma generosa acolhida mediante a
caridade pastoral e a justa prudência. Nessa carta ao episcopado, Bento XVI reconheceu
que diante de sua iniciativa “há reações muito divergentes entre si que vão de uma
entusiasta aceitação até uma férrea oposição a um projeto cujo conteúdo na realidade
não era conhecido”. Ressaltou que deve ser afastado o temor de uma negação da
autoridade do Concílio Vaticano II e de uma de suas decisões essenciais que é a reforma
litúrgica, porque o Missal de Paulo VI permanece como a forma normal ou ordinária da
liturgia eucarística. Afirmou que o Missal de São Pio V nunca foi ab-rogado e
juridicamente sempre continuou permitido. Aludiu também à divisão causada pelo
arcebispo Lefèbvre em que “a fidelidade ao missal antigo apareceu como um sinal
distintivo externo, mas as razões da divisão, que então nascia, encontravam-se em maior
profundidade”. Por essa razão, “muitas pessoas que aceitavam claramente o caráter
vinculante do Concílio Vaticano II e eram fiéis ao papa e aos bispos, mas desejavam
reaver a forma que lhes era cara da Sagrada Liturgia”. Isto aconteceu, principalmente,
porque em muitos lugares não se celebrava mais de maneira fiel às normas do novo
missal, o que levou frequentemente a deformações da liturgia no limite do suportável.
De forma autobiográfica, acrescenta Bento XVI: “falo por experiência, porque também
eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi como foram
profundamente feridas, pelas deformações arbitrárias da liturgia, pessoas que estavam
totalmente radicadas na fé da Igreja”.

144
 Nessa mesma Carta aos Bispos, após uma série de ponderações canônicas e
pastorais, Bento XVI vislumbra a possibilidade de uma fecunda interação das duas
formas, o que chamou de mútuo enriquecimento. “As duas formas do Rito Romano
podem enriquecer-se mutuamente. No missal antigo poderão e deverão ser inseridos
novos santos e alguns dos novos prefácios”. Por outro lado, “na celebração da missa
segundo o Missal de Paulo VI, poder-se-á manifestar, de maneira mais intensa do que
frequentemente tem acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso
antigo”. A garantia mais segura de que o Missal de Paulo VI una as comunidades
paroquiais e seja amado por elas é a sua celebração “com grande reverência em
conformidade com as rubricas; isso torna visíveis a riqueza espiritual e a profundidade
teológica desse missal”. Portanto, concluiu Bento XVI, não existe nenhuma contradição
entre uma edição e outra do Missal Romano, pois na história da liturgia há crescimento
e progresso, mas nenhuma ruptura.
Desafios que permanecem
O caminho proposto por Bento XVI na Summorum Pontificum corresponde
perfeitamente a um dos eixos do seu magistério, isto é, a “hermenêutica da
continuidade”. Porém, os movimentos de ruptura no campo litúrgico existiram e
continuam existindo. De um lado, a postura negacionista do tradicionalismo de corte
lefebvriano que não concede qualquer valor à reforma litúrgica pós-conciliar e advoga a
ruptura mais drástica com o seu completo banimento da vida da Igreja. De outro lado,
os defensores do legado litúrgico oriundo do Vaticano II, conscientes de suas conquistas
e avanços, mas firmemente decididos a não recuar nem ceder em nada (ISNARD, 2008,
p.20). Posições extremas, por vez vezes carregadas de paixão pelas respectivas
bandeiras, resultando num clima tenso que agrava as divisões existentes.
Ainda permanece desafiante e dificultosa a via do crescimento e progresso na
liturgia, mas sem rupturas, tal como idealizou Bento XVI. Mais do que formas litúrgicas
e peculiaridades dos seus ritos, existe uma realidade mais profunda antecedendo a todas
essas questões. Trata-se da tensão conflitante entre duas formas de compreensão da
Igreja e do seu posicionamento diante do mundo contemporâneo. O debate e as
polêmicas em torno do uso do Missal de São Pio V apenas manifestam um drama e uma
luta muito mais profundos e que estão ainda longe de uma resolução pacífica e
integradora.
A década que transcorreu após a Summorum Pontificum merece ser melhor
analisada. Posturas e opiniões razoavelmente tolerantes e dialogantes se tornaram mais
frequentes em ambos lados, mas os núcleos duros de crítica e rejeição seja em relação à
missa tradicional seja em relação à Missa de Paulo VI permanecem intactos tanto nos
vários grupos tradicionalistas quanto nos seguidores da renovação litúrgica pós-
conciliar. As entrevistas e escritos de seus expoentes ou defensores atesta esse fato
abundantemente (KWASNIEWSKI, 2018, p.133-144; GRILLO, 2007, p.103-120).
Não se pode falar de uma vitória tradicionalista após a Summorum
Pontificum (KWASNIEWSKI, 2018, p.223-231). A liturgia de Paulo VI não foi ab-
rogada como ainda almejam os mais extremados e inexiste a possibilidade próxima ou
remota de tal ab-rogação acontecer. Por sua vez, o papa Francisco não cancelou o
caminho aberto por Bento XVI em relação aos seguidores da liturgia tradicional nem se
fechou ao diálogo com a Fraternidade São Pio X. Permanece, porém, o impasse em
relação à valoração e significado do Concílio Vaticano II. Um possível acordo teológico
sobre este Concílio, simultaneamente aceitável por Roma e pelos lefebvrianos, é
condição indispensável para a regularização canônica da fraternidade tradicionalista. Tal
acordo ainda não foi alcançado apesar de todo esforço de Bento XVI e das
145
demonstrações de acolhimento e benevolência no pontificado de Francisco, com a
concessão de faculdades canônicas em relação aos sacramentos do matrimônio e da
penitência ministrados pelo clero da Fraternidade São Pio X. Reação extrema diante
dessa aproximação inicial entre Roma e os tradicionalistas da FSSPX se deu com a
clamorosa saída do bispo Richard Williamson, um dos sagrados por Dom Marcel
Lefèbvre em 1988. Williamson interpretou a incipiente aproximação com Roma como
traição à causa da Tradição. Quando o assunto é o Concílio Vaticano II só se trabalha
com a perspectiva de sua rejeição. Por isso, rompeu violentamente com a FSSPX em
2012, levando consigo um certo número de padres e leigos e fundando uma nova
vertente tradicionalista. Desde 2015, por ter ordenado bispos sem mandato pontifício,
reincidiu na excomunhão latae sententiae. Os partidários de Williamson no Brasil
ligam-se ao Mosteiro da Santa Cruz em Nova Friburgo, RJ. Reabriu-se assim a ferida
cismática de outro tradicionalismo fora da plena comunhão eclesial.
Longe de qualquer conduta cismática, é reveladora a situação do catolicismo
tradicional nos Estados Unidos, país onde a Summorum Pontificum encontrou grandes
entusiastas. Poderia se pensar num notável avanço tradicionalista nesse país, mas não é
o que se constata em termos de realidade. Pesquisas revelam que o catolicismo
tradicionalista avançou nos Estados Unidos, não de forma generalizada, mas pontual e
restrita. Dos mais de 70 milhões de católicos estadunidenses, frequentam a missa
tradicional somente uns 0,3%. A expressiva maioria do clero de rito romano (95%)
celebra exclusivamente segundo o Novus Ordo. Num artigo em que se analisa a
mencionada pesquisa, encontramos o testemunho interpelante do monsenhor Charles
Pope sobre esse retumbante fracasso pastoral:
Em minha própria Arquidiocese, apesar de oferecermos a missa tradicional em cinco
lugares diferentes, nunca fomos capazes de atrair mais que mil pessoas. Isso é somente
metade do 1% do número total de católicos que assistem à missa nesta Diocese a cada
domingo. Isso não convence os bispos de que a missa nova não é a liturgia do futuro e
que o retorno da missa tradicional é o melhor caminho a seguir. Se nós que amamos a
missa tradicional pensamos que a missa faria sozinha a sua própria evangelização,
estamos equivocados. Ela é bela e digna de Deus de muitas maneiras, mas num mundo
de prazeres e diversões instantâneas, nós devemos demonstrar o valor perene de uma
liturgia tão bela. A verdade do assunto é que uma liturgia antiga, falada num idioma
antigo e, a maior parte do tempo, falada em sussurros, não é algo que a maioria da gente
moderna apreciaria de forma imediata (BANKE, 2019).
Os ambientes constituídos em torno da missa tradicional também têm os seus
grandes desafios. Provavelmente o maior deles se refere à mentalidade de gueto, de
grupo seleto, de constituição dos únicos lugares onde é possível subsistir o verdadeiro
catolicismo. Na prática, essa mentalidade se perverteu em isolamento em relação aos
demais membros do corpo eclesial, quase sempre avaliados pejorativamente. Um
isolamento em que, por causa de um certo “espírito de elite”, é muito frequente a crítica
amarga e os posicionamentos ofensivos, carregados de desprezo por tudo que se
relacione com a Igreja pós-conciliar. Tal perversão gera antipatias e resistências e
acentua ainda mais o fracasso pastoral acima aludido.
 Por sua vez, avalia-se que a Summorum Pontificum não logrou efetivar
suficientemente a hermenêutica da continuidade no âmbito litúrgico. Pelo contrário,
abriu espaço para um estado anômalo de contradição na práxis celebrativa da Igreja com
a coexistência de duas formas do mesmo rito cujos adeptos nem sempre primam pela
harmonia fraterna. Na opinião do teólogo Andrea Grillo, há um “efeito perigosamente
desorientador” desse documento que paira sobre todos. Segundo Grillo (2011), por meio

146
de uma “ficção jurídica”, tornam-se artificialmente contemporâneas duas formas
diferentes de celebração da missa. Por ser objeto de escolha, “cria-se uma situação
híbrida e anômala, que logo revela ser uma confusão, com a qual se introduz uma grave
descontinuidade na tradição do rito romano”. O que é mais paradoxal e mais grave é a
“absoluta liberdade” concedida ao padre ou ao bispo, na “celebração sem povo”, que
agora podem escolher entre a forma ordinária ou extraordinária, sem ter que prestar
contas a ninguém. O resultado é que “a reforma litúrgica se torna, assim, um mero
‘opcional’ da própria identidade ministerial. Isso também é um monstruum inédito com
relação à Tradição da Igreja”. E conclui: “Surpreende que o papa Bento XVI tenha
assumido uma teoria tão inconsistente no plano jurídico e com consequências tão
incontroláveis no plano litúrgico, eclesial e espiritual”. Em suma: “uma pretensão de
paralelismo ritual que instaura uma convivência entre o rito ordinário e o rito
extraordinário, o que – já à primeira vista – se revela incoerente, ineficaz e gravemente
perigoso para a comunhão eclesial” (GRILLO, 2011).
Com a pretensão de permitir uma dupla vigência de formas diferentes e não harmônicas
do mesmo rito romano, determina-se progressivamente um conflito indomável entre
tempos, espaços, hábitos, ritos, calendários, ministérios, códigos, competências
diversas. A extensão refere-se tanto às habilitações subjetivas ao rito, ou seja, os
critérios com que os sujeitos podem reivindicar direitos a respeito, quanto às finalidades
objetivas do rito, que, mais explicitamente, são definidas como “pastorais”. Na
realidade, esse documento, apesar das boas intenções, corre o risco de tornar impossível
qualquer pastoral litúrgica, já que tem um efeito perigosamente desorientador sobre
todos: principalmente sobre os bispos, que perdem o controle das dioceses, depois sobre
os padres e, enfim, também sobre os leigos, pelo fato de subtrair da reforma a sua
necessidade (GRILLO, 2011).
A relativização e até o menosprezo da reforma litúrgica oriunda do Vaticano II foi
um dos efeitos não desejados por Bento XVI ao publicar a Summorum
Pontificum. Abusando da hermenêutica da continuidade emergiram críticas tão radicais
que até a reforma da Semana Santa realizada por Pio XII, na década de 1950, passou a
ser questionada. Não só questionada, mas nalguns lugares retomou-se a celebração da
Semana Maior, como no tempo de São Pio V. Tais fatos revelam até onde o grau de
rigidez litúrgica pode chegar, paradoxalmente tomando como ponto de partida
a Summorum Pontificum.
Esse quadro preocupante manifesta a necessidade de aprofundarmos a
compreensão sobre a verdadeira identidade da tradição litúrgica. O Missal de Paulo VI,
fruto eminente da reforma litúrgica, longe de apartar-se da verdadeira Tradição,
aproximou a celebração eucarística das suas origens que são eminentemente bíblicas e
patrísticas. A reforma litúrgica pós-conciliar ampliou notavelmente o acesso à Palavra
de Deus, enfatizou o protagonismo do Espírito Santo na ação eucarística e ressaltou a
natureza ministerial e a participação ativa de toda a Igreja em oração.
Quando analisadas mais detidamente as duas formas do rito romano, os estudiosos
constatam que o Missal de Paulo VI é efetivamente mais tradicional que o seu
antecessor tridentino. O missal vigente manifesta com maior evidência sua vinculação
com a “norma dos Santos Padres”, tão valorizada por São Pio V e seus contemporâneos,
mas não totalmente acessível a eles no século XVI.  Daí o surpreendente
reconhecimento de que o rito tridentino é um rito moderno quando situado no contexto
mais amplo da longa história da liturgia romana (CASSINGENA-TRÉVEDY, 2007,
p.89-95).

147
A passagem dessa primeira forma moderna do rito romano à segunda forma, pós-
conciliar, comunitária, relacional, simbólico-ritual, aconteceu por meio de um Concílio
e de uma longa fase de reforma, que foi causada pelos limites, pelas lacunas, pelas
unilateralidades do rito tridentino, dos quais a Igreja havia se dado conta
progressivamente, a partir do século XIX. A passagem que a reforma quer promover
refere-se ao sujeito que celebra (do padre individual à relação assembleia/ministros), ao
rito (que não é mais só para ser observado por um indivíduo, mas deve ser celebrado por
uma comunidade), à relação com Deus (que, de monológica, se torna dialógica), à
Palavra de Deus (que agora tem espaço, visibilidade sacramental e riqueza muito mais
significativa), ao papel da comunhão (que agora é feita por todos como uma ação ritual
da missa e não mais como devoção privada) (GRILLO, 2011).
A evolução histórica do rito romano é verificada mediante a passagem dos seus
diversos estágios. Nessa passagem há uma evolução pautada pela fidelidade criativa,
como bem explicou Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum e no
proêmio da Instrução Geral do Missal Romano. As duas formas só podem ser
corretamente compreendidas em sua continuidade se situadas numa sucessão diacrônica
(GRILLO, 2011). Porém, quando formas diferentes se tornam artificialmente
contemporâneas e objeto de livre escolha, com o agravante de um contexto de velhas
incompreensões e preconceitos não superados, o que se tem é o grande o risco de
descontinuidade e ruptura litúrgica e graves ameaças à própria unidade eclesial.
Na verdade, os maiores desafios ultrapassam os limites da práxis litúrgica. São
desafios da própria vida eclesial, assinalada por tensões e esperanças, conflitos e
possibilidades de crescimento e recuo. A liturgia é “o cume para o qual tende a ação da
Igreja” e, ao mesmo tempo, é “a fonte de onde emana toda a sua força” (SC n.10).
Ocupando essa posição central e vital é evidente que tudo o que a Igreja vive se
manifeste também, sob variadas formas, em sua liturgia. Inclusive seus desencontros e
impasses42
Extremismo do tradicionalismo
Para os tradicionalistas, a tradição é entendida como repasse linear de um passado
imutável na situação presente, repetição de algo fixo como valor norteador do presente.
A tradição é a sequência daquilo que se arranca de um passado remoto e se perpetua
como sentido imutável, algo que brota acabado de uma fonte primeira e que se
apresenta como definitivo e eterno. Portanto, para essa concepção a tradição não muda e
não pode mudar porque detém a verdade capaz de orientar desde sempre e para sempre.
A verdade, a bondade e a beleza residem no passa do que se repete de modo fixo e
intacto em cada tempo e lugar. O que ouse modificar esse arcabouço fixo e imutável é
visto como traição e ruptura perigosa com a estabilidade, perda de sentido e
desagregação da unidade (cf. BERGER, 1985, p. 42-64). Nessa perspectiva, a tradição é
como um fóssil, algo que foi vivo um dia e que se toma petrificado pela ação do tempo
e no muda jamais a sua forma original. Quem já viu algum fóssil sabe como ele é. Há
peixes pré-históricos que permanecem com suas formas originais de milhões de anos
atrás dentro de um pedaço de pedra. A forma é exata, o passado está ali presente, porém
sem vida. Um fóssil serve para duas coisas para ser estudado. Verificar como era a coisa
no passado ou para decorar as estantes das salas e escritórios. Os que entendem a

42
Luiz Antônio Reis Costa, Instituto de Teologia São José, Mariana, MG

148
tradição da fé como um passado fossilizado a ser preservado, afirmam que a verdade é
sinônimo de passado, que a transmissão da fé e repetição exata da fórmula antiga e que
o hoje deve ser a puta repetição do ontem, sem nenhuma alteração. Essa visão de
tradição é, na verdade, tradicionalismo modo de compreender a tradição como
conservação (conservadorismo) e como repetição de uma com pretensão formulada no
passado (fundamentalismo). Em ambas as posturas, aquilo que foi datado no tempo e no
espaço e se fixou como regra e costume, torna-se intocável e perpetua-se como algo
imutável, de onde provém a verdade. O tradicionalismo nega que se possa construir de
novo, hoje, como se construiu no passado. As estruturas são permanentes na forma da
lei, das instituições e dos papéis e seu funcionamento concorre para a sua perpetuação,
ainda que a história insista com suas evidentes transformações (cf. NISBET, 1987, p.
49).
Trata-se, portanto, de uma visão centrada na estrutura que nega a mutação, nas
essências que negam o movimento e na objetividade que nega a subjetividade. Preservar
essa ordem estável é a missão dos sujeitos investidos de poder para tal, seja o poder
civil, seja o poder religioso. Como decorrência, é também uma visão centrada na
hierarquia: as decisões e regulações legítimas vem de cima para baixo, de uma
autoridade superior, por essa razão, se impõem como regra e valor.
O tradicionalismo afirma-se a partir de algumas estratégias mais ou menos
regulares que podem ser esquematizadas como:
a) Eternização: as coisas sempre foram como estão e não podem ser modificadas
b) universalização: a verdade afirmada é única e aplicada há todos em todos os
tempos e lugares;
c) conclusão: as representações e valores afirmados são verdades concluídas e
definitivas e não podem sofrer mudanças,
d) idealização: as ideias afirmadas são superiores à realidade concreta, princípios
absolutos que regem a vida em todas suas configurações, independentes das
formas plurais diversas que possuam;
e) divinização: os valores defendidos têm seu fundamento em uma realidade
sobrenatural e, por essa razão, são fixos preservados com temor sagrado e com
reverência;
f) autorrefenciação: as referências afirmadas como verdades se entendem como
verdadeiras e boas em si e por si mesmas e, portanto, constituem o centro a partir de
onde tudo é visto e julgado e as diferenças negadas como falsas e perigosas. Passado,
regra fixa, hierarquia e obediência são as palavras-chave do pensamento tradicionalista
operado dentro e fora da Igreja. No caso católico, a visão oferecida pelo Vaticano II
mostra-se, inevitavelmente, como seu oponente. A atenção ao presente (leitura dos
sinais dos tempos) rompe com a normatividade exclusiva do passado que dispensa o
discernimento do presente. A noção de povo de Deus desmonta no conjunto eclesial a
noção de Igreja como sociedade hierarquicamente perfeita. De igual modo, o governo
colegiado do papa com os bispos afronta o poder central do pontífice supremo. A
liberdade de consciência confronta-se com a norma objetiva. A liberdade religiosa nega
a religião única e verdadeira. A história da salvação choca-se com as essências
dogmáticas fixas. Não há para os tradicionalistas católicos aggiornamento possível na

149
Igreja, uma vez que tudo já está definido dogmaticamente com a firme argumentação da
fé e da razão43. Resta à Igreja expor e aplicar a verdade que já está previamente definida,
formulada como doutrina fixa e transmiti da pela autoridade como verdade a ser seguida
por todos os fiéis.
Essa concepção ganhou folego na Igreja Católica após o Concílio, tornando-se
difusa em seu conjunto e sempre mais nítida e atuante nas instâncias e sujeitos da Cúria
Romana. Constitui hoje uma tendência católica que resiste às mudanças, ainda que
venham, paradoxalmente, da autoridade central da hierarquia. No entanto, a tradição
tem outro significado e outra dinâmica na história do pensamento e da práxis do
cristianismo e da Igreja Católica.

Hermenêutica da continuidade e descontinuidade


Se tratando de temas complexos, não espere uma síntese pessoal. Mas como
estudioso uno principais textos que considero essenciais para nortear o debate existente.
Percebo no Papa Bento XVI este equilíbrio que foge dos extremos: de um lado há um
discurso de que apenas o que é verdadeiro acontece antes do Concílio (seita da
Fraternidade de São Pio X44), por outro lado apresenta-se a narrativa de que somente
após o Concílio é que a Igreja torna-se lúcida (iniciado com Gustavo Gutiérrez 45 tendo
seu ápice com Leonardo Boff com seu livro herético, Igreja: Carisma e poder). Para
seguir a linha expositiva adotada na leitura da obra teológica ratzingeriana 46, a atenção
sobre os discursos e outros textos pontificais sobre Bento XVI visa identificar também a
releitura que o Papa alemão fez do Vaticano II durante os seus quase oito anos de
pontificado, com especial atenção para o “Antisyllabus” trabalhado antes. Somente com
este olhar sinótico, que engloba tanto a produção do intelectual quanto do papa é que se
podem perceber as íntimas conexões entre a posição magisterial e o pensamento
individual. Pois Bento XVI se dedicou diversas vezes em seu pontificado, como já foi
dito, em apresentar um discurso sobre as linhas hermenêuticas por ele consideradas
corretas para a aná lise do Vaticano II. Ou seja, a “batalha” empreendida nos círculos
teológicos ganhou visibilidade no ensino oficial da Igreja, com a consequente
consolidação de uma versão oficial da interpretação do Vaticano II, que já tinha sido
começada principalmente por João Paulo II, sobretudo no Sínodo de 1985, no qual o
então Cardeal Ratzinger teve um verdadeiro protagonismo.

A atualização do Vaticano II no sulco da Tradição Eclesial


Bento XVI foi o ultimo papa a ter participado do Concílio Vaticano II, ainda que
não tenha sido como bispo, tal como Paulo VI (na primeira sessão), João Paulo I e João
Paulo II, mas como perito. Ele acompanhou de perto, nos bastidores, por assim dizer o
evento que se propunha promover um processo de renovação de vida eclesial sob o lema

43
São João Paulo II Fides et Ratio. São Paulo. Paulinas, 2004.
44
SARTO, Pablo Blanco. Bento XVI, o Papa Alemão. Vol II. São Paulo. Molokai, 2019. p. 247 (Judeus e
Lefebvrianos).
45
GIBELLINI, Rosino. Perspectivas Teológicas para o Século XXI. Aparecida-SP. Editora Santuário,
2005. p.85 (situação e tarefas da teologia da libertação)
46
ASSUNÇÃO, Rudy Albino de. Bento XVI, A Igreja Católica e o “espírito da modernidade”. Campinas-
SP. Paulus e Ecclesiae, 2018. p. 129

150
do aggiornamento, em geral traduzido por “atualização”. O próprio Bento XVI,
cinquenta anos depois da abertura do Vaticano II, explica como se devia interpretar
corretamente o aggiornamento do Papa João XXIII: por trás desse conceito
programático, Bento XVI vê nele a recordação de que a Igreja não é algo do passado,
mas é sempre novo. A atualização conciliar não significa ruptura com a tradição, mas
exprime a sua vitalidade continua". A intenção do Concílio foi, sem dúvida, de
entabulado diálogo entre a Igreja e a modernidade. Esse era o desejo explicito de seu
convocador. Deste modo a Igreja, ciente de sua identidade “a partir de uma renovada
consciência da tradição católica, assume e discerne, transfigura e transcende as criticas
que estão na base das forças que caracterizaram a modernidade, ou seja, a Reforma e o
iluminismo. Assim a Igreja acolhia e recriava por si mesma, o melhor das instancias da
modernidade, por um lado, superando as e, por outro, evitando os seus erros e becos
sem saída”47
Uma Igreja aberta ao mundo, como se viu antes, era o desejo do Papa Roncalli.
Uma Igreja que acolhe a modernidade e -como disse Bento XVI- recria as suas
melhores instâncias. Uma Igreja renovada, mas, segundo Bento XVI, uma Igreja ciosa
de sua identidade, que tem nela a pré-condição de sua abertura. Assim o Vaticano II-
reviu, ou melhor, corrigiu algumas decisões históricas, mas nesta aparente
descontinuidade, manteve e aprofundou a sua intima natureza e sua verdadeira
identidade. Mas Bento XVI advertia: “Quem pensava que com este sim fundamental
para a era moderna se dissipar todas as tensões e a abertura ao mundo assim realizada
transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também
as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da
natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é
uma ameaça para o caminho do homem. [...] O passo dado pelo Concilio em direção à
era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como abertura ao mundo
pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se
apresenta sempre de novas formas”48.
Duas afirmações devem ser destacadas: Bento XVI trata em primeiro lugar dos
perigos da modernidade. A Igreja não pode, na sua visão, abrir-se de forma
indiscriminada a um mundo prenhe de perigos. Em segundo lugar, há uma critica de
Bento XVI a imprecisão da noção de abertura ao mundo. Não é à toa que ele se dedicou,
como teólogo, a elucidá-la ou a atribuir-lhe um significado que não representasse uma
ruptura de princípios com o passado da instituição. Mas ele prossegue mostrando que a
situação que o Vaticano II teve que enfrentar não é exatamente novo para a Igreja: ela
remonta aos primórdios da igreja, ao encontro da adaptação da fé bíblica com a cultura
grega; que remete também ao século XIII, quando o pensamento aristotélico entrou em
contato com a tradição filosófica medieval de matriz platônica, quando, para ele, houve
o risco de separar radicalmente fé e razão, o que não ocorreu por conta da harmonização
realizada por Tomás de Aquino. Nesta história de tensões entre fé e razão (o tema de
fundo do próximo capítulo) é que surge o Vaticano II. Depois do “difícil debate entre a

47
Idem, p. 130.
48
BENTO XVI. Dicurso aos Cardeais, Arcebispos e Prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos
de Natal, Vaticano, 22 de dezembro, 2005.

151
razão moderna e a fé cristã que, num primeiro momento, com o processo a Galileu,
iniciou de modo negativo, fé que certamente conheceu muitas fases", chegou o Concilio
para trazer novas flexões, novas luzes para o encontro entre ambas.
Para Bento XVI uma Igreja aberta e dialógica não é aquela que deixa o mundo
entrar em seu seio, mas que se desmundaniza penetra o mundo com o espírito de Cristo,
sem querer impor com isso qualquer forma de domínio político-eclesiástico. Como
teólogo ele falou insistentemente numa Igreja desmundanizada, já se viu. Como Papa,
ele fez o mesmo, acrescentando que a Igreja deve evitar a sua mundanização; em outros
termos, a sua secularização, O argumento é o mesmo de antes, mas com um acento na
ideia de purificação do mundo: Deus, em Cristo, alcançou a humanidade, saiu de sua
esfera e pela encarnação, estabeleceu um sacrum commercium, não só para confirmar o
mundo, mas para transformá-lo. E a Igreja deve colocar-se no mesmo movimento de
despojamento que Deus realizou; mas Bento XVI mostra que um dos grandes perigos e
tentações da Igreja foi sua acomodação neste mundo à organização e à
institucionalização, dando importância menor à abertura a Deus e ao próximo: Para
corresponder à sua verdadeira tarefa, a Igreja deve esforçar-se sem cessar por distanciar-
se desta sua secularização e tornar-se novamente aberta para Deus. Aqui há um uso
negativo do conceito de secularização. Ou seja, se a Igreja se seculariza é porque ela se
mundaniza. Ele diz que diversas épocas de secularização contribuíram para a sua
purificação e reforma, pois -as secularização – sejam elas a expropriação de bens da
Igreja, o cancelamento de privilégios, ou coisas semelhantes, representaram uma
profunda libertação da Igreja de formas de mundanidade, que implica o despojamento
de sua riqueza terrena. Ele disse que só assim ela pode estar verdadeiramente aberta ao
mundo, enunciando às suas pretensões de poder mundano. Deste modo a Igreja pode
encontrar a verdadeira separação do mundo, sem retirar-se dele. Nesse sentido, a
secularização tem matizes político económicos, pois significa que a Igreja se desprende
(oficialmente, não necessariamente na prática) da pretensão de arrogar a si poderes
exclusivos do Estado e que também poderiam vir de uma situação econômica
privilegiada.

A “TERCEIRA VIA” DE BENTO XVI


É o momento apropriado para olhar também o último discurso de Bento XVI ao
clero romano, citado extensamente no início e um dos seus primeiros e grandes
discursos sobre o Vaticano II, no primeiro ano de pontificado, por ocasião dos votos de
Natal à Cúria Romana, em 22 de dezembro de 2005.12 Esses dois discursos dão a chave
de leitura do pontificado beneditino, com evidente consonância com o seu pensamento
teológico.
No discurso natalício à Cúria, Bento XVI distinguia duas hermenêuticas
dominantes sobre o Concilio do século XX: a da “descontinuidade ou ruptura” e a “da
reforma”. No inicio do capitulo, foi apresentada a divisão em certa medida consensual
entre os historiadores da Igreja. Bento XVI ali aparecia na hermenêutica que se
preocupa em acentuar a tradição, a continuidade do Concílio em relação aos outros. No
entanto, Bento XVI se posiciona além das duas perspectivas mencionadas, que veem o
Concilio como uma radical ruptura (esse é seu ponto em comum entre elas) dicotomia

152
entre as posições são “abstrações”, como tipos-ideais de Weber (“exagerações”, pode-se
dizer) e não posições adotadas literal ou concretamente por sujeitos específicos. Mas, de
qualquer forma, Bento XVI toma distância dos extremos e apresenta uma versão
particular da hermenêutica da reforma. Mas a fim de entender a sua perspectiva é
preciso olhar para. Sua análise do aparente sucesso da hermenêutica da ruptura,
especialmente em relação ao tema de interesse desta pesquisa, que é relação entre Igreja
e mundo. Ele diz que a discussão se esclarece “em vez do termo genérico de 'mundo de
hoje escolhêssemos outro mais exato: o Concilio deve determinar de modo novo a
relação entre a Igreja era moderna”49
Veja-se que, nesse último ponto ele volta a precisar os conceitos conciliares,
especialmente o de mundo, que como teólogo atrai sua atenção. Mas é neste âmbito de
debate que surgem as descontinuidades aparentes. Por isso, prossegue listando as
reações da Igreja ao desenvolvimento da modernidade: desde o já citado conflito
iniciado com o processo Galileu, passando pelo rompimento estabelecido por Kant da
religião no contexto da razão pura, até o acirramento da visão política e antropológica
da Revolução Francesa que não concedia espaço à Igreja, passando pelo conflito com o
liberalismo e as ciências naturais. Nesse enquadramento, parecia não haver mais
qualquer espaço aberto para uma compreensão positiva e frutuosa, e eram igualmente
drásticas as rejeições por parte daqueles que se sentiam os representantes da era
moderna. Mas ele defende que a modernidade também passou por transistor mações,
desdobramentos, pois com a revolução americana nasce um modelo de Estado diferente
do realizado na segunda fase (mais radical) da Revolução Francesa. O mesmo
movimento de revisão foi assistido nas ciências naturais, cientes dos próprios limites e
da sua incapacidade de explicar a realidade globalmente. Assim, Bento XVI defende
que entre as duas guerras, ainda na esfera política, homens de Estado católicos
mostraram que é possível um Estado laico sem ser neutro a valores, especialmente
haurindo das grandes fontes éticas abertas pelo cristianismo. Assim é que nasce uma
“doutrina social católica”, que se tornou um modelo importante entre o liberalismo
radical e a teoria marxista do Estado. Assim, antes do Concílio formaram-se três
círculos de perguntas, que o Vaticano II tentou responder a relação entre fé e ciências
(naturais), entre Igreja e Estado moderno; entre a fé cristã e as demais religiões.
Retomando o caminho, as posições tanto da Igreja e, igualmente, do pensamento
moderno passaram por flutuações históricas, com estágios distintos caracterizados por
oscilações entre repulsa e atração. Por isso, Bento XVI diz que no conjunto dos
problemas “pode emergir alguma forma de descontinuidade”, “mas se se distinguem as
situações históricas, “resultava não abandonada à continuidade nos princípios, fato que
facilmente escapa a uma primeira percepção”. O critério de Bento XVI sobre o que é a
reforma eclesial vem a seguir: “É exatamente neste conjunto de continuidade e
descontinuidade a diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma”. Isso
se aplica, segundo Bento XVI, a certas decisões referentes, por exemplo, a algumas
formas específicas de liberalismo. Nas decisões “somente os princípios exprimem o
aspecto duradouro” o que não se aplica às “formas concretas, que dependem da situação
histórica e podem, portanto ser submetidas a mutações”. Ou seja, a hermenêutica da
49
Ibidem.

153
reforma de Bento XVI compreende tanto a continuidade de princípios quanto a
descontinuidade de aplicações históricas.
Rodrigo Coppe Caldeira parte desta afirmação de Ratzinger para
explicitar, do ponto de vista histórico, as continuidades e
descontinuidades do magistério eclesiástico sobre a relação entre
a Igreja e o Estado moderno (A Dignitatis Humanae e a
liberdade religiosa: descontinuidade no magistério eclesiástico
sobre o Estado moderno. Interações - Cultura e Comunidade,
Uberlândia, v. 8, n. 13, p. 39-55, 2013) É a mesma concepção
que aparece a seguir, no seu pensamento teológico: “A primeira
vista, com efeito, entre os ensinamentos de Pio IX e a
Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa parece existir
um contraste insuperável [...] Com efeito, uma identidade
puramente verbal nunca existiu na história da Igreja. Calcedônia
superou Éfeso e o completou de tal forma que a corrente
alexandrina recusou-o como traição de Éfeso e se separou da
"Igreja do Concílio". Os concílios cristológicos do séc. VI, por
sua vez, ampliaram Calcedônia religando-se a Éfeso, o que
levou a ulteriores divisões. A história do dogma cristão não é a
história de uma férrea identidade literal, nem tampouco a
história de contínuas contradições: é a história de uma unidade
dinâmica em um desenvolvimento orgânico, como demonstrou
magnificamente o Cardeal Newman. Quem não conhece ou não
quer ver esse desenvolvimento não pode compreender o
catolicismo. E não é para surpreender se num desenvolvimento
tal incluem-se também equívocos e sofrimentos. Mas quem
pretende ver nisso, nas entrelinhas, a canonização póstuma de
todas as heresias e de todos os hereges, decididamente
simplifica demais. Ainda uma palavra sobre Pio IX: ele teve de
enfrentar um liberalismo totalmente intolerante e aguerrido, que
contestava à fé católica qualquer direito de ter uma dimensão
pública e tentava proibir o direito à verdade com uma ideia
relativa de tolerância. Contra esse liberalismo o Papa teve de se
posicionar. O fato de, na sua tomada de posição, não ter
antecipado todas as diferenças futuras e que, por isso, à luz do
desenvolvimento posterior, ela deva ser considerada unilateral e
insuficiente, não muda em nada a sua necessidade histórica e a
verdade daquilo que, no fundo, estava em jogo (RATZINGER,
2016, p. 19-21).
Bento XVI usa, então, precisamente a Dignitatis humanae 7 para explicar seu
ponto de vista, dizendo que decisões de fundo permanecem as mesmas enquanto as suas
aplicações podem variar a liberdade religiosa é rejeitada pela Igreja se é entendida como
“incapacidade do homem para encontrar a verdade”, ou seja, relativismo, mas aceita
como uma necessidade a convivência entre os homens, ou melhor, “uma consequência

154
intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas deve ser feita pelo
próprio homem somente mediante o processo do convencimento”. Esta é perspectiva da
última as assembleias conciliar: “O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a
liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado
moderno, recuperou novamente o patrimônio mais profundo da Igreja”.
Além disso, a questão da liberdade religiosa e respeito às outras religiões,
especialmente no atual contexto de crescente pluralização religiosa, particularmente
favorável às religiões asiáticas, mostra como ainda está por esclarecer, de uma forma
mais definida, a relação entre Igreja e Estado, entre fé e política, apresentando-se de
forma mais rigorosa os âmbitos e as fronteiras de suas competências, as modalidades de
colaboração, ecoando ainda a advertência de Cristo de discernir o que deve ser atribuído
unicamente a César ou a Deus. Os comentários de Bento XVI relativos à Nostra aetate
um marco ao longo do caminho rumo à reconciliação entre os cristãos o povo hebreu,
documento que deu um impulso decisivo compromisso de se percorrer
irrevogavelmente um caminho de diálogo, fraternidade e amizade, por exemplo, são
aqueles renovam o respeito da Igreja Católica em relação às religiões cristãos,
especialmente o vinculo com os judeus e a estima para os muçulmanos. Nesse sentido
ele sempre exortou a manter sempre vivo o “espírito do Concílio Vaticano II 50”,
fundado no diálogo interreligioso.
Bento XVI ressalva também que faltou à Nostra aetate uma exposição mais larga,
que não limitasse o documento a uma visão positiva das outras religiões, esquecendo as
formas doentes e per turbadas de religião, ou seja, as suas patologias, especialmente os
fundamentalismos que desembocam nas formas mais terríveis de intolerância e até
mesmo no absurdo do terrorismo. De alguma forma, o Papa Ratzinger apresentou as
raízes de muitas dessas enfermidades religiosas, ao recordar os efeitos do abandono da
racionalidade por parte da religião (e do pensamento laicista) e o uso do nome divino
como legitimador da violência. Sobre este ponto se falará no capítulo seguinte.
Bento XVI cita expressamente a relação entre fé e razão como o debate decisivo
entre Igreja e modernidade. O Concilio ofereceu a orientação, a direção essencial do
debate, ainda que este de bate tenha de ser ainda plenamente desenvolvido. É o que se
fará no próximo capítulo: qual o ponto de partida, para Ratzinger, do intrincado debate
fé-razão? Isso ficará claro a seguir.
Mas antes é preciso não parar na descrição da assembleia conciliar e dos
documentos que ela produziu. Também o pós-Concilio significou muito para os
desdobramentos do encontro, ou melhor, do diálogo Igreja-modernidade. Por isso,
Bento XVI olha com particular atenção para o período pós-conciliar. Os tempos em que
a Igreja teve de se empenhar na aplicação de sua reforma são caracterizados por duas
grandes suspensões históricas, duas rupturas culturais: a explosão da crise cultural
ocidental em 1968 e a queda dos regimes comunistas em 1989. A primeira delas é
50
Apesar de não constar em nenhum documento conciliar esta expressão, podemos encontrá-la no ângelus
do dia 30 de outubro em 2005: “Queridos irmãos e irmãs, ao convidar-vos a retomar a leitura destes
documentos, exorto-vos a rezar juntamente comigo à Virgem Maria, para que ajude todos os crentes em
Cristo a manter sempre vivo o espírito do Concílio Vaticano II, a fim de contribuir para instaurar no
mundo aquela fraternidade universal que responde à vontade de Deus sobre o homem, criado à imagem
de Deus”.

155
caracterizada pelas frustrações com a reconstrução europeia no pós-guerra; assim
explode a crise ocidental, rejeitando a herança cristã e se impondo o marxismo: E neste
digamos grave, grande confronto entre a nova, sadia modernidade querida pelo Concilio
e a crise da modernidade, tudo se torna difícil. E mais: a revolução cultural de cunho
marxista passou a ser identificada com a vontade do Concilio, pois os textos ainda são
um pouco antiquados, mas por detrás das palavras escritas este espirito, esta é a vontade
do Concilio, assim devemos fazer. Só que depois de 1989 vem a queda dos regimes
comunistas e com ela o ceticismo total, a chamada pós-modernidade. Nada é
verdadeiro, cada um deve ver como viver, afirma-se um materialismo, um ceticismo
pseudoracionalista cego e que prega dentre outras coisas que a verdade é intolerante.
Na citação anterior aparece a noção de crise da modernidade que está contra uma
modernidade “sadia” (em diálogo com a Igreja e com os valores cristãos que estavam na
formação da Europa). O marxismo, com o discurso revolucionário, implica a rejeição da
tradição cristã: ele quer começar tudo de novo: nova terra, novo homem. Mas com
queda do muro de Berlim também a falência do sistema socialista teria trazido, segundo
Bento XVI, uma onda de desalento; a utopia alcançada, frustrada, trouxe a sensação de
que nada é, no fim, verdadeiro. Aí o Papa alemão vê crescer a ideia de pós-
modernidade, associada aos conceitos de ceticismo e relativismo. A solução para esta
ferida aberta pela modernidade é relacionar a fé e a razão, entendendo que a revelação
divina não é um discurso, mas uma Pessoa. Deus se revela através do logos criador, ou
seja, razão que ordena o mundo para um Reino Divino. O que deve conduzir o diálogo
não é a desconstrução de conceitos, mas o ponto “fontal”, o axioma norteador é o
pensamento de Agostinho de Hipona: “Creio para entender, entendo para crer”.

TRADIÇÃO CRISTÃ: TRANSMISSÃO RENOVADA


No entanto, na Igreja Católica a Tradição é compreendida como algo vivo, como
dinâmica que visa a manter um dom do passado operando no presente, não a repetição
intacta. A salvação oferecida por Deus em Jesus Cristo é transmitida e nesse processo
vai sendo compreendida, formulada e reformulada à medida que os contextos se
modificam e oferecem perguntas e respostas novas. O Vaticano II entende que a
Tradição progride sob a assistência do Espirito Santo e que cresce na Igreja a sua
compreensão na medida em que a história avança. A Tradição é um processo aberto de
transmissão da verdade e não uma repetição de algo fechado e estático (DV 8). Nesse
sentido, a Tradição é construção que se mantém sempre fiel às origens e se refaz para se
manter fiel, para não as esquecer, para mantê-las vivas em cada tempo e lugar. Ela
coincide, nesse sentido, p as próprias formulações da fé que vão sendo feitas no decorrer
do tempo. Seu exercício acontece em um circulo crítico-criativo que inclui
discernimento do presente e interpretação do passado do qual resulta uma formulação
sempre mais adequada; é ato d fé e de razão que se interagem na busca da compreensão
mais profunda e da expressão mais coerente para a fé.

A Tradição entre o passado e o presente


Trata-se, assim, de uma sucessão bem preservada e, ao mesmo tempo, bem
renovada dos modos de compreender e formular a fé que foram feitos pela Igreja no

156
decorrer de sua história A Tradição é transmissão dessas formulações - doutrina - em
cada tempo e lugar. Tradição quer dizer precisamente transmissão (do latim, traditio,
tradire, significa “entregar”, “passar adiante”). O que é transmitido no decorrer da
história significa sempre um confronto rico e dinâmico entre o passado e o presente. Só
assim a verdade que vem do passado se torna fecunda no presente, ou seja, torna-se
compreensível pelos sujeitos concretos inseridos na situação atual. O Papa Francisco
afirma na Evangeli Gaudium que a Igreja deve renovar-se a partir do coração do
Evangelho. Reafirma a noção de tradição viva ao insistir que as formulações do passado
podem não mais fecundar o presente e, sequer, serem compreendidas pelas pessoas de
hoje. Um pastoral em chave missionária não está obcecada pela transmissão
desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor pela força do
insistir. O Evangelho fornece o núcleo mais essencial para discernir as formulações do
passado e fazê-las fecundar o presente. Por essa razão, a Igreja é chamada a rever em
sua tradição aquilo que não corresponde precisamente o núcleo do Evangelho e que já
não faz mais sentido no mundo atual. Francisco insiste nesse assunto dizendo que
muitas coisas da Tradição podem ser belas, mas não prestam mais o serviço na
transmissão do Evangelho. Não tenham medo de revê-los! Da mesma forma, há normas
ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm
a mesma força educativa como canais de vida.
A Tradição está situada, portanto, entre duas fontes importantes de significado que
lhe dão o parâmetro da forma correta de ser transmitida: o coração do Evangelho e a
vida concreta. O tradicionalismo perde essas duas referências e afirma o passado pelo
passado de forma fixa e imutável. Apega-se a esse tempo do meio esquecendo a sua
origem (fonte permanente de onde retira sentido) e o seu fim (seus destinatários
concretos). A Tradição viva presta o serviço de vincular a vida que vem do Evangelho
com a vida das pessoas de hoje com todas as suas alegrias e dores, virtudes e vícios. A
Tradição é a construção permanente do diálogo entre as fontes da fé e da vida. É o rio
que corre vivo desde a sua nascente para irrigar com suas águas as terras por onde
passa. A Tradição é, portanto, a ponte entre os dois depósitos, ligação entre os territórios
da fé e da vida. Ponte não é território e nem lugar de morada definitiva, é espaço de
passagem, ligação fundamental entre as duas margens que fazem parte da vida cristã. O
Evangelho é o grande território que sustenta tudo margens da fé e da vida e a travessia
entre as duas, a Tradição.

A Tradição a serviço da vida cristã


Portanto, “passar adiante” os conteúdos da fé significará sempre confrontar a fé
com a vida, lançar a semente que a Igreja carrega no solo da vida, feito de terra fértil de
terra infértil. A vida humana é um grande dom que possui várias dimensões. E, antes de
tudo, um sistema vivo, ou seja, um todo composto de partes ligadas entre si. A vida é a
própria terra com tudo que a compõe, os minerais, os gases, as águas, as plantas e os
animais, Os humanos estão dentro desse sistema como sujeito central, embora não mais
importante que os demais. Ele é central por possuir a liberdade e a responsabilidade que
lhe capacitam a conduzir os rumos do próprio planeta na direção da sustentabilidade ou
da destruição. A vida humana tem uma dimensão própria, na medida em que os próprios

157
humanos constroem os modos de viver e conviver como espécie capaz de criar, de
avaliar e de agir. Nesse sentido, a vida humana é também construção: é a família que
gera novos membros e os prepara para convivência com a natureza e com os
semelhantes, são as instituições maiores que visam a abrigar os viventes e cuidar deles,
é a cultura que constrói os valores e os modos de comunicação entre as pessoas. O
cristianismo professa a fé no Deus da vida, o Criador de todas as coisas, em Jesus Cristo
que veio para que todos tenham vida e vida plena (cf. Jo 10,10) e afirma que os cristãos
seguem esse caminho (cf. Jo 14,6) pela vivência do amor (cf. 1Jo 4). Os conhecimentos
das coisas de Deus estão sempre liga dos à vivência concreta do amor. Do contrário, as
verdades não têm sentido ou podem se tomar ideias bem-elaboradas, porém ocas,
semente bonita que não fecunda. Conhecimento sem amor é mentira, ensina a Primeira
Carta de João. A tradição desvencilhada da vida corre o risco de ser também mentira
porque já não expressa aquilo que é mais básico na fé cristã: o amor. A transmissão das
verdades da fé é uma ajuda para os seguidores de Jesus viverem o amor de modo
concreto dentro do mundo, nas relações com a natureza, com a família, com o trabalho e
com todos os semelhantes, os iguais e os diferentes. A doutrina transmitida é
primeiramente Jesus, ensina Francisco. É a partir dele que as verdades são vividas e
podem gerar vida.

ESPIRITUALIDADE LITÚRGICA E FENÔMENOS MÍSTICOS


EXTRAORDINÁRIOS

Liturgia do Concílio de Trento e consequências

Nos anos 1545-1563 celebrou-se o famoso concilio de Trento, como reação ao


levante protestante contra uma série de abusos existentes dentro da Igreja, também no
que diz respeito à Liturgia. Trento tomou pé da situação e promoveu algumas reformas
litúrgicas importantes. No século XIX a situação da Liturgia no Ocidente é lamentável
Pode comparar-se a um cadáver ricamente adornado, mas sem vida e com sintomas de
decomposição. Os ritos e as cerimônias são executados sem sentido pastoral e
acompanhadas de uma série de abusos e superstições.

Também este é um dos assuntos mais importantes na história da Liturgia para


entendermos a Liturgia na história do Brasil e América Latina. Pois foi também com o
modelo pós-tridentino de Liturgia que os povos deste continente foram evangelizados
durante cinco séculos.

Proposta de reforma litúrgica protestante

A anarquia litúrgica na Igreja romana é muito grande e o povo permanece


alienado da Liturgia. Cumprindo apenas o mínimo do que era prescrito como obrigação
de assistência aos atos de culto. Nesse contexto, é natural que venham à tona vozes de
protesto, dentre as quais se destaca Lutero e seus seguidores:

158
“Os reformadores acusam com muita razão a decadência da Liturgia sua falta de espírito
evangélico. Eles exigem o uso da língua do povo, a participação efetiva da assembleia a
recitação da oração eucarística em voz alta (recitação que há séculos... se fazia em voz
baixa), a simplificação de muitos ritos, isto e. uma serie de coisas que a Igreja católica
achará concedendo, mas com quatro selos de atraso, na reforma litúrgica do Concilio
Vaticano II”

“As reformas litúrgicas de Martinho Lutero e dos seus contemporâneos continham


indubitavelmente importantes pontos positivos: culto em língua vernácula comunhão
sob duas espécies superação do excessivo cunho privado existente na celebração da
missa, insistência na recepção da comunhão durante a missa, sobretudo eliminação de
abusos. Mas, apesar de uma vontade muitas vezes reta e sincera, o objetivo não foi
atingido. Os reformadores aboliram em demasia elementos do patrimônio autêntico da
tradição e juntamente com o contato com a grande Igreja, perderam também o caminho
de acesso ao tesouro hereditário das origens apostólicas”51

Abusos litúrgicos colhidos pelo concílio de Trento

Ao tratar da Liturgia, uma das coisas que o concílio logo procurou fazer foi
estudar a situação das celebrações, especialmente da missa. Como resultado, elaborou
uma lista dos principais abusos que até então haviam sido introduzidos na maneira de
celebrar a Liturgia. Damos aqui alguns exemplos.

Alguns dos abusos revelam como se havia perdido o sentido autêntico de


comunidade ou assembleia litúrgica (missas votivas e de defuntos nos domingos: várias
missas celebradas simultaneamente em espaços muito próximos: missas privadas
celebradas em altares laterais enquanto se celebrava à missa solene no altar mor).
Outros abusos revelam um conceito equivocado em torno da eficácia das palavras
sacramentais. Por exemplo:

“Alguns, quando rezam a missa, não mantem a gravidade, mas pronunciam as palavras
sagradas feito palhaços e, como se fizessem teatro, ora levantam a voz homem forte, ora
apenas sussurram em voz baixa e desse jeito, pronunciam aos tropicões palavras que
deveriam ser ditas com o mesmo tom sério e comedido. Outros. quando chegam as
palavras da consagração aproximam a hora da hóstia e do cálice e, como se lançassem
alento sobre eles, dizem aos poucas cada uma das palavras da consagração e fazem com
a cabeça o sinal da cruz, como se estes gestos conferisse mais força consecratória às
palavras do Senhor ou toda a virtude da consagração estivesse colocada neste tipo de
gestos quando as palavras da consagração devem ser ditas de maneira simples sobre a
hóstia e o vinho” (Concilio de Trento)

Outros abusos manifestam o sentido mágico dado aos ritos, bem como os
Exageros em torno das procissões de Corpus Christi. Por exemplo:

51
Dicionário de liturgia

159
“Alguns fazem sobre a hóstia consagrada mais cruzes e sinais do que estabelecido.
Executam as cruzes de tal maneira que, mais que fazer o sinal da cruz parece gesticular
provocando risos nos assistentes. Outros depois da consagração. pegam com as duas
mãos a hóstia e, mantendo a cabeça inclinada a levantam até a nuca. tocando muitas
vezes os cabelos, com o grave perigo de rompê-la”. “Nas procissões de Corpus Christi
se enganam as ruas com ornamentos que são antes pinturas lascivas nada dignas de tão
magno espetáculo, e inclusive às vezes fazem pelas ruas bailes, danças e representações
teatrais totalmente profanas" (Concilio de Trento)

A obra litúrgica do concílio de Trento parei aqui

Consciente da situação lamentável em que se encontrava a maneira de celebrar a


Liturgia, no dia 17 de setembro de 1562 o concilio aprovou um decreto sobre o que
devia ser observado e evitado na celebração da missa.

O concílio cortou muitos dos abusos. Mas não cedeu a várias reivindicações dos
reformadores luteranos. Manteve a obrigatoriedade tanto da Liturgia em latim como da
recitação da oração eucarística em segredo. Logo, não favoreceu a participação direta do
povo na celebração litúrgica.

Na verdade, no âmbito da Liturgia, a maior atenção do concilio se centrou cm


assuntos de tipo dogmático em torno dos sacramentos. Por exemplo, diante da negativa
protestante a respeito da missa como sacrifício e da presença real, o concilio estudou a
questão e esclareceu-a teologicamente, afirmando o caráter sacrifical da missa e a
presença real de Cristo na eucaristia.

Infelizmente, quando Trento aborda teologicamente a eucaristia, a doutrina e


apresentado três sessões (capítulos diferente a presença real (sessão XIII a comunhão
(sendo XXD) e o sacrifício (sessão XXII), Isso pedagogicamente não foi nada bom.
Dificultou, posteriormente, a busca de uma síntese integral e harmônica da doutrina
eucarística, que também na prática levou os católicas a ver o altar , a mesa da comunhão
e o sacrário como realidades totalmente separadas. A teologia sacramental sobre a
eucaristia acabou ficando distorcida e fragmentada.

Em suma, como aspecto positivo da obra litúrgica de Trento, podemos ressaltar a


busca de correção de muitos abusos, bem como os esclarecimentos teológicos sobre os
sacramentos em geral e a eucaristia de modo especial como dado negativo podemos
ressaltar a não aceitação de muitas das reivindicações pastorais dos reformadores. E
temos também um aspecto ambivalente. Dada à falta de tempo, o concílio entregou nas
mãos do Papa decisão posterior em matéria litúrgica: Isso constitui uma solução de
emergência diante da anarquia reinante, mas manterá a Liturgia romana completamente
petrificada durante quatro séculos.

Nas mãos do papa ficou a torta de publicar os livros litúrgicos. Pio V publicou o
Breviário romana (1568) e o Missal romano (1570). Clemente VIII publicou o

160
Pontifical romano (1596) e o Cerimonial dos bispos (1600). Paulo V publicou o Ritual
romano (1614; não obrigatório).

Em todos esses livros transparece a intenção de voltar às fontes antigas e genuínas


da Liturgia, mas, por falta de conhecimento das fontes, o que se fez foi uma purificação
e restauração do rito romano com base nas formas herdadas dos tempos de Gregório VII
a Inocêncio III. Portanto, basicamente continuamos ainda com a estrutura romano-
franco-germânica.

Era das rubricas e influência barroca

As formulas e os ritos codificados nos livros liturgicos agora são obrigatórios para
toda a igreja latina (menos para as dioceses e ordens religiosas com tradição propria de
mais de dois séculos). E fica expressamente proibida a introdução de qualquer
modificação. Para controlar esta Liturgia uniforme, fixa e inalteravel, o papa Sisto V
cria em 1588 a Sagrada Congregação dos Ritos. Esta tem como missão, não tanto dar
continuidade à reforma, mas velar pelo exato cumprimento de todas as normas
estabelecidas. Com isso, de agora em diante, a preocupação do clero se centrarà mais no
cumprimento rigoroso das normas liturgicas do que na celebração do mistério pascal
Entramos na era das rubricas, no tempo do rubricas e do legalismo liturgico Estudar
Liturgia significava então assimilar as leis que regem o culto. Tudo sob a exuberante
roupagem do barroco.

O barroco é um movimento cultural que expressa bem o espírito da Contra reforma.


Depois da crise provocada pela Reforma protestante, a Igreja católica se sente segura,
forte. vitoriosa. Respira um ar triunfalista, o que se reflete sobretudo na Liturgia. Numa
atitude radicalmente anti-protestante, acentua-se cada vez mais a presença real de43

Cristo na eucaristia, omitindo os demais aspectos do sacramento. Insiste-se cada vez


mais na dignidade do sacerdócio dos ministros ordenados, resultando daí a separação
sempre mais profunda entre o que o padre diz e faz no altar e o que o povo pratica

durante a celebração. Missa na lingua do povo: nem pensar! Qualquer tradução,


impressão e posse do missal traduzido serão sujeitas a severa condenação (até mesmo
com excomunhão!). como ameaçou o papa Alexandre VII em 1661°. As celebrações

litūrgicas barrocas são brilhantes e espetaculares, mas cada vez mais longe do
verdadeiro espirito da Liturgia.

161
Uma característica do barroco é a tendência a acentuar os aspectos periféricos da
Liturgia . Os altares laterais e multiplicam. como também as imagens do santos e de
Maria comunhão se separa do contexto da missa e se comerte me decoração homilia
vira sermão", sai da celebração eucaristica de seus textos, e se desenvolve no pulpito,
transformado em cátedra de oratoria a reserva turistice se guardou mio m anistia ou na
parede, mas em Marrior bre o proprio altar.... os sacrarios de cada vez mais
monumentos Texas com Templinhos baldaquinos, degraus etc. também se desenvolveu
música sacra a época do auge da polifonia, porém não orientada à finalidade de servico
ao culto, mas como um concerto que tem valor em si mesmo, de modo es ja se
transforma mum salão com palcos e galerias, coro alto etc. no fica reduzido à categoria
de um simples suporte ou peanha: as multiplas devoções eucaristicas (quarenta horas,
procissões, exposição do Santissimo) superm em esplendor solenidade à propria missa,
que é - segundo o catechism ik kentlerde 1734 - uma das cinco maneiras de adorar a
Cristo na eucaristia neste culto eucaristico se introduz o cerimonial de tipo cortesão.
semelhante a que na época constantiniana foi se infiltrando nas cerimônias qual mind e
vida há uma grande riqueza e luxo nos elementos artisticos, sofrendo nas imponentes
retábulos barrocos. em relação aos quais o altar mor cristã mas tendo naquela ocasiãn
como destinatarios os bispos e sacerdotes agora. é a Divina Majestade de Cristo
presente na eucaristia que recebe as horas que as cortes mundanas tributam a seus
principes.

Como se ve, a Liturgia reformada por Trento e praticada de modo uniforme por todos.
"não foi capaz de resistir às pressões da cultura religiosa do tempo: ao gosto pela
festividade e pelas grandiosas manifestações exteriores, ao triunfalismo, especialmente
nas peregrinações e nas procissões com os estandartes: à sensualidade na expressão
artistica e às devoções de piedade. Assim fica perfeitamente compreensível que a festa
por excelência do barroco tivesse que ser a de Corpus Domini com a sua solene
procissão completa de estandartes, roupas próprias e guardas de honra. Até o edificio da
igreja foi transformado em palácio orando para festa, destinado a receber o rei
eucaristico, em salão cuidadosamente decorado e dominado por tabernáculo imponente.
como se fosse trono apoiado sobre o altar. A missa. por conseguinte, passou a ser uma
celebração cujo cunho festivo era exaltado pela orquestra e pela música polifonica.

enquanto a consagração era saudada por uma banda de música e pelo som jubilante de
sinos. No entanto, a participação ativa na Liturgia em si era quase zero: os elementos
exteriores foram enaltecidos de modo exagerado, ao passo que o essencial
ficouminimizado e relegado à periferia l'ara muitos a missa constituia excelente ocasião
para a recitação do rosário ou do terço e para cada um se entregar as suas devoções
particulares e aos santos padroeiros. Mas, apesar de tal regresso, devemos admitir que o
modo barroco de celebrar a Liturgia correspondia estritamente, pelo menos na sua
situação histórica particular, ao temperamento das pessoas.

162
5. RESUMINDO

Frente à anarquia reinante no fim do "outono da Idade Média", vêm à tona vozes de
protesto. dentre as quais se destacam Lutero e seus seguidores. Estés exigem volta ao

espirito evangélico, pelo qual o povo volte a ter voz e vez no culto. O concilio de
Trento, por sua vez, convocado como reação às contestações protestantes, colhe uma
lista dos principais abusos realmente existentes na Igreja. Inclusive publica um decreto
sobre o que era necessário observar e evitar na celebração

da missa. Mas não cedeu a várias reivindicações dos reformadores. Por exemplo, a
Liturgia deve continuar a ser celebrada em latim, e a oração eucaristica deve continuar a

ser recitada em segredo. Mas a maior atenção do concilio foi centrada sobre assuntos
dogmáticos em

torno dos sacramentos. Quanto à eucaristia, a forma de abordá-la trouxe sérios


inconvenientes no futuro: o fato de ter tratado da presença real, da comunhão e do
sacrificio em separado. levou os católicos a ver "altar", "mesa da comunhão" e
"sacrário" como realidades totalmente separadas. A teologia eucaristica posterior
acabou ficando fragmentada e distorcida.

Como resultado posterior decorrente do concilio de Trento veio a publicação dos livros
litúrgicos. Estes conservam a estrutura romano-Franco-germânica herdada dos tempos
medievais e são tornados fixos, inalteráveis e obrigatórios para todas as igrejas. Entra-
se, pois, na era do rubricismo e do legalismo litúrgico, sob a exuberante roupagem do
barroco, o qual, refletindo a vitória católica anti-protestante, transforma a Liturgia num
rico e luxuoso ambiente de festa em honra de Sua Majestade o Rei Eucaristico de Maria
e dos santos, ao som de encantadores concertos de orquestras e corais polifonicos. O
gosto pelas devoções e pelas procissões toma totalmente conta da alma popular. A
prática das missas privadas continua. E a participação ativa do povo na

Liturgia é quase zero.

163
Como síntese da espiritualidade litúrgica após vermos os principais embates entre
as mudanças positivas e negativas, agora consideramos as reformas dos ritos
sacramentais, a partir do Missale Romanum que é a fonte litúrgica para a espiritualidade
dos sete sacramentos. Diante dos inúmeros abusos litúrgicos que acontecem (pois há
uma distorção de um dos pontos da reforma litúrgica: “sacramentalidade litúrgica”, que
consiste transcender a liturgia terrena para a liturgia celestial sempre como ponto de
encontro) por “subjetivismos” personalizando os ritos com acréscimos inexistentes.
Ninguém na Igreja é dono da liturgia, mas servidores, assim como o Papa. São Bento de
Núrsia ensinava seus monges: “a nossa mente concorde com nossa voz”. E fazer da voz
a proclamação do que inventa-se, há manipulação e “invencionismo”. A “criatividade
selvagem” e “fantasia” como afirma Dom Armando Bucciol 52, que empobrece e
confunde o povo de Deus. Há também por parte dos movimentos litúrgicos tentações a
respeito de outro conceito: “a relação entre sacerdócio comum e ministerial” (SC 14),
confusão da participação e função, sobretudo no Sacramento da Eucaristia (LG 10). Cito
a tentação: o leigo querer ser e ocupar a função do Padre. Como também por ignorância
o sacerdote autorizar o leigo a fazer a função que é própria do seu ministério. Aqui já é
uma consequência dos equívocos da reforma litúrgica. É falta de caridade ou injustiça
intelectual negar esta reforma devido às distrações e abusos por parte de uma minoria
que ainda insiste em desconsiderar a história da liturgia com sues “gracejos”. Portanto
estes que desconsideram a maravilhosa história litúrgica querem seduzir os fieis em
liturgias que não existem. Uma visão lúcida é entender que o celebrante deve conduzir
os fieis ao mistério, a Deus o único digno de louvor e glória; não ludibriar os fiéis para
ele mesmo, aproximando-se de uma espécie de esoterismo. Assim apresento através de
inúmeros estudos a intenção original desta Constituição.
Por meio da Constituição Apostólica Missale Romanum, de 3 de abril de 1969, o
papa Paulo VI aprovou o novo Missal Romano e a “Instrução Geral ao Missal Romano”
(Institutio Generalis Missalis Romanum – IGMR), que acompanha e precede o
formulário do Missal. O texto da edição oficial (editio typica) do Missal e da Instrução
datam de 25 de março de 1970. Passados apenas cinco anos, foi publicada a segunda
edição do Missal Romano. No ano 2000, trinta anos após a primeira edição do Missal, é
lançada a sua terceira edição. Nessa ocasião surgiram algumas orientações que
complementavam a edição anterior do Missal, as quais foram incorporadas na terceira
edição da IGMR. Tomaremos como paradigma para as nossas referências esta última
edição da IGMR. Ela apresenta nove capítulos e 399 números (a primeira edição tinha
oito capítulos e 342 números).
Essa Instrução – da mesma forma como acontece com as introduções dos livros
litúrgicos emanados da reforma litúrgica conciliar (praenotanda) – é um rico
emaranhado de fios de caráter bíblico, teológico, doutrinal, catequético e pastoral; todos
formando um único tecido multicolorido. Longe de ser um mero manual de rubricas, a
IGMR é portadora de uma teologia fermentada pela renovação pré e pós-conciliar, mas,
sobretudo, pelas riquíssimas propostas do Concílio Vaticano II. Ela marca “uma
reviravolta em relação às precedentes Rubricae Generales e Ritus servandus do Missal
de Pio V, já pelo próprio título: Institutio, um gênero literário novo, e ainda por seu
conteúdo de amplo respiro” (FALSINI, 1996, p.7).

52
BUCCIOL, Dom Armando. Sinais e Símbolos, Gestos e Palavras na Liturgia: Para
compreender e viver a liturgia. Brasília-DF. Edições CNBB, 2020.

164
Ao lado da IGMR, outro tesouro da reforma litúrgica foi o Ordo Lectionum
Missae (OLM) – o elenco oficial das leituras da Sagrada Escritura que são proclamadas
na celebração da eucaristia. A primeira edição típica do OLM foi publicada em 1969,
por mandato de Paulo VI. Em 1981 houve a sua segunda edição. Trata-se de um
documento composto de seis capítulos, cujo escopo teológico, catequético e pastoral é
realçar o valor de máxima importância da Sagrada Escritura na celebração da eucaristia
(CNBB, 2008).
O objetivo da investigação ora proposta é explorar alguns aspectos relevantes do
Missal Romano. Para tal, proporemos um trajeto a ser percorrido em três etapas: 1)
Constituição Apostólica Missale Romanum; 2) Breve histórico e gênese do Missal de
Paulo VI; 3) Aspectos teológicos e pastorais valorizados pelo novo Missal, onde
especificaremos três aspectos: presença de Cristo, assembleia e participação e Sagrada
Escritura.
A Constituição Apostólica Missale Romanum53
A Constituição Apostólica Missale Romanum merece uma abordagem à parte,
dado o seu peso e relevância. Ela não só se apresentou como um instrumento necessário
para que fosse possível a promulgação do novo Missal, mas trouxe consigo uma densa e
profunda síntese de potencialidades e propostas teológicas e pastorais.
O Missal que vigorou até 1970 foi aquele promulgado pelo papa Pio V, em 1570,
de acordo com o decreto do Concílio de Trento. Segundo a nossa Constituição, ele está
“entre os muitos e admiráveis frutos que aquele Santo Sínodo difundiu por toda a Igreja
de Cristo”. Durante quatro séculos, os sacerdotes do rito latino o tiveram como norma
para a celebração da eucaristia.
Na primeira metade do século XX, de modo particular, começa a despontar e
ganhar corpo entre os cristãos um forte desejo de uma renovação da liturgia, desejo este
que, segundo as palavras do papa Pio XII, deve ser considerado “passagem do Espírito
Santo pela sua Igreja” (JAVIER FLORES, 2006, p.285). Com isso, foi se tornando claro
que o Missal de Pio V deveria ser urgentemente renovado e enriquecido em seus textos.
O próprio Pio XII deu início a esta obra, restaurando a Vigília Pascal e o Ordinário da
Semana Santa, autênticos e concretos passos para o início da reforma do Missal
Romano e de sua adaptação às necessidades da Igreja de hoje.
Com a promulgação do primeiro documento do Concílio Vaticano II, a
Constituição Litúrgica Sacrosanctum Concilium  (SC), foi lançada a pedra fundamental
da profunda reforma do Missal Romano. No que se refere ao mistério da eucaristia,
a Sacrosanctum Concilium, no capítulo II (números 47-58), apresenta algumas
diretrizes concretas para a revisão do Missal: buscar maior clareza nos texto e ritos;
promover a participação dos fiéis; preparar “com maior abundância para os fiéis” a
mesa da Palavra de Deus; centralizar a realidade do mistério pascal; resgatar alguns
ritos que se perderam durante a história (oração universal, concelebração, leitura de
textos do Antigo Testamento, comunhão sob as duas espécies etc.) e o uso da língua
vernácula. A preocupação com uma autêntica renovação litúrgica, em particular naquilo
que se refere à celebração da eucaristia, visa precisamente à participação dos batizados
no mistério que se celebra: “O ritual da Missa deve ser revisto, de modo que apareça
mais claramente a estrutura de cada uma das suas partes, bem como a sua mútua
conexão, para facilitar uma participação piedosa e ativa dos fiéis” (SC n.50).
Paulo VI, na Constituição Apostólica Missale Romanum, esclarece que a
renovação do Missal não é fruto de um capricho da Igreja pós-conciliar e nada tem de
53
http://www.vatican.va/missaleromanum

165
improvisado. Diversamente, ela foi preparada carinhosa e progressivamente, de modo
particular, com o auxílio dos avanços da teologia bíblica e litúrgica. Esses e outros
fatores sinalizam a assistência permanente do Espírito Santo, que, em todas as fases da
história, suscita na Igreja de Cristo os sopros de renovação. Paulo VI recorda que, após
o Concílio de Trento, começou-se o estudo de antigos manuscritos da Biblioteca
Vaticana e de outros materiais recolhidos de vários lugares. O papa Pio V dá
testemunho que esse rico documentário muito contribuiu para a revisão e renovação do
Missal promulgado em 1570. Da publicação desse Missal até o Concílio Vaticano II foi
descoberto e publicado um rico material de antigas fontes litúrgicas, como também
foram conhecidas e estudadas antigas fórmulas litúrgicas da Igreja Oriental. Diante
disso, afirma Paulo VI: “Assim muitos insistiram para que tais riquezas doutrinais e
espirituais não permanecessem na obscuridade das bibliotecas, mas, pelo contrário,
fossem dadas à luz, para ilustrarem e nutrirem as mentes dos cristãos” (PAULO VI,
1992, p.18).
Uma das mais importantes novidades da reforma do novo Missal são os novos
formulários de Orações Eucarísticas. A Oração Eucarística I, também chamada de
Cânon Romano, foi fixada entre os séculos IV e V e permaneceu sendo o único
formulário usado nas Missas até o novo Missal. Além das novas Orações Eucarísticas,
este Missal foi também enriquecido com um grande número de novos Prefácios. O atual
Missal conta com treze Orações Eucarísticas. Trata-se, portanto, de um Missal com uma
riqueza eucológica sem precedentes (BUGNINI, 2013, p.347).
Além disso, de acordo com as orientações do Concílio Vaticano II, houve o
cuidado de se simplificar vários elementos secundários que, no decurso dos séculos,
foram sendo acrescidos à celebração da Missa. Com frequência, esses elementos
desviavam os fiéis daquilo que era essencial no mistério eucarístico, além de
sobrecarregar demasiadamente a celebração. Tudo, porém, foi feito cuidadosamente a
fim de que fosse conservada a substância dos ritos litúrgicos. Respeitou-se a estrutura
essencial dos ritos e, ao mesmo tempo, optou-se por sua simplificação. Orienta o
Concílio: “Sejam omitidos todos os elementos que, com o passar do tempo, se
duplicaram ou, menos utilmente, se acrescentaram; restaurem-se, porém, se parecer
oportuno ou necessário e segundo a antiga tradição dos Padres, alguns que injustamente
se perderam” (SC n.50). (MARSILI, 2010, p. 329-37).
Foram restaurados, continua a nos lembrar Paulo VI na Constituição Apostólica,
alguns ritos que tinham caído em desuso na celebração da Missa e que gozaram de
importância no tempo dos Padres da Igreja. Dentre os ritos restaurados, o da
proclamação da Bíblia na Liturgia da Palavra é indubitavelmente um dos mais
significativos e decisivos (TRIACCA, 1992, p.135-51). Tratou-se de uma expressa
orientação conciliar: “Para que a mesa da Palavra de Deus seja preparada com maior
abundância para os fiéis, abram-se mais largamente os tesouros da Bíblia, de modo que,
dentro de certo número de anos, sejam lidas ao povo as partes mais importantes da
Sagrada Escritura” (SC n.51). “Tudo isto foi assim ordenado para aumentar cada vez
mais nos fiéis ‘a fome da Palavra de Deus’ (Am 8,11) que, sob a direção do Espírito
Santo, deve levar o povo da nova Aliança à perfeita unidade da Igreja” – afirma Paulo
VI.
Na conclusão da Constituição Apostólica Missale Romanum, o pontífice
manifesta seu desejo de “dar força de lei” a tudo o que foi exposto nesse documento.
Ele lembra que seu predecessor Pio V, na ocasião da promulgação do Missal Romano,
declara ao povo cristão que aquele livro litúrgico era “como fator da unidade litúrgica e
sinal da pureza do culto da Igreja”. “Da mesma forma”, continua Paulo VI, “nós, no

166
novo Missal, embora deixando lugar para legítimas variações e adaptações, segundo as
normas do Concílio Vaticano II, esperamos que seja recebido pelos fiéis como um meio
de testemunhar e afirmar a unidade de todos, pois, entre tamanha diversidade de línguas,
uma só e mesma oração, mais fragrante que o incenso, subirá ao Pai celeste por nosso
Sumo Sacerdote Jesus Cristo, no Espírito Santo” (PAULO VI, 1992, p.21).
Breve histórico e gênese do Missal Romano54
Ainda que o nosso intento seja focalizar a reforma do Missal Romano de Paulo
VI, não se pode deixar de assinalar que o século XX foi marcado por um forte desejo de
reforma no campo da liturgia. Já Pio X, na Bula Divino afflatu (1/11/1911), mostra a
necessidade de se reformar algumas rubricas concernentes à Missa e ao Ofício divino.
Em seu motu próprio Abhinc duos annos (23/10/1913), ele apresenta um esboço
programático de uma futura reforma do Breviário. Os projetos de reforma dos dois
principais livros litúrgicos da Igreja – o Breviário e o Missal – ficaram paralisados
devido a várias circunstâncias imprevistas, de modo particular o estourar da primeira
guerra mundial e a morte do pontífice.
Coube a Pio XII dar novo impulso aos trabalhos da reforma já em andamento. Em
1946, ele forma uma comissão com a finalidade de fazer um levantamento daquilo que
até aquele momento havia sido realizado em prol de uma reforma litúrgica. Essa
comissão ficou sob a coordenação do então prefeito da Congregação dos Ritos, o
cardeal Salotti. No ano de 1948, essa comissão produziu um
longo memorandum contendo as principais diretrizes de uma concreta obra de reforma.
Fator decisivo dessa fase foi a publicação da encíclica Mediator Dei (20/11/1947). Com
esta encíclica, Pio XII abre decisivamente a fase pré-conciliar da renovação litúrgica
(JAVIER FLORES, 2006, p.271-87).
Nos anos imediatamente precedentes ao Concílio Vaticano II, havia, nos diversos
setores da Igreja e entre os fiéis, um vivo desejo de uma reforma litúrgica,
particularmente no que dizia respeito à Missa. Em 25 de janeiro de 1959, o papa João
XXIII manifesta, pela primeira vez, sua intenção de convocar um Concílio. Em junho
do mesmo ano, o secretário de Estado, cardeal Tardini, pediu a todos os bispos, aos
superiores de ordens religiosas e às universidades católicas para enviar sugestões de
temas a serem tratados no Concílio. Muitas dessas sugestões diziam respeito à reforma
da Missa (LENGELING, 1971, p.501). Considerando esses e outros fatores, pode-se
entender o motivo pelo qual o primeiro documento emanado do Vaticano II foi
justamente a Constituição Litúrgica Sacrosanctum Concilium, promulgada em 4 de
dezembro de 1963.  O segundo capítulo dessa Constituição (n.47-58) foi inteiramente
dedicado ao sacramento da eucaristia.
Em 25 de janeiro de 1964, Paulo VI formou o Consilium ad exsequendam
Constitutionem de Sacra Liturgia, uma comissão que deveria levar avante o projeto da
reforma litúrgica. Ao formar esse conselho, o pontífice tinha o ardente desejo de colocar
em prática aquilo que fora pedido pelo Concílio Vaticano II: “Os livros litúrgicos sejam
quanto antes revistos por pessoas competentes e consultando bispos de diversos países
do mundo” (SC n.25). Motivado por essa exortação, o Consilium, de imediato, lançou
mãos à obra. Em pouco tempo, os trabalhos da comissão já apresentavam os primeiros
sinais da reforma do Missal (BASURKO & GOENAGA, 1990, p.149). A empreitada,
no entanto, precisou ser enfrentada de forma paciente e gradativa. O motivo desse
procedimento se deu por duas razões: a) de acordo com o Concílio Vaticano II, o
trabalho de reforma deveria transcorrer com prudência, pois o que estava em jogo era

54
http://theologicalatinoamericana.com/FAJE

167
algo delicado e desafiante. Segundo a SC n.23, era tarefa da Igreja conservar a “sã
tradição” e, ao mesmo tempo, lançar-se num “progresso legítimo”, conforme os novos
tempos exigiam. E isso deveria ser feito “com acurada investigação teológica, histórica
e pastoral acerca de cada uma das partes da liturgia eucarística que devem ser revistas”.
E mais, a Igreja deveria levar em consideração “as leis gerais da estrutura e do espírito
da liturgia, a experiência adquirida nas recentes reformas litúrgicas”. Além disso, que se
tomasse o cuidado de não se introduzir inovações indevidas no processo da reforma e
que as novas formas surgissem daquelas já existentes. Obviamente, uma obra de tal
porte exigia tempo, discernimento e cautela; b) do ponto de vista didático e psicológico,
seria prejudicial exigir uma mudança imediata e radical. O clero e o povo de Deus não
teriam condições de compreender corretamente e assimilar de forma profunda e
proveitosa as mudanças propostas pela Igreja. Para comprovar a paciência e o cuidado
maternal da Igreja em relação a seus filhos, basta conferir a lista dos documentos
romanos publicados entre os anos de 1964 e 1971, todos eles relacionados à reforma do
novo Missal. E isso com o desejo que o povo de Deus acolhesse com consciência e
proveito as propostas da reforma litúrgica (LENGELING, 1971, p.506-9).
No âmbito do Consilium, doze grupos de trabalho contribuíram para realizar o
novo Missal. Três outros grupos se ocuparam de problemas comuns à reforma do
Breviário e do Missal, tais como o calendário, as rubricas e a festas particulares. Dos
grupos que se encarregaram da reforma do Missal – leituras bíblicas, orações, prefácios,
participação dos fiéis, comunhão sob duas espécies, concelebração, Missas votivas,
cantos da Missa – não se pode deixar de fazer memória de nomes como A. Franquesa,
M. Righetti, T. Schnitzler, P. Jounel, C. Vagaggini, P. M. Gy, J. A. Jungmann, J.
Gelineau, L. Bouyer e tantos outros. Graças a eles e à supervisão contínua de Paulo VI,
tornou-se possível a obra da reforma litúrgica com um de seus frutos mais fecundos e
promissores: o Missal Romano.
Sendo a reforma do Missal uma obra autenticamente eclesial e colegial, Paulo VI
fez questão de que dela participassem todos os bispos. Sobre isso, recordamos aqui as
palavras pronunciadas pelo pontífice na audiência concedida aos participantes da VII
sessão plenária do Consilium, em dezembro de 1966. Após ter falado da importância da
música sacra, ele declara:
Há outra questão, dentre todas, a de máximo interesse: aquela que diz respeito ao Ordo
Missae. Tomamos já ciência do estudo realizado e sabemos quantas eruditas e religiosas
discussões estão relacionadas seja ao texto do assim chamado Ordo Missae, seja à
composição do novo Missal e do calendário das celebrações. A coisa é de tanto peso e
de tamanha importância universal que não podemos deixar de consultar o episcopado
antes de convalidar com a nossa aprovação às medidas propostas por este Consilium.
(LENGELING, 1971, p.506-9)
De fato, a proposta de reforma da Missa foi submetida ao exame dos bispos, que
foram convocados para um Sínodo em Roma, no ano de 1967. Várias indagações foram
feitas e ricas sugestões foram dadas para que, sem demora, se efetivasse a reforma do
Missal. Entretanto, seja durante o Sínodo, seja em momentos sucessivos, “não faltaram
tentativas com o intuito de denegrir o novo Ordo Missae” (LENGELING, 1971, p.512).
Dele foi dito que continha “erros de uma nova teologia”, transferidos para o campo
litúrgico, e que a proposta do novo Ordo, de que também o povo de Deus possa oferecer
o sacrifício, obscurece nos fiéis a realidade da “plenitude dos poderes sacerdotais”
(LENGELING, 1971, p.512). As vozes contra o novo Missal propalavam que a reforma
havia desrespeitado três importantes pontos sustentados pela doutrina católica: a
natureza sacrifical da missa, a questão da presença real do Senhor nas espécies

168
eucarísticas e o tema da natureza do sacerdócio ministerial. Em três números seguidos
do proêmio da IGMR, esses argumentos são enfrentados e esclarecidos do seguinte
modo: “A natureza sacrifical da Missa, que o Concílio de Trento solenemente afirmou,
em concordância com a universal tradição da Igreja, foi de novo proclamada pelo
Concílio Vaticano II” (n.2). “O admirável mistério da presença real do Senhor sob as
espécies eucarísticas foi confirmado pelo Concílio Vaticano II e por outros documentos
do Magistério Eclesiástico, no mesmo sentido e na mesma forma com que fora à nossa
fé pelo Concílio de Trento” (n.4). “A natureza do sacerdócio ministerial, próprio do
bispo e do presbítero que oferecem o sacrifício na pessoa de Cristo e presidem a
assembleia do povo santo, evidencia-se no próprio rito, pela eminência do lugar de
função do sacerdote” (n.4).
Após um doloroso parto, nasce, enfim, o Missale Romanum. Um momento novo e
promissor na vida da Igreja, de sua identidade e missão, uma vez que o que está em jogo
é a celebração do mistério da eucaristia. Ela “contém todo o bem espiritual da Igreja, a
saber, o próprio Cristo, nossa páscoa e pão vivo, dando vida aos homens através de sua
carne vivificada e vivificante pelo Espírito Santo (…). A Eucaristia aparece como fonte
e ápice de toda a evangelização” (CONCÍLIO VATICANO II, 1982, n.5).
Aspectos teológicos e pastorais valorizados pelo novo Missal
Para que se tenha acesso ao manancial oferecido pelo novo Missal e dele se tire
um fecundo proveito, torna-se necessário conhecê-lo em sua teologia e perspectivas
pastorais. Sem dúvida, um dos melhores meios para isso é um bom conhecimento dos
princípios e normas propostos pela IGMR. Essa Instrução quer franquear o contato com
o rico material eucológico presente no atual Missal – trata-se de peças ricas em suas
dimensões bíblica, teológica, litúrgica, espiritual, catequética e pastoral. Nesse sentido,
a IGMR está longe de ser um simples aggiornamento de rubricas e de orientações
pragmáticas; ao contrário, quer ser um rico e permanente manual de formação litúrgica
para o clero e o povo de Deus. Aqui convém lembrar a admoestação que nos vem do
Concílio Vaticano II: “Com empenho e paciência procurem os pastores de almas dar a
formação litúrgica e promovam também a participação ativa dos fiéis (…)” (SC n.19)
(CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 2003, n.11). Com esse escopo,
selecionamos nesta seção três temas de particular relevância no Missal Romano e, por
conseguinte, enfatizados na IGMR.
Presença de Cristo
O tema da presença de Cristo na celebração eucarística é enfaticamente abordado
no número 27 da IGMR:
Na missa ou ceia do Senhor, o povo de Deus é convocado e reunido, sob a presidência
do sacerdote como representante de Cristo, para celebrar o memorial do Senhor ou
sacrifício eucarístico. A esta assembleia local da santa Igreja se aplica eminentemente a
promessa de Cristo: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no
meio deles” (Mt 18,20). Pois na celebração da missa, em que se perpetua o sacrifício da
cruz, Cristo está realmente presente tanto na assembleia reunida em seu nome, como na
pessoa do ministro, na sua palavra e, ainda de uma forma substancial e permanente, sob
as espécies eucarísticas.
A doutrina contida nesse número encontra-se eivada de teologia bíblica. Em
passagens como Mt  28,19-20 e Jo 15,4-7, vemos o desejo de Jesus em estar presente,
de permanecer junto aos seus. Certamente a experiência dessa presença era o coração do
culto e da experiência de fé da comunidade primitiva. Na época apostólica e patrística
“a presença do Senhor era uma verdade profundamente vivida em todas as suas

169
dimensões” (LÓPEZ MARTÍN, 1996, p.112).  Na celebração litúrgica, de modo
privilegiado, essa verdade se experimentava em profundidade.
O tema da presença de Cristo na liturgia tem sido objeto de constante interesse do
Magistério da Igreja, sobretudo a partir de Pio XII. É, no entanto, na Sacrosanctum
Concilium, que ele é abordado de forma incisiva: Cristo está sempre presente em sua
Igreja, especialmente nas ações litúrgicas: no sacrifício da missa, na pessoa daquele que
preside o culto, nas espécies eucarísticas (cf. SC n.7). É no fôlego do Concílio que a
IGMR enfrenta a questão da presença de Cristo na celebração da ceia do Senhor –
presença variada e multíplice, devido à diversidade dos sinais com que se que realiza a
ação litúrgica: assembleia, ministro, Palavra, espécies eucarísticas. Certamente essa
panorâmica se deve, em grande parte, à teologia conciliar.  A Sacrosanctum
Concilium afirma que, por meio da liturgia, especialmente pelo sacrifício eucarístico,
“se atua a obra da nossa redenção” (SC n.2). A realização de uma obra de tal porte exige
a “presença” de Cristo atuando através dos sinais litúrgicos. Com efeito, aquilo que foi
realizado “uma vez por todas” (Hb 7,27), no evento histórico, se atualiza “todas as
vezes” (1Cor,11,26), na celebração da eucaristia. É a grandeza dessa presença
em mystérion, isto é, operada pelo Espírito Santo no corpo de Cristo, através dos sinais
sacramentais, que provocou a genial formulação da IGMR 27 (CORBON, 2004, p. 111-
9).
“Cristo está realmente presente” (“Christus realiter praesens adest”) sempre que a
Igreja celebra o mistério da eucaristia. Notemos bem o tom dessa formulação da
Instrução. A presença de Cristo é descrita marcadamente em quatro formas distintas e
integradas; e, para cada uma delas, se aplica a força do advérbio “realmente”, presença
“real”. Isso não só está em perfeita consonância com a revelação bíblica e a tradição da
Igreja, como também é um estupendo resgate de uma realidade que jazia sob os
escombros por muitos séculos. Sabemos que, na Idade Média, em virtude das
controvérsias eucarísticas surgidas a partir dos séculos VIII e IX, a atenção da teologia
católica passou a se concentrar única e exclusivamente na forma da presença de Cristo
nas espécies eucarísticas, ficando na penumbra as demais formas elencadas pela nossa
Instrução. Essa polarização absolutizante nos fez perder, de certa forma, a visão de
conjunto do mistério eucarístico. “O Concílio de Trento e a teologia pós-tridentina
reafirmaram a fé da Igreja na presença real de Cristo na eucaristia. A ênfase com a qual
essa verdade de fé foi afirmada fez pensar só nela como verdadeiramente real, como se
os outros modos de presença também não fossem reais” (SPERA & RUSSO, 2004,
p.123). As conseqüências disso são sentidas frequentemente nos âmbitos da catequese,
da pastoral e da vivência eucarísticas, onde, aqui e ali, prevalece um devocionismo
eucarístico concentrado de forma exclusiva na adoração a Cristo presente na “hóstia
consagrada”, desconsiderando-se a riqueza e amplitude das formas da presença de
Cristo – todas elas reais  – no mistério da celebração da Ceia do Senhor.
Assembleia e participação
Conforme anteriormente verificado, uma das formas da presença de Cristo na
celebração da ceia dá-se precisamente na assembleia litúrgica; nela Cristo está
realmente presente (cf. IGMR n.27).  O próprio Deus toma a iniciativa de convocar e
reunir o seu povo para dele fazer o sacramento da sua presença e da permanente ação de
Cristo em sua Igreja. A cada assembleia eucarística se aplica com toda a propriedade a
promessa de Cristo aos seus discípulos: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu
nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Dessa forma, podemos dizer que a IGMR
considera a assembleia cultual a partir de sua sacramentalidade, isto é, daquilo que ela

170
sinaliza e realiza no âmbito do projeto salvífico de Deus em relação a todos os homens
(BOSELLI, 2014, p.98-116).
Essa assembleia é o autêntico sujeito da ação litúrgica (PALUDO, 2003, p.67-75;
AUGÉ, 1998, p.73-4), uma realidade diferenciada e enriquecida por múltiplos dons e
carismas que o Espírito Santo lhe confere. Nela, cada batizado, membro do corpo de
Cristo, é chamado a vivenciar o tríplice múnus que o sacramento do batismo lhe
confiou: profético, sacerdotal e régio. Na mesma dinâmica de um organismo estruturado
e sob o prisma de um povo hierarquicamente ordenado, a celebração eucarística conta
necessariamente com o exercício do sacerdócio ministerial e do sacerdócio comum dos
fiéis. Dessa forma, o culto eucarístico é uma ação de toda a Igreja, onde cada um deve
fazer somente aquilo que lhe compete, de acordo com o dom que recebeu de Deus,
colocado a serviço da edificação da assembleia. “Este é o povo adquirido pelo sangue
de Cristo, reunido pelo Senhor, alimentado por sua Palavra; povo chamado para elevar a
Deus as preces de toda a família humana, e dar graças em Cristo pelo mistério da
salvação, oferecendo o seu sacrifício; povo, enfim, que cresce na unidade pela
comunhão do Corpo e Sangue de Cristo” (IGMR 5).
Como sujeito da ação celebrativa, toda assembleia é insistentemente chamada a
tomar parte no mistério celebrado, a dele participar. Nesse ponto, a IGMR ecoa
perfeitamente o apelo lançado pela Constituição Sacrosanctum Concilium, a qual, por
sua vez, outra coisa não faz senão levar a termo o grito levantado pelo Movimento
Litúrgico dos inícios do século passado. De lá até hoje, não se pode mais pensar em
celebração litúrgica senão a partir de categorias mais participativas, que se alinham
perfeitamente às fontes do culto cristão e ao pensamento da tradição dos Padres da
Igreja (SANTO DOMINGO, 1993, n.9; BOTTE, 1978).
Convém ressaltar que a profunda e ampla reforma dos ritos e textos litúrgicos,
proposta pelo Concílio Vaticano II e pela reforma pós-conciliar, sempre teve em mira
melhorar a qualidade da participação dos fiéis. Já não faz parte do pensamento litúrgico
contemporâneo uma mera reforma rubrical ou casuística. Compete aos bispos, de forma
particular, orientar os fiéis nessa perspectiva. Eles devem cuidar para que, “na ação
litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita celebração, mas que os fiéis
participem dela consciente, ativa e frutuosamente” (SC n.11). E matizando ainda a
realidade da participação como algo que brota do nosso chamado batismal, vale a pena
ainda ouvir o Concílio: “É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem
àquela plena, consciente e ativa participação na celebração litúrgica que a própria
natureza da liturgia exige e à qual o povo cristão, ‘raça escolhida, sacerdócio real, nação
santa, povo adquirido’ (1Pd 2,9; cfr. 2,4-5), tem direito por força do batismo” (SC n.14).
Os nove capítulos que tecem a IGMR, direta ou indiretamente, se polarizam em
torno da assembleia reunida para a celebração eucarística e da participação exigida por
esse culto. Os vários elementos da Instrução procuram estar a serviço dessas realidades
a fim de que delas venha à tona o manancial que carregam em potência. O nosso
documento tem uma grande preocupação em estabelecer um relacionamento “rito-
assembleia” e “rito-participação”. Por essa razão, ele procura esclarecer e precisar as
funções que cada ministro, cada membro da assembleia, é chamado a desempenhar
durante a celebração – uma verdadeira orquestra que conta com a dedicação e
participação de cada músico, cuja meta é a experiência da beleza e da harmonia, uma
unidade gerada a partir de uma fecunda diversidade. À luz da IGMR, a própria
disposição do espaço e suas condições da celebração – dignidade do local, arte litúrgica,
altar, cátedra, ambão, som, luz etc. Devem ser finalizadas à plena e ativa participação
dos fiéis. “Aquilo que aqui se ressalta – uma clara sensação de harmonia do conjunto –

171
não é a correta funcionalidade do rito, mas a sua finalização à assembleia, à Igreja
reunida, que ali realiza o seu mistério, chamada a entrar no dinamismo da páscoa de seu
Senhor” (FALSINI, 1996, p.9).
Sagrada Escritura
A IGMR dá absoluta primazia à proclamação das leituras bíblicas na celebração
da eucaristia: “A parte principal da liturgia da palavra é constituída pelas leituras da
Sagrada Escritura” (n.55). Proclamar os textos da Bíblia na assembleia dos fiéis – o que
se costuma chamar de “Liturgia da Palavra” – é uma das principais missões da Igreja
(ekklesía, isto é, convocação do povo da Aliança para acolher e responder a Palavra do
Senhor), conforme tão bem nos fala o Concílio Vaticano II: “Efetivamente, na liturgia
Deus fala ao seu povo, e Cristo continua a anunciar o Evangelho. Por seu lado, o povo
responde a Deus com o canto e a oração” (SC n.33). Continua a Instrução lembrando
que, durante a proclamação da santa Escritura, “Deus fala ao seu povo, revela o mistério
da redenção e salvação, e oferece alimento espiritual; e o próprio Cristo, por sua
Palavra, se acha presente no meio dos fiéis”.
Resgatar a importância da Palavra de Deus no âmbito da assembleia e a sua índole
proclamativa foi uma das principais intenções do Concílio Vaticano II e da reforma li-
túrgica encabeçada pelo papa Paulo VI, levada adiante graças à empenhada atividade de
seus colaboradores. Certamente, essa reforma outra coisa não pretendeu senão voltar às
origens mais genuínas da celebração cristã no que diz respeito à primazia que tinham os
textos sagrados nas assembleias primitivas e nas comunidades que floresceram a partir
das instruções dos Padres da Igreja; deles, a esse respeito, poderíamos citar vários
testemunhos.
A IGMR declara que é “melhor conservar a disposição das leituras bíblicas pela
qual se manifesta a unidade dos dois testamentos e da história da salvação” (n.57). Que
precioso resgate este realizado pela reforma litúrgica, sobretudo quando se conhece a
práxis que vigorava na celebração da Missa até o Concilio Vaticano: a ausência da
proclamação dos textos veterotestamentários. Toma-se agora uma clara consciência da
“unidade dos dois testamentos”, que formam uma única economia da salvação. Segundo
a dinâmica do projeto de Deus, não se pode conceber a plenitude da revelação ocorrida
em Cristo sem a comunicação que Deus faz de si mesmo, de diversos modos, na
primeira aliança (cf. Hb 1,1).
A Sagrada Escritura, proclamada na Liturgia da Palavra, evoca e torna atual toda a
economia da salvação que, em Cristo, teve o seu pleno cumprimento. Sugestivo a esse
respeito é o episódio dos discípulos de Emaús. Na tarde da Páscoa, o ressuscitado se
coloca entre dois de seus discípulos que se encontravam desolados e incapazes de
reconhecer o Senhor. Em determinada altura do percurso, Lucas diz que Jesus retoma a
revelação veterotestamentária e dela se faz um hermeneuta qualificado: “E, começando
por Moisés e por todos os profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele
dizia respeito” (Lc 24,27). Dado importante a se notar é o fato de a economia da
primeira aliança, toda ela, encontrar no Cristo pascal o seu cumprimento, o que fica
também bastante marcado no seguimento da perícope: “Era preciso que se cumprisse
tudo o está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (v.44).
A proclamação da Palavra na liturgia nos torna “contemporâneos” do mistério de
Cristo e nos coloca em comunhão com a sua presença. Celebrando o memorial da
promessa feita a Abraão e levada a cabo na “plenitude dos tempos” (Gl 4,4), a Palavra
anunciada na liturgia torna-se epifania da presença definitiva do Emanuel, o “Deus

172
conosco” (cf. Mt 1,23; Is 7,14). Ele mesmo é o euangélion perenemente proclamado e
tornado atual, evento de salvação para todos os que o acolhem na fé.
A IGMR ressalta, com toda a propriedade, que a proclamação da Palavra na
celebração eucarística se prolonga na homilia, parte integrante da Liturgia da Palavra:
“A homilia é uma parte da liturgia e vivamente recomendada, sendo indispensável para
nutrir a vida cristã” (n.65). Via de regra, essa função compete àquele que preside a
assembleia, podendo também ser delegada a outro concelebrante ou a um diácono (cf.
n.66). Aquilo que a Instrução propõe acerca da homilia é uma concreta aplicação
pastoral do que fora preconizado pelo Concílio Vaticano II: “Recomenda-se vivamente
a homilia, como parte própria da liturgia; nela, no decurso do ano litúrgico, são
apresentados, a partir do texto sagrado, os mistérios da fé e as normas da vida cristã.
Nas missas dominicais, porém, e nas festas de preceito, concorridas pelo povo, não se
omita a homilia, a não ser por grave motivo” (SC n.52).
“Na celebração litúrgica é máxima a importância da Palavra de Deus”, recorda-
nos veementemente o Vaticano II (SC n.24). Resgatar a importância da Palavra de Deus
no âmbito da assembleia reunida e a sua índole proclamativa foi uma das principais
intenções do Concílio e da reforma litúrgica pós-conciliar. De modo que isso se verifica
na proposta que chega do Ordo Lectionum Missae, que afirma que “a Palavra de Deus e
o mistério eucarístico foram honrados pela Igreja com a mesma veneração, embora com
diferente culto” (OLM n.10). E ainda: “A Palavra de Deus, proposta continuamente na
liturgia, é sempre viva e eficaz pelo poder do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo
do Pai, que nunca deixa de ser eficaz entre os homens” (OLM n.4).
[A liturgia] constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no
momento presente da nossa vida; fala hoje ao seu povo, que escuta e responde. Cada
ação litúrgica está, por natureza, impregnada da Sagrada Escritura. (BENTO XVI, 2010,
n.52)
 O desejo de escutar e responder a Deus, por meio de sua Palavra, sem dúvida
alguma, tem sido uma gratificante experiência eclesial na vida de nossas comunidades,
no Brasil e na América Latina em geral (PALUDO & D’ANNIBALE, 2005, p.143-91).
São inúmeros os testemunhos dessa realidade. Podemos afirmar que a forte aspiração do
Concílio Vaticano II – que, com largueza, os “tesouros da Bíblia” sejam abertos a todo
o Povo de Deus”– tem se realizado entre nós, ainda que, certamente, tenhamos um
caminho a percorrer nessa direção.
Concluamos este item com uma exortação conciliar, endereçada aos sacerdotes,
catequistas, enfim, a todos batizados. Ela se encontra na Dei Verbum, já denominada
como “um dos mais preciosos documentos do Concílio Vaticano II” e ainda a “pérola”,
a “obra-prima” do Concílio:
Mantenham contato íntimo com as Escrituras (…) Lembrem-se, porém, de que a leitura
da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o colóquio
entre Deus e o homem, pois com ele falamos quando rezamos, e a ele ouvimos, quando
lemos os divinos oráculos (S. Ambrósio). (CONCÍLIO VATICANO II, 2010, n.25).
Conclusão
O livro princeps da reforma do Concílio Vaticano II é, indubitavelmente, o novo
Missal Romano. Síntese da espiritualidade litúrgica. Em total respeito à tradição, ele se
apresenta também, sob muitos aspectos, como algo verdadeiramente novo, que somente
pode ser avaliado através de um profundo conhecimento (MARSILI, 1971, p.443). Por
essa razão a Igreja é convidada a debruçar-se sobre ele e a investigar, sem trégua e com
afetuoso carinho, sua estrutura, composição, riqueza e potencialidade. Ele reclama por
173
ser conhecido na variedade de seus formulários e na ampla margem de possibilidades
catequéticas e pastorais. Valorizá-lo e aproximar-se dele com esse espírito de
investigação, certo, não é uma obra fácil; mas é necessário que assim o seja para que
dele se possa fazer um uso profícuo e surpreendente em descobertas. “A multiplicidade
dos textos e a flexibilidade das rubricas, com efeito, permitem uma celebração viva,
sugestiva, espiritualmente eficaz, uma vez que podem ser adaptadas às várias situações
e diversos contextos das assembleias, sem que haja necessidade de se recorrer a
artifícios e escolhas pessoais, muitas vezes arbitrárias, que certamente abaixariam o tom
da celebração” (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, 1971, p.541).
A IGMR coloca-se exatamente a serviço dessa investigação. “Considerada em seu
conjunto, a ela pode ser considerada como um dos melhores documentos da reforma
litúrgica. De seu conhecimento depende tanto uma correta e eficaz pastoral da
celebração, quanto um renovado estilo de celebração do máximo mistério da nossa fé”
(FALSINI, 1996, p.10). Como uma espécie de vademecum, com o qual podemos
cultivar familiaridade, a IGMR se presta não só a consultas esporádicas para sanar
eventuais dúvidas de rubricas, mas também se coloca diante de seu leitor como um
veículo que poderá conduzi-lo a profundas reflexões de eclesiologia, cristologia e
teologia eucarística; isso sem mencionar, naturalmente, seu escopo catequético e
pastoral.
Tentar pincelar alguns aspectos mais relevantes do Missal Romano foi à proposta
de nosso contributo. Optamos por fazer um recorte metodológico em nossa abordagem,
cientes de que o tema pode ser apresentado sob diversos ângulos. Privilegiamos alguns
aspectos teológicos e pastorais. A Institutio Generalis Missalis Romanum foi o
instrumental que nos possibilitou o vislumbre das potencialidades do Missal Romano. A
abordagem da Constituição Apostólica Missale Romanum e de um breve histórico e
gênese do Missal se alinharam à IGMR para o fim a que nos propusemos55

FENÔMENOS EXTRAORDINÁRIOS

Uma vez examinado o percurso ordinário da santificação cristã: através da liturgia


sacramental e as obras de “misericórdia espirituais e corporais” analisados na Sagrada
Escritura, Tradição e Magistério (através da vida dos Santos) passamos a considerar
dois fenômenos extraordinários que durante essa caminhada podem ocorrer os estigmas
e o êxtase. O fenômeno dos estigmas tal como ocorreu, por exemplo, em São Pio de
Pietralcina (muito conhecido no Brasil).

Estigmas: que são?


A palavra estigma vem da grego: stigma picada dolorosa. Originariamente
indicava a marca impressa no gado com ferro quente, em sinal de apropriação por parte
do boiadeiro Passou a designar, em linguagem crista, as chagas infligidas ao corpo de
Nosso Senhor Jesus Cristo por ocasião de sua Paixão. E por último, significa as tendas
que pessoas piedosas trazem em sua carne reproduzindo as chagas de Jesus.
Não há noticia de pessoas estigmatizadas antes do século XIII. O primeiro caso
registrado e o de São Francisco de Assis, que aos 14/09/1224, recebeu em seu corpo os
sinais da Paixão de Jesus. Apos esse Santo, vários outros casos ocorreram na historia da
Igreja ate nossos dias Também se observa que os cristãos protestantes apresentam
pouquíssimos casos de estigmas, ao passo que os ortodoxos orientais não os conhecem
55
Luís Fernando Ribeiro Santana, PUC-Rio, Original português.

174
em absoluto. A razão disto é que o fenômeno dos estigmas esta associado a
contemplação da Paixão dolorosa de Cristo devoção esta que tomou grande incremento
no Ocidente a partir do século XIII por causa dos relatos dos cruzados e outros
peregrinos que, voltando da Terra Santa, narravam minúcias da Paixão do Senhor como
as haviam observado nos lugares sagrados. Os estigmas vêm a ser um entendimento que
a Psicologia, a Medicina e a Teologia têm estudando intensamente, a fim de lhe dar uma
explicação satisfatória, ou seja, sem cedera um falso misticismo como também som cair
no naturalismo racionalista. Na verdade, ha vários casos de pessoas estigmatizadas, que
não podem ser elucidados todos da mesma maneira.

Como explicar?
Procurando sintetizar o que a pesquisa transmite aos estudiosos, pode-se dizer o
seguinte:
Inegável influencia do psiquismo sobre o corpo humano. O medo faz empalidecer,
dilata as pupilas provoca suor frio, gagueja. A vergonha faz enrubescer. Em certos casos
ditos crepusculares (como os da consciência adormecida, hipnose...) as imagens se
tornam mais vivas e efetuam um processo psicoplástico: eczemas, dermografia (sinais
ou letras na pele), acne (erupção pustulenta resultante de inflamação), paralisia de certas
funções do organismo.
Alguns pesquisadores admitem que uma ideia muito viva e estimada possa chegar
a produzir sinais corporais. Assim a sugestão incutida a uma pessoa muito sensível pode
redundar em marcas no corpo dessa pessoa correspondentes ao objeto sugerido. Na base
destas verificações. Pode se afirmar que a contemplação da Paixão do Senhor em grau
muito intenso pode produzir lesões na pele do(a) contemplante, lesões semelhantes
aquelas que se encontram no objeto contemplado. Em tal caso, os estigmas são a
expressão do grau de elevação do sentimento religioso da pessoa, e evidenciar a quo
ponto pode chegar à força psíquica do individuo. É esta a explicação que se dá a casos
de pessoas muito santas que apresentam estigmas São Francisco de Assis. S Catarina de
Sena, S Gema Galgani, Frei Pio de Pietrelcina A santidade de vida desses, pois exclui
qualquer processo fraudulento, qualquer tendência a fazer teatralidade ou tragédia,
provocar compaixão. O Senhor Deus concede a tais pessoas a graça de participarem
corporalmente da Paixão de Cristo, atendendo assim a um anseio das mesmas, desejosas
de se configurar ao Senhor Jesus nessas pessoas a graça de Deus serve se da índole
particularmente sensível de sua personalidade para provocar os sinais da Paz de Cristo
Todavia nem todos os casos de estigmas podem ser diagnosticados com segurança
clareza.
Há casos em que os estigmas aparecem juntamente com vários sintomas doentios
e que parecem ter causa na configuração mórbida da pesca estigmatizada e não na graça
de Deus. De modo especial salienta-se a histeria: a pessoa histérica assume
frequentemente comportamentos e estilo de vida teatrais, exibicionistas, procurando
chamar a atenção dos outros, impressionando-os ou cativando a sua simpatia ou a sua
compaixão: dai a facilidade com que tais pessoas podem querer parecer-se com Jesus
Cristo Crucificado por mitomania ou por um desejo doentio. Em alguns casos o anseio
psicológico da dramatização ou de impressionar os outros pode ter produzido a
configuração corpórea correspondente, sem que só possa dizer que tais pessoas tenham
sido especialmente enriquecidas pela graça de Deus. Não é necessário que essa
dramatização histérica seja efeito consciente e premeditado da parte da pessoa
estigmatizada; o inconsciente pode levá-la a apresentar a configuração estigmatizada, de
modo que no se pode dizer que todos os histéricos são mentirosos e hipócritas.

175
Estes dados complexos relacionados com a Psicologia e Fisiologia tornam
polivalente o fenômeno dos estigmas. Cada caso ha de ser considerado de per si. Haverá
mesmo casos em que não se poderá definir com clareza a índole do fenômeno: sena
realmente uma graça de Deus ou resultaria unicamente da natureza mórbida da pessoa
em foco? É de crer que não raro os dois fatores só conjugam entre si.
Em todo caso, porém será sempre de grande valia a análise do contexto em que
ocorrem os estigmas como também a consideração do teor de vida ou do
comportamento gora da pessoa estigmatizada Se o exercício das virtudes (amar a Deus e
ao próximo, espírito de penitência prática da oração) é notório, pode-se crer que os
estigmas são resposta do Senhor Deus a piedade do(a) seu servo(a). Ainda se deve notar
que nem todas as chagas que aparecem no corpo humano podem ser tidas como
estigmas. Geralmente os estigmas aparecem e desaparecem instantemente (podem
aparecer, por exemplo, na noite de quinta para sexta feira e desaparecer na noite
seguinte, devendo o fenômeno reaparecer na semana seguinte). Além disto, os estigmas
não são acompanhados de supuração, são persistentes apesar de todos os trata mentos e
cuidados médicos que se lhe dispersem.
Pergunta se agora Qual o significado religioso dos estigmas?
Antes do mais, e de notar o seguinte na medida em que são autênticos fenômenos
sobrenaturais (questão que deve ser cuidadosamente investigada), os estigmas não são
essenciais a uma vida santa; a prática das virtudes, mesmo em grau heróico, não leva
necessariamente a produção de estigmas.
Quando ocorrem genuínos dons de Deus, revestem se de duplo significado:
1) Participação física da Paixão de Cristo, correspondente a um anseio da pessoa
piedosa O Senhor concede a fieis que se devoram a reconhecer seu Amor Crucificado,
graça de trazer em seu corpo os vestígios da Paixão de Cristo.
2) Essa participação da Paixão do Senhor tem eleito de santificação não só em
favor da pessoa estigmatizada, mas também em favor do próximo segundo diz São
Paulo: “Completo em minha carne o que falta à paixão de Cristo em favor do seu
Corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24). Na verdade, ninguém pode acrescentar algum valor a
Paixão de Cristo infinitamente montaria, mas todo cristão pode dar a essa Paixão a
moldura própria da sua personalidade, pode estendê-la ao sou respectivo aqui e agora
em favor dos irmãos ou numa atitude corredentora. Na Comunhão dos Santos cada qual
pode ser útil aos irmãos na medida em que se configura a Cristo Redentor

Casos tidos como autênticos


São Francisco de Assis 1181-1226
Aos 14 de setembro de 1224, festa da Exaltação da Santa Cruz, enquanto rezava
no eremitério do Monte Alverne, Francisco teve a visão de um Serafim, sobre o qual
brilhava o Crucificado. Quando a imagem desapareceu. Francisco sentiu “o coração
arder de amor, enquanto na sua came estavam impressos. Os sinais da Paixão do
Senhor, apareceram nas suas mãos e nos seus pés as marcas dos cravos: além disto,
trazia no costado uma fenda como se tivesse sido atingido por uma criança; a túnica e o
calção do santo se achavam manchados de sangue”. É Tomás de Celano, o biógrafo
mais famoso de Francisco, quem o narra (Vita I Parte II, Cap. II, p. 03). S. Boaventura
(1 1274) oferece relato semelhante em Legenda Maior, cap. XIII, p. 2. Testemunhas
oculares confirmam o fato, pois o puderam observar no cadáver do Santo.
Imediatamente apos o falecimento de Francisco. Frei Elias escreveu ao Provincial
da França com grande alegria: “Anuncio-vos uma grande alegria, ou mesmo um novo
milagre. Desde a origem do mundo, nunca se ouviu contar tão maravilhosa coisa, a não
ser do Filho de Deus que é Cristo nosso Deus. Com efeito, muito antes da sua morte, o

176
nosso Pai e irmão apareceu crucificado, trazendo em seu corpo às cinco chagas, que são
realmente os estigmas do Cristo: as suas mãos e os seus pés tinham, por assim dizer
furos devidos a pregos cravados na carne...ao passo que o seu costado parecia ter sido
golpeado por uma lança, deixando as marcas de sangue.” (S. Boaventura Legenda
Maior Lectio tertia).
A notícia dos estigmas de S. Francisco é tão documentada por testemunhas
próximas ao fato que os críticos julgam não os poderem dúvida. É sim, possível discutir
a configuração desses estigmas, pois os relatos nem sempre concordam entre si. É
razoável, pois acreditar que Francisco, ao contemplar assiduamente a Paixão do Senhor,
foi agraciado com as chagas decorrentes dessa Santa Paixão.

Santa Catarina de Sena (1347-1380)

Parece que não teve estigmas visíveis, mas chagas internas.


A biografia de Catarina foi escrita por testemunhas fidedignas, como, por
exemplo, o Bem-aventurado Raimundo de Cápua confessor da Santa e, posteriormente
Mestre Geral da ordem Dominicana verdade e que a admiração de Raimundo por
Catarina levou a biógrafo a certos exageros mas julga-se que o substância, o que ele
refere é fidedigno. Desde criança, Catarina foi muito atraída por Jesus, retirava-se numa
gruta para rezar a sós durante horas. Fez-se irmã da Ordem Terceira de S. Domingos, e
teve visões e êxtases que repercutiam sobre o seu corpo, o qual se enrijeceu e até
levitava.
Recebeu estigmas, ou seja, as dores dos estigmas Eis como o Bem-aventurado
Raimundo de Cápua o descrave na qualidade de testemunha ocular Catarina estava na
capela de S. Sixtina em Pisa. Recebeu a S. Comunhão e, como relatam as pessoas
presentes na capela, ela estendeu os braços e as mãos, ficou radiante de luz e caiu por
terra, como se tivesse sido mortalmente ferida. Pouco depois recuperou os sentidos.
Então, conta o Bem-aventurado Raimundo, ela chamou seu confessor, e em voz
baixa lhe disse: “Saiba, ó Pai, que pela misericórdia de Deus, trago no meu corpo os
estigmas de Jesus. Vi o Senhor pregado à Cruz: das cicatrizes de suas sacratíssimas
chagas desceram cinco filetes de sangue, dirigidos respectivamente às mãos, aos pés e
ao coração”. Ciente do mistério, exclamei logo: “Ah, Senhor meu Deus, eu te peço que
não apareçam essas cicatrizes na superfície do meu corpo Enquanto eu o dia, antes que
os filetes chegassem a mim a sua cor de sangue se transformou em cor refulgente, e,
soba forma de luz pura, chegavam aos cinco pontos do meu corpo, isto é, às mãos, aos
pés e ao coração”.
Perguntou-lhe então o Bem-aventurado Raimundo: “Nenhum filete chegou ao
lado direito?”. Respondeu ela: “Não, mas sim ao lado esquerdo, acima do meu coração
– aquela luz que saia do lado direito de Jesus, feriu-me diretamente”. Continuou o Bem-
aventurado Raimundo: “"Sentes dor nesses cinco pontos?". Ela, após profundo suspiro,
respondeu: "É tal a dor que sinto nesses cinco pontos, especialmente no coração, que, se
o Senhor não fizer outro milagre, não me parece possível que eu possa subsistir,
escapando da morte dentro de poucos dias
Após a morte de Catarina, o Pe. Prior do Convento da Minerva escreveu ao Bem-
aventurado Raimundo para dizer-lhe que ele e moitas outras testemunhas tinham visto
as chagas no corpo da Santa por ocasião das suas exéquias. Além disto, no pé de
Catarina que se conserva em Veneza, se observa marca das chagas: o mesmo se dá na
mão da Santa que é guardada no Convento de S. Sixto em Roma.

Santa Verônica Giuliani 1660-1727

177
Era capuchinha. Foi canonizada por Gregório XI. Desde criança, desejou imitar os
mártires, que haviam sofrido por amor de Jesus.
Recebeu os estigmas aos 5 de abril de 1697, no decorrer de longo êxtase. Essas
chagas foram observadas pelo Bispo Mons. Eustachi, de Città di Castello, com quatro
outras testemunhas e, mais tarde, por diversas Irmãs Capuchinhas. O Pe. Tassinari, que
acompanhou o Sr. Bispo, descreve:
“Mons. Eustachi observou, e fez observar a todos nós, as chagas das mãos de Irmã
Verónica, na parte superior destas, havia uma ferida grande como o calibre de um prego
de tamanho médio ou do diâmetro de um pequeno quattrino florentino: em cima de cada
chaga havia uma tênue crosta... Quanto à chaga do costado, à esquerda, seria uma ferida
do tamanho do dedo mindinho, larga no meio e pontiaguda nas duas extremidades”
(Sumário do Processo de Canonização, p. 212).

Santa Gema Galgani 1878-1903


Desde menina, foi muito virtuosa; sofreu vicissitudes de família. Experimentou
distúrbios psiconeuróticos, quando um jovem se enamorou dela, e quis pedí-la em
noivado. As tias com quem ela morava, consideravam essa perspectiva com bons olhos,
porque o rapaz era sério. Gema, porém, se recusava, sem saber como evitaria o passo,
pedia a Deus que a ajudasse. Adoeceu gravemente, ficando desenganada. Mas foi
curada imprevistamente após muitas orações.
Numa visão apareceu-lhe Jesus Crucificado. Sentiu profundas dores. Diz ela: “As
chagas de Jesus ficaram gravadas na minha mente de maneira tão viva que jamais se
apagaram”.
Após a S. Comunhão, certo dia, recebeu promessa de um grande presente. Avisou
o confessor. O presente consistia nos estigmas, que se formaram nela enquanto
contemplava Jesus com as chagas abertas: destas procediam a raios de fogo, que
atingiam os pontos correspondentes do corpo de Gema. Esses estigmas se abriam todas
as semanas às 20 horas de quinta-feira e permaneciam abertos até às 15 horas de sexta-
feira, derramando sangue. Uma vez terminado o fluxo de sangue, as chagas começavam
a se enxugar e fechar. No dia seguinte ou, ao mais tardar, no domingo, tudo estava
fechado e, no lugar dos estigmas, se observava uma mancha branca.

Frei São Pio de Pietrelcina 1887-1968


Foi capuchinho. Durante cinquenta anos, trouxe os estigmas; alguns
desapareceram pouco antes da sua morte; outros, logo depois do seu falecimento. O
caso foi estudado meticulosamente, pois é relativamente recente e sujeito a exames mais
rigorosos do que os casos anteriormente registrados.
Frei Pio era de saúde fraca, mas homem de grande bondade e virtude; a todos
inspirava simpatia e confiança; às vezes passava quinze ou dezesseis horas por dia
confessando e atendendo ao povo.
O primeiro especialista que examinou os estigmas de Frei Pio, foi o Prof.
Bignami. Deu ordem para que se enfaixar as feridas na presença de duas testemunhas e
se lacrasse a bandagem. Durante oito dias sucessivos, todas as manhãs eram trocadas as
faixas. No oitavo dia, foram retiradas definitivamente as ataduras; o Pe. Pio celebrou
então a S. Missa, verificando-se que de suas mãos jorrava tanto sangue que as
testemunhas foram obrigadas oferecer-lhe lenços para que as enxugasse. Aliás, dia por
dia, as chagas, ao serem descobertas, emitiam sangue.
O Dr. Andrea Cardone, médico da família de Frei Pio desde 1910, afirma que
encontrou em ambas as mãos do padre perfurações do diâmetro de 1,5cm; atravessavam
a palma da mão tão profundamente que esta se tornava transparente para a luz.

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Muitos médicos examinaram as chagas de Frei Pio, sem poder averiguar algum
indicio de embuste, hipocrisia ou mentira. É o que leva a crer que se trata de autêntico
fenômeno suscitado pela graça de Deus.

O Êxtase e o transe

O transe é fenômeno assaz comum nas sessões espiritas e umbandistas. O êxtase


tem semelhança com o transe e ocorre na Igreja Católica. Dai a conveniência de se
caracterizar claramente um e outro fenômeno para se evitar o sincretismo religioso.
Começaremos por examinar:

O Transe

O transe é um estado psicofisiológico particular, semelhante ao sono, em que se


tem um total ou parcial apagamento do consciente e o aparecimento de manifestações
próprias do inconsciente. O eletroencefalograma, porém, continua tendo características
próprias do estado de vigília.

Distinguem-se transe mediúnico e transe hipnótico.


1) O transe mediúnico e induzido ou por auto-sugestão (o médium ou o Pai-de-
Santo julga receber um espírito que o domina) ou por estímulos rítmicos monótonos
(batuque, refrão de uma cantilena...), esgotamento físico, tensão emotiva, estado de
expectativa.
Com outras palavras: a auto-sugestão é aquela sugestão que o individuo realiza
sobre si mesmo. A pessoa crê em algo que não existe ou cré num objeto real ou num
acontecimento real, atribuindo-lhe, porém, particularidades irreais ou fictícias. Essa
crença não decorre de raciocínio, carece de senso critico; é frequentemente
acompanhada de dissociação da consciência, de modo que o individuo privado de sua
lucidez habitual, exerce funções instintivas, automáticas,... que não exerceria em caso
de lucidez.
A auto-sugestão ocorre com frequência entre povos primitivos ou em crianças, em
pes soas mentalmente retardadas como também pode acontecer em pessoas normais e
sadias como consequência de cansaço, fortes emoções, depressão nervosa, distrações...
O transe derivado de auto-sugestão geralmente supõe concentração ou preparação
psicológica mais ou menos longa. Às vezes depende de predisposição hereditária.
2) O transe hipnótico é geralmente devido à sugestão induzida por um
hipnotizador. Tanto o transe mediúnico como o hipnótico têm efeitos comuns:
- quem volta do transe para a normalidade, não se recorda do que disse ou fez
durante o transe; não se lembra do que “o espírito Lhe inspirou ou disse”.
- o corpo em transe torna-se insensível;
- registra-se, durante o transe, aumento das pulsações (entre 70 e 120 às vezes),
diminuição do ritmo respiratório (pode chegar a 12 por minuto), esfriamento das mãos e
dos pés;
- ao despertar do transe, a pessoa pode sentir náuseas e vertigem. Experimenta
cansaço.

Que é o êxtase?

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A palavra êxtase vem do grego ex-stasis= estar fora de si.
Significa, na linguagem teológica católica, o arrebatamento do cinto frente a algo
de extraordinário, que lhe absorve a atenção. E a experiência de estar em contato
espiritual com um ser transcendente ou com o próprio Deus.
O Êxtase místico é caracterizado por imobilidade quase absoluta, pela perda total
da sensibilidade, pela diminuição das funções vegetativas (respiração, circulação), por
uma expressão de profunda felicidade (fisionomia estática), por um sentimento de bem-
estar ou, raramente, por sentimento de dor. O êxtase pode ser acompanhado de
arrebatamento ou levitação. Não acarreta perda de memória.
Em poucas palavras, o êxtase místico consiste na intensificação de uma
determinada função, com atenuação de outras funções: o amor a Deus se torna tão
intenso que o espírito lhe aplica todo ou quase todo o seu dinamismo e se retrai de
outras funções. A consciência se encontra num estado de superconcentração, pois a
verdade se toma mais luminosa e o bem mais atraente do que de costume. Tal estado de
alma impele a pessoa ao exercício da caridade da bondade.
O Papa Bento XIV 1740-1758 se dedicou especialmente ao estudo dos fenômenos
miss cos ou resultantes de mais intimo contato com Deus. Deixou a famosa obra De
Servorum Dei Beatificatione (Sobre a Beatificação dos Servos de Deus), na qual
estipula os seguintes sinais para que se possa ter o êxtase como genuíno fenômeno
místico:
a) não preceda nenhuma enfermidade nem alguma outra causa meramente possa ter
produzido;
b) não se reproduza com periodicidade fixa;
c) não ofusque nem obscureça o intelecto;
d) não provoque o esquecimento de coisas passadas e, em particular, das coisas distas e
ouvidas durante o êxtase. O esquecimento, no caso, é tido como prova de êxtase não
autêntico.
Na verdade, pode haver um êxtase doentio, derivado de distúrbios afetivos
conflitos íntimos, frustrações, abuso do álcool, emprego de drogas, epilepsia. E
acompanhado de alucinações, delírios, fantasia (= sonho de olhos abertos). Em certos
casos, principalmente quando se trata de pessoas religiosas, mas psicopatas, torna-se
difícil distinguir o êxtase autêntico do doentio. O Dr. Janet descreve o seguinte
fenômeno ocorrido com a Sra. Madeleine:
Madeleine colocava as mãos juntas sobre o peito ou abria os braços como se
estivesse crucificada ou se deixava ficar tranquilamente como que adormecida O
importante é que ela não reagia aos estímulos corriqueiros, não obedecia, não respondia
e não se acordava quando provocada não somente estava enfraquecida em sua
capacidade de replicar, mas a perdera por completo Apenas uma exceção se registrava,
a saber: quando o médico lhe dava ordens, todas as funções psicológicas internas se
avivavam e desenvolviam bem; depois que acordava ou mesmo quando se atenua o
êxtase, Madeleine ficava recolhida. Ela podia narrar ou escrever tudo o que havia
pensado e as alegrias que experimentara como também o que acontecera em torno dela.
Certa vez o médico tocou-lhe um dos dedos, quando em êxtase, pôs-lhe um objeto na
mão, disse-lhe dois números e pediu-lhe que os somasse, murmurou-lhe no ouvido uma
silaba sem significado. Quase sempre, ao despertar, ela contava ao Dr. Janet o que ele
havia dito.

180
Tal caso não é de êxtase, mas de transe hipnótico, embora com aparências
religiosas, pois Madeleine obedecia automaticamente às ordens do médico, que fazia às
vezes de hipnotizador.
Não se pode excluir, porém que pessoas neuróticas, mas sinceramente piedosas,
tenham autênticos êxtases místicos. Para distinguir e caracterizar o êxtase no cano e
preciso levar em conta não somente a conduta geral do individuo extático, mas também
a principalmente, o objeto que absorve tal pessoa e apo em estado de concentração,
como também o comportamento da mesma após o êxtase.

Significado do êxtase

Pergunta e agora: Qual o valor o qual o significado do autentico êxtase místico?


O êxtase místico não e um fenômeno necessário nem mesmo nos elevados graus
de santidade. Extraordinário fica sendo sempre uma exceção Como quer que quando
Deus permite o êxtase, permite a exteriorização do profundo amor da criatura ao
Senhor; Este se revela mais nitidamente a pessoa fiel permitindo que ela se deixa
absorver de maneira mais radical pela contemplação da santidade e da perfeição divina
Como se compreende, não se trata da visão de Deus face a face (reservada para o céu),
mas de um olhar da mente mais penetrante sobre o Infinito de Deus. Quem é agraciado
com tai olhar, não consegue descrever com precisão o que viu durante o êxtase, pois a
linguagem humana e inadequada para relatar a experiência de Deus mais aprofundada.
Alguns Santos gozaram de tal privilégio contemplativo (assim São Paulo, S. Agostinho.
Santa Catarina de Sena, a Bem-aventurada Angela de Foligno) , referiram-se a tal graça,
alumiando que não lhes era possível espero que haviam experimentado naquele
momentos de transcendência do humano para usufruir. Mais de perto, da presença de
Deus.
São Paulo, por exemplo, afirma que foi levado misticamente até o “terceiro céu”
(2Cor 122 4) e se refere aos traços característicos desse enlevo aparente separação do
corpo e alma arrebatamento ao paraíso palavras inadiáveis ou “irrepetíveis” mas foi bem
que só na outra vida será dado ao homem gozar daquilo que os olhos jamais viram e os
ouvidos jamais ouviram (1Cor 2,9)

S. Agostinho (430), por sua vez, relata êxtase de Óstia que lhe foi dado
experimentar juntamente com sua mãe Santa Mônica pouco antes que esta falecesse O
texto um tanto longo, mas altamente significativo:
Pouco antes de morrer não sabíamos então que sua morte fosse iminente -
encontrávamo-nos os dois a sós, apoiados numa janela que dava para um jardim interior
da casa ande moramos Era em Óstia. Agora que penso nisso, vejo nosso encontro à mão
de Deus. Ali estávamos, longe das pessoas, ela e eu, depois de uma viagem longa e
fatigante, repondo ás forças para iniciar a travessia para a África.
Começamos a conversar tranquilamente esquecendo-nos das coisas passadas e
pensador somente no porvir. Perguntamo-nos como seria a vida eterna dos santos, da
qual o Apóstolo diz que nem olho algum viu, nem ouvido algum ouviu, nem passou
pelo coração do homem o que será. Voltamos o nosso coração para a imensa catarata da
fonte de vida que esta em Deus, para que, inundados pela sua agua. Pudéssemos
entender alguma coisa de uma realidade tão grande. Concluímos que o maior prazer dos
sentidos no pode nem merece ser comparado como que deve será felicidade eterna.
Cada vez mais entusiasmados, percorremos gradualmente todos os seres criados,
até ascendermos ao céu, donde o sol e a lua enviam os seus raios a terra. E ainda nos
elevamos mais: faltando das obras de Deus e admirando-as chegamos até as nossas

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próprias almas passamos além, e continuamos a subir, até chegarmos a essa região da
abundancia sem fim, onde Deus apascenta eternamente Israel com o pastor da sua
Verdade. Ali a vida é essa Sabedoria pela qual todas as coisas são, tanto as que foram
como as que serão, sem que ela própria se faça a si mesma, pois é como sempre foi e
sempre será; é até melhor dizer que ela não foi nem será, mas somente é, porque é
eterna, e foi e será não são eternos.
Enquanto assim falamos e suspirávamos pela Sabedoria, quase chegamos a
alcança-la num ímpeto do nosso coração. Mas logo depois, melancolicamente,
deixamos esses dons do Espírito e voltamos ao vão ruído das palavras de cada dia -
palavras que começam e que terminam, e que em nada se assemelham à Palavra de
Deus, Senhor nosso, que é em si mesmo, que nunca envelhece, antes rejuvenesce todas
as coisas. Dizíamos: suponhamos que haja alguém em quem emudeça o desejo da carne,
bem como as muitas fantasias e imagens da terra, da água e do ar, em quem se calem os
céus, e a própria alma silencie e suba para além de si mesma, esquecida de si: em quem
emudeçam os sonhos e as invenções da imaginação, em quem, por ultimo, se calem
completamente todas as vozes, todos os gestos, tudo o que, para suceder, precisa do
tempo - pois todas essas coisas dizem a quem as escuta: “Não nos fizemos a nós
mesmas, fez-nos Aquele que permanece eternamente”.
Se, depois de tudo isto, todas as coisas se calassem e escutassem Aquele que as
fez, e só Ele falasse - não através delas, mas diretamente, de modo que a sua palavra
fosse pronunciada, não através de vozes humanas, nem de anjos, nem de tronos, nem de
enigmas que é preciso interpretar, mas por Ele próprio... Se, como agora,
espiritualmente elevados e com o pensamento posto na Sabedoria eterna, esta
contemplação perdurasse, e cessassem todas as visões que não se referissem a Deus, e
somente a dEle nos atraísse, absorvesse e abismasse na alegria mais intima, de maneira
que a vida fosse sempre como esse momento de visão total pelo qual suspiramos: não
seria isto aquele entra no gozo do teu Senhor?
Falamos de tudo isso, embora não com estas palavras nem do mesmo modo. E, à
medida que falávamos, todas as coisas deste mundo nos pareciam sem importância. E
minha mãe disse-me então:
“Quanto a mim, meu filho, já não desejo coisa alguma desta vida. Não tenho nada
a fazer aqui, nem sei para que contínuo vivendo; já nada espero deste mundo. Havia
uma coisa pela qual desejava viver um pouco mais, e era ver-te cristão e católico antes
de morrer. Deus já me concedeu mais do que esperava, pois já te vejo afastado das
pobres satisfações mundanas e servindo a Deus. Que faço aqui ainda?” (Confissões I.
IX).
Observe-se ainda que, conforme os místicos, o êxtase sobrevém sem que o
indivíduo o espere e tente provocar. Pode ser de breve duração, como também pode
durar um pouco mais, como quer que seja, é sempre algo de passageiro. E o termo
consumado a que pode levar uma vida de ascese e purificação; o asceta é alguém que
escolhe deliberadamente um gênero de vida austera, apto a dominar e amortecer as
paixões desregradas mediante o exercício de vontade enérgica sustentada pela graça de
Deus.
Em suma, o êxtase é uma graça especial, que não caracteriza necessariamente a
santidade. O que define esta última é o ardente amor a Deus, que leva à contemplação e
a experiência do Senhor, sem que tal estado íntimo se traduza obrigatoriamente em
efeitos corporais.

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