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UM RETRATO DA IMPUNIDADE?
A política sistemática de desencarceramento dos últimos anos tem motivado todo o tipo de discurso e de prática legislativa
de modo a fundamentar a tese da ineficiência da pena privativa de liberdade e a explosão carcerária, sem que se explicite a
responsabilidade dos governos em não criar novas vagas ou fiscalizar realmente penas e medidas não detentivas. O objetivo
desse trabalho é demonstrar, através da análise jurimétrica dos bancos públicos de dados, que o argumento de que o país tem
uma das maiores populações carcerárias do mundo é meramente retórico e carece de suporte empírico.
Palavras-chave: Política criminal. Política penitenciária. Jurimetria. Taxas de subnotificação. Princípio da proporcionalidade.
ABSTRACT
The systematic policy of deprivation of the last years has motivated all kinds of discourse and legislative practice in order to
base the thesis of the ineffectiveness of the custodial sentence and the prison explosion, without explaining the responsibility
of the governments in not creating new vacancies or actually monitor non-custodial sentences and measures. The purpose of
this paper is to demonstrate, through the jurimetric analysis of public data banks, that the argument that the country has one
of the largest prison populations in the world is merely rhetorical and lacks empirical support.
Keywords: Criminal policy. Prison policy. Jurimetrics. Rates of underreporting. Principle of proportionality.
SUMÁRIO
1. Introdução: a construção retórica do discurso de desencarceramento. 2. Jurimetria em matéria penal. 3. Análise jurimétrica
das maiores taxas de encarceramento no mundo: quebrando tabus. 4. Déficit de vagas no sistema penitenciário. 5. Outra
vertente da proporcionalidade: a proteção deficiente e as taxas de subnotificação. 6. Conclusões. Anexos. Referências.
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Nélson Hungria (1955, p. 183-184) afirmara que “sempre que a política entra
pelas portas do templo da justiça, esta foge espavorida pela janela para livrar-se ao
céu”.
A política sistemática de desencarceramento dos últimos anos tem motivado
todo o tipo de discurso e de prática legislativa de modo a fundamentar a tese da ine-
ficiência da pena privativa de liberdade e a explosão carcerária, sem que se explicite
a responsabilidade dos governos em não criar novas vagas ou fiscalizar realmente
penas e medidas não detentivas. Em suma: sem qualquer compromisso efetivo com
a segurança coletiva, apresentam-se propostas e implantam-se providências que au-
mentam a sensação coletiva de insegurança e impunidade. Via de regra, atribui-se
a uma suposta superpopulação carcerária a razão do problema. Por outro lado, sem
qualquer pretensão real de reinserção social e gradual do condenado à livre convi-
vência em sociedade e sem a mínima preocupação com a diminuição das taxas de
reincidência, reiteram-se as assertivas ordinárias de sempre: “é preciso diminuir a
população carcerária, uma das maiores do mundo!”.
Para uma visão clara da questão ora proposta é, pois, preciso compreender
que a estreita vinculação entre o direito e a vida social exige do jurista o preciso conhe-
cimento dos vários fatores que constituem as causas da violação das normas penais
instituídas pelo Estado e que impõem como consequência a imposição de sanções.
Para tanto, torna-se premente a retomada da concepção de uma completa ci-
ência penal – dogmática, que contemple a criminologia, a execução penal e a política
criminal como instâncias que se comunicam e precisam ser estudadas em conjunto.
É, pois, preciso traçar as políticas legislativa e criminal estudando as causas
determinantes e circunstanciais de criminalidade, o perfil das vítimas e dos crimino-
sos, as taxas de subnotificação ou vitimização, a quantidade de crimes cometidos
no país, dentre outros temas, sob pena de se manter um inócuo hiato entre teoria e
realidade, entre discurso acadêmico e prática legislativa, entre uma política criminal
racional e a percepção de ineficiência do sistema de justiça.
Sob falsos fundamentos jurídicos acerca das possíveis e efetivas finalidades
do direito de punir, é recorrente o discurso retórico de que “a cadeia não corrige”
(como se a pena tivesse uma única finalidade e como se os tipos de criminalidades
fossem equivalentes), aliado ao fato de que o preso definitivo não vota (art. 15, III,
CF) e à circunstância de que sociedade não espera que sejam garantidas condições
dignas para cumprimento da pena (máxime porque carece de eficientes políticas pú-
blicas fora do cárcere). Com esses sofismas, cada vez mais se repete outro argumen-
to falacioso para deslegitimar a qualquer custo a pena privativa de liberdade: “temos
uma das maiores populações carcerárias do mundo”.
É certo que a onda de rigorismo penal da década de 80 e 90 do século pas-
sado que, culminou, dentre outros, na edição da Lei n. 8.072/90, responsável pela
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vertiginosa elevação da população carcerária por conta de crimes como tráfico de dro-
gas, latrocínio, estupro e homicídio qualificado, há algum tempo deu azo a movimento
pendular diamentralmente oposto.
Isso porque, a partir de meados da década de 90, surgiram normas penais
voltadas à mitigação da pena privativa de liberdade (Lei n. 9099/95 e Lei n. 9.714/98).
Fictamente, presumiram-se as infrações de pequeno e baixo potencial ofensi-
vos crimes a partir da quantidade de pena, sem atentar à relevância dos bens jurídicos
protegidos. Não obstante, tal qual se deu com a implantação do sistema progressivo
pela Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84), não houve qualquer revisão e atuali-
zação do preceito secundário das diversas normas penais incriminadoras até então
existentes.
A ideia de progressão e da aplicação de medidas ou penas alterantivas com
base nas penas fixadas, fomentou essa ficção de adjetivos – “pequeno” e “médio”
potenciais ofensivos; algo bem distinto do que fora almejado, em termos de proteção
jurídica suficiente, pela Comissão Alcantâra Machado, comandada pelo notável Nel-
son Hungria (na criação do Código Penal de 1940).
Ademais, é importante mencionar outras alterações legislativas relacionadas
a institutos indispensáveis à adequada individualização da pena e à consequente rein-
serção social do condenado: progressão de regime em crimes hediondos e equipara-
dos (Lei n. 11.464/07); fim do exame criminológico obrigatório para progressão de re-
gime (Lei n. 10.792/03); remição por estudo e trabalho, limitando-se, em caso de falta
grave, a perda dos dias remidos, à fração de 1/3 (Lei n. 12.433/11); além de inúmeros
e sucessivos decretos de indulto, que, ao invés de cumprirem a verdadeira função do
instituto, ou seja, a correção de eventuais excessos punitivos, se prestam a atender
interesse espúrio do Poder Executivo, consubstanciado na abertura incondicional de
vagas no sistema prisional (ex vi Decreto n. 8.172/13) (MORAES; OLIVEIRA, 2016,
p. 22).
Foi justamente o advento de legislações destinadas à satisfação de uma pos-
tura menos repressora e a suprir a omissão do Estado na efetivação de políticas pú-
blicas básicas (educação, saúde, controle e fiscalização adequados do cumprimento
de pena privativa de liberdade em meio não detentivo), que fomentou o desuso de
institutos como a “suspensão condicional da pena” e o “livramento condicional”, a de-
turpação do regime semiaberto e o flagrante descaso com qualquer tipo de fiscaliza-
ção para o regime aberto e com penas e medidas alternativas (MORAES; OLIVEIRA,
2016, p. 22).
Vale ressaltar que, no Brasil, a própria Constituição Federal se encarregou de
exemplificar as espécies de pena admitidas pelo ordenamento jurídico pátrio, tornan-
do compulsória a individualização da pena no art. 5º, inciso XLVI.
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1 O conjunto normativo penal editado pós-88 possui pouco potencial de efetividade, pois
basta constatar que a transação penal é possível para cerca de trezentos novos tipos, a
substituição do art. 44 do Código Penal para mais de seiscentos novos tipos, o sursis pro-
cessual para quatrocentos tipos e o sursis para seiscentos tipos.
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a economia foi, sem dúvida, a ciência humana que melhor soube ex-
plorar, através da econometria, o potencial explicativo das técnicas es-
tatísticas em relação ao homem e seu variado comportamento. É essa
a razão da economia ter em pouco mais de 50 anos deixado de ser
uma matéria nos currículos de Direito para se tornar a mais influente e
rica Ciência social da história (NUNES, 2016, p. 30).
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condutas, seja pela criação de penas alternativas, seja pela formatação de profetas do
laxismo penal, sem qualquer compromisso com a sociedade.
As críticas e as constatações da atual realidade carcerária são, ao nosso ver
e, até certo ponto, corretas, e não se pretende aqui negar a necessidade de conferir
ao preso – custodiado pelo Estado – condições mínimas para cumprimento da pena
com dignidade. Não permitem, contudo, rechaçar algumas conclusões amplamente
disseminadas, conforme será abordado a seguir.
Total da popula-
% da popula-
ção encarcerada Presos por 100
Ranking País ção encarce-
(World Prision mil habitantes**
rada**
Brief, 2018a)
1º China 1.401.590.000 1º China
2º Índia 1.282.390.000 2º Índia
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Total da popula-
ção encarcerada % da população Presos por 100
Ranking País
(World Prision encarcerada** mil habitantes**
Brief, 2018a)
Estados Uni-
1º 2.217.000 0,681% 681
dos
2º China 1.657.812 0 , 11 8 % 11 8
3º Brasil 7 11 . 4 6 3 * 0,349% 349
4º Rússia 644.696 0,453% 453
5º Índia 4 11 . 9 9 2 0,0321% 32
6º Tailândia 314.303 0,466% 466
7º México 255.138 0,212% 212
8º Irã 225.624 0,290% 290
9º África do Sul 159.241 0,292% 292
10º Indonésia 161.692 0,063% 63
** Calculado com base nos dados populacionais fornecidos pelo INED.
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habitantes:
1º Seicheles 799
2º Estados Unidos da América 698
3º Federação de São Cristóvão e Neves 607
4º Turcomenistão 583
5º Ilhas Virgens Americanas 542
6º Cuba 510
7º Ruanda 492
8º El Salvador 489
9º Guam (Guame) 469
10º Tailândia 466
População -
Ranking País
Presos
1º Seicheles 799
2º Estados Unidos da América 698
3º Federação de São Cristóvão e Névis 607
4º Turcomenistão 583
5º Ilhas Virgens Americanas 542
6º Cuba 510
7º Ruanda 492
8º El Salvador 489
9º Guam (Guame) 469
10º Tailândia 466
22º Costa Rica 352
23º Porto Rico 350
23º Dominica 350
25º São Martinho 347
26º Santa Lúcia 345
27º Ilhas Cayman 344
28º Palau 343
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6 CONCLUSÕES
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ANEXOS
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TABELA I
Vagas 357.219
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TABELA II
% de crimes informados
Discriminação 2,1
Ofensa sexual 7,5
Fraude 11,6
Agressão 17,2
Furto de objeto 22,6
Acidente trânsito 33,2
Roubo de objeto 41,3
Sequestro 63,5
Furto de carro 69,5
Furto de moto 70,3
Roubo de moto 80,7
Roubo de carro 90
Total 19,9
0 20 40 60 80 100
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TABELA III - ESTUPRO EM GRUPO DE 100 MIL PESSOAS NOS PAÍSES COM AS
MAIORES POPULAÇÕES CARCERÁRIAS (HEUNI; UNODC, 2010)
0 20 40 60 80 100 120
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0 20 40 60 80 100
0 5 10 15 20 25 30 35
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TABELA VII - ROUBOS EM GRUPO DE 100 MIL PESSOAS NOS PAÍSES COM AS
MAIORES POPULAÇÕES CARCERÁRIAS (HEUNI; UNODC, 2010) 6
REFERÊNCIAS
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ROSA, Alexandre Morais da; CARVALHO, Thiago Fabres de. Processo Penal
Eficiente & Ética da Vingança: em busca de uma Criminologia da não Violência.
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