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A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL:

UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

THE CARCERARY POPULATION IN BRAZIL:


A PORTRAIT OF IMPUNITY?

ALEXANDRE ROCHA ALMEIDA DE MORAES


Mestre e Doutor em Direito Penal pela PUC/SP, promotor de
justiça em SP.

CHRISTIANO JORGE SANTOS


Mestre e Doutor em Direito Penal pela PUC/SP, promotor de
justiça em SP. Chefe do Departamento de direito penal e direi-
to processual penal da Faculdade de Direito da Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo.
RESUMO

A política sistemática de desencarceramento dos últimos anos tem motivado todo o tipo de discurso e de prática legislativa
de modo a fundamentar a tese da ineficiência da pena privativa de liberdade e a explosão carcerária, sem que se explicite a
responsabilidade dos governos em não criar novas vagas ou fiscalizar realmente penas e medidas não detentivas. O objetivo
desse trabalho é demonstrar, através da análise jurimétrica dos bancos públicos de dados, que o argumento de que o país tem
uma das maiores populações carcerárias do mundo é meramente retórico e carece de suporte empírico.

Palavras-chave: Política criminal. Política penitenciária. Jurimetria. Taxas de subnotificação. Princípio da proporcionalidade.

ABSTRACT

The systematic policy of deprivation of the last years has motivated all kinds of discourse and legislative practice in order to
base the thesis of the ineffectiveness of the custodial sentence and the prison explosion, without explaining the responsibility
of the governments in not creating new vacancies or actually monitor non-custodial sentences and measures. The purpose of
this paper is to demonstrate, through the jurimetric analysis of public data banks, that the argument that the country has one
of the largest prison populations in the world is merely rhetorical and lacks empirical support.

Keywords: Criminal policy. Prison policy. Jurimetrics. Rates of underreporting. Principle of proportionality.

SUMÁRIO

1. Introdução: a construção retórica do discurso de desencarceramento. 2. Jurimetria em matéria penal. 3. Análise jurimétrica
das maiores taxas de encarceramento no mundo: quebrando tabus. 4. Déficit de vagas no sistema penitenciário. 5. Outra
vertente da proporcionalidade: a proteção deficiente e as taxas de subnotificação. 6. Conclusões. Anexos. Referências.
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

1 INTRODUÇÃO: A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DO DISCURSO DE


DESENCARCERAMENTO

Nélson Hungria (1955, p. 183-184) afirmara que “sempre que a política entra
pelas portas do templo da justiça, esta foge espavorida pela janela para livrar-se ao
céu”.
A política sistemática de desencarceramento dos últimos anos tem motivado
todo o tipo de discurso e de prática legislativa de modo a fundamentar a tese da ine-
ficiência da pena privativa de liberdade e a explosão carcerária, sem que se explicite
a responsabilidade dos governos em não criar novas vagas ou fiscalizar realmente
penas e medidas não detentivas. Em suma: sem qualquer compromisso efetivo com
a segurança coletiva, apresentam-se propostas e implantam-se providências que au-
mentam a sensação coletiva de insegurança e impunidade. Via de regra, atribui-se
a uma suposta superpopulação carcerária a razão do problema. Por outro lado, sem
qualquer pretensão real de reinserção social e gradual do condenado à livre convi-
vência em sociedade e sem a mínima preocupação com a diminuição das taxas de
reincidência, reiteram-se as assertivas ordinárias de sempre: “é preciso diminuir a
população carcerária, uma das maiores do mundo!”.
Para uma visão clara da questão ora proposta é, pois, preciso compreender
que a estreita vinculação entre o direito e a vida social exige do jurista o preciso conhe-
cimento dos vários fatores que constituem as causas da violação das normas penais
instituídas pelo Estado e que impõem como consequência a imposição de sanções.
Para tanto, torna-se premente a retomada da concepção de uma completa ci-
ência penal – dogmática, que contemple a criminologia, a execução penal e a política
criminal como instâncias que se comunicam e precisam ser estudadas em conjunto.
É, pois, preciso traçar as políticas legislativa e criminal estudando as causas
determinantes e circunstanciais de criminalidade, o perfil das vítimas e dos crimino-
sos, as taxas de subnotificação ou vitimização, a quantidade de crimes cometidos
no país, dentre outros temas, sob pena de se manter um inócuo hiato entre teoria e
realidade, entre discurso acadêmico e prática legislativa, entre uma política criminal
racional e a percepção de ineficiência do sistema de justiça.
Sob falsos fundamentos jurídicos acerca das possíveis e efetivas finalidades
do direito de punir, é recorrente o discurso retórico de que “a cadeia não corrige”
(como se a pena tivesse uma única finalidade e como se os tipos de criminalidades
fossem equivalentes), aliado ao fato de que o preso definitivo não vota (art. 15, III,
CF) e à circunstância de que sociedade não espera que sejam garantidas condições
dignas para cumprimento da pena (máxime porque carece de eficientes políticas pú-
blicas fora do cárcere). Com esses sofismas, cada vez mais se repete outro argumen-
to falacioso para deslegitimar a qualquer custo a pena privativa de liberdade: “temos
uma das maiores populações carcerárias do mundo”.
É certo que a onda de rigorismo penal da década de 80 e 90 do século pas-
sado que, culminou, dentre outros, na edição da Lei n. 8.072/90, responsável pela

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vertiginosa elevação da população carcerária por conta de crimes como tráfico de dro-
gas, latrocínio, estupro e homicídio qualificado, há algum tempo deu azo a movimento
pendular diamentralmente oposto.
Isso porque, a partir de meados da década de 90, surgiram normas penais
voltadas à mitigação da pena privativa de liberdade (Lei n. 9099/95 e Lei n. 9.714/98).
Fictamente, presumiram-se as infrações de pequeno e baixo potencial ofensi-
vos crimes a partir da quantidade de pena, sem atentar à relevância dos bens jurídicos
protegidos. Não obstante, tal qual se deu com a implantação do sistema progressivo
pela Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84), não houve qualquer revisão e atuali-
zação do preceito secundário das diversas normas penais incriminadoras até então
existentes.
A ideia de progressão e da aplicação de medidas ou penas alterantivas com
base nas penas fixadas, fomentou essa ficção de adjetivos – “pequeno” e “médio”
potenciais ofensivos; algo bem distinto do que fora almejado, em termos de proteção
jurídica suficiente, pela Comissão Alcantâra Machado, comandada pelo notável Nel-
son Hungria (na criação do Código Penal de 1940).
Ademais, é importante mencionar outras alterações legislativas relacionadas
a institutos indispensáveis à adequada individualização da pena e à consequente rein-
serção social do condenado: progressão de regime em crimes hediondos e equipara-
dos (Lei n. 11.464/07); fim do exame criminológico obrigatório para progressão de re-
gime (Lei n. 10.792/03); remição por estudo e trabalho, limitando-se, em caso de falta
grave, a perda dos dias remidos, à fração de 1/3 (Lei n. 12.433/11); além de inúmeros
e sucessivos decretos de indulto, que, ao invés de cumprirem a verdadeira função do
instituto, ou seja, a correção de eventuais excessos punitivos, se prestam a atender
interesse espúrio do Poder Executivo, consubstanciado na abertura incondicional de
vagas no sistema prisional (ex vi Decreto n. 8.172/13) (MORAES; OLIVEIRA, 2016,
p. 22).
Foi justamente o advento de legislações destinadas à satisfação de uma pos-
tura menos repressora e a suprir a omissão do Estado na efetivação de políticas pú-
blicas básicas (educação, saúde, controle e fiscalização adequados do cumprimento
de pena privativa de liberdade em meio não detentivo), que fomentou o desuso de
institutos como a “suspensão condicional da pena” e o “livramento condicional”, a de-
turpação do regime semiaberto e o flagrante descaso com qualquer tipo de fiscaliza-
ção para o regime aberto e com penas e medidas alternativas (MORAES; OLIVEIRA,
2016, p. 22).
Vale ressaltar que, no Brasil, a própria Constituição Federal se encarregou de
exemplificar as espécies de pena admitidas pelo ordenamento jurídico pátrio, tornan-
do compulsória a individualização da pena no art. 5º, inciso XLVI.

A individualização da pena tem o significado de eleger a justa e ade-


quada sanção penal, quanto ao montante, ao perfil e aos efeitos pen-
dentes sobre o sentenciado, tornando-o único e distinto dos demais
infratores, ainda que coautores ou mesmo corréus. (NUCCI, 2004, p.
38).

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Esse escólio de Nucci tornou-se letra morta. Como se sabe, a individualização


da pena atravessa três etapas distintas: a) legislativa; b) judiciária; e c) executória.
Em um primeiro momento, considerando a importância do bem jurídico penal-
mente protegido, até para que se obedeça uma coerência endonormativa do sistema
de proteção penal, o legislador estabelece os limites mínimo e máximo que constitui-
rão o preceito secundário da norma penal incriminadora (MORAES; OLIVEIRA, 2016,
p. 36).
Em um segundo momento, diante de um fato específico, dentro desses limites
previamente estabelecidos pelo legislador, atento à intensidade da censurabilidade, à
conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequ-
ências do crime, bem como ao comportamento da vítima, o juiz elege a pena neces-
sária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
Finalmente, encontrada a pena adequada para o autor daquele crime, a sua
execução deve ser individualizada e personalizada. Só assim a pena alcançará os fins
a que se propõe e que legitimam a sua aplicação pelo Estado (MORAES; OLIVEIRA,
2016, p. 36).
Além disso, para a individualização e aplicação da sanção penal, legislador e
magistrado jamais podem se afastar da observância da proporcionalidade (não ape-
nas no que toca à proibição dos excessos, mas principalmente no que se refere à
vedação a proteção jurídica insuficiente). A proporcionalidade e a inderrogabilidade,
enquanto certeza da aplicação da pena justa, são diretrizes caras no Estado Demo-
crático de Direito.
Firmadas tais premissas, é relevante ressaltar como discursos com carga ele-
vada de retórica e distantes da realidade – como “temos uma das maiores populações
carcerárias do mundo!” – legitimam-se sem qualquer questionamento crítico, incenti-
vando, sem qualquer suporte empírico, uma política criminal que busca incessante-
mente a abertura de vagas no sistema carcerário, ainda que ao arrepio de todos os
instrumentos normativos de individualização da pena e sem uma reinserção gradual
do sentenciado ao convivívio social.
Não se olvida aqui do acertado diagnóstico de Hassemer (1993, p. 19), se-
gundo o qual o Direito Penal contemporâneo é pautado pelo caos normativo, pela
descodificação e, no caso brasileiro, pela adoção indiscriminada de um direito penal
simbólico.1
Isso tem gerado o aumento na moldura penal, implicando a criminalização ter-
ritorialmente extensa e a adoção de bens jurídicos universais (supraindividuais, vagos
e genéricos), em especial, através da utilização cada vez mais intensa da técnica de
criminalização em estágio prévio.
Não obstante, no caso brasileiro, a própria Constituição cidadã – pródiga, ana-
lítica e paternalista – legitima essa prática.

1 O conjunto normativo penal editado pós-88 possui pouco potencial de efetividade, pois
basta constatar que a transação penal é possível para cerca de trezentos novos tipos, a
substituição do art. 44 do Código Penal para mais de seiscentos novos tipos, o sursis pro-
cessual para quatrocentos tipos e o sursis para seiscentos tipos.

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Além da crise de paradigmas das agências informais de controle social, a


necessidade de tutela de novos interesses tem transformado o direito penal em sola
ratio, modificando a sua essência e fomentando um discurso corrente de deslegiti-
mação: diante da inflação legislativa, diante da impossibilidade de ressocialização
do condenado pela pena, diante do falacioso discurso de o país ter uma das maiores
populações carcerárias do mundo, o estatuto repressivo passa a ser visto como res-
ponsável pela ineficiência na recuperação de condenados, gerando o equívoco de se
pautar, como regra, a dogmática com penas alternativas ao cárcere e com instrumen-
tos que acabam por completo com a ideia de reintegração gradual do condenado ao
convívio social (MORAES; OLIVEIRA, 2016, p. 41-42) e, por consequência, fomentan-
do a retroalimentação do sistema com altas taxas de reincidência.
Acrescente-se, mais uma vez, a ineficiência do Estado em executar políticas
públicas básicas, acentuando os índices de criminalidade, além da ineficiência em
fiscalizar e executar adequadamente o sistema penitenciário, o que gera problemas
políticos de explosão carcerária e que passam a reclamar soluções pautadas em cri-
térios de custo/benefício: com isso houve verdadeira transformação da dogmática pe-
nal, mitigando-se a pena de prisão e adotando-se a barganha, a transação e medidas
alternativas à prisão, como se fossem regra do direito penal (MORAES; OLIVEIRA,
2016, p. 42).
Nesse diapasão, os últimos relatórios publicados pelo Conselho Nacional de
Justiça diagnosticam o que já é de conhecimento público: a realidade do sistema car-
cerário brasileiro explicitada de forma muito mais retórica do que real.
Dentre as inúmeras propostas saneadoras destacamos as expostas no Le-
vantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN – Junho de 2014
(DEPEN), que incluem “quatro eixos bastante amplos: alternativas penais e gestão de
problemas relacionados ao hiperencarceramento; apoio à gestão dos serviços penais
e redução do déficit carcerário; humanização das condições carcerárias e integração
social; e modernização do sistema penitenciário nacional” (DEPEN, 2014).
Além da modernização, humanização e qualificação dos presídios a fim de re-
duzir o déficit de vagas, o documento apresenta questão extremamente interessante:
a ampliação das audiências de custódia para que a pessoa presa seja rapidamente
encaminhada ao Juiz competente, oportunidade em que se avaliará a viabilidades de
medidas alternativas e/ou monitoramento eletrônico.
Lyra já há algum tempo propunha, sob a ótica da criminologia, que “se há au-
mento qualitativo e desproporcionado da criminalidade propriamente dita, apuremos
suas causas para o correspondente tratamento, sobretudo preventivo” (LYRA, 1956,
p. 363-364).
A utilização da criminologia, sob o enfoque da análise criminal, estatística qua-
litativa ou jurimetria, conforme adiante se detalhará, é fundamental nessa era de re-
volução dos meios de comunicação, de uso de tecnologia e de existência de enormes
bancos de dados públicos.
Predominantemente empírica, científica, acadêmica e metodológica, com
aplicação direta na gestão racional e científica da segurança pública, da política le-
gislativa e do direcionamento de políticas criminais racionais, é, portanto, essencial

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conhecer a jurimetria e usá-la como suporte para a tomada de decisões (MORAES,


2016, p. 287).

2 JURIMETRIA EM MATÉRIA PENAL

A ação ou efeito de predizer ou o ato de afirmar com convicção aquilo que


poderá acontecer em um momento futuro é denominado de predição.
Seria possível, nas ciências humanas, máxime na análise das disfunções so-
ciais denominadas de infrações penais, prever ou, ao menos filtrar, avaliar e selecio-
nar modelos padronizados de ocorrências criminais de modo a propiciar uma atuação
preventiva e repressiva mais eficientes? Seria recomedável que se fizesse a análise
de informação - e não propriamente de dados - para o direcionamento de políticas
criminais e penitenciárias mais eficazes e condizentes com a realidade?
Esse é o objeto da jurimetria.
Os grandes traços, que marcam o complexo das identidades gestadas e cria-
das ao longo da modernidade, podem ser traduzidos com os seguintes termos: eter-
no; imutável; absoluto; verdadeiro; racional; uno; vertical; dedução; científico; compro-
vável; provado; ordenado; regulado (BITTAR, 2014, p. 131).
Já a pós-modernidade ou modernidade líquida “irrompe com a proposta de
introduzir outras espécies de termos, que fazem oposição clara e direta às propostas
da modernidade, a saber: transitório; mutável; provável; sensível; múltiplo; horizontal;
indução; senso comum; estimável” (BITTAR, 2014, p. 131).
A rigor, vivenciam-se verdadeiros paradoxos de determinismo e indeterminis-
mos.

A coexistência dos excessos de determinismo e de excessos de in-


determinismo confere ao nosso tempo um perfil especial, o tempo
caótico onde ordem e desordem se misturam em combinações turbu-
lentas. Os dois excessos suscitam polarizações extremas que, para-
doxalmente, se tocam. As rupturas e as descontinuidades, de tão fre-
quentes, tornam-se rotina e a rotina, por sua vez, torna-se catastrófica.
(SANTOS, B., 2001, p. 41).
Define-se a jurimetria em matéria criminal como ramo da Criminologia
que utiliza a metodologia estatística para investigar o funcionamento
do conjunto de normas penais e extrapenais, que se prestam à prote-
ção de bens e servem como instrumento de controle social. (MORA-
ES, 2016, p. 290).

De uma perspectiva objetiva, a jurimetria desloca para o centro de interes-


se o plano concreto do Direito e se propõe a investigar o funcionamento da ordem
jurídica na produção e na imposição das normas. Seu objeto não é a norma jurídica
considerada de forma isolada, mas como resultado (efeito) do comportamento dos
reguladores e como provocação (causa) de alterações no comportamento de seus
destinatários (NUNES, 2016, p. 139-142).
Fabretti menciona que

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a partir desse conhecimento, em relação à questão do controle da


criminalidade, desenvolve-se um novo estilo de pensamento crimino-
lógico, fundamentado em uma razão atuarial, referido por alguns como
“criminologias da vida cotidiana” e por outros como “criminologia admi-
nistrativa” que tem servido de fundamento para as políticas criminais
mais recentes. (FABRETTI, 2014, p. 38).2

A primeira conclusão é a de que a teoria econômica pode ser extremamente


útil para a investigação das causas da criminalidade e para o direcionamento da polí-
tica criminal.
A título ilustrativo, há fortes evidências de que a criminalidade está sujeita aos
efeitos regionais ou espaciais, em que é possível haver um efeito de transbordamen-
to da criminalidade de uma região para outra. É sabido também que a criminalidade
também se sujeita aos efeitos de inércia - parte da criminalidade de um período é
transferida para outro, possivelmente em decorrência da especialização da atividade
criminosa (SANTOS, M.; KASSOUF, 2008, p. 343-372).
Pesquisadores, por exemplo, documentaram a contribuição das mudanças
demográficas para explicar a dinâmica dos homicídios no Estado de São Paulo. As
estimativas mais conservadoras mostram que as alterações na estrutura etária res-
pondem por aproximadamente 50% da variação nos homicídios. Esses resultados
são importantes no contexto da literatura de criminologia. Enquanto há, no plano in-
dividual, ampla evidência de que os jovens entre quinze e vinte e quatro anos são os
mais propensos a cometer crimes, a evidência agregada é ambígua (MORAES, 2016,
p. 294).
Esse levantamento, segundo os pesquisadores, pode reconciliar esses dois
resultados aparentemente contraditórios:

No que se refere às políticas públicas, o resultado aqui apresentado


é igualmente importante. Apesar de ser difícil afetar a estrutura demo-
gráfica, ao menos no curto prazo, reações de política exageradas po-
dem ser evitadas caso se tenha em conta que a demografia tem papel
significativo na determinação das taxas de homicídio.
[...] A política relevante mais recente é a restrição às armas de fogo.
Como a Lei do Desarmamento é de 2003, por construção não pode
explicar a inversão nos homicídios. Uma pergunta ainda aberta se re-
fere ao esforço estadual em reprimir o porte ilegal de armas.
O fato de a demografia responder por boa parte da variação nos ho-
micídios no Estado de São Paulo não descarta a possibilidade de que
outros fatores possam também ter contribuído para o declínio desse
tipo de crime a partir do final da década de 1990. Além das políticas
públicas citadas, a melhoria da distribuição de renda e o aumento na
matrícula escolar no Ensino Médio são dois fatores que provavelmente
contribuíram para a referida diminuição. No entanto, permanece como
verdade que os dados sugerem fortemente que a demografia é o fator
de primeira ordem. (MELLO; SCHNEIDER, 2007, p. 19-30).
2 O autor cita como exemplos: identificação de pessoas, previsão e administração de riscos
através da identicação civil, de veículos, de motoristas, de criminosos, de vítimas etc.

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Percebe-se, a partir de tais exemplos, o potencial da jurimetria.


Como se sabe, a “revolução estatística” iniciou-se a partir da segunda metade
do século XIX, quando métodos estatísticos gradualmente passaram a ser utilizados
em todos os campos do conhecimento, sempre com a finalidade de descrever variá-
veis inexplicadas por modelos determinísticos (MORAES, 2016, p. 295).
Esse cenário foi gradualmente modificado ao longo do século XX, e hoje, a
geografia, a medicina, a sociologia, a administração e a economia, para citar alguns
exemplos, são ramos das humanidades que se estruturam sobre técnicas estatísticas
e modelos de probabilidade, sendo certo que

a economia foi, sem dúvida, a ciência humana que melhor soube ex-
plorar, através da econometria, o potencial explicativo das técnicas es-
tatísticas em relação ao homem e seu variado comportamento. É essa
a razão da economia ter em pouco mais de 50 anos deixado de ser
uma matéria nos currículos de Direito para se tornar a mais influente e
rica Ciência social da história (NUNES, 2016, p. 30).

O denominado tecnicismo, purismo jurídico e autopoiese normativa que de-


sencadearam o ensino do direito baseado na ideia de que a lei predetermina as de-
cisões judiciais e que o ordenamento jurídico pode ser estudado de forma analíti-
ca, desconectado da prática, fizeram do direito uma ciência social retardatária nesse
movimento de aproximação com a estatística, observa Nunes (2016, p. 30).
Morais Rosa, aliás, salienta, nesse mesmo esteio, que embora se possa veri-
ficar movimentos de renovação nos campos do Direito Penal e Processo Penal, bem
como da Criminologia, “as tensões contemporâneas não são apresentadas no con-
texto da graduação do curso de Direito. De regra o ensino é balizado por uma noção
eminentemente dogmática e que se apresenta como mera técnica normativa” (ROSA;
CARVALHO, 2010, p. 2).
A massificação do uso da estatística com o direito se dá, segundo Nunes, a
partir de 2004, com o movimento Empirical Legal Studies, que propõe a larga utiliza-
ção de pesquisas empíricas e, consequentemente, de técnicas estatísticas para en-
tender como o Direito e suas instituições funcionam na prática (NUNES, 2016, p. 51).
O fundamento dessa mudança de perspectiva para o Direito em virtude dos
seguintes fatores:
(i) A insuficiência dos esforços puramente teoréticos de se entender e
controlar o Direito;
(ii) O aumento da complexidade, da quantidade de processos e de
institutos jurídicos nas sociedades modernas;
(iii) A criação de bancos de dados jurídicos resultante da informatiza-
ção dos tribunais, das autarquias, dos escritórios de advocacia e das
entidades ligadas ao direito em geral;
(iv) O desenvolvimento e a evolução das técnicas estatísticas e dos
modelos probabilísticos;
(v) O sucesso acadêmico e a consequente apreciação da influência
das ciências sociais que utilizam metodologias de pesquisa empírica

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(NUNES, 2016, p. 59).

A percepção de Nunes é precisa:

A pesquisa empírica abre nossos horizontes de conhecimento e per-


mite investigar o plano concreto do Direito e os espaços institucio-
nais onde as normas individuais são criadas. Trata-se de um acesso
privilegiado ao que de fato ocorre no mundo jurídico (quais conflitos
reais estão batendo às portas dos tribunais, quais aspectos da lei não
atendem a esta demanda, quais os efeitos concretos que uma nova
disposição legal exerce na sociedade). (NUNES, 2016, p. 116).

Defender a jurimetria como um enfoque da criminologia também significa


compreender que o direito não se esgota com o estudo teórico das normas gerais
(MORAES, 2016, p. 296).

Dantas utiliza a expressão similar – ‘análise criminal’ como o processo


analítico e sistemático de produção de conhecimento orientado
segundo os princípios da pertinência e da oportunidade, sendo
realizado a partir do estabelecimento de correlações entre conjuntos
de fatos delituosos ocorridos («ocorrências policiais») e os padrões e
tendências da história da criminalidade de um determinado local ou
região (DANTAS, 2002).
Incumbe ao analista as ‘tarefas analíticas e estatísticas, incluindo: (i) a
utilização de aplicativos de computação, (ii) a realização de amostra-
gens estatísticas aleatórias, (iii) elaboração de análises e estudos de
correlação e regressão e (iv) estudos probabilísticos’ (NUNES, 2016,
p. 29). (apud MORAES; DEMERCIAN, 2017).

A jurimetria ou análise criminal tem, portanto, a pretensão de ser uma ciência


voltada para a compreensão do comportamento de testemunhas, juízes e legisla-
dores, entendendo o porquê e quando os primeiros faltam com a verdade, como os
juízes julgam, e em que medida os legisladores promulgam leis mais aderentes aos
eleitores (NUNES, 2016, p. 112). Além disso, a jurimetria auxiliaria a tornar mais ob-
jetiva a linguagem jurídica, acelerar processos, evitar comportamentos desajustados,
prevenir crimes e, sobretudo, orientar práticas legislativas mais racionais.
A jurimetria propõe um giro epistemológico, análogo àquele proposto pelos re-
alistas, deslocando o centro de interesse da pesquisa jurídica do plano abstrato para
o plano concreto (NUNES, 2016, p. 125).
Assim, a aplicação da estatística ao Direito presta um valioso auxílio para que,
por exemplo,

o juiz compreenda com maior profundidade as possíveis consequên-


cias de suas decisões, o advogado entenda os fatores que interferem
na sua estratégia e possa melhor aconselhar seu cliente, e o legislador
antecipe os resultados das propostas políticas discutidas no legislativo
(NUNES, 2016, p. 129).

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Em síntese, enquanto a dogmática é determinística, individual, abstrata, pers-


pectiva e qualitativa, a jurimetria é, preponderantemente, estocástica, populacional,
concreta, prospectiva e quantitativa. Enfim, trata-se de uma disciplina prospectiva,
porque permite a elaboração de predições a respeito do funcionamento futuro de uma
dada ordem jurídica (NUNES, 2016, p. 185).3
Decerto, seja porque se vive uma época de complexidade e contingências,
seja porque cada vez mais se busca a eficiência e uma política criminal orientada para
as consequências, seja, finalmente, porque a sociedade pós-moderna exige maior
transparência4, capacitação e cobrança por resultados, as previsões que reduzam
as incertezas e os filtros que simplifiquem os prognósticos possíveis devem orientar,
essencialmente, a política criminal (MORAES, 2016, p. 300).
Tanto sob o enfoque da tutela da segurança com adoção de políticas preven-
tivas e repressivas mais eficientes, quanto sob o enfoque de uma dogmática minima-
mente racional, a jurimetria representa um instrumento de diminuição da complexidade
e incerteza e, em especial, passos para a retomada de uma Ciência Penal completa.
Não é aceitável que os responsáveis pelo sistema de justiça, segurança e o
próprio Poder Legislativo proponham políticas ou reformas legais com base em intui-
ções, nem tampouco que defendam e pratiquem estratégias de segurança pública
com base em idiossincrasias, falácias e sem qualquer estratégia.
Defende-se o planejamento, a busca de prognósticos possíveis, a construção
de indicadores e parâmetros para avaliação da produtividade como deveres de efici-
ência dos agentes responsáveis pela construção de políticas criminais, políticas de
segurança pública e, em especial, políticas legislativas em matéria criminal.
No que ora se propõe, o uso da jurimetria serve para desnudar o discurso re-
tórico que legitima e fundamenta reformas legislativas para que, escondendo a omis-
são do Estado, institucionalize um falso discurso de superpopulação carcerária do
Brasil em comparação com as demais nações do planeta.
É evidente que aumentaram os clamores por condições dignas nas cadeias,
pela reeducação dos condenados e foram criadas legislações contemplando preten-
sões e anseios que, logicamente, estão além dos limites do direito penal.
Diante da ineficiência do Direito em resolver tal situação, diante de muitos
falaciosos rótulos da “ineficiência da justiça”, surgiram novas legislações que vieram
remediar o problema carcerário e a insuficiência dos meios de reeducação dos pre-
sos: leis que agora soltam criminosos, seja por indultos, seja por despenalização de

3 A prospectividade se baseia na ideia, já discutida, de causa probabilística, distinta da cau-


sa determinística e da relação de implicação. No direito, as relações concretas são de
causalidade probabilística.
4 A Lei Federal nº 12.527/11 em seu art. 3º prescreve que os procedimentos destinados a
assegurar o direito fundamental de acesso à informação devem ser executados confor-
me as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo
como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente
de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da
informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração
pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública.

142
REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.16, 2019: 132 - 161

condutas, seja pela criação de penas alternativas, seja pela formatação de profetas do
laxismo penal, sem qualquer compromisso com a sociedade.
As críticas e as constatações da atual realidade carcerária são, ao nosso ver
e, até certo ponto, corretas, e não se pretende aqui negar a necessidade de conferir
ao preso – custodiado pelo Estado – condições mínimas para cumprimento da pena
com dignidade. Não permitem, contudo, rechaçar algumas conclusões amplamente
disseminadas, conforme será abordado a seguir.

3 ANÁLISE JURIMÉTRICA DAS MAIORES TAXAS DE ENCARCERAMENTO NO


MUNDO: QUEBRANDO TABUS

Atualmente, dentre as maiores populações mundiais, o Brasil aparece na


quinta (5ª) posição, com 203.657.000 de habitantes, perdendo apenas para China
(1.401.590.000), Índia, (1.282.390.000), Estados Unidos (325.128.000) e Indonésia
(255.709.000), conforme as últimas medições do INED – Institut National d’Études
Démographiques (2018):

Total da popula-
% da popula-
ção encarcerada Presos por 100
Ranking País ção encarce-
(World Prision mil habitantes**
rada**
Brief, 2018a)
1º China 1.401.590.000 1º China
2º Índia 1.282.390.000 2º Índia

3º Estados Unidos 325.128.000 3º Estados Unidos

4º Indonésia 255.709.000 4º Indonésia


5º Brasil 203.657.000 5º Brasil
6º Paquistão 188.144.000 6º Paquistão
7º Nigéria 183.523.000 7º Nigéria
8º Bangladesh 160.411.000 8º Bangladesh
9º Rússia 142.098.000 9º Rússia
10º Japão 126.818.000 10º Japão

** Calculado com base nos dados populacionais fornecidos pelo INED.

No que se refere especialmente ao ranking das maiores populações carcerá-


rias, os dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça apontam o Brasil
na 3ª posição, com 711.463 presos (se considerados, inclusive, aqueles em regime
domiciliar).
Se comparados os números fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça,
referentes às populações carcerárias, com as últimas medições do INED – Institut
National d’études Démographiques (DEPEN, 2018), o Brasil apresentaria taxa de

143
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

encarceramento de 349 pessoas a cada 100.000 habitantes.


Nessa senda, os países com as maiores populações carcerárias teriam índices
de encarceramento paradoxais, o que, contudo, não destituiria do Brasil, segundo o
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN – Junho de 2014
(DEPEN), do posto do 3º país com a maior população carcerária em termos relativos
do mundo, ou seja, quando analisados grupos de pessoas presas a cada cem mil
habitantes:

Total da popula-
ção encarcerada % da população Presos por 100
Ranking País
(World Prision encarcerada** mil habitantes**
Brief, 2018a)
Estados Uni-
1º 2.217.000 0,681% 681
dos
2º China 1.657.812 0 , 11 8 % 11 8
3º Brasil 7 11 . 4 6 3 * 0,349% 349
4º Rússia 644.696 0,453% 453
5º Índia 4 11 . 9 9 2 0,0321% 32
6º Tailândia 314.303 0,466% 466
7º México 255.138 0,212% 212
8º Irã 225.624 0,290% 290
9º África do Sul 159.241 0,292% 292
10º Indonésia 161.692 0,063% 63
** Calculado com base nos dados populacionais fornecidos pelo INED.

Tais dados, porém, merecem ser analisados à luz de algumas considerações


fundamentais.
No caso da China, de acordo com o “World Prision Brief” (2018b), banco
de dados com informações sobre as prisões ao redor do planeta, aos 1.657.812 de
presos somam-se outros 650.000 em Centros de Detenção, totalizando 2.300.000 e
índice de encarceramento na ordem de 164 pessoas para 100 mil habitantes.
No que diz respeito ao Brasil, aos 711.463 presos, se descontados aqueles
não incluídos no sistema carcerário (mais precisamente em prisão domiciliar, confor-
me salientado pelo Conselho Nacional de Justiça), totalizar-se-iam 563.526 presos,
entre homens e mulheres.
Nosso índice de encarceramento seria, destarte, de 276 pessoas para cada
100 mil habitantes, o que alteraria significativamente os números relativos dos 10
países com as maiores populações carcerárias.
Analisando ainda o cenário brasileiro, aos 711.463 presos, se descontásse-
mos aqueles não incluídos no sistema carcerário (mais precisamente 147.937 em
prisão domiciliar, bem como 15.036 em regime aberto), teríamos 548.490 indivíduos,
entre homens e mulheres, e índice de encarceramento de 269 pessoas para 100 mil

144
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habitantes:

1º Seicheles 799
2º Estados Unidos da América 698
3º Federação de São Cristóvão e Neves 607
4º Turcomenistão 583
5º Ilhas Virgens Americanas 542
6º Cuba 510
7º Ruanda 492
8º El Salvador 489
9º Guam (Guame) 469
10º Tailândia 466

Salta aos olhos, porém, a leitura destes números apresentada no Levan-


tamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN (DEPEN, 2014), es-
pecialmente ao afirmar que, cotejada a taxa de aprisionamento dos países com as
maiores populações carcerárias, “em termos relativos, a população prisional brasilei-
ra também é a quarta maior: somente os Estados Unidos, a Rússia e a Tailândia têm
um contingente prisional mais elevado” (DEPEN, 2014, p. 13).
Tais dados contrariam, frontalmente, o ranking apresentado pelo “World Pri-
sion Brief” (2018d), no qual o Brasil aparece na 33ª posição entre os países com o
maior índice de encarceramento por grupo de 100 mil habitantes:

População -
Ranking País
Presos
1º Seicheles 799
2º Estados Unidos da América 698
3º Federação de São Cristóvão e Névis 607
4º Turcomenistão 583
5º Ilhas Virgens Americanas 542
6º Cuba 510
7º Ruanda 492
8º El Salvador 489
9º Guam (Guame) 469
10º Tailândia 466
22º Costa Rica 352
23º Porto Rico 350
23º Dominica 350
25º São Martinho 347
26º Santa Lúcia 345
27º Ilhas Cayman 344
28º Palau 343

145
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

29º Maldivas 341


31º Barbados 309
32º República da Bielorrússia 306
33º Lituânia 302
33º Bahrein 301
33º Brasil** 301
35º África do Sul 292
36º Irã 290
37º Suazilândia 289
38º Cabo Verde 286
39º Uruguai 282
40º Geórgia 281

Importante destacar que o ranking apresentado pelo “World Prision Brief”


(2018c), partindo de dados obtidos em junho de 2014, considera nossa população
carcerária em 607.731 pessoas (579.781 presos no Sistema Penitenciário propria-
mente dito e outros 27.950 em instalações policiais) e taxa de encarceramento de
301 pessoas para grupo de 100 mil habitantes.
Portanto, se considerarmos que no Brasil existem, efetivamente, entre ho-
mens e mulheres, 548.490 indivíduos presos (na medida em que 147.937 pessoas
estão em prisão domiciliar e outros 15.036 em regime aberto), nosso índice de encar-
ceramento é de 269 pessoas para 100 mil habitantes.
Isto, diferentemente do que indica o Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias – INFOPEN (DEPEN, 2014), faz com que o Brasil ocupe, juntamen-
te com Taiwan, a 43º posição no ranking dos países com os maiores índices de
encarceramento, em termos relativos.

4 DÉFICIT DE VAGAS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o Brasil apresenta déficit de


728.235 vagas no sistema penitenciário. Contudo, para chegar a este resultado, parte
de algumas premissas inconsistentes.
Isso porque, ao se tomar como referência aa capacidade do sistema nacional
(357.219 pessoas), o Brasil teria um déficit efetivo de 206.307 vagas, o que, vale dizer,
é apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça e comprova a lamentável superlo-
tação.
Ocorre que, para concluir que a demanda nacional era de 728.235 vagas,
o Conselho Nacional de Justiça considerou a superlotação carcerária (206.307), os
mandados de prisão em aberto (373.991)5 e, sem qualquer justificativa lógica, também
as pessoas em prisão domiciliar (147.937).
5 Cumpre ainda ressaltar que há pessoas com mais de um mandado de prisão expedido,
pessoas que já faleceram, além de diversos cujos processos carecem de controle efetivo de
prescrição e que integram esse número fictício.

146
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Ademais, não há qualquer estudo empírico sobre o índice de rotatividade e


permanência média no sistema que deveria, logicamente, levar em consideração as
remições, as detrações e os indultos concedidos.
Ora, uma análise da real necessidade brasileira demanda, efetivamente, pre-
missas sólidas, ou seja, o desconto de eventuais mandados de prisão já expirados
e/ou com a pena extinta, bem como a desconsideração de presos que, em razão
de condições subjetivas, jamais deverão ser inseridos ao sistema penitenciário por
fazerem jus à prisão domiciliar (art. 318, CPP e art. 146-B, IV, LEP) ou outras medidas
alternativas ao cárcere (penas restritivas de direitos, sursis, livramente condicional
etc).
À época em que foi elaborado o relatório pelo Conselho Nacional de Justiça,
seria muito mais consistente a apresentação de um déficit de 582.298 vagas, ou seja,
a somatória dos mandados de prisão em aberto (373.991) e a superlotação carcerária
(206.307).
Atualmente, considerando que 548.490 pessoas estão efetivamente presas
no país e que os últimos dados fornecidos pelo Banco Nacional de Mandados de Pri-
são apontam a existência de 478.975 ordens em aberto, o déficit supera a marca de
670.000 (ANEXO - TABELA I).

5 OUTRA VERTENTE DA PROPORCIONALIDADE: A PROTEÇÃO DEFICIENTE E


AS TAXAS DE SUBNOTIFICAÇÃO

Como é cediço, o princípio da proporcionalidade, na origem alemã, apresenta


dois significados. A primeira acepção – a proibição da proteção excessiva do Estado
em prol do indivíduo - ou simplesmente a proibição do excesso (Übermassverbot), tem
destinatário duplo: tanto o Poder Legislativo, que deve estabelecer penas proporcio-
nais em abstrato à gravidade do delito, quanto o magistrado que deve impor ao autor
do delito penas proporcionadas à sua concreta gravidade.
Há, contudo, uma segunda acepção – a proibição da proteção deficiente do
bem jurídico –, também conhecida como proibição de proteção insuficiente (Unter-
massverbot) (STRECK, 2011).
Essa segunda acepção consagra o denominado “Garantismo Positivo ou So-
cial”, timidamente utilizado como fundamento para decidir pelo Poder Judiciário bra-
sileiro, mas cada vez mais recorrente em casos envolvendo a prática da corrupção,
conforme voto do Ministro Gilmar Mendes:

Pioneiramente, a Suprema Corte brasileira, no Recurso


Extraordinário nº 418.376-5, através do relator, o Ministro Gilmar
Mendes se pronunciou a respeito do tema: [...] quanto à proibição
de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma
espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo
negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos
do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade.
A proibição de proteção insuficiente adquire importância na
aplicação dos direitos fundamentais de casos em que o Estado

147
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir


a proteção de um direito fundamental. (BRASIL, 2006, p. 688).

Feldens, em consonância com a acepção do Princípio da Proporcionalidade


de proteção suficiente do bem e em conformidade à teoria do Garantismo Positivo,
apresenta três condicionantes da relação entre a Constituição e o Direito Penal: 1. A
Constituição como limite material do Direito Penal; 2. A Constituição como fonte va-
lorativa do Direito Penal; e, 3. A Constituição como fundamento normativo do Direito
Penal incriminador (FELDENS, 2012, p. 64-65).
Ao estabelecer no art. 5º, XXXIX, o princípio da estrita legalidade, a Cons-
tituição delegou a decisão de descrever as condutas criminosas e sanções a elas
atribuíveis.
O princípio da legalidade - um dos pilares universais dos sistemas penais de-
mocráticos – representa norma de garantia individual, confirmando a tradição legisla-
tiva desde a Carta Política do Império de 1824 (art. 179, § 11) e das Constituições da
República de 1891 (art. 72, §1); de 1934 (art. 113, §§ 26 e 27); de 1937 (art. 122, §13);
de 1946 (art. 141, §29); de 1967 (art. 150, §16); de 1969 (art. 153, §16).
Na ótica do Garantismo Social, esse princípio importa no dever do Estado de
proteger suficientemente bens jurídicos: tanto legislando, quanto aplicando a pena de
modo a não fomentar a sensação de impunidade e injustiça que conduzem à anomia
e ao justiçamento privado.
Um dos aspectos que sob essa ótica deve ser levado em consideração é a
taxa de vitimização que oculta a quantidade de crimes que não são formalmente re-
gistrados, mas que são inexoravelmente sentidos pela população.
Nesse esteio, a primeira pesquisa nacional de vitimização feita no Brasil quan-
tifica e caracteriza doze tipos de ocorrências passíveis de registro policial no país,
revelando a taxa de provável subnotificação para cada uma delas e mapeando inci-
dências e frequência com que elas acontecem em cada unidade da federação e nas
respectivas capitais. A pesquisa apresentou a prevalência desses crimes alguma vez
na vida e a sua incidência nos 12 meses anteriores à coleta de dados, sendo certo que
foram aproximadamente 78 mil entrevistados em 346 municípios, no período de junho
de 2010 a maio de 2011 e junho de 2012 a outubro de 2012 (DATAFOLHA, 2013).
Como é cediço, para que um crime faça parte das estatísticas oficiais são
necessárias três etapas sucessivas: o crime deve ser detectado, notificado às autori-
dades policiais e por último registrado no boletim de ocorrência.
Pesquisas de vitimização realizadas no Brasil sugerem que, em média, os
organismos policiais registram apenas um terço dos crimes ocorridos, percentual que
varia de acordo com o delito. Além disso, o aumento das estatísticas oficiais de cri-
minalidade podem estar refletindo flutuações causadas por práticas policiais mais ou
menos intensas, ou por modificações de ordem legislativa, ou administrativa (MORA-
ES, 2016, p. 291-292).
Quando analisada, por exemplo, a sensação de segurança, diferentes fatores
influenciam o sentimento de medo: quando o entrevistado se encontra sozinho em
casa, verifica-se que a maioria sente-se segura (84,7%), contra 14,9% que se sentem

148
REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.16, 2019: 132 - 161

inseguros. Os homens (66,1%) sentem-se muito mais seguros do que as mulheres


(50,1%). Interessante observar que a sensação de segurança dos entrevistados, de
modo geral, aumenta quando estão acompanhados em casa; assim, a grande maioria
(94,1%) sente-se seguro quando está acompanhado em casa, sendo que 72,6% sen-
tem-se muito seguros (MORAES, 2016, p. 291-292).
“Onde estava quando ocorreu o crime, quem eram os agressores (desconhe-
cido, conhecido de vista, vizinho, colega de trabalho, amigo, marido/esposa, ex-ma-
rido/ex-esposa, chefe, irmão, policial, cunhado, pai/mãe, filhos, ex-namorado, profes-
sor etc)”, correspondem a exemplos de parâmetros utilizados para a realização da
pesquisa e que, a rigor, indicam caminhos diferentes de persecução penal, prevenção
e repressão que hoje são praticamente ignorados pelos agentes de justiça e seguran-
ça em sentido amplo (MORAES, 2016, p. 291-292).
Para grande preocupação, constatou-se que a subnotificação média para a
vitimização anual no Brasil é de 80,1% e crimes extremamente graves, como as ofen-
sas sexuais e discriminação, apresentaram taxas de registro praticamente insignifi-
cantes: 7,5% e 2,1% (ANEXO - TABELA II).
Chama a atenção, ainda, o fato de que apesar da pequena comunicação para
alguns tipos penais, o Brasil desponta na incidência de certas ocorrências entre os
países com as maiores populações carcerárias em números absolutos. É o caso, por
exemplo, do estupro (ANEXO - TABELA III).
No que diz respeito ao crime de homicídio, a realidade brasileira demanda
especial atenção: 25,2 casos a cada 100 mil habitantes, o que nos aproxima dos 10
países com as maiores taxas (ANEXO - TABELA IV).
Efetuando-se uma análise a partir dos países com as maiores populações car-
cerárias, em números absolutos, verificar-se-á algo ainda mais estarrecedor: o país
ocupa a 2ª posição, perdendo apenas para a África do Sul, com 31 homicídios a cada
100 mil habitantes (ANEXO - TABELA V).
Infelizmente, constatação semelhante foi verificada no que tange ao crime de
roubo. Dentre os países da América Latina, o Brasil aparece na 3ª posição, com 572,7
casos a cada 100 mil habitantes.
Esse panorama nacional só não é pior que a Argentina e o México, respectiva-
mente com 973,3 e 688 ocorrências em 100 mil habitantes, respectivamente (ANEXO
- TABELA VI).
Especialmente ao tratar do crime de roubo, alguns estudos apresentam nú-
meros divergentes. É o caso, por exemplo, da situação mexicana divulgada no Regio-
nal Human Development Report e que indica 504,7 casos a cada 100 mil habitantes.
Neste contexto, inclusive, o Brasil, mais do que assumir a 2º posição entre
os países da América Latina com a maior taxa de roubo, também teria o maior índice
entre os países com as maiores populações carcerárias (ANEXO - TABELA VII).
A análise jurimétrica e objetiva dos dados acima referidos permite que se com-
preenda porque “segurança pública”, “política penitenciária” e “política criminal”, como
bens que merecem tutela e exigem transparência e eficiência, demandam o correto
uso da jurimetria ou adequada análise criminal, seja para rechaçar o discurso vazio
de crítica do número de pessoas presas no Brasil, seja para explicitar a deficiência no

149
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

sistema de segurança pelas altas taxas de cifras ocultas.


Isso porque ao se descortinar que o maior e mais populoso da América Lati-
na possui índices crescentes de criminalidade e o Estado não investe o suficiente no
sistema prisional, só restam duas saídas: o Governo muda o discurso de que o Brasil
não tem a terceira população carcerária do mundo, ou reconhece e investe no siste-
ma, assumindo que prende mal e não fornece garantias suficientes de segurança à
sociedade e nem tampouco dignidade suficiente aos que estão encarcerados.

6 CONCLUSÕES

É certo, conforme já mencionado, que o direito penal contemporâneo, como


bem acentua Hassemer, caracteriza-se pelo caos normativo, pela descodificação e,
no caso brasileiro pela adoção indiscriminada de um direito penal simbólico (HASSE-
MER, 1993, p. 39).
Some-se a isso a ineficiência do Estado em executar políticas públicas básicas,
o que contribui para acentuar os índices de determinados tipos de criminalidade, além
da ineficiência em fiscalizar medidas não detentivas e executar adequadamente a po-
lítica que se espera minimamente razoável no sistema penitenciário (MORAES, 2015,
p. 17-37).
Ademais, o aumento da sensação subjetiva de insegurança da população, em
virtude da globalização do crime, da informação instantânea das mazelas sociais e do
avanço tecnológico dos meios de comunicação, desencadeia a indevida utilização do
direito penal como instrumento para soluções aparentemente eficazes a curto prazo:
consolida-se o modelo de “direito penal de emergência” (MORAES, 2015, p. 17-37).
Não se discorda que a taxa de ocupação dos estabelecimentos penais do
país é alarmante, assim como é extremamente preocupante a enorme quantidade de
presos provisórios a aguardar julgamento.
Conforme exposto no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
– INFOPEN (DEPEN, 2014, p. 20), “41% das pessoas privadas de liberdade são pre-
sos sem condenação”.Este fenômeno, além de contribuir para a superlotação e au-
mento dos gastos públicos, traz irreparáveis consequências aos que sofrem medida
tão drástica.
Contudo, diferentemente do que faz crer o Levantamento Nacional de Infor-
mações Penitenciárias – INFOPEN (DEPEN, 2014), o Brasil está longe de adotar uma
política de encarceramento desmedida e destoante dos altos índices de criminalidade.
Quando pesquisas apontam que a subnotificação média para a vitimização
anual no Brasil é de 80,1%, constata-se ser extremamente frágil o argumento de que
o país caminha na “contramão da trajetória dos demais países de maior contingente
prisional” (DEPEN, 2014, p. 8).Isto porque, a taxa de aprisionamento não deverá ser
reduzida em razão da sua “demonização”, mas sim com o enfrentamento das políticas
públicas ineficazes adotadas, reflexo de discursos retóricos, sem qualquer alcance
pragmático.
Insistir nesse discurso falacioso e meramente retórico afasta a essência do
fundamento do direito de punir.

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A equação de Moraes Jr., ao tratar da punição, é precisa:

nem há de ser tão rápida que o delinquente virtual considere positiva a


relação custo/benefício – se a pena é insuficiente, o risco sempre vale
a pena –, nem tão longa que o criminoso potencial nela veja menos
uma ameaça a temer e mais um desafio a enfrentar (o peso e a régua)
(DIP; MORAES Jr., 2002, p. 24).

Em suma, a delimitação das infrações de menor potencial ofensivo (sujeitas


a medidas despenalizadoras), alto potencial ofensivo (rotuladas de hediondas, assim
como aquelas praticadas por organizações criminosas, além dos crimes praticados
com violência ou grave ameaça à pessoa) e médio potencial ofensivo (hoje a maio-
ria da criminalidade de massa assim tratada de forma residual e, em regra, sujeita a
penas restritivas de direitos), por gerarem diferentes efeitos aos acusados e custos
diversos às vítimas e ao Estado, devem compor os critérios de “custo social e econô-
mico da norma” para costumeira análise de custo-benefício da decisão política que
será tomada, assim como do consequente controle (MORAES, 2016, p. 367).
Ademais, essas classificações e adjetivações, por gerarem consequências
completamente distintas, devem ser revistas não pela quantidade da pena, mas pelos
bens jurídicos que tutelam.
Com efeito, se é inevitável a funcionalização do direito penal contemporâneo;
se é inexorável que a política criminal seja pensada e orientada pelas consequências;
se todas as mais recentes teorias de penas tem caráter relativo por serem pautadas
pela prevenção; se em uma sociedade complexa e contingente somente é possível
reduzir parcialmente a complexidade através da fixação de parâmetros mínimos de
eficiência que permitam a cobrança por resultados e, consequentemente a diminuição
da sensação subjetiva de insegurança; a fórmula de uma política criminal racional de-
veria necessariamente compreender a preocupação com o custo-benefício do crime
para o infrator e da penalização frente à tolerância social da infração (MORAES, 2016,
p. 267).
Silva Sánchez, por exemplo, sustenta que o custo social da tolerância do de-
lito é sempre superior à vantagem concreta individual que o sujeito obtém com o ato
delinquente (SILVA SÁNCHEZ, 2004, p. 37-38).
De qualquer sorte, como bem observa Bittar, nenhum tipo de solução pode
ser dada enquanto persiste a “dicotomia que separa sociedade civil de Estado e tor-
na a cidadania uma expectativa passiva dentro da representatividade política, ou no
quietismo alarmante que silencia e compactua sem mobilização consistente ante o
cataclisma social” (BITTAR, 2014, p. 213-214).
Essa assertiva é profundamente relevante.
Se o “encarceramento não resolve”, é preciso ao menos investir em inclusão
social e prevenção, pois, no atual cenário, quando nos deparamos com os altos índi-
ces de criminalidade e subnotificação, a certeza é uma só: há um enorme sentimento
de impunidade entre os infratores e uma grande descrença no Poder Público por parte
das vítimas.
Santos, afirmou, sobre tal ponto:

151
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

Efetivamente, a impunidade é um fator criminógeno, ou seja, a ausência


de punição aos que cometem infrações penais contribui para a geração
do perverso efeito de aumentar o número de crimes. Por via reversa,
o enfrentamento competente da criminalidade – conjuntamente com
a tomada de providências outras, como investimento em educação,
saúde, habitação, combate ao desemprego, diminuição das
desigualdades sociais, dentre outras ações – provoca a diminuição da
incidência de infrações penais (SANTOS, C., 2010, p. 179).

Não se pode igualmente ignorar a ideia de que a construção de novas uni-


dades prisionais (penitenciárias e colônias penais) representa maior segurança à po-
pulação em geral e um maior respeito aos direitos humanos dos presos, que têm o
direito de cumprir suas penas em locais adequados com a preservação da dignidade
de todo e qualquer ser humano.
É preciso, ademais, além do incremento de unidades prisionais, investir em
educação, em saúde, em produção de empregos, mas também em monitoramento
eletrônico e na fiscalização das medidas e penas cumpridas fora do cárcere.
Em suma: nem excessos do Estado, nem proteção jurídica deficiente. Ou, no
sereno dizer de Hungria:

Nem escravos, nem déspotas. Nem o Estado exclusivamente para o


indivíduo, nem o indivíduo exclusivamente para o Estado, mas ambos
para a conquista e promoção do autêntico bem de cada um e de todos,
o que em última análise, é a própria finalidade do direito (HUNGRIA
1955, p. 22).

É preciso, pois, enfrentar o dilema de como proteger as novas demandas


sociais sem ferir garantias individuais e, ao mesmo tempo, estabelecer um modo de
adotar procedimentos de criminalização com serenidade e bom senso, sem tipificar
condutas que desatendam duplamente o princípio da proporcionalidade.
A política criminal do contexto pós-moderno e democrático não pode servir de
instrumento ideológico, nem tampouco como mecanismo para ocultar as omissões do
Estado. Não se admite mais políticas criminais praticadas sem suporte empírico e sem
respaldo da jurimetria.
É preciso, portanto, transparência para uma política criminal efetivamente efi-
ciente e que respeite a dignidade humana, tanto da perspectiva do delinquente quanto
das vítimas.

ANEXOS

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REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.16, 2019: 132 - 161

TABELA I

Vagas necessárias 670.243

Mandados de prisão aguardando


478.975
cumprimento**

População no sistema* 548.490

Vagas 357.219

0 200.000 400.000 600.000 800.000

*Considerando que, dos 711.463 presos, descontar-se-ão aqueles não incluídos no


sistema carcerário (mais precisamente 147.937 em prisão domiciliar (CNJ, 2014),
bem como 15.036 em regime aberto (DEPEN, 2014), totalizando 548.490, entre ho-
mens e mulheres.
**Dados fornecidos pelo Banco Nacional de Mandados de Prisão (CNJ, 2018), sem
considerar o regime prisional, eventuais casos de extinção da punibilidade e/ou du-
plicidade para pessoas com mais de um mandado.

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A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

TABELA II

% de crimes informados
Discriminação 2,1
Ofensa sexual 7,5
Fraude 11,6
Agressão 17,2
Furto de objeto 22,6
Acidente trânsito 33,2
Roubo de objeto 41,3
Sequestro 63,5
Furto de carro 69,5
Furto de moto 70,3
Roubo de moto 80,7
Roubo de carro 90
Total 19,9
0 20 40 60 80 100

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TABELA III - ESTUPRO EM GRUPO DE 100 MIL PESSOAS NOS PAÍSES COM AS
MAIORES POPULAÇÕES CARCERÁRIAS (HEUNI; UNODC, 2010)

Estupros por 100 mil habitantes


Indonésia 0,7
África do Sul 113,5
Irã**
México 12,8
Tailândia 8
Índia 1,7
Rússia 4,8
Brasil* 23,5
China 2,8
EUA 30,2

0 20 40 60 80 100 120

* Dados obtidos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2015 (FÓRUM


BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA), referentes ao ano de 2014.
** Os dados do Irã não apresentaram consistência para análise.

155
A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

TABELA IV (UNODC, 2014)

Homicídios por 100 mil habitantes


Honduras 90,4
Venezuela 53,7
Belize 44,7
El Salvador 41,2
Guatemala 39,9
Jamaica 39,3
Lesoto 38
África do Sul 31
Colômbia 30,8
Trinidad e Tobago 28,3

0 20 40 60 80 100

TABELA V - HOMICÍDIOS EM GRUPO DE 100 MIL PESSOAS NOS PAÍSES COM


AS MAIORES POPULAÇÕES CARCERÁRIAS (UNODC, 2014)

Homicídios por 100 mil habitantes


Indonésia 0,6
África do Sul 31
Irã 4,1
México 21,5
Tailândia 5
Índia 3,5
Rússia 9,2
Brasil 25,2
China 1
EUA 4,7

0 5 10 15 20 25 30 35

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TABELA VI - ROUBOS EM GRUPO DE 100 MIL PESSOAS NOS PAÍSES DA


AMÉRICA (UNDP, 2013)

Roubos por 100 mil hab.


Paraguai 18,2
Panamá 62
Guatemala 67
Nicarágua 71,5
Bolívia 86,3
El Salva-dor 88,3
Rep. Dominicana 210,9
Venezuela 211
Peru 217
Honduras 276,3
Costa Rica 397,6
Uruguai 456,5
Chile 468,1
Brasil 572,7
México 688
Argentina 973,3
0 200 400 600 800 1000 1200

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A POPULAÇÃO CARCERÁRIA NO BRASIL: UM RETRATO DA IMPUNIDADE?

TABELA VII - ROUBOS EM GRUPO DE 100 MIL PESSOAS NOS PAÍSES COM AS
MAIORES POPULAÇÕES CARCERÁRIAS (HEUNI; UNODC, 2010) 6

Roubos por 100 mil habitantes


Indonésia 29,8
África do Sul 494,5
Irã 114,4
México 504,7
Tailândia 107,1
Índia 1,6
Rússia 90,3
Brasil* 572,7
China 24,5
EUA 146,4

0 100 200 300 400 500 600

*Dados extraídos do “Regional Human Development Report” (UNDP, 2013).

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6 Devem ser consideradas as diferentes concepções para o termo “roubo”.

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Submetido em: 13/09/2019


Aprovado em: 11/10/2019

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