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DIFERENGAS CULTURAIS E EDUCACAO Construindo Caminhos VERA MARIA CANDAU (org) y { 0 Latina:uma construc¢ao slural, original e complexa Vera Maria Ferrio Candaut Kelly Russo? Introdugio publicos, do con- configuracio especifica, articulada cor histéricas e politicoculturais de cada rea rer eee ees ce Pere cee a — de de acesso a bens e serv'cos ¢ reconhecimento politico e cultural. Esses movimentos nos colocam diante da realidade histérica do continente, marcada pela negagio dos “outros”, fisica ou simbéli- a, ainda presente nas sociedades latino-americanas. ~ A construgio dos estados nacionais no continente latino-ameri- cano supés um proceso de homogeneizacio cultural em que a educa; escolar exerceu um papel fundamental, tendo por fun- gio difundir e consolidar uma cultura comum de base ocidental e eurocéntrica, silenciando e/ou invibilizando vozes, saberes, cores, ilidades. E neste universo particular de questées, conflitos e buscas que si- tuamos a emergéncia da perspectiva intercultural no continenre. ‘Um processo onde redisiribuicdo e justica cultural siio pélos que se exigem mutuamente e que compéem bandciras de luta na atual dindmica social e politics da América Latina, crengas e sei Neste trabalho, partimos da afirmagio de que a preocupasio por uma educagio que respeite ¢ valorize as diferencas culturais nic exclusiva da América Latina, mas emerge e se configura de modo original no nosso contexto. Desde 2006 vimos desenvolvendo um projeto de pesquisa, com 0 apoio do CNPq, intitulado “Multien!- turalisma, Direitos Humeanos e Educagdo: a tensio entre igualdade ¢ diferenga”, que tem como um dos seus objetivos analisar como a problematica da educagio intercultural tem se desenvolvido em diferentes paises latino-americanos. Perseguindo este objetivo, foram realizados diferentes seminarios c entrevistas a professores universitérios e miitantes de movimea- tos sociais e organizagdes no governamentais do Peru, Bolivia, Equador, Guatemala e México. Através das entrevistas e do levan- tamento bibliogréfico regional, procuramos identificar as diferen~ tes perspectivas e questées suscitadas pela educacio intercultural em ceda um desses paises e no continente como um todo, Existe hoje uma ampla produsao latino-americana sobre esta te~ mitica, de modo especial nos paises de colonizacio espanhola e, entre estes, nos paises andinos. A produco brasileira vem crescen- do de modo significative nos tiltimos anos, principalmente apés {2 Constituigéo de 1988, que reconliece a especificidade cultural ie populacées indigenas ¢ quilombglas existentes no pais. No en~ tanto, ainda precisa ser aprofundads o diflogo entre a produco brasileira ¢ 2 dos diferentes paises da América de colorizagio es- panhola sobre as questdes suscitadas na atualidade pele educagio intercultural. E a partir destas observacdes preliminares que situamos o pre- sente trabalho que pretende unicamznte, com cariiter provisério inicial, oferccer agumas aproximagdes A problematica das relagoes entre interculturalidade ¢ educasio no continente, a partir do le- vantamento bibliografico e das entrevistas realizadas. Um ponto de partida consensual: a educagao indigena ‘Toda a produgio bibliografica que analisamos, assim como os depoimentos dov/as entrevistados/as dos diferentes paises foram uuninimes em afirmar que o termo interculturalidade surge na América Latina no context educacional ¢, mais predsamente, com referencia a educagao escolar irdigena, Neste sentido, € im- portante que apresentemos brevemente a trajetdria da educagio escolar indigena no continente. Neste resgate nio pretendemos negar a grande diversidade de situagdes ¢ os diferentes contextos cnde se di o seu desenvolvi- mento. Também no propomos a existéncia de uma linha tinica ¢ progressiva da histdria da educagio escolar na América Latina, visto que o inicio de uma nov fase nio significa o término da anterior, pois em muitos momentos elas ocorem sobrepostas uumas s outras. Apresentamos aqui, cpenas um esforco e identi~ ficar as raizes do pensamento intercultural no continente. Com essas ressalvas feitas, podemos identificar quatro rincipais tapas no desenvolvimento da educasto escolar indigent. A pri- meira'se desenvolve do periodo colonial até as primeiras décadas do século XX e pode ser caracterizada por uma violencia etaocén- trica explicita de imposicio da cultura hegeménica sobre as pop- laces indigenas. Eliminar o “outro” foi a tonica do periodo colo- nial ea partir das primeiras décadas do século KX essa eliminagio se configura de outra forma: a ‘assimilagao". Base de construgio da homogeneidade requerida pelos estados nacionais modernos,” ‘Nesta segunda etapa, susgiram as primeiras escolas estatais bilin- gues voltadas para os povos indigenas. Pela primeira vez outras Iinguas além da oficial, conviveria no espago escolar. Mas com ra~ ras e preciosas excecGes!, estas escolas viam o bilinguismo apenas como uma etapa de transigGo necesséria: um modo para alfabe- tizar ¢ “civilizar” mais facilmente, povos inteiros. Uma das aga cids de maior influéncia para o estabelecimento do bilinguismo de transicfo na Américz. Latina foi a organizacio estadunidense Summer Institute of Linguistics. Foi gracas a suas atividades junto a diferentes Governos latino-americanos, que se estabelecet uma percepciio comum sobre as “diferentes etapas” necessdrias parc a “transigio” do indio 4 cxtegoria de “trabalhador rural” ou “cam~ pesinc”, Nesta proposta, a escola era vista como um “motor de desenvolvimento comunitério” onde, “através de explicagées dacas na lingua materna, a crianga conseguiria entender muito melhor € transmitir para os pais cs conceitos e valores da cultura nacional” (Kindall; Jones, 1958, apud Collet, 2001, p.77) Com esse objetivo fundemental, inguas indigenas foram sistema tizadas ¢ transcritas pari a escrita e influenciar fortemente as pol legs edusadores de dents pals ca Arrca Latina, mosuaranse 1 visdo Limitada do bilingviara e procuraan desenoler formas aterrasvas ignaa Lopes e Koper (1999) semplica agus ‘oa: expusénsiaa ococricae ma cidade de Cajambe, ao Equador ex em Puno, no Fens, Deseamas ‘malo especial, a experéncia de Wareats Escola Ay, deseavlvida na Bolivia ere 1951 e 190, organizada e extutunds pac do sstea de eferencia cltrase soca as- teotes nc eocledade Aimar, Além depres blingus, Warlara inclu uma dana ‘i tale, um peacro exemple de rns sobre a experéncaver de 1970, quando se inicia uma nova etapa de desenvolvimento da educagio escolar indigena a partir das experiéncias alternati- vas protagonizadas por liderancas comunitirias, em parceria com universidades e setores progressistas da Igreja Catélica. Entre as décadas de 1960 e 1980, organizagdes governamentais ¢ nio-go- ‘vernamentais voltadas para a defesa da causa indigena comegaram a emergir no cenirio internacional. Neste novo perfodo foram produzidos materiais didéticos alter- nativos € programas de educagao bilingue que, apesar de ainda buscarern uma melhor “integrasio” dos grupos ais sociecades na- cionais, reconheciam o direito desses povos de fortalecere manter a cultura local. O bilinguismo deixa de ser visto apenas como ins- trumento civilizatério para ser considerado de importincia fun- damental para a continuidade dos préprios grupos mino:itirios. No Peru, a Universidade Nacional Maior de Sio Maccos, por exemplo, exerceu grande influéncia no desenvolviment de um projeto piloto de educacio bilingue com uma maior participagéo de liderangas quéchuas durante a década de 1970 (Lépe2; Kiipes, 1999), no Brasil, neste mesmo pericdo, a Universidade Estadual de Campinas desenvolveu 0 Projeto de Educagao Indigena “Uma cia de Autoria”, que defendie como proposta bisica a in~ tegragio entre o processo cultural Iccal ¢ 0 saber sistematizado universal procurando assim, valorizar as priticas sociais dos povos indigenas integrantes do programa (Ferreira, 2001, p. 91). Apesar de importantes, essas experiéncias e oatras scmelhantes permane- Ceram isoladas, sem o apoio das instituicdes governamentais até 0 final da década de 1980, icia o que denominamos de Quarta ctapa na ecucagio escolar indigena do continente, quando s proprios indigenas passam a participar das definigées para o setor educativo. Na nova configuragio, o bilinguismo deixa de ser visto apenas como estratégia de transigfo ou meio para manutencio de uma cultura ameagada, para ser inserido em um discurso mais amp! onde a perspectiva intercultural pressiona o modelo escolar clés- Sico e inclui nela nao apenas diferentes linguas, mas, sobretudo, SS _ diferentes culturas. Lutas indigenas antes iscladas, protagonizadas por cada etnia em particalar, passaram a ser unidas sob uma iden- tidade comum “indigena’ ea ter reconhecimento ¢ espago interna~ ional principalmente ns tikimas décadas.‘ Lépez (2004) lembra que, tanto em paises com populacio majositariamente indigena, como é 0 caso da Bolivia (aproximadamente 65%), como naqueles com populaso minoritiria, como € 0 caso do Brasil (0,396), tém surgido, cada vez mais forte, uma exigéncia comum por escolas coordenadas e gerencindas por professores indigenas. ‘A experiéncia de escolas interculturais indigenas desenvolvidas no continente incluiram uma nova dimensio sobre a ideia mesma de cultura no espaco escolar. Diferentes Iinguas foram 0 passo inicial paraa proposigio de ur didlogo entre diferentes culturas. Outzos grupos contribuiram pera a ampliagiio da discussio sobre ecu- cacio ¢ interculuralismo, entre eles estio cs movimentos neg-os Jatino-americanos. Interculturalidade e movimentos negros ‘A construgio de uma icentidade nacional para cada novo Estedo Jatino-americano signifcou a exclusio e invisibilidade para todos aqueles que nao se reconheciam na cultura européia. Assim como os indigenas, culturas de matriz. africana nfo encontraram espaco nna educagio escolar ¢ até hoje encontram dificuldade de difuszo no continente. Importante destacar que a situagio dos grupos negros no con- tinente varia muito em relagio realidad: de cada pais. Se em alguns casos foi praticamente eliminada, como na Argentina, em outros constitui a grande maioria da poptlagéo, como em Cuba ou Haiti, Ha situagées em que estio circunscritos a algumas regi- 4 Sio sito sep de ens inten elas © opin pos lke {neligeas de diferenresregies Jo condnene. Extsencontros mbm significa um interesante pag de aprendzagern miu ene squ vivencum ralidides muito diferent: em ‘ida onto nacional Sabre o tena ver: Mato, 2003; Russo, 2007 ay es e/ou nticleos rurais, como no Equador ou Bolivia, em outras esto presentes nas principais zonas urbanas do respectivo pafs, como € o caso do Brasil ou Colémbia. Sua presenga permeia de variadas formas as sociedades nacionais em diferentes ambitos, ¢ diversas proporgées. : Apesar da realidide dos grupos ¢ movimentos negros ser muito heterogénea e diferenciada na regitic, é possvel afirmar que estes grupos foram, em geral, reduzidos a uma posicio de nio cidadania até a metade do século passado, Torna-se necessario lembrar que © regime escravocrata persistin em alguns paises até c final do século XIX. [A situagio dos aXrodescentes na maior parte do continente tem sido configurada por processos de violéncia e exclusiio fisica, social e simbélica. No entanto, em diferertes nagées, foram muitas as lutas de grupos afrodescendentes por condigdes de vida dignas ¢ combate discriminagio e 0 racismo. Estes grupos tém se carac~ sténcia e por suas luras contra o racismo em suas diferentes manifestaces, assim como pela afirmagio de direitos e plenitude de cidadania, 0 que supde roconhecimento de suas identidades cultu-ais. Mas, apesar desses temas serem bastante atuais nas discussdes so- bre educagio e interculturalismo no zontinente, foi dificil encon- trar na producto bibliogréfica latino-americana sobre a sducagio intercultural, refe:éncias is contribuig6es dos grupos e movimen- tos negros. Em geral, sto fartas as informacdes sobre o desen- volvimento da ecucagio escolar indigena e escassas aquelas que tenham como foro a agéo de outros grupos populares. Por essa razo, consideramo: rtante destacar no contexto des- se estudo ~ que visa rever a trajetéria de desenvolvimento da edu- cago interculture] em nosso continente ~ algumas contribuigées dos movimentos negros que tém tido uma atuagdo significativa na esfera piiblica de seus respectivos paises. Um primeiro aspecto re- fere-se & deniincia das diferentes manifestag6es da discriminacio, racial presentes nas socicdades latino-americanas. Nestas realida~ 08 grupos que no podem ser incorporados nesta categoria e suas contribuigdes para a construgio das respectivas sociedades. Tgualmente importante € 0 reconhecimento de que no continente se desenvolveu, com diferentes denominacdes, uma apologia da_ mestigagem, como 2 expressio democracia racial no n0ss0 pais, Gue Configurou um imagindrio sobre as relagdes sociais € raciais mantidas entre os diferentes grupos presen-es nas sociedades no-americanas caracterizado pela cordialidade. Elimina-se, assim, o confit, continuande a perpetuar esterestipos e preconceitos, pois, se seguirmos a légica dé que os diferentes grupos etnicora- cidig dééde 0 inicio do srocesso colonizador foram se integrando “cortialmente”, podemos pensar que as diferentes posigdes hie~ rrqiiicas entre eles devem-se & capacidade ¢ ao empenho dos in- dividuos e/ou & inferioridade de determincdos grupos. Esta ide’ se disseminow no imaginario social contribuindo para que as s0-| ciedades nfo se reconhzcessem como hierarquizadoras, discri i] nadoras e racistas. i O desafio que se caloce, neste sentido, é desvelar, desconstrui- esteredtipos raciais ¢ a visio do “racismo cordial” presente nas so~ ciedades latino-americenas, apesar desta expessio ser em si mes~ ma contraditéria. Ao mesmo tempo, requer o reconhecimento da diferenga como um dos elementos fundamentais de uma socieda- de democritica. Os movimentos negrot organizados tém também promovido lei- turas alternativas do processo histérico vivido e do papel dos ne- gros na formagao dos virios paises Iatino-americanos. Demardas porreparagdes por partz dos estados ¢ das sociedades, por medidas que visem ressarcir os afrodescendentes dos danos sofridos scb 0 regime escravista, assim como pelas politicas explicitas ou técitas de embranquecimento da populagio sto arresentadas e se referern a diferentes ambitos sociais, politicos e culturais. No que diz respeito a educagio, incluem politicas orientadas a0 ingresso, permanéncia e sucesso na educagao escolar, vilorizagio das identidades culturais negras, incorporago nos curticulos es- colares e nos materiais pedagégicos Je componentes préprios das culturas negras, essim como dos processos histéricos de resistén- cia vividos pelos grupos negros ¢ suas contribuigdes & construcio histérica dos diferentes paises. (A valorizagio da ancestralidade | africana constitui. um dos element0: findamentais desta aborda- | gem, principalmente para aqueles grupos que Iutam pelo reco- nhecimento de tzrritérios e neles pocuram implementar outros modelos de desenvolvimento. - Outro elemento importante que vein sendo incorporado por vi~ rios paises sio as politicas de ago « gestos mais simples da vida cotidiana, Cultura é comer de modo “diferente, é dar a milo de modo diferente, é relacionar-se com 0 | utzo de outro modo. A meu ver, a utilizagzo destes trés eoreei- tos — cultura, diferencas, tolerancia ~ é um modo novo de usar velhos conceitos. Cultura para nds, gosto de frisas, sto todas a5 manifestagbes himanas, inclusive 0 cotidiano,¢.é no-eotidiano aque se dé algo estencial: odescobrimento da diferenga. (FAUN- DEZ; FREIRE, 1985, p. 34). O reconhecinento da legitimidade do background cultural do analfabeto nfo era, para Paulo Freire, uma mera estratégia meto- dolégica. Trazia no seu bojo um medo de lidar com e diferenga cultural. Mais dc que um respeito distante e asséptico por essa diferenga, enfatiza-se e estimula-se’ a troca entre 08 sujeitos e os saberes ptesentes nas relacdes pedagégicas. Objetivava timbém 0 empowerment desse adulto, sempre em um sentido explicitamente referido as classes sociais subslternizadas e excluidas. Os “Circulos de Cultura” se multiplicaram por todo o tert nacional até sua climinagéo como ccnsequéncia do golpe militar de 1964. No entanto, o legado de Paulo Freire jé havia penetrado profundamente ras mentalidades ¢ nas priticas principalmente dos educadores populares. O exilio fez com que se multiplicassem, as experiéncias promovidas por Paulo Freire. Seu olhar se Sua produgio bibliogrifica se diversifica em didlogo com variadas realidades. Em diferentes paises da América Latina, Affica, Asia ¢ Buropa sua influéncia se fiz presente. As contribuigdes do sei} pensamento so hoje valorizadas mundialmente e constituem wma das referéncias iniludiveis das buscas de construgo de proposts! educativas que tenham presente os diferentes contextos sociocul-— turais eo didlogo entre diversos saberes. “ Pelo reconhecimento da relevancia ca dimensio cultural nas re~ lasdes pedagdgicas € pelo método dialégico que propo: imple- mentar nos processos educativos, pode-se considerar que o pensa~ mento de Paulo Freire jé adiantava aspectos importantes do que hoje se configura como a perspectiva intercultural na educagio. Segundo Gohn (2002, p. 67), : Nos anos 99 Fes destaca anda masa dimensto catural nos processos de transformagio social e o papel da cultura no ato ‘educacional, Além de reforgar seus argumentos em defesa de tuma educagio libertadora que respeite a cultura e a experiéneia anterior dos educandos, Freire aerta para as miltiplas dimen- s6es da cultura, principalmente a cultura midiftica. Ele chama atengfo pari o fato de que ela poser despertar-nos para alguns temas geracores que 0 proprio scber escolar ignora, ou valoriza POUCO, como a pobreza, a te. Destaca tambim que a idia trabalha e explora a sensibilidade das pessoas ¢ por isso consegue atrair ¢ monopolizar as atengGes, Seus livros escritos ‘nos anos 90 ~ de estilo mais literério ~ revelam um pensador preocupado com o futuro da sociedade em que vivemos, dado 6 crescimento da violéncia, da intolerancia e das desigualdades socioecondmicas. Ele destacard a importancia da ética e de uma cultura da diversidzde. O tema da identidade cultural gana ré- Tevincia na obra de Freire, assim como o da interculturalidads. incorporados alguns aspectos da diversidade cultural, orientados a promover a tolerincia, 0 respeito miituo e maiores espacos de ex pressio dos diferentes grupos sociocclturais, mas sempre limi Conforme denominado pelo pesquisador peruano Fidel Tubino (2005) uma “intercultualismo funcional’. ‘A partir das entrevistas realizadas com especialistes Iatno-ame- ricanos de diferentes paises, é possivel afirmar que segundo esta J6gica, a educagio intercultural é orientada, em seus respectivos paises, para determinados grupos étnicos, em geral indigenas, ¢ | io € incorporada de modo consistente nos processos educativos | Gferecidos a toda populacio. A interculturalidade oficial € desti- ‘nada apenas aos grupos subalternos, mas mio tensiona o surgir de} ‘uma nova relagéo social onde diferentes grupos co-cxistam sem, hierarquizagio de modelos culturais diferenciados. Surgem entio, dlferentes grupos que irio propor urna outra concepgio intercul- tural, comdlest oloiiais que apresentaremos a seguir. i Reformas educativas e interculturalidade ‘Ao longo de 1980 ¢ 1990, onze paises latino-americanos reconke ceram em suas Constituigdes, o caréter multiétnico, pluricultural e multilingue de suas sociedades®. Como consequéncia, politicas piblicas na érea educativa precisaram contemplar as difereneas | culturais. re Neste sentido, as diferentes reformas na érea de educagio incor poram a perspectiva intercultural, seja como umn dos cixos articu- Jadores dos curriculos escolares, scja introduzindo questdes relcti- xvas &s diferengas culturais como temas transversais. No entanto, se leste alargamento do conceito e de seu impacto sobre as politicas | pablicas pode ser visto como um significativo progresso, nfo deixa |de estar permeado|por ‘ortes ambiguidades) pois esta incorpora- Jo se da no contexto de governos que esti comprometidos com implementagio de politicas de carater neoliberal, que assumem | a légica da globalizagio hegeménica e a agenda dos principais | organismos internacionais. e Perspectiva critica e a educacao intercultural Esta perspectiva Zocaliza a interculturalidade como um dos com- ponentes centrais dos processos de tansformagio das sociedades latino-americanas, assumindo um cacéter ético e politice orientn- do construgio de democracias em que redistribuigio e reconhe- cimento cultural sejam assumidos como imprescindiveis para a realizaco da just.ga social. Neste texto privilegiaremos a apresentacao, de modo sintético, da proposta de um grupo formado por pesquisadores que ven desen- volvendo, a partir da presente décads, em didlogo com militantes de movimentos sociais, um programa de investigagio sobre “mo- dernidade/colonialidade”. Entramos em contato com a produgio deste grupo em 2005, através da frofessora Catherine Walsh, coordenadora do programa de doutorado em Estudos Culturais Latino-americanos, da Universidade Andina Simon Bolivar de Quito (Equador). A incorporagio do discurso da interculturalidade neste contexto se di com uma abordagem orientada a inibir conflitos explicitos 5 Argentina, Bolivia, Beas, Colémbia, Equador, Guatemala, Misico, Nicer, Paragual, Fer © ar de m0 Para ela, © conceito de sulturalidade 6 central A (re)eonstrugio de uum pensamento eritico-outro ~ um pensamento exitico de/desde outro modo -, precisamente por trés razées principais: primeio porque é vivido e pensado desde 2 expesiéncia da colonialidade [ul segundo, porque reflete um pensamento nto baseado 12s egados eurocéntricas ou da modernidade ¢, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta a geopolitica d>~ minante do conhec' mento que tem tido seu centro no norte glo- bal (Walsh, 2005, p. 25). {FA produgfo deste grupo em como uma de suas referéncias as con~ | tribuigdes do ponto de vista politico, social e cultural do peruano ‘Anibal Quijano ¢ do argentino Walter Mignolo. Aprofundar na mpreensio de categorias como geopolitica do poder e do saber, (0 sere da natureza, pensamento critico fronteirigo, de-colonialica~ de, entre outras, é fundamental para penetrazmos na tessitura desta \abordagem. Nio pretendemos realizar neste momento esta empr=i- frada, certamente complexa e que ultrapassa o objetivo do presente “Fexto. No entanto, sto necessirias algunas incursées na problemé- tica que estas categorias pretendem abordar, para que possamos ter um entendimento bisico da interculturalidade critica e decolonial proposta por este grupo ¢ suas implicagoes educacionai Em primeiro lugar, é importante distingui: descolonizagio ¢ de- coloaialidade. Os paises latino-americancs conquistaram desde o século XIX sua independéncia politica, no entanto, segundo o I6gica colonial penctrou pro~ fundamente as estruturas, es, mentalidades e subjetivida- des de tal maneica que continua presente e configura as sociedales Iatino-americanas. ~ ‘A colonialidadé do poder refere-se aos padrées de poder baseados em ima hierarquia triGal, sexual) e na formagio e distribuicao de identidades (brancos, mestigos, indios, negros). Quanto & colonia lidade do saber cefere-se 20 carter eurocéntrico ¢ ocidental como iinica possibilidade de se construir um con’i¢cimento considerado ciestifico ¢ universal, regando-se outras ligicas de compreensio do mundo e produgao de conhecimento, consideradas ingénuas ou pouco consistentes. A colonialidade do ser supde a inferioriza- gio e subalternizigo de determinacos grupos sociais, particular mente os indigenas ¢ negros. Walsh (2006) menciona também a colonialidade da natureza, cntendida como a afirmacio da divisio | bindria entre natureza € sociedade ¢ a negagao de perspectivas em | | que estas realidades estio entrelagadss e se articulam também com | a dimensio da espiritualidade. Esses autores acreditam que a perspectiva intercultural é um ¢a~ minho para desvelar os processos de de-colonialidade e construir espacos, conhecimentos, priticas que permitam a construgio de sociedadles distintas. Para Walsh (2006, p. 21), ‘Mais do que um simples conceito de inter-relagao, a intercultu- ralidade asinala ¢ significa prozessos de construgio de conhe~ cimentos ‘outros’, de uma pritise politica ‘outra’, de um poder social ‘outro, de uma sociedade ‘outra’, formas diferentes de pensar e atuar em selucto ¢ cont-a a modernidade/colonialidade, tum paradigma que é pensado através da pritica politica. A interculturalidade ¢ entio concebida como uma estratégia ética, politica e epistémical Nesta perspectiva os processos educativos Sao findamentais. Através deles questiona-se a colonialidade pre~ sente na sociedale € na educagio, desvela-se 0 racismo ea ra~ cializagao das relagées, promove-se 0 reconhecimento de diversos saberes ¢ 0 didlogo entre diferentes conhecimentos, combate-se as diferentes formas de des-humanizacio, estimula-se a construgiio de identidades culturais e 0 empoceramento de pessoas e gru- contribuigdes de Paulo Freire e de Frantz Fanon® é const construgio de propostas educativas que assumam a perspectiva da educagio intercultural critica e deco.onial. 1 Fanoa (192 6 Fran 8x Tee, (2005). Lopes (2007, p. 21-22) sintetiza da seguinte maneira o process de incorporagio da perspectiva intercultural no continente: Nestes trinta anos, desde que o termo foi acunhado na regiio,a aceitacio da nogio transcendeu o ambito dos programas e pre~ jetos referidos aos indigenas e hoje um mimero importante ce ppaises, do México a Terra do Fogo, veem acla uma possibilidace de transformar tanto a sociedade em seu conjunto como também 0s sistemas educativos nacionais, no sentido de uma articulago mais democritica das diferentes sociedades e povos que integram tum determinado puis. Desde este ponto de vista, 2 interculturali- dade supe agora também abertura diante das diferengas étnicas, culturais ¢ linguisticas, aceitaso positiva da diversidade, respeito rmiituo, busca de consenso e, ao mesmo tempo, reconhecimentoe Consideracées finais Procuramos neste texto defender a tese de que a educagiio intercul- tural na América Latina tem uma trajetéria propria e bastante ori~ ginal. Emerge das preocupagées com 2 educagao escolar dos grupos indigenas, constituindo esta sua matriz de origem. Também con- wibuem para o aprofundimento ¢ enriquecinento da perspectiva intercultural, na nossa leicura, as lutas e propostas dos movimentos negros organizados presentes em diferentes paises do continenve, assim como as miiltiplas =xperiéncias de educagao popular Em diferentes paises a interculturalidade foi assumida por politicas piblicas distintas, particularmente no ambite educacional, mas,em_ geral, esta incorporacio se deu na légica da integragao a0 mode~ torsocial e econémico hegeménico..A perspectiva critica, em suas diferentes configuragées, tem assumido a educacao intercultural como um componente importante dos processos de transformacio social e construgio de democracias em que redistribuigéo ree- nhecimento se articulem, Destacamos nesta 2erspectiva ¢ proposta de uma educagio intercultural critica e decolonial por consideri-la de especial significado para os debates em curso no continente. “Através das contribaigdes explicitadas, fica evidenciada a polisse~ mia da expressio educagio intercultural, zssim como sua comple~ Sidade e a originalidade do proceso vivido na América Latina, diz, respeito & génese do conceito como as suas di- 2s, problemitica e incidéncia politica ¢ cultural na A perspectiva intercultural no ambito sducativo nao pode ser re- duzida a uma mera incorporagio de alguns temas no curriculo e no calendario escolar. Trata-se, de modo especial na perspecti critica, que consideramos ser a que melhor responde & proble- rmitica atual do continente latino-americano, de uma abordagem que abarca diferentes mbitos,~ ético, epistemolégico e politico, orientada & construsio de democracias em que justiga social e cul- rural sejam trabalhadas de modo articulado, © que esté em questio hoje quando aprofundamos o debate sobre a interculturalidade na América Latina ¢ a prépria postivilidade de construgéo de estados pluriétnicos, plurilinguisticos ¢, inclu- sivé, plurinacios Jn €omo'0 reconhecimento, construgio € Gillogo entre diferentes saberes e a sfirmagio de uma ética em que difereiica cultural a justiga, a solidariedade ¢ a capacidade de construir juntos se articulem. Trata-se de uma problematica complexa e controvertida. Certamente a educagio ocupa um lugar fundamental nesta construgio. as ——— eferéncias bibliograficas COLLET, C. 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