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REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO

Cerrado
No. 105 - 10/02/2009

Reportagens: A busca por números da devastação, Cultura, resistência, memória e identidade, Do


ouro à soja: riquezas do Brasil Central, Megadiversidade corroída em ritmo acelerado, No coração do
gigante

Artigos: Altair Sales Barbosa, Anderson Cleiton José, Fabiana de Gois Aquino
José Roberto Rodrigues Pinto
José Felipe Ribeiro, Laurindo Elias Pedrosa, Vânia R. Pivello

Entrevista: Leopoldo Magno Coutinho

Resenha: Sol na moleira


Editorial

O Cerrado e os frutos da infância


Por Carlos Vogt

Segundo o Mapa de Biomas do Brasil, lançado, em 2004, pelo IBGE, juntamente com o
Mapa de Vegetação do Brasil, em comemoração ao Dia Mundial da Biodiversidade, o do
Cerrado é o segundo maior em extensão dos 6 biomas cartografados:

“o da Amazônia se extende, aproximadamente por 4.196.943 Km²,


equivalentes a 49,29% da área total do território brasileiro; o do Cerrado,
por 2.036.448 Km², isto é, 23,92% do mesmo território; o da Mata
Atlântica, por 1.110.182 Km², equivalendo a 13,04%; o da Caatinga
estende-se por 844.453 Km², ou seja, 9,92%; o do Pampa, por 176.496
Km², equivalentes a 2,07% do território nacional; o do Pantanal, com
150.355 Km², que correspondem a 1,76% dos 8.514.877 Km² da área total
do Brasil”.

Fonte: http://www.ibge.gov.br

Do ponto de vista da distribuição por estados, segundo o IBGE, o bioma do Cerrado,


ocupa a totalidade do Distrito Federal e parcelas significativas dos estados de Goiás
(97%), Tocantins (91%), Maranhão (65%), Mato Grosso do Sul (61%) e Minas Gerais
(57%), além de regiões em mais seis estados, entre eles São Paulo.

São Paulo tem, aliás, financiado pela Fapesp, envolvendo instituições de pesquisa de
todo o estado e também fora dele, numa mobilização impressionante de pesquisadores
em todo o país, um dos mais importantes programas voltados para a Mata Atlântica e
para o Cerrado: o projeto Biota, cujos dados já coletados e disponibilizados dão a
medida da riqueza e da variedade da vida animal e vegetal no ecossistema desses

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biomas (http://www.biota.org.br/).

Diz-se que o Triângulo Mineiro é o Portal do Cerrado. Como nasci em Sales Oliveira, na
Alta Mogiana, traçado da Anhanguera, depois de Ribeirão Preto, entre Jardinópolis e
Orlândia, perto de Nuporanga, apontando para Igarapava, nas franjas do Rio Grande,
perto das Minas Gerais, acho que posso dizer que cresci na varanda do Cerrado que por
ali já se estendia pelo Campo da Coruja, como quem fosse para Orlândia, São Joaquim
da Barra e Guará, pela Fazenda 3 Barras, pela mata do Taboão, na direção de Franca,
passando por Batatais.

Na Coruja, havia um campo onde a meninada jogava futebol e ali, no meio do Cerrado,
assisti pela primeira vez ao pouso de um teco-teco que, diziam, estava com pane de
combustível e precisava urgente aterrizar para evitar o pior e para abastecer. O piloto,
quando o aeroplano parou, desceu da aeronave para subir no imaginário do pessoal
que se aglomerava para acompanhar o evento. Vestia-se como um piloto que só se
podia ver, mas que se via, em filmes exibidos no Cine Santa Rita: polainas marrons,
calças claras, casaco de couro da cor das polainas, casquete acompanhando o material
e a cor dos dois outros apetrechos e os indefectíveis óculos de proteção puxados sobre
a testa. Foi desse modo que o Cerrado descortinou-se em vôo para mim, como as aves
que têm nele seu habitat natural, como o gavião e a flecha que o filme com Burt
Lancaster, não sei por que cargas d'água, por que caminhos da imaginação, trouxe
também para aninhar-se no porão das lembranças confusas, mas precisas.

No caminho da Fazenda 3 Barras, onde íamos nadar na corredeira de pedras de um


ribeirão ligeiro, íamos em bando de moleques, colhendo, comendo e chupando, onde
encontrávamos, gabiroba, mamica de cadela, marolo, marmelo, coquinho, mangaba,
goiaba, jatobá, carambola, caju, manga. Íamos pela estrada poeirenta, apanhando nas
beiradas, dos pés que se debruçavam sobre elas, dos barrancos, as frutas-de-lobo
verdes, com as quais simulávamos um jogo de bochas comprido e desordenado e que
era um princípio de organização do tempo para encurtar distâncias: um passatempo,
um tempo passando, passado no tempo.

As frutas-de-lobo caíam maduras sob as lobeiras e, como sabíamos, por ouvir contar,
que os guarás delas se alimentavam ─ daí o nome ─ aguçávamos a curiosidade na
esperança de ver um deles aparecer em busca das frutas. Nunca vimos, embora muitos
houvesse na região, sendo inclusive caçados e mortos pela predação humana que, na
época, não tinha ainda muita consciência da devastação que já promovia e cujos efeitos
sistêmicos não conseguia ver nem avaliar.

É claro que não sabíamos também do potencial medicamentoso da fruta-de-lobo, que


pesquisas científicas foram descobrindo e revelando, para além do uso caseiro, na
produção de esteróides que constituem matéria-prima de diversos medicamentos como
antibióticos, anticoncepcionais, e anti-inflamatórios.

Tampouco sabíamos que os portugueses, que, no século XVIII, em busca do ouro no


centro-oeste do país, com dificuldade para encontrar marmelo de que fizessem o doce
apetitoso, inventaram uma “marmelada” de fruta-de-lobo com que matar as saudades
da guloseima. Talvez daí tenha vindo o sentido figurado da expressão quando o termo
designa arranjo e conluio entre adversários que fingem disputar uma contenda sobre
cujo resultado já se entenderam: é doce, mas não é o doce que era mais doce, nem é o
doce de batata doce.

Enquanto isso, íamos nadar nas 3 Barras, jogando frutas-de-lobo da satisfação do


presente ao acaso do futuro, no mesmo caminho que ao se aproximar dezembro de
cada ano, percorria com meu pai para recolher musgo no Taboão e preparar os campos
de peregrinação do presépio montado na casa da selaria, onde moravam meus tios e

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que havia sido a casa de meus avós alsacianos, campos por onde transitavam outros
animais, outros personagens e onde reinava outro bucolismo artificial e alegórico, mas
feito também do Cerrado, no musgo que envolvia de pastagens a manjedoura, Jesus
menino, os reis magos, São José, os bois, as vacas, os bezerros, os cervos, tudo em
celulóide e todos com a cabeça móvel por um artifício que enganchava os pescoços aos
corpos de cada animal.

O Cerrado não era ainda o sertão, mas estava em tudo, em toda parte. Nos marolos
que achávamos e comíamos saboreando os gomos amarelos de cheiro forte, muito
doces, de sabor cortante; nos que trazíamos para casa e viravam licor para rivalizar
com o de jabuticaba, feitos ambos pela habilidade de grande cozinheira de minha mãe.

O fundo do quintal de minha casa fazia limite com a fazenda Boa Sorte; logo passando
o sítio de “seu” Minucci, começava, por efeito de erosão contínua, o que chamávamos
de Buracão, onde, no fundo, corria um riozinho que, em determinados trechos,
produzia quedas d'água e bacias nas quais íamos, meninos, nadar acompanhados
sempre das preocupações dos pais e, em particular, dos receios das mães. Por lá
apareciam, às vezes, pequenos jacarés, pacas, tatus, cotias não. Mas o que distinguia o
Buracão, ao menos na lembrança que agora tenho dele, eram as frutinhas de veludo,
nas suas ribanceiras e um magnífico pé de jenipapo sobraçando o vazio da erosão.
Como a fruta era de difícil acesso, grande era a sua disputa e forte acabou sendo a sua
inscrição na memória desse Cerrado da infância.

Como se viu, a área do bioma do Cerrado é enorme, ocupando, como foi dito, 23,92%
do território brasileiro e a sua devastação conta entre as maiores já ocorridas na
história das relações do homem com o seu meio ambiente. As políticas de proteção, de
preservação, de recuperação foram também se desenvolvendo na medida em que as
ameaças de extinção de espécies e de desequilíbrio ecológico sistêmico foram se
acentuando.

Objetiva e subjetivamente, nossas vidas estão ligadas ao Cerrado e, de uma forma ou


de outra, aos demais biomas identificados e acima mencionados. Nas 3 Barras, no
Campo da Coruja, na fruta-de-lobo, no lobo guará, no jenipapo, no licor de marolo, na
gabiroba, no jatobá, na goiaba, no vôo do gavião, em tudo que a natureza dá e o
homem transforma e na transformação que a própria natureza faz de si e também do
homem, o Cerrado é parte essencial do que fomos, do que somos e do que poderemos
ser na afirmação inadiável de que a vida é um sistema de diferenças funcionando em
harmonia.

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Reportagem

No coração do gigante
Por Enio Rodrigo

Por quatro séculos nenhuma comunidade ou sociedade (indígena, de colonizadores ou


bandeirantes) abalou a integridade desse complexo ecossistema. Nossa colonização
focara basicamente a costa e o interior ficou em segundo plano. Na década de 1950,
porém, Brasília foi instaurada no “coração do Brasil” e, a partir daí, a região centro-
oeste se tornou a nova fronteira agrícola e o Cerrado, assim como outros grandes
biomas em todo o mundo, entrou na luta pela sobrevivência frente ao “progresso”. E o
progresso, em termos modernistas, que balizou também a arquitetura da capital, não
deixou muito espaço para que o projeto da natureza continuasse a se desenvolver sem
a interferência do homem. Brasília, aliás, foi seu algoz novamente quando, em 1988, os
parlamentares responsáveis pelo capítulo do meio ambiente da Constituição Federal
não incluíram o Cerrado nem a Caatinga como patrimônios nacionais. Desde então esse
bioma resiste à degradação.

Lagoa Serra Espírito Santo Foto: Photo in Natura/Daniel De Granville

Os mais de 2 milhões de quilômetros quadrados que o Cerrado ocupa no Brasil central


somam espantosos 23,92% do território nacional, quase ao longo de todo o estado de
Goiás e Tocantins, grande parte do Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, além
de porções de outros 6 estados, de acordo com dados do IBGE. Além disso, ele adentra
os territórios do Paraguai e da Bolívia. Tamanha dimensão perde apenas para a
Amazônia, bioma que está muito mais presente no noticiário e no imaginário popular. A
consequência é que poucos se dão conta dos problemas que o Cerrado enfrenta por
abrigar a região que mais produz grãos, gado e carvão vegetal do país, além do
algodão e biocombustível, resultando em cerca de 30% do PIB. Mas o preço tem sido
alto: o bioma está bastante impactado pela ação humana, e sua destruição vem
ocorrendo de maneira agressiva (leia reportagem sobre o tema).

Esses efeitos antrópicos não são resultado da urbanização da região, uma vez que
hábaixa densidade demográfica, que possibilita vastas regiões disponíveis para

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cultivo, este sim, responsável pela maior pressão ao bioma. Ao mesmo tempo, os altos
investimentos na produção agropecuária da região – estimados em R$ 41 bilhões,
apenas em 2007 – parecem não se reverter para melhorias no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) da região. Os estados onde o Cerrado é predominante
têm, na média, IDH equivalente a 0,768, ou seja, abaixo da média brasileira de 0,771
(incluindo o Distrito Federal), considerado desenvolvimento médio.

Multipaisagem

“A imagem que se tem do Cerrado, no geral, é a de um local com uma vegetação não
muito bonita e de um clima seco o ano todo, o que é completamente errado”, enfatiza
José Carlos Souza Silva, que coordena o Núcleo de Recursos Naturais da Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Cerrados, lembrando que o bioma é
considerado o “berço das águas” e compreende as nascentes dos rios Tocantins, Paraná
e São Francisco, além de vários rios que abastecem a região amazônica e o Pantanal.
De acordo com o pesquisador, essa imagem se deve à maioria dos livros didáticos,
consequência do pequeno esquecimento dos parlamentares da Constituição de 1988.
Consequência também de um estigma que acompanhou o Cerrado por muito tempo:
ser um bioma de “segunda classe”. O jornalista Washington Novaes – atualmente
supervisor geral do programa Repórter Eco, da TV Cultura de São Paulo – conta que em
uma das reuniões para o relatório da Rio 92, um dos participantes indagou o presidente
do Ibama sobre a inclusão, no relatório final, do desmatamento e das queimadas no
Cerrado. A resposta, testemunhada pelo jornalista, foi “ainda bem que é no Cerrado e
não na Amazônia”.

Em meio ao apagamento do Cerrado, os representantes de produtores


agrícolas festejama demora em se estabelecer políticas conservacionistas, fruto de
disputas frequentes dentro do governo federal, entre o Ministério do Meio Ambiente e o
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Exemplo disso é a disputa que envolveu o
veto da então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, à concessão de crédito agrícola
para produtores que desmatavam ou em municípios de áreas de transição de biomas,
no início do ano de 2008. A lista contava com 527 municípios. Desses, 96 foram
excluídos por uma nova portaria assinada pelo ministro que a substituiu no cargo,
Carlos Minc, no que os ambientalistas classificaram como uma vitória dos
desmatadores.

Tamanho confronto deveria colocar o Cerrado na linha de frente das prioridades


nacionais de conservação. O bioma é residência de, aproximadamente, 40 grupos
étnicos (cerca de 45 mil índios) dentre os quais representantes dos Xavantes, Xerentes,
Krahôs, Bororos, Karajás, Kayapós, Canelas, além dos Avá-Canoeiros, Tapuyas e
Karajás, que beiram a extinção. Dentre suas mais de 12 mil espécies conhecidas de
flora e outras mais de 2 mil de fauna (leia matéria sobre biodiversidade), há muitas
que ocorrem exclusivamente nesse bioma (são endêmicas), e de 2 a 5% (segundo
autores mais otimistas) do seu território está seguro em parques ou unidades de
conservação.

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"A imagem que se tem do Cerrado, no geral, é a de um local com uma vegetação não
muito bonita e de um clima seco o ano todo, o que é completamente errado".
Foto: Photo in Natura/Daniel De Granville

Iniciativas

Depois da mudança da capital federal para o coração do país, a população teve um


rápido e drástico aumento, transformando a região Centro-Oeste na mais nova
fronteira agrícola, concentrando, atualmente, 34,8% da produção nacional de cereais,
leguminosas e oleaginosas (especialmente soja), e quase o mesmo percentual de
pecuária, segundo dados do IBGE. Há ainda a queima da vegetação nativa para
produzir carvão vegetal, que alimenta boa parte das indústrias de ferro-gusa. “É uma
das formas mais improdutivas de degradação do Cerrado”, afirma Leandro Baungarten,
coordenador de ciências do programa Savanas Centrais, da organização
conservacionista The Nature Conservancy.

O resultado disso é fácil de imaginar. de acordo com estimativas feitas em 2002,


pelaConservação Internacional, o Cerrado teria perdas médias de 1,5% do território
ao ano. Para se ter idéia do ritmo de desmatamento, a Amazônia perdeu cerca de
0,24% de seu território em 2008. “Alguns pesquisadores chegam a falar que as atuais
faixas de proteção não garantiriam a sobrevivência do bioma, por não contemplarem a
contiguidade dos territórios originais remanescentes” alerta Washinton Novaes.

A rápida transformação do Cerrado e a ameaça às suas diversas espécies fez com que
iniciativas governamentais e não-governamentais (através de ONGs), pesquisadores e
mesmo a iniciativa privada fossem forçadas a tomar providências. Em 1996, foi criada
aRede Cerrado, uma iniciativa de várias ONGs para promover a implantação de
projetos sustentáveis. Em 2003, após quase dez anos de debate entre os diversos
grupos envolvidos com o tema, a Rede publicou uma carta aberta endereçada ao
Ministério do Meio Ambiente (à época para a ministra Marina Silva) com recomendações
de ações urgentes para a conservação da área, o que proporcionou a criação do
programaCerrado Sustentável. Há iniciativas estaduais, por exemplo, como as de
Goiás que, através da Agenda 21 Goiás, baseando-se nas idéias do Global
Environment Outlookda ONU, criou áreas de proteção, aumentando e consolidando
áreas existentes, especialmente projetos que consolidassem “corredores ecológicos”.

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Há ainda outras iniciativas como as de ONGs internacionais, a exemplo da Conservação
Internacional (CI), a World Wildlife Foundation (WWF) e a The Nature Conservancy,
que trabalham focando em alternativas de economia sustentável junto às populações
locais próximas aos parques. Iniciativas privadas como da empresa O Boticário, que
visa a criação de reservas privadas, em parceria com ONGs, e iniciativas não
governamentais nacionais como o Instituto Cerrado.

A boa notícia é que os dados do IBGE, em levantamento feito em 2005 sobre


Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil), mostram que o número
de ONGs envolvidas com meio ambiente e proteção animal, na região dos estados que
compõem a floresta amazônica, era de aproximadamente 143 unidades, contra 184
ONGs trabalhando na região Centro-Oeste. Com mais projetos de engajamento
esperar-se-ia que o quadro fosse positivo para o Cerrado, mas não é o que ocorre.

Isso pode ser explicado pelo fato que o governo brasileiro não investe na proteção da
área. Segundo estudos feitos pela Conservação Internacional, apresentados no II
Simpósio Internacional de Savanas Tropicais, por exemplo, o dinheiro investido foi da
ordem de R$ 107 milhões, suficiente apenas para pagar os salários dos envolvidos em
projetos de conservação mantidos pelo Ministério do Meio Ambiente. Na verdade, a
palavra correta seria “revertido” pois, considerando os lucros das atividades
agropecuárias na região, o dinheiro deveria ser reinvestido na proteção das riquezas
naturais, manutenção de fontes de água e auxílio no equilíbrio do clima global e que
pertencem, em última instância, a todos os brasileiros. A estimativa da CI é que o ideal
seria reverter uma quantia equivalente a R$ 227 milhões, pelo menos, algo como 0,5%
do que foi investido na agropecuária através do Plano Safra de anos anteriores.

Pesquisas e soluções

Outra instituição com papel de destaque na região é a Embrapa, que mantém a


divisãoCerrados e conta, atualmente, com cerca de 105 pesquisadores, além de
parcerias com universidades em todo o país, com programas de manejo sustentável de
recursos naturais, recuperação de áreas degradadas e pesquisas com plantas nativas
com potencial econômico, além de projetos de agricultura familiar. “Em alguns
trabalhos, onde acompanhamos o que acontece com áreas de fazendas abandonadas,
percebemos que uma das características do Cerrado é conseguir recuperar, com certa
velocidade, a cobertura vegetal original. Os piores casos são aqueles com pastagens
que utilizavam espécies de gramíneas africanas para alimentação do gado”, diz José
Carlos Souza Silva, da Embrapa e professor de botânica e ciências florestais na
Universidade de Brasília (UnB). O pesquisador afirma que a instalação de grandes
monoculturas sem um estudo específico do solo (que no Cerrado varia bastante), pode
causar sérios problemas, entre eles os impactos do aquecimento global na área,
previstos por modelos matemáticos: o avanço da Caatinga sobre o Cerrado. O
pesquisador também afirma que as pesquisas na região vêm aumentando. “Não que
não houvesse interesse antes, mas trabalhos mais recentes, especialmente de
pesquisadores que trabalham com micro-organismos, têm trazido diversas boas
surpresas. O Cerrado é riquíssimo em termos de biodiversidade, e falta muito ainda a
descobrir”.

“Uma coisa que é preciso entender é que não há antagonismo entre produção agrícola e
conservação. Ao aumentar a produção por meio da tecnologia ou projetos de pesquisa
de solo não é preciso aumentar a área de plantio com tanta voracidade”, diz Leandro
Baungarten. Mas é preciso regularizar a situação de fazendas implantadas
irregularmente. “Algumas delas não mantiveram sua área natural de reserva legal. A
solução é criar ferramentas e mecanismos para que isso seja resolvido”, sugere. Um
dos meios de fazer isso seria regenerando as áreas devastadas, comprando outras

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áreas para serem conservadas ou comprando participações em reservas ambientais.

Mas ainda falta muito trabalho para que o bioma não pereça nas próximas décadas.
Entre outras coisas faltam números confiáveis, de acordo com Baungarten. A maioria
dos dados disponíveis para o Cerrado é, ainda, produzida a partir de estimativas
(consequentemente há grande variação em quase todas as informações) e observações
em trabalhos de campo, que aos poucos começam a ser compilados e transformados
em publicações (leia resenha). E falta muito a avançar na legislação também. Ainda
tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, a Proposta de Emenda à Constitução
(PEC) 115/95 que inclui o Cerrado (e a Caatinga, graças a uma nova redação) nos
biomas considerados patrimônio nacional, mas que está emperrada há quase 14 anos,
na bancada ruralista. Será que o “bioma de segunda classe” será um dia promovido ou
irá direto para o preocupante rol de ambientes em perigo de extinção?

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Reportagem

Megadiversidade corroída em ritmo acelerado


Por Germana Barata

Trinta e quatro regiões no mundo inteiro são consideradas áreas prioritárias de


conservação (hotspots), por abrigarem verdadeiros tesouros biológicos; duas dessas
regiões estão no Brasil e uma delas é a do Cerrado (e a outra, por incrível que pareça,
não é a Amazônia, mas a Mata Atlântica). O desmatamento no Cerrado anda a passos
largos anualmente e as propriedades agrícolas podem, apoiadas pelo Código Florestal
vigente, preservar apenas 20% da área nativa, bem diferente do que ocorre em florestas
tropicais, como a Amazônia, nas quais esse percentual corresponde ao máximo que se
permite desmatar. São 12.356 espécies da flora e mais de 2.546 animais catalogados,
meros 10% do que existia originalmente nesse bioma. É também o berço de três das
maiores bacias da América Latina (Amazônica, Paraná-Paraguai e São Francisco). Tantas
riquezas ainda não foram suficientes para acender um alerta para garantir a
sobrevivência, manutenção e conservação do Cerrado, segundo maior bioma nacional.
Outra riqueza, essa produzida em seus mais de 70% de território degradado, tem sido a
prioridade nacional: a agropecuária e o carvão vegetal.

O Cerrado possui vegetações ou fitofisionomias bastante variadas, por conta dos diferentes tipos de solo. Fotos: Rafael Oliveira/Daniel De
Granville/Carlos Terrana.

Enquanto o Congresso Nacional tenta aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC


115/1995) para reconhecer o Cerrado como patrimônio nacional, a megabiodiversidade,
mais rica em áreas abertas – justamente aquelas que são mais visadas pela agropecuária
–, vai sendo consumida. “Mesmo considerando o número de pesquisas existentes no
Cerrado, o conhecimento científico é bastante precário, pois novas espécies estão sendo
descobertas a cada levantamento faunístico e florístico realizado”, apontam os autores
do estudo de perda de espécies do Cerrado, apresentado durante o IX Simpósio
Nacional do Cerrado, ocorrido em outubro do ano passado. Ricardo Machado, diretor
do programa Cerrado-Pantanal da ONG Conservação Internacional e um dos autores do
trabalho, conta que e m expedição realizada por sua equipe durante três semanas, foram
identificadas 14 novas espécies de répteis, peixes, mamíferos e aves – grupos de animais
de maior porte e, portanto, mais conhecidos.

Não é difícil prever o nível de desconhecimento de grupos menores, como fungos,


embora sejam fundamentais para a ciclagem de nutrientes do meio ambiente.
“Praticamente tudo é o primeiro registro”, lamenta Solange Xavier dos Santos,
especialista em micologia (estudo de fungos) da Universidade Estadual de Goiás. O que
se conhece equivale a menos de 5% do total existente. O mesmo vale para
representantes de outros grupos, como os numerosos insetos. “O nível de
desconhecimento é diretamente proporcional ao número de profissionais envolvidos nas
pesquisas”, estima a pesquisadora.

Dentre os fatores responsáveis pelo desconhecimento do bioma estão a falta de

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especialistas, centros de pesquisa e coleções científicas, além de dificuldades de acesso
às áreas para coleta de material biológico. Muitos grupos de pesquisadores do bioma
estão localizados em algumas poucas instituições, como é o caso da Universidade de São
Paulo (USP), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Federal de Goiás (UFG), além
da Embrapa. Mas o problema reside também nos baixos gastos governamentais no
bioma e em políticas ambientais que garantam rapidamente a proteção de áreas
maiores. A Conservação Internacional demonstra, através de análise dos recursos
aplicados pelo Ibama em 2007, que o Cerrado recebeu apenas 8% do montante
reservado para unidades de conservação, ou R$ 107 milhões, enquanto o valor mínimo
necessário seria de R$ 5.638 por hectare, ou seja, R$ 227 milhões. Recurso que
desaparece perto do gigantesco investimento na produção agrícola na região do Cerrado
no mesmo ano, de R$ 41 bilhões.

Segundo estimativas, o Cerrado abriga cerca de 5% de toda fauna e flora mundial, com altas taxas de endemismo, que pode chegar a 45%
em lagartos. Fotos : Carlos Terrana

Soluções em vista

Com mais de 70% do Cerrado degradado, multiplicam-se projetos persistentes e


apaixonados, que tentam recuperar terrenos batidos, nus. Um deles é a Rede de
Sementes do Cerrado, que atua desde 2005, como uma proposta do Ministério do Meio
Ambiente, no desenvolvimento de métodos de germinação de sementes e mudas nativas
do bioma. A idéia não é nova e parece bastante simples, porém enfrenta dois grandes
desafios: a) desvendar o funcionamento de cada espécie para que possa ser reproduzida
em quantidades suficientes – em condições não naturais – para reflorestar vastas áreas,
podendo se desenvolver com sucesso para gerar descendentes que continuem sua
tarefa; b) conseguir autorização para a coleta de sementes e mudas nativas para
fomentar o projeto, atualmente um processo considerado fora da lei.

“Temos receitas próximas da realidade para cada tipo de região, já que o Cerrado varia
de acordo com o tipo de solo”, afirma Manoel Cláudio da Silva Jr, do Departamento de
Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB) e membro da rede. Uma
estimativa feita pelos especialistas da Rede de Sementes constatou que seriam

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necessárias 50 bilhões de mudas para recuperar apenas áreas de reserva legal (os 20%
de vegetação nativa que devem ser mantidos numa área), além da Área de Proteção
Permanente (APP) – como terrenos inclinados, frágeis, erodidos ou com nascentes de
rios. “A proposta da rede é legalizar o Cerrado”, defende o especialista.

Até agora, o projeto conseguiu, em parceria com a Embrapa, determinar as técnicas de


germinação para cerca de 200 espécies de ampla ocorrência no Cerrado. “Há um
pequeno número de espécies que domina a paisagem e um gigantesco número que
ocorre em menor quantidade”, explica Silva Jr.

A rede aguarda o lançamento, em breve, do “Clique Cerrado”, projeto em parceria com o


Banco do Brasil que visa o plantio de 3 milhões de mudas através da participação de
internautas, seguindo o exemplo da bem sucedida iniciativa “Clickarvore” da ONG SOS
Mata Atlântica, que já conseguiu a doação de quase 19 milhões de mudas nativas.

O plantio de árvores em tempos de mudanças climáticas pode ser também uma forma de
gerar créditos de carbono. É o que aposta Ricardo Machado, da Conservação
Internacional. Ele esclarece que o valor gerado com os créditos de carbono daria para
cobrir o custo de manutenção da recuperação de áreas degradadas, mas não cobre o
lucro gerado pela agropecuária. O objetivo é promover o casamento entre empresas que
querem compensar a emissão de gás carbônico (um dos causadores do efeito estufa)
com fazendeiros locais ansiosos para resolver seu passivo ambiental, regularizando sua
situação, por meio de viveiros gerenciados por comunidades locais. “Do ponto de vista
dos fazendeiros com áreas degradadas, que foram estimulados pelo governo para ocupá-
las e para produzir, eles acreditam que também devem ser estimulados a recuperar suas
áreas”, afirma Machado.

Pouca proteção garantida

Enquanto os Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento


negociam as políticas públicas de suas agendas, especialistas e conservacionistas se
esforçam para conhecer os organismos e a dinâmica do Cerrado, protegido por meio de
unidades de conservação em, aproximadamente, 2,2% de sua área total, entre as quais
estão o Parque Nacional das Emas (131.832 ha), o Parque Nacional Grande Sertão
Veredas (84 mil ha), o Parque Nacional da Serra da Canastra (71.525 ha, área
demarcada), o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (60 mil ha), o Parque Nacional
da Chapada dos Guimarães (33 mil ha) e o Parque Nacional de Brasília (28 mil ha).
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, o Cerrado responde por 9% das
unidades de conservação existentes no país, enquanto a Amazônia abriga 88% delas e o
restante se divide nos demais biomas.

O status de Unidade de Conservação não garante a conservação do bioma. Há problemas


de falta de profissionais para fazer a manutenção, controle e vigilância da área e a
demarcação das terras é precária. Não bastassem esses obstáculos, algumas unidades de
conservação correm o risco de serem reduzidas, a exemplo do que vem ocorrendo com a
Serra da Canastra. Criada em 1972, sua área total de 197.797 ha foi reduzida, no ano
passado, para 150.168 ha (embora a diferença tenha sido transformada em APP,
garantindo maior proteção do bioma) e ainda está no alvo de exploradores de diamantes.
Em 2001, a empresa De Beers anunciou a venda do maior quimberlito mineralizado
(fonte primária do diamante) em uma área de um hectare, com potencial estimado em
um milhão de quilates de diamantes, valendo em torno de US$ 150 milhões; e hoje, há
um potencial de extração que varia de 550 mil a 2 milhões de quilates.

Estimativas realizadas por Machado e colegas, em 2008, sobre as perdas de espécies em


relação à redução do bioma, concluem que o Cerrado já deve ter perdido 13% de sua
biodiversidade, considerando a situação de ocupação atual e o que é exigido pelo Código

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Florestal Brasileiro, podendo chegar a 24% de perda com uma ocupação do bioma
equivalente a 75%. “Os números sugerem que é preciso fazer mais do que a legislação
ambiental exige, caso a sustentabilidade ambiental seja realmente considerada no
desenvolvimento econômico do Cerrado”, alertam os autores.

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Reportagem

A busca por números da devastação


Por Cristina Caldas

Uma vereda de água gelada e cristalina, cercada de imponentes buritis. Um cheiro


característico, que só quem já caminhou por um Cerrado fechado pode reconhecer. Um
fruto avermelhado aberto de chichá, com suas sementes pretas perfeitamente
alinhadas, como se fossem contas de um colar. Uma moita repleta de gabiroba, fruta
amarelada, deliciosa. Esses são exemplos do que uma visita ao Cerrado pode propiciar,
bioma com características marcantes e ainda pouco conhecidas de muitos brasileiros,
embora seja um dos mais ricos em biodiversidade do mundo, patrimônio genético sem
preço, região de nascentes das grandes bacias brasileiras e com inúmeras espécies
nativas com potencial ornamental, interesse farmacêutico e frutas comestíveis.

Flor e fruto de pequi (Caryocar brasiliense), espécie nativa de uso alimentício e


medicinal. Foto: Linda Caldas

Nem bem completou 50 anos que o bioma começou a ser ocupado de forma mais
agressiva, por meio da expansão da fronteira agrícola, e o Cerrado vem sendo
devastado a olhos vistos. No entanto, monitorar a destruição dos dois milhões de
quilômetros quadrados desse que é o segundo maior bioma brasileiro é um desafio.
Responder a perguntas simples sobre a área que se mantém preservada e as taxas de
desmatamento ao longo dos anos ou mesmo anual, não é fácil, dado o alto nível de
incertezas.

Ao contrário da Amazônia, que conta com sistema oficial de monitoramento do


desmatamento há muito tempo, cada vez mais sofisticado, o Cerrado não tem ainda
vigilância parecida. “Estamos criando agora um sistema para monitorar os demais
biomas do Brasil, aplicando metodologia semelhante ao que o Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe) faz na Amazônia. Já no ano de 2009, teremos um novo
produto atualizado, e o Cerrado será prioridade. A idéia é fazer monitoramentos
anuais”, diz Bráulio Ferreira de Souza Dias, diretor do Departamento de Conservação
da Biodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

O dado oficial mais recente de mapeamento da vegetação natural remanescente do


Cerrado foi publicado em 2007, uma iniciativa do MMA, por meio do Projeto de
Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade Biológica Brasileira (Probio). As
análises de imagens do satélite Landsat, todas de 2002, indicaram que,
aproximadamente, 39,5% da área do bioma já tinha sido convertida em diferentes
formas de uso. As pastagens cultivadas e a agricultura ocupavam, em 2002, 26,5% e
10% do Cerrado, respectivamente. Nos estados do Mato Grosso do Sul, Goiás, São

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Paulo e no sul de Minas Gerais, o Cerrado praticamente desapareceu. “Nessas áreas, a
vegetação remanescente está abaixo do mínimo exigido pelo Código Florestal”,
afirma Dias. Os remanescentes são o centro e norte de Minas Gerais, oeste da Bahia,
Piauí, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. O diretor do MMA conta que a região
montanhosa do nordeste do Goiás está razoavelmente bem preservada, assim como a
região alagada do Araguaia, embora projetos de irrigação de arroz já tenham alterado a
vegetação.

Usar a área dos limites oficiais dos biomas estabelecidos pelo IBGE em 2004 foi a
primeira sistematização do estudo. “Antes, existia o bioma de cada especialista, o que
dificultava as comparações”, acredita Dias. O IBGE usa o critério de contiguidade,
considerando as manchas de Cerrado dentro da Amazônia, por exemplo, como
disjunções do bioma Amazônia e não como pertencente ao bioma Cerrado. O mesmo
vale para o Cerrado das chapadas Diamantina e Araripe, que fazem parte do bioma
Caatinga. Além dos demais ajustes metodológicos de escalas e resoluções, a equipe
optou também por separar pastagem plantada da nativa. Segundo Bráulio Dias, em
alguns mapeamentos prévios todas as pastagens foram colocadas na categoria de
vegetação degradada. Mas é importante destacar que o objetivo do mapeamento não
foi avaliar o status de conservação da vegetação remanescente, e sim mapear áreas
potenciais para ações de conservação, recuperação e promoção do uso sustentável.

Quando esses dados foram publicados, houve muita discussão na imprensa e na


literatura. “Muita ONG reclamou, alegando que não temos os 61% de vegetação
remanescente no Cerrado, que estamos trabalhando contra a agenda ambiental e que
colocamos o problema como menor do que ele realmente é”, diz Bráulio Dias. De fato,
os dados são diferentes das “Estimativas de perda da área do Cerrado brasileiro”,
publicada em 2004 pela Conservação Internacional – referência largamente citada por
pesquisadores, mídia e ONGs –, na qual os autores calcularam que a área já desmatada
para o bioma até o ano de 2002 era de cerca de 55% da área original. Na ocasião, o
lema foi “o Cerrado pode sumir até 2030”, muito embora os próprios pesquisadores
tenham destacado no texto que “considerando a resolução das imagens utilizadas (1
km x 1 km) e a falta de verificação em campo, os resultados apresentados devem ser
encarados com ressalva”. As estimativas da WWF são ainda mais pessimistas,
destacando que somente 19,15% da área atual do Cerrado corresponde a áreas nas
quais a vegetação original ainda está em bom estado.

As taxas de desmatamento são também controversas. No documento de 2004 da


Conservação Internacional, a estimativa era de que 1,5% do Cerrado estava sendo
desmatado por ano, dado vastamente utilizado. Uma avaliação mais recente do
Sistema Integrado de Alerta de Desmatamentos para o bioma Cerrado (Siad Cerrado),
uma parceria entre a Universidade Federal de Goiás (UFG), a própria Conservação
Internacional e a The Nature Conservancy, mostram que os desmatamentos continuam.
“Para o período entre outubro de 2003 e outubro de 2007, detectamos em torno de
18.980 km2 de possíveis novos desmatamentos”, afirma Laerte Guimarães Ferreira, do
Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da UFG. Esse
valor equivaleria a uma média de 0,25% de desmatamento por ano. “Com a expansão
do álcool, quando os países se recuperarem desta crise financeira e voltar a ter uma
demanda maior por soja e alimentos, certamente vai aumentar a pressão”, pondera
Bráulio Dias.

Antes da iniciativa MMA/Probio, o RadamBrasil, realizado na década de 1970, havia sido


o único mapeamento completo da cobertura vegetal feito em detalhe para o Brasil.
Eram sobrevôos que geravam imagens de radar por avião. Desde então, iniciativas
estaduais de mapeamento e monitoramento da vegetação nativa do Cerrado, por meio
de imagens de satélites, têm sido efetivas para São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato
Grosso, que tem um programa financiado pelo Banco Mundial. No estado de São Paulo,

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por exemplo, um acompanhamento da devastação ao longo dos anos mostra que a
cana-de-açúcar fez o Cerrado paulista sumir, restando atualmente meros 2% da
vegetação original, segundo dados do Instituto Florestal de São Paulo.

O que resta do Cerrado paulista. Fonte: Instituto Florestal de São Paulo.

Todos os dados gerados nos estados têm sido de grande valor para acompanhar o
desmatamento, mas não fornecem o quadro geral. “Como cada estado usa uma
metodologia diferente, não é possível juntar os dados, porque cada um utiliza, por
exemplo, categorias de uso de terra diferentes”, explica Dias.

Dificuldades e avanços

A dificuldade aumenta quando a análise do desmatamento é feita para os 2 milhões de


km2 do bioma. As dificuldades e desafios são muitos. Além da vasta extensão, “o
Cerrado é marcado por uma conspícua sazonalidade e um complexo mosaico
vegetacional”, explica Laerte Ferreira, referindo-se às alterações naturais, ao longo do
ano, características da vegetação. O desafio é conciliar um sistema de monitoramento o
mais automatizado possível, capaz de rastrear a extensa área em uma frequência
desejada (monitoramentos anuais, semestrais, mensais), com uma série de fatores.
“Por exemplo, uma mudança no padrão, época ou intensidade da chuva, de um ano
para outro, faz com que áreas naturais, principalmente referentes às fisionomias campo
limpos, campo sujo e Cerrado stricto sensu sejam facilmente confundidas com áreas já
desmatadas, o que gera os chamados erros de comissão ou falsos alertas de
desmatamentos”, diz o geólogo, que é também do Instituto de Estudos Sócio-
Ambientais (IESA).

Além das dificuldades inerentes ao próprio bioma, as controvérsias surgem em função


não só da escala espacial, mas também dos métodos de pesquisa. Wendy Jepson, da
Universidade do Texas A&M, nos Estados Unidos, publicou um trabalho, em 2005, no
periódico científico The Geographical Journal (Vol. 171, pág. 99-111), comparando as
diferentes estimativas que haviam sido publicadas até o momento sobre a devastação
do bioma, com a pergunta “o Cerrado está desaparecendo?”. A conclusão foi que são
ainda necessários métodos transparentes de monitoramento por meio de análises de
alta resolução, acompanhamento ao longo do tempo e classificações homogêneas de

16
uso da terra.

Ciente de todas as dificuldades, muitos avanços têm sido obtidos recentemente nas
metodologias e protocolos para detecção de desmatamentos no Cerrado. O Siad
Cerrado desenvolveu uma metodologia que usa imagens com resolução espacial de 250
metros, obtidas pelo sensor Modis, que está a bordo do satélite Terra, principal satélite
da Nasa para observação terrestre. Os pesquisadores detectam mudanças na biomassa
fotossinteticamente ativa, em determinados períodos de tempo, o que pode ser um
sinal de que a área foi desmatada. “Todas essas variações são inspecionadas
visualmente, com vistas a se minimizar os falsos alertas de desmatamentos”, explica
Laerte Ferreira. “Ainda que toda esta metodologia já esteja razoavelmente
amadurecida, continuamos o seu aperfeiçoamento, o que deve incluir, em futuro
próximo, o uso de imagens com maior resolução espacial (por exemplo, imagens do
satélite sino-brasileiro CBERS) e uma abordagem heurística e probabilística para
facilitar a validação dos polígonos de mudanças identificados”.

Espiral da falta de conhecimento

“No mundo da conservação, a prioridade sempre foi floresta”, avalia Bráulio Dias. “Em
última análise, é cultural, pois no mundo inteiro, as vegetações abertas, como savanas
e campos, chamam menos atenção. O Pampa e a Caatinga também foram muito
relegados e o Pantanal recebeu mais atenção por conta da fauna”. Aliado à questão
cultural de baixa apreciação das savanas, o Cerrado foi a área estrategicamente
escolhida pelo governo federal para a produção agrícola. “Nesta mentalidade ‘PIBiana',
a transformação do Cerrado em um grande celeiro de commodities agrícolas era (e
ainda é...) a prioridade”, diz Ferreira.

Segundo o especialista da UFG, entramos em um círculo vicioso, no qual uma das


espirais e consequências é a falta de conhecimento, nas suas várias dimensões. “Assim,
só mais recentemente, com o avanço das pesquisas, temos conseguido entender
melhor o real valor e papel desse importante e imprescindível bioma”, conclui. Em
2007, foi criada a rede de pesquisas ComCerrado, uma iniciativa conjunta do Ministério
da Ciência e Tecnologia (Coordenação de Ecossistemas Seped), do MMA (Núcleo
Cerrado e Pantanal – SBF), instituições de ensino e pesquisa e ONGs, que pretende
entender o funcionamento do Cerrado em suas várias “esferas” (humana,
biodiversidade, paisagens etc), subsidiando, assim, uma melhor governança territorial e
ambiental. Outras iniciativas também têm colaborado para a preservação desse bioma
(leia reportagemnesta edição), somadas a uma participação crescente do setor
privado. Além disso, o “Plano diretor da Embrapa Cerrados” para o período de 2008
a 2011 contempla, em seus cinco objetivos estratégicos, a busca por maior eficiência
nos sistemas de produção do bioma, e também desafios voltados para a
sustentabilidade dos ecossistemas. O decreto presidencial “Programa nacional de
conservação e uso sustentável do Cerrado”, lançado há dois anos, mas ainda em fase
incipiente de negociação, prevê recursos para ações de conservação desse bioma,
embora com cifras em patamares muito inferiores às da Amazônia.

A destruição do Cerrado ocorre em larga escala. Há uns anos, para que uma viagem
nas proximidades de Brasília pela rodovia BR-040 passasse rapidamente, bastava
contar o número de ipês amarelos na beira da estrada. Hoje, falta pouco para que as
lavouras alcancem o próprio asfalto. Porém, tão importante quanto o alerta de que o
Cerrado está desaparecendo, é gerar números confiáveis de quanto efetivamente resta
da vegetação natural, além de entender e avaliar sua notável capacidade de
recuperação.

17
Reportagem

Do ouro à soja: riquezas do Brasil Central


Por Rodrigo Cunha

A região do Cerrado brasileiro, localizada na porção central do país, teve uma


participação preponderante no desenvolvimento do agronegócio brasileiro nos últimos
quarenta anos. Um dos carros-chefe desse grande impulso tem sido a soja, cujo maior
produtor individual do mundo é o Grupo Maggi, da família do governador de Mato
Grosso. Desde as primeiras descobertas de ouro no Brasil Central, no período colonial,
a região nunca esteve tão próxima de um protagonismo mais vigoroso na economia do
país. Mas os desafios para o futuro não são poucos: o capital agropecuário, por si só,
ainda não foi suficiente para alavancar uma industrialização mais robusta e
diversificada; as terras e riquezas nelas produzidas sempre foram muito concentradas;
e o bioma do Cerrado tem sofrido uma retração cada vez mais preocupante. Quando já
tiver passado o tormento da atual crise financeira mundial, no entanto, a região central
do país tem a faca e o queijo nas mãos: infra-estrutura e demanda interna propícias
para a industrialização, por um lado; e por outro, vê ganhar força o manejo de
produtos como o pequi e a castanha-do-cerrado para geração de renda entre
assentados rurais aliada à preservação do bioma.

A migração para o interior do país, hoje mais intensa, começou a dar os seus primeiros
passos com os bandeirantes paulistas, já no século XVI. Esse movimento foi estimulado
pela coroa portuguesa para fixar seus limites geográficos em relação aos domínios
espanhóis no continente. Mas foi apenas em 1719 que a expedição comandada por
Pascoal Moreira Cabral encontrou ouro em Mato Grosso. Três anos depois, foi a vez de
Bartolomeu Bueno da Silva Filho retomar o caminho já desbravado por seu pai, o
Anhanguera, e encontrar ouro em Goiás. Com a exploração do ouro, começam a se
formar as primeiras vilas e povoados não indígenas no centro do país. Até 1748,
quando foi criada a capitania de Mato Grosso, as minas de lá eram subordinadas à
capitania de São Paulo. Já a capitania de Goiás foi criada em 1744, mas só se instalou
em 1749. “Em função da descoberta e da exploração do ouro, estabeleceram-se dois
caminhos entre essas minas e São Paulo. Um, por barco: pelos rios Tietê, Paraná e
Paraguai. Outro, por terra, passando pelo triângulo mineiro, Vila Boa de Goiás (atual
Goiás Velho, primeira capital goiana) e de lá até Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá (atual Cuiabá)”, conta o geógrafo Bernando Campolina Diniz, da Universidade
Federal de Tocantins, que estudou a economia do Cerrado em seu doutorado.

Segundo ele, o apogeu da exploração do ouro foi logo após a criação das capitanias,
entre 1750 e 1754, quando foram extraídos 35 mil quilos de ouro em Goiás e Mato
Grosso, cerca de 7 mil quilos por ano. Juntas, essas capitanias não conseguiam
alcançar a produção já enfraquecida de Minas Gerais, de 8.789 quilos por ano, e
também começaram a entrar em declínio. As economias da região começam a migrar
gradativamente para a pecuária, já expressiva na porção mineira do Cerrado, entre
Uberaba e Uberlândia, e para a agricultura, nas poucas regiões férteis do bioma. A
abertura para navegação do rio Araguaia, no século XIX, gera novas possibilidades de
ligação comercial, unindo Goiás e Mato Grosso ao Norte do país, ampliadas ainda mais
a partir da ligação por estrada de ferro entre São Paulo e Campo Grande, em 1911, e
Minas e Goiás, em 1913. A população e a economia no Brasil Central, no entanto, ainda
cresciam lentamente. “Embora a região dos cerrados tenha sido objeto de variados
esforços de ocupação ao longo da história, ela se manteve relativamente vazia, dos
pontos de vista econômico e populacional, até meados do século XX”, afirma Diniz.

Dois grandes fatores foram cruciais para acelerar esse processo, de acordo com o
geógrafo. O primeiro, uma idéia antiga, de José Bonifácio, do período do Império,

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prevista no texto da primeira constituição republicana do país, de 1891: a transferência
da capital para o Planalto Central. Concretizada no governo de Juscelino Kubitcsheck,
em 1960, Brasília proporcionou a ligação do centro com o restante do país através de
rodovias, além de atrair a criação de infra-estrutura em energia e em telecomunicações
para a região central. O segundo fator, essencial para o agronegócio, foi o avanço da
pesquisa científica e tecnológica, particularmente a partir dos anos 1970, envolvendo
universidades e empresas e capitaneado pela Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa). Esse avanço, aliado à impossibilidade de ampliação das áreas
produtoras de grãos no Sul e em São Paulo, onde o preço da terra encareceu,
possibilitou a expansão da produção nos cerrados.

“A topografia da região apresenta boas possibilidades para o emprego de práticas


agrícolas mecanizadas, visto que o relevo é em geral plano ou de ondulações suaves”,
explica Diniz. “O principal obstáculo à agricultura nos cerrados diz respeito à baixa
fertilidade natural, limitada devido à sua acidez (baixo pH) e baixo teor de cálcio. Essas
características, no entanto, foram superadas com a correção do solo, superando os
problemas de fertilidade mediante adição dos componentes químicos em que os
cerrados eram deficientes”, completa.

Para se ter uma idéia, de acordo com o IBGE, a área de cultivo de soja no Cerrado
saltou de 571 mil hectares, em 1975, para 10.092 mil hectares, em 2003, aumentando
a representação de 10% para 54% do total do país. Nesse período, a produção do grão
passou de 853 mil toneladas para 27.986 mil toneladas nos cerrados. O gado bovino
saltou de 33.960 mil cabeças, ou 34% do total, em 1975, para 85.057 mil cabeças ou
43% do total, em 2003. A produção de gado e soja trouxeram na esteira a indústria
processadora de matéria-prima de origem animal e vegetal. De 1970 a 2004, a
indústria frigorífica bovina do Centro-Oeste saltou de 25% do total de abates no país
para 40%, passando de 10,7 milhões de cabeças para 25,8 milhões de cabeças. Goiás,
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul tinham em 2004 mais da metade dos 125
matadouros frigoríficos instalados na região do Cerrado. Já o abate de suínos e de aves,
menos expressivo na região, subiu respectivamente de 5% para 12% do total, e de
3,6% para 10% do total. Na indústria esmagadora de soja, entre 1998 e 2004, Mato
Grosso saltou de 8,8 mil para 20,6 mil toneladas/dia de produção, e Goiás, de 9,7 mil
para 17 mil, e 45% da produção nacional do setor estava no Cerrado.

Outros dois produtos que têm se destacado recentemente na região são o algodão e a
cana-de-açúcar, que também podem atrair futuramente indústrias têxteis e de
processamento de álcool. A partir da queda na produção nacional de algodão, nos anos
1990, ela começa uma recuperação em Mato Grosso, graças a pesquisas da Embrapa
para adaptação das sementes, e se espalha pelas porções de Cerrado de Mato Grosso
do Sul, Goiás, Bahia e Minas Gerais. Em 2003, os cerrados já respondiam por 88% da
produção nacional com suas 1.944 mil toneladas de algodão. As pesquisas de
adaptação de cultivares também possibilitaram que o plantio de cana se expandisse nas
regiões de Cerrado, particularmente na porção paulista, no triângulo mineiro e nos
estados do Centro-Oeste. As 183.072 mil toneladas de cana produzidas em áreas desse
bioma representavam, em 2003, 43% do total produzido no país.

Potencial para industrialização

Apesar de ter uma forte participação no agronegócio, o Brasil Central ainda carece da
agregação de renda proporcionada pelo setor industrial, mas tem todas as condições
para atraí-la. “A região central desenvolveu o setor rural e o de serviços muito bem.
Está agora em condições de desenvolver o setor industrial”, afirma o economista Célio
Costa, consultor com expertise em mercado interno. Segundo ele, uma das bases para
isso é o atual mosaico demográfico brasileiro, que mudou consideravelmente após os
anos 1970. Agora, a população é majoritariamente urbana, e cresce significativamente

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no interior do país. “Há demanda nesse mercado de perfil de consumo urbano, e o
tamanho da demanda não atendida pode dar margem ao crescimento da indústria. O
Centro-Oeste precisa melhorar o perfil de seu mercado e aumentar sua participação no
segmento industrial, que era só de 3,8% do total do país, pelos indicadores de 2006”,
aponta Costa.

Além do mercado interno, outra condição favorável à industrialização é a oferta de


infra-estrutura em energia, transportes e telecomunicações. Juntos, esses fatores
superariam até mesmo os incentivos usados na guerra fiscal entre estados para atrair
novas indústrias. “A guerra fiscal é espúria, tornou-se um balcão de oferta. Antes de
decidir onde se instalar, a empresa não vai considerar apenas o incentivo fiscal, que
todos oferecem. Elas sabem se existe mercado interno, suprimento de matéria-prima e
de infra-estrutura”, diz o economista. Para ele, a região está bem servida nesse último
quesito, mas o Mato Grosso ainda precisa melhorar o seu quadro de oferta de energia e
o acesso à ferrovia. “A conclusão da hidrovia Araguaia e a ferrovia Norte-Sul vão
melhorar muito o escoamento na região. O Centro-Oeste pode se tornar um grande
entreposto da indústria de transformação nacional”, defende.

O passivo ambiental

Todo esse crescimento da agroindústria nas últimas décadas, que pode impulsionar a
industrialização em um futuro recente, teve um preço alto para o Cerrado.
Os mapas do IBGE sobre a retração da vegetação nativa mostram que o bioma
encolheu consideravelmente nos últimos trinta anos. Mas esforços como o iniciado no
assentamento rural Andalucia, em uma região do Mato Grosso do Sul, contribui na luta
para reverter essa retração. Os próprios assentados criaram, em 1998, o Centro de
Produção, Pesquisa e Capacitação (Ceppec) para diversificar sua renda e preservar o
Cerrado. Trata-se de uma iniciativa pioneira que envolve o manejo de plantas nativas e
aplica nos cerrados o extrativismo sustentável, que já tem uma certa tradição em áreas
de floresta tropical como a Amazônia e a Mata Atlântica. A idéia iniciada no Andalucia
deu tão certo que hoje já atinge 50 assentamentos em 11 municípios, onde se realiza o
manejo extrativista e o processamento de castanha-do-cerrado, pequi, bocaiúva e
jatobá.

O orgulho diante dos produtos do trabalho com os frutos do cerrado.


Foto: Rosane Bastos.

“Primeiro, é feito um levantamento do potencial botânico da região do assentamento,


sobre a quantidade e a qualidade dos frutos nativos”, conta a bióloga Rosane Bastos,
coordenadora do programa de capacitação do Ceppec. “Depois, há o trabalho para não

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se colher tudo, para que haja regeneração da área e repovoamento das plantas
nativas”, completa. Ela afirma que no próprio Ceppec há uma mini-usina de
processamento. Após a coleta dos frutos, eles são lavados, cortados e torrados. A
farinha da castanha-do-cerrado, por exemplo, é vendida em padarias, mercados e
sorveterias. Já o pequi é usado em pratos da alimentação da própria comunidade, além
de também ser vendido para a indústria alimentícia. “No Ceppec, também tem uma
oficina de tecelagem, onde se usam corantes naturais a partir de frutos, flores e
cascas”, conclui. Tanto a tecelagem quanto os produtos alimentícios, além do trabalho
com turismo ecológico também desenvolvido no Ceppec, estão gerando renda para
dezenas de famílias da região. E a garantia dessa renda é justamente a manutenção
das plantas nativas em pé. O Cerrado agradece.

21
Reportagem

Cultura, resistência, memória e identidade


Por Susana Dias

“Enquanto a cultura do Norte, Nordeste e Sudeste foi bastante divulgada no país, a


cultura do Cerrado ainda é pouco conhecida. As pessoas acham que no centro do Brasil
só se produz música sertaneja”, avalia Veronica Aldè, musicista e pesquisadora do
Instituto Trópico Subúmido (ITS) da Universidade Católica de Goiás (UCB). Além dela,
trabalham no instituto mais quatro músicos pesquisadores que investigam as
influências indígenas, européias e africanas na cultura do povo do Cerrado. Aldè, que
desenvolve projetos com as comunidades indígenas, em especial os Krahô, explica que
“cultura, território e conflitos estão relacionados e, ao trabalhar com esses povos, é
inevitável pensar sobre o encontro de diferentes culturas e suas conseqüências”.

Mulheres e crianças Krahô em fim de tarde Cantoria de mulheres Kraho e cantador Krahô, Festa
Tradicional da Batata
Fotos: Veronica Aldè, na Aldeia Manoel Alves, Município de Itacajá, TO.

A Carta Aberta dos Povos Indígenas do Cerrado, assinada por representantes dos
Karajá, Krahô, Tapuia, Apinajé e Xavante em 2008, aponta que entre os problemas
enfrentados por esses povos estão os posseiros, a deficiência no tratamento de saúde,
a devastação no entorno dos territórios indígenas demarcados – devido ao avanço do
agronegócio – e a falta de diálogo a respeito do impacto das grandes obras
governamentais previstas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Em seus
encontros com os indígenas, a musicista do ITS vivencia a força e resistência desses
povos no plano da cultura: “Eles mantêm seus rituais muito fortes, mesmo as aldeias
situadas próximas da cidade. É muito emocionante vê-los na natureza e perceber que
são suas formas de relação que mantém mais de 320.000 hectares de Cerrado
preservado”. O ITS tem auxiliado a comunidade a montar uma espécie de banco
sonoro, construir uma memória musical desses povos. “Talvez esse material possa ser
usado pelos professores indígenas nas comunidades, como um apoio didático-cultural
que a universidade pode oferecer”, avalia Aldè.

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Maria de Lara e Mestre Salustiano, fontes de sabedoria e Espetáculo do Sons do Cerrado
musicalidade do Cerrado. Foto: http://www.overmundo.com.br
Foto: Leandro Caetano, Comunidade do Tatu, Correntina,
BA.

Outra forma de divulgação da cultura indígena do Cerrado, da qual Aldè participa, é o


grupo musical Sons do Cerrado, que pesquisa sons de comunidades do Cerrado
goiano e baiano e recria seus toques e canções regionais numa linguagem
contemporânea. Nos espetáculos, destaca-se ainda a participação da atriz Larissa
Malty, que representa a Velha do Cerrado. Um personagem arquetípico que quer trazer
à tona a identidade das mulheres do Cerrado: benzedeiras, parteiras, índias,
matriarcas. Para Aldè, que vive entre os palcos e a universidade, o papel do artista no
processo de valorização e proteção das comunidades localizadas no Cerrado brasileiro
“é o de uma semente ao vento, que busca sensibilizar e tocar por outros meios a
sociedade, diferente de uma palestra, por exemplo”.

As discussões sobre cultura, território e Cerrado não tocam apenas nos povos
indígenas. Iara Monteiro Attuch, em seu mestrado na UnB, explorou os conhecimentos
de povos tradicionais associados à biodiversidade do Cerrado brasileiro e das relações
interculturais que se estabelecem entre seus detentores e a sociedade, fazendo um
estudo etnográfico com Dona Flor, uma raizeira e parteira de povoado de Moinho, em
Alto Paraíso, no estado de Goiás. Attuch traz à tona como essas comunidades vivem
entre estarem sujeitados e resistir – ao avanço da fronteira agrícola; às políticas de
turismo dentro e no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros; ao
aumento de compras de terras e sua conversão em Reservas Particulares de Proteção
Ambiental; além da expansão de pousadas e restaurantes. Para ela, a preservação da
cultura e do bioma do Cerrado está associada às iniciativas que forem capazes de abrir
caminhos para “ articular o manejo sustentável, a garantia do território, desde a boa
qualidade e acesso aos recursos naturais até a proteção dos conhecimentos tradicionais
locais, discutida atualmente, em que prevalece a propriedade e uso coletivo da terra”.

Se, por um lado, emergem importantes discussões sobre cultura e cidadania dos povos
do Cerrado, também ganha ainda mais força, nos últimos tempos, a aposta de que,
pela produção cultural, seja possível gerar novas sensibilidades com relação ao bioma.
É acreditando nessa possibilidade que Dércio Marques, violeiro e cantador mineiro,
junto com sua irmã, Doroty Marques, vão desenvolver um novo projeto com os Meninos
do Cerrado, na Vila São Jorge, também em Alto do Paraíso. “O desafio é fazer com que
os meninos criem músicas sem palavras, somente com sons e sentimentos. Queremos
despertar nesses meninos a capacidade de ouvir o silêncio e tirar algo dele. O silêncio
nosso, dos sons do Cerrado em movimento: das águas, do vento, etc. Empreender uma
luta contra a ditadura do som que vivemos hoje”, conta o músico entusiasmado.
Poetas, escritores e cientistas alimentam a fala de Dércio Marques sobre o Cerrado,
suas potencialidades e fragilidades. Diante de um cenário pouco animador, ele
manifesta sua crença na capacidade de tocar as pessoas pela arte, literatura e poesia.

Esse foi o caminho encontrado por Carlos Walter Porto-Gonçalves, da Universidade

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Federal Fluminense, para construir sua argumentação em prol de uma política
ambiental mais atenta ao bioma, em sua Carta aberta à invisibilidade do Cerrado na
política ambiental, endereçada ao ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc: “Guimarães
Rosa, senhor ministro, por sua refinada criatividade e capacidade de escuta, foi capaz
de ouvir a cultura desses povos e nos deu uma obra – Grande Sertão: Veredas – que,
no próprio título, mostra a profunda compreensão das paisagens dos cerrados, suas
enormes e vastas chapadas onde o 'coração vive à larga', como o gado solto, – os
Grandes Sertões – e os fundos de vales onde os povos fazem suas ‘agri-culturas', – as
Veredas”. Ainda em outro trecho, diz: “Guimarães Rosa foi quem, melhor do que
ninguém, soube transcriar a riqueza cultural desses povos, ao afirmar que os gerais são
‘uma caixa d'água' e, com isso, mais do que os cientistas, iluminou a leitura de nossa
geografia aos nos fazer ver que os nossos rios nascem nos cerrados – o São Francisco,
o Jaguaribe, o Parnaíba, o Tocantins, o Araguaia, o Xingu, o Madeira, os formadores do
Paraguai (o Pantanal), o Paranaíba, o Grande, o Rio Doce”.

“Quem se lembra? Quem se esquece?”

Assim como na literatura em prosa, pode-se compreender um pouco mais aquele


cenário em versos de quem viveu ali. A certa altura de seu poema “Velho sobrado”,
Cora Coralina pergunta: “Quem se lembra? Quem se esquece?”. Um cenário de
abandono, silêncio, ausência é povoado com memórias que trazem de volta ao casarão
a sociedade goiana, os bailes, os saraus, os espelhos emoldurados, as flores e aromas
esquecidos. A poetisa clama em sua escrita-memória por aquele que era considerado o
futuro de Goiás, sua cidade natal: “O Passado”. Em outro poema, “Ao Leitor”, Cora
explicita ainda mais sua crença nas memórias: “Alguém deve rever, escrever e assinar
os autos do Passado/ antes que o Tempo passe tudo a raso./É o que procuro fazer,
para a geração nova, sempre/ atenta e enlevada nas estórias, lendas, tradições,
sociologia/ e folclore de nossa terra./ Para a gente moça, pois, escrevi este livro de
estórias. Sei que serei lida e entendida”. Goiás (antiga Vila Boa dos Remédios), poetisa
e memórias se confundem, num trabalho incessante que evoca o poder da palavra
contra o esquecimento.

Cora Coralina, junto com outros escritores e intelectuais e a Organização Vilaboense de


Artes e Tradições (Ovat) contribuíram de forma significativa para a “invenção da cidade
de Goiás como berço da cultura goiana”. É o que afirma Andréa Ferreira Delgado,
noartigo “Goiás: a invenção da cidade ‘Patrimônio da Humanidade'”. Uma invenção
feita de palavras e imagens que deram à cidade, também conhecida como Goiás Velho,
o status de cidade histórica e turística, merecedora do título concedido em 2001 pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Invenção que aparece no poema escrito em 1976 por Carlos Rodrigues de Brandão, que
trabalha com antropologia rural e pesquisou manifestações culturais dos povos que
vivem no Cerrado, entre elas a Festa do Divino em Pirenópolis:

Há uma Goiás Há uma Goiás


que de seus anos que de si mesma
lança editais conta mais casos
e faz proclamas que um almanaque
de um tempo raro Conta e reconta
no ouvido atento até que a mente
de qualquer gente guarde para sempre
que surja, passe. o antigo e o raro.

Com a expressão “a invenção da cidade”, a historiadora da Universidade Federal de


Goiás (UFG), quer chamar atenção para o trabalho de gestão e enquadramento de

24
determinada memória coletiva: “O investimento para solidificar e dotar de duração e
estabilidade uma determinada memória, para representar o conjunto da sociedade,
configura operações de seleção, organização e uniformização da multiplicidade de
significados atribuídos ao passado”, analisa, expressando a imbricada relação entre
memória, cultura e política e uma preocupação com a homogeneização cultural. O
processo de tombamento de Goiás Velho gerou várias discussões. Não porque o
complexo arquitetônico e as belezas naturais não fossem dignas de serem consideradas
patrimônio da humanidade, mas pela exclusão de aspectos relacionados ao passado da
região e de grupos, culturas e saberes populares (veja texto do antropólogo e diretor
do Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás, Altair Sales
Barbosa).

Jogo do global e local

Em resposta ao perigo da “globalização cultural” – contra a qual a invenção do passado


teria uma papel poderoso –, as memórias são novamente acionadas como meio de
fortalecer as identidades locais e garantir a luta contra uma homogeneização cultural.
Há uma forte crença na memória popular excluída e em sua expressão pública, como
possibilidade de criticar as lógicas das mídias, do Estado excludente, da modernidade
urbana. Entretanto, p ensar a cultura como força democratizante não é algo fácil. É o
que avaliam Maria Célia Paoli e Marco Antonio de Almeida, da Universidade de São
Paulo (USP), em artigo publicado na revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan). “A aposta na memória, precisa considerar que ela também pode ser o espaço
da indiferenciação, de levar a uma extrema privatização da vida através de uma
narrativa interna”, alertam.

A intensa investida no resgate das manifestações culturais no Cerrado, e por todo o


Brasil, remetem às narrativas de folcloristas e memorialistas da primeira metade do
século XX. “As manifestações culturais goianas eram vistas como algo que precisava
ser coletado, conhecido, divulgado e preservado, para não correr o risco de
desaparecer”, explica Mônica Martins da Silva. A pesquisadora estudou essas narrativas
no estado de Goiás em seu doutorado em história, realizado na Universidade de Brasília
(UnB), e identificou aspectos como a busca por difundir a existência de uma cultura
popular local original, genuína, bem como a localização das origens das manifestações
folclóricas na tríade indígena (lenda do boto do Araguaia, do caipora, da catira, do
caruru), europeu (cavalhadas, festa do divino, folia de reis) e africano (congadas,
moçambiques). Em sua análise, destaca que essas noções de folclore explicitam noções
de cultura iluministas e românticas. (Leia os artigos “História, narrativas e
representações na escrita do folclore em Goiás” e “Catolicismo popular na
escrita do folclore brasileiro”).

Para Suely Rolnik, psicanalista e crítica de arte e cultura da Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP), vive-se um falso dilema entre a identidade global e a
crítica à sua pulverização em identidades regionais e locais, por um lado, ou, por outro,
a defesa de identidades locais contra as identidades globais. Ela defende que nesse
jogo, “varia a disposição das peças do tabuleiro, mas este não varia: é sempre o
mesmo tabuleiro de uma subjetividade que funciona sob o regime identitário e
figurativo, que as novas tecnologias da imagem e da comunicação tendem a fortalecer
e a sofisticar cada vez mais. Evidentemente, tais tecnologias não trazem esse sentido
embutido em sua fabricação, ele é apenas o resultado de seu uso dominante”, analisa.
Em seus escritos, traz o esforço de Oswald de Andrade em pensar o peculiar modo de
produção da cultura no Brasil: a antropofagia. O princípio antropofágico, para Rolnik,
não seria uma imagem que representaria “o brasileiro”, mas antes a possibilidade de
“engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que partículas do universo
desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e, na
invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação”.

25
“Quem se lembra? Quem se esquece?”. Um expressão interrogativa que mais do que
convocar pessoas, convoca forças políticas e poéticas que redesenham o Cerrado e suas
culturas por entre lembranças e esquecimentos.

26
Artigo

Cerrado no contexto das transformações


socioambientais
Por Laurindo Elias Pedrosa

O presente texto tem como propósito formular alguns questionamentos e ainda trazer,
a partir de experiências vivenciadas, contribuições para a reflexão sobre a degradação
humana e ambiental francamente em curso no Cerrado brasileiro. As proposições
construídas, frutos de debates amplos e democráticos, tão ausentes no momento,
poderão resultar em ações concretas no seio da sociedade e que devem ser
implementadas por uma vigorosa política de educação ambiental formal e informal, em
conjunto com os movimentos sociais e por mobilizações populares, tendo em comum o
posicionamento que questione os empreendimentos voltados para o setor produtivo,
em especial o agronegócio e hidronegócio no Cerrado.

É nesse contexto que surge, em particular, a preocupação sobre os empreendimentos


para fins de geração de energia elétrica, nos rios do bioma do Cerrado, sustentado pelo
modelo da matriz energética brasileira, cada vez mais vulnerável e quase monolítica,
que é por força hidráulica, potencializada pela queda d'água dos grandes lagos e dos
barramentos artificiais.

Para a qualificação do debate e construção de um posicionamento político e ideológico,


que leve em consideração a diversidade e a complexidade do tema, foram feitos
análises, estudos e debates de riquíssimos e vastos documentos. Portanto, é necessário
uma construção histórica e coletiva sobre os processos de licenciamentos ambientais de
empreendimentos diversos e de construções de usinas hidrelétricas, com
assessoramento de segmentos atingidos direta e indiretamente por barragens e por
instalações de empreendimentos econômicos regionais de várias naturezas, visando
sempre às intervenções e controles sociais plurais e democráticos, possibilitando, junto
a outros setores, a inclusão de todos os atores e agentes sociais.

É oportuno introduzir no debate um novo instrumento para a proteção do meio


ambiente e de interesses sociais difusos e coletivos, com dados e informações para os
devidos questionamentos, assegurando à sociedade civil organizada e aos movimentos
populares da região geográfica de abrangência, o direito à informação, ao
questionamento e ao contraditório.

Vale ressaltar que atualmente estão localizados dentro da área de abrangência das
bacias hidrográficas do rio Paranaíba, Tocantins, Araguaia e São Francisco, no estado
de Goiás, importantes empreendimentos altamente impactantes, e estudos e
enquadramentos de vários outros vinculados ao agronegócio, agroenergético e de
aproveitamentos hidrelétricos, que se apresentam nos estudos e licenciamentos,
isolados e compartimentados, negligenciando e/ou desconsiderando os efeitos e
processos de interações e de sinergia que ocorrem no meio antrópico, físico e biológico.

Diante dos fatos e das intervenções relevantes para o ambiente natural e para a
sociedade, especificamente para o segmento dos atingidos direta e indiretamente pelos
empreendimentos e atividades de natureza econômica, argumentamos em defesa da
participação popular e do controle social e democrático, tendo como finalidade precípua
o direito à formação e à informação formal e informal.

A nossa preocupação se fundamenta, ainda, nas discussões e questionamentos


apresentados junto aos licenciamentos ambientais de vários empreendimentos que, no

27
passado não foram considerados por parte dos órgãos ambientais. São fartos os
documentos analisados e discutidos em momentos apropriados, sempre por
profissionais e militantes das causas socioambientais, percebendo com perplexidade
que a maioria da população, ou quase a sua totalidade, desconhece a relevância do
assunto.

Dentro de Goiás, estado totalmente inserido dentro do bioma do Cerrad o, no eixo


sul/sudeste/sudoeste, busca-se o aproveitamento do potencial hidrelétrico dos
mananciais mais altos da bacia do Paraná. No eixo sudoeste e oeste, o aproveitamento
do potencial hidrelétrico dos mananciais do alto e médio Araguaia. No eixo norte,
busca-se o aproveitamento hidrelétrico dos mananciais do alto do rio Tocantins. É nesse
ambiente genuinamente de Cerrado, ecossistema marginalizado pelas leis ambientais e
constitucionais e pelos programas governamentais diversos, que vários projetos estão
em fase de estudo, de licenciamento e de implantação, especificamente para irrigação e
geração de energia elétrica.

O total de empreendimentos instalados e planejados para o estado de Goiás é superior


a 100 hidrelétricas (Central de Geração de Energia - CGE; Usina Hidrelétrica - UHE;
Aproveitamento Hidrelétrico - AHE; e Pequena Central Hidrelétrica - PCH), somando os
em estudo, enquadramento e licenciamento, deverão inundar uma área superior a
6.500 quilômetros quadrados (Km2), com os 3.500 Km2 já inundados, chegará ao
montante de um milhão de hectares de terras férteis, ocupadas quase sempre por
pequenos e médios produtores que trabalham em regime familiar. Sendo que da
margem esquerda do rio Paranaíba, no estado de Minas Gerais, mais de uma dezena de
barragens completarão o futuro cenário da região do Cerrado brasileiro - espaço
territorial que é considerado o berço das águas e refúgio da fauna e flora endêmicas ou
em risco de extinção, e remanescente dos últimos laços culturais e das tradições
seculares dos povos da região central do Brasil: a cultura cerradeira.

Constata-se que os rios do Cerrado brasileiro têm sido agredidos por ações e
lançamentos de dejetos e de outros tipos de efluentes e resíduos de natureza diversa,
comprometendo e promovendo alteração física, química, físico-química e biológica, o
que é frequentemente noticiado e denunciado pela imprensa, em vários episódios
tristemente ocorridos, o que vem reforçar a preocupação.

A região do Cerrado brasileiro já se apresenta em profundo desequilíbrio, quer pela


falta de ordenamento e planejamento do uso intensivo e extensivo do solo e pelo
adensamento populacional urbano, como no entorno de Brasília e de Goiânia, quer pela
abertura das fronteiras agrícolas para a produção em escala comercial e que ocupam os
topos e platôs das chapadas e chapadões, induzindo o escoamento e carreamento de
grande quantidade de sedimentos erosivos junto aos corretivos de solos (usualmente o
calcário calcítico e dolomítico e o gesso agrícola) e nutrientes químicos (NPK),
associando-se aos danosos agrotóxicos e lançamentos de esgotos in
natura,potencializados pelos desmatamentos incontroláveis, exercendo enorme pressão
nos ambientes de nascentes e de veredas, que são consideradas os oásis do Cerrado
brasileiro.

Verifica-se que os vales dos rios do Cerrado foram, no passado, habitados e utilizados
como refúgios de antigos grupos humanos e das tradicionais nações e povos indígenas,
deixando um enorme legado de testemunhos e registros em forma de utensílios líticos,
cerâmicos, cemitérios e de pinturas rupestres, o que até o presente momento muito
pouco fora feito de concreto para a preservação, recuperação, valorização e
disseminação desse patrimônio da humanidade.

Notadamente, esses empreendimentos citados anteriormente, em uma visão de


conjunto, vão acarretar uma série de macro-impactos ecológicos e sociais irreversíveis

28
que estão sendo ignorados ou negligenciados pelos órgãos e agências de fiscalização e
licenciamento ambiental, uma vez que, frente aos documentos produzidos e discutidos
a esse respeito, pouco ou quase nada resultou em algo concreto por parte desses
órgãos.

O momento é muito oportuno, pois há o compromisso social e ambiental do atual


governo federal e, com a promulgação de leis, resoluções e dispositivos constitucionais,
das leis ambientais e dos recursos hídricos, assinaturas de tratados e acordos nacionais
e internacionais, tais como o Tratado de Kyoto e a Agenda 21, que coincidem com
vários processos de licenciamentos ambientais para o início de obras de hidrelétricas e
implantação de um conjunto portentoso de usinas de álcool na região de Cerrado. Há
ainda, a preocupação com a divulgação dos possíveis riscos ambientais com as
mudanças climáticas, segundo o que se apresenta no Painel Intergovernamental sobre
as Mudanças Climáticas (IPCC), aliado aos impactos regionais nos meios natural e
social que esses empreendimentos vão ocasionar, particularmente no sul, sudoeste,
sudeste e norte do estado de Goiás, regiões intensamente exploradas nas últimas
décadas e que se projetam para um futuro próximo como o celeiro para os
biocombustíveis.

São vários os questionamentos que a cada momento surgem em decorrência dos


estudos, debates e análises, pois são comprometedores para cada um dos
empreendimentos isolados, inicialmente, e em conjunto, posteriormente. Pesa ainda, as
riquezas e as variedades da cultura e tradições seculares e da biodiversidade da fauna
e da flora do Cerrado, uma existência de milhões de anos. É sempre o paradoxo do
custo e benefício que orienta as tomadas de decisões governamentais e privadas.

Contudo, entre as dezenas de interrogações e questionamentos, destacamos as mais


corriqueiras, que nem sempre são respondidas e consideradas, tais como: será
compensada a degradação da cobertura vegetal nativa, compreendida de mata de
galeria, de encosta e aluvial, até então preservadas? Haverá o extermínio da fauna
(compreendendo a terrestre, avifauna, ictiofauna e limnológica)? Como evitar o
extermínio de mais de 50% das espécies de peixes de piracema em decorrência do
barramento e da transformação do ambiente hídrico, de lótico para lêntico?

Verifica-se a necessidade de mais estudos verticalizados e de mais debates consistentes


sobre a degradação dos ambientes hídricos e dos futuros lagos, com possíveis
comprometimentos na manutenção da qualidade das águas, causado pela erosão das
encostas e dos topos das chapadas e consequente sedimentação, em decorrência do
uso intensivo e extensivo do solo por atividades agropecuárias que, transportados por
ocasião das chuvas sazonais, favorecem o intenso processo de assoreamento dos
reservatórios e de seus afluentes, como os que drenam a densamente populosa região
da bacia hidrográfica do rio Paranaíba (Alto Paraná).

Dessa forma, pensar com ética sobre a situação atual é envidar esforços por outro
modelo de desenvolvimento para o Cerrado brasileiro, bem como, a implementação de
uma agenda positiva para esse bioma, sendo, inicialmente, uma contribuição para o
debate, incluindo a educação ambiental formal e informal, subsidiando as tomadas de
decisões, contrapondo a situação real e patente da desinformação e da negligência, se
não, da subserviência do público diante do privado e de toda a postura antiética para
com a natureza e para com os povos do Cerrado, remanescentes de uma cultura
secular de existência e história que, a toda sorte, lutam para resistir aos impactos
gerados por um modelo econômico excludente, voltado unicamente para a produção,
reprodução e concentração do capital que, na atualidade, é implementado por uma
política agrícola e agrária com uma inovadora tríade: agronegócio, hidronegócio e
agroenergia.

29
Em última análise, vale considerar que a devida ausência das preocupações acima
descritas confere negligência no trato para com o meio ambiente e para com a
sociedade, caracterizando um verdadeiro crime contra a natureza e um afrontamento
às leis ambientais, portanto, uma conspiração contra a vida no Cerrado em suas mais
variadas formas e expressões.

Laurindo Elias Pedrosa é professor do curso de geografia do campus de Catalão da


Universidade Federal de Goiás (UFG), foi presidente da Associação de Geógrafos do
Brasileiros, Seção Catalão (gestão 2006/2008) e perito ad hoc de crimes ambientais
Diretoria Geral de Polícia Civil de Goiás/Superintendência de Polícia Judiciária/9ª
Delegacia Regional de Polícia Civil.

Notas

O presente texto foi extraído de documentos produzidos e subscritos por vários seguimentos organizados da
sociedade civil e movimentos ambientais e populares, protocolados junto a diversos órgãos públicos, jurídicos, de
licenciamento e fiscalização, portanto, uma construção coletiva com expressiva contribuição dos professores do curso
de geografia do campus de Catalão/UFG, como também parte de projeto de pesquisa e extensão da PRPPG/UFG,
com o título “A hidrelétrica Serra do Facão: o outro lado da moeda”, coordenado por Helena Angélica de Mesquita.

30
Artigo

Novas tecnologias podem auxiliar na conservação e


uso sustentável do Cerrado
Por Anderson Cleiton José

Enquanto todas as atenções estão voltadas para o desmatamento da Floresta


Amazônica, o Cerrado brasileiro é devastado de forma lenta e silenciosa, para atender
ao avanço de monoculturas que cada vez mais exigem a abertura de novas áreas para
o plantio de espécies agrícolas e florestais. Um dos fatores que estimulam essa
investida sobre o Cerrado é a posição estratégica dessas áreas, próximas aos grandes
centros consumidores, e o relevo plano que facilita a mecanização, reduzindo os custos
de implantação, manutenção e colheita.

Segundo pesquisas recentes realizadas pela Conservation International do Brasil, o


bioma Cerrado corre o risco de desaparecer até 2030 se medidas urgentes não forem
tomadas. Dos 204 milhões de hectares originais, 57% já foram completamente
destruídos e a metade das áreas remanescentes estão bastante alteradas, podendo não
mais servir aos propósitos de conservação da biodiversidade. Estima-se que o
desmatamento anual nas áreas de Cerrado esteja entre 1,5 a 3,0 milhões de hectares.

A conservação dos recursos naturais

A forma mais eficiente para a proteção dos recursos naturais é a sua conservação in
situ. Isto consiste na manutenção das áreas intactas, mediante a criação de unidades
de conservação, tais como parques nacionais, reservas biológicas, florestas nacionais e
áreas de proteção ambiental, dentre outras. No Cerrado, infelizmente, o número de
unidades de conservação é muito baixo, quando comparado com outros biomas, e
essas, geralmente, são muito vulneráveis a ações antrópicas (fogo, desmatamento,
caça e pesca).

Dessa forma, devido à grande degradação verificada no bioma como um todo, mesmo
as áreas protegidas necessitam de uma atenção especial, para que a conservação
ocorra de forma efetiva. Uma maneira encontrada para diminuir os impactos sobre
essas áreas é a criação de corredores ecológicos, que são áreas que unem os
remanescentes florestais, possibilitando o fluxo gênico, que nada mais é do que o
trânsito de animais e a dispersão de sementes e pólen de espécies vegetais. Esses
corredores foram planejados para interligar remanescentes de vários biomas. No
Cerrado, estão previstos a criação dos corredores Araguaia-Pantanal, abrangendo 10
milhões de hectares nos estados de GO, TO, MT e PA, o corredor ecológico Jalapão-
Mangabeiras, situado na confluência dos estados de TO, PI e BA, o corredor ecológico
Cerrado-Pantanal, situado na bacia do rio Taquari, GO, interligando o Pantanal com o
Cerrado da região do Parque Nacional de Emas, e o corredor JICA, na região do Vale do
Paraná/Serra dos Pirineus, abrangendo os estados de GO, DF e TO.

A conservação também pode se dar através do uso sustentável dos recursos naturais.
Pesquisas recentes realizadas pela Universidade Federal de Lavras (MG) mostram que é
viável economicamente manejar a vegetação do Cerrado, como alternativa ao seu
desmatamento para a implantação de florestas de eucalipto, atividade que vem
ocorrendo em larga escala em vários estados brasileiros. Esses estudos, porém,
levaram em conta somente a utilização dos produtos madeireiros, deixando de lado o
que muitos consideram a grande riqueza deste bioma que é a enorme diversidade de

31
produtos que podem ser extraídos, tais como frutos, sementes, óleos, fibras, etc...

Entretanto, ao se propor metas para um programa de conservação, mediante a criação


de unidades de conservação, ou mesmo ao permitir o uso sustentável dos recursos
naturais, algumas informações são de fundamental importância para que o seu manejo
seja realizado de forma correta. Associado a estudos de geomorfologia, geologia, solos,
clima, sistemática botânica e biogeografia, técnicas moleculares podem fornecer
subsídios aos estudos da vegetação para o estabelecimento de estratégias adequadas
para o manejo ambiental

A análise de características genéticas das populações que se pretende conservar,


mediante marcadores moleculares, que tem como objeto de estudo as sequências de
DNA e proteínas dos indivíduos, objetiva reduzir os riscos para as populações a serem
conservadas, evitando a endogamia (cruzamento entre indivíduos aparentados) e a
deriva genética, devido à redução do número de indivíduos das populações. Isso porque
uma população a ser conservada em uma determinada área não precisa ser
necessariamente grande, mas necessita ter número suficiente de indivíduos para ser
representativa, evitando a endogamia e possibilitando a manutenção do potencial
evolutivo das espécies.

Conhecer para poder preservar

Hoje, um dos grandes desafios para os pesquisadores é o entendimento da biologia das


espécies do Cerrado. Essas informações são úteis tanto no manejo correto das
populações, por exemplo, em unidades de conservação, bem como para o uso
sustentado dos seus recursos.

Os processos relacionados à reprodução têm sido alvo de muitas pesquisas nos últimos
anos. Compreender os mecanismos de propagação das espécies, bem como a
estruturação das espécies nos diversos habitats parece ser o ponto chave para o
estabelecimento de propostas de recomposição e conservação de áreas naturais.

As espécies que se adaptam a um determinado ambiente desenvolvem “habilidades”


para poderem suportar as condições ambientais ali existentes. Como exemplo, cita-se
um mecanismo muito importante para as espécies vegetais que é a dormência das
sementes, a qual garante que nem todas as sementes dispersas em um ano germinem
prontamente quando as condições ambientais forem favoráveis (luz, umidade e
substrato). Isso significa que muitas sementes podem permanecer no solo por até
dezenas de anos, até que germinem para dar origem a uma nova planta. Entretanto,
esse mecanismo muitas vezes inviabiliza a produção de mudas de algumas espécies
para utilização em programas de recuperação ambiental ou mesmo para a utilização
racional de algumas espécies com potencial econômico.

Dessa forma, vários estudos utilizando técnicas baseadas na análise de DNA têm
ajudado os pesquisadores a entender os mecanismos fisiológicos relacionados ao
desenvolvimento, germinação e dormência de espécies florestais do Cerrado,
permitindo dessa forma, que um número maior de espécies seja utilizado nos projetos
de reflorestamento para a recomposição da flora.

A análise da estrutura genética populacional também pode ser realizada através de


técnicas moleculares, e atualmente tem passado por grandes avanços tecnológicos.

Tecnologias que podem auxiliar a conservação do Cerrado

Se por um lado a biotecnologia pode ter uma conotação negativa para alguns grupos da

32
sociedade – nesse caso, quando associada aos organismos geneticamente modificados
(transgênicos) –, por outro, pode ser uma ferramenta de fundamental importância para
a conservação dos recursos naturais.

Desde a descoberta do DNA, o desenvolvimento de técnicas de análise molecular tem


passado por grandes avanços. Nos últimos três anos, foram desenvolvidos métodos
rápidos e baratos para o sequenciamento de DNA, permitindo o sequenciamento de
moléculas de qualquer espécie em um curto período de tempo. Enquanto o uso dessas
tecnologias ficava restrito a estudos na área de saúde humana ou em espécies vegetais
modelo, geralmente espécies com um genoma pequeno, agora o avanço no
desenvolvimento dessas tecnologias permite o uso dessas ferramentas em qualquer
espécie nativa.

A importância desses avanços, além da maior acessibilidade pela redução dos custos
das análises, reside na possibilidade do desenvolvimento de marcadores para diversos
processos fisiológicos, na redução do tempo para obtenção de informações e,
consequentemente, na possibilidade de acompanhar a dinâmica de populações de um
maior número de espécies.

Entretanto, mesmo com o desenvolvimento dessas novas tecnologias, a manutenção


das unidades de conservação já existentes e a recuperação de áreas degradadas,
interligando grandes fragmentos, associado ao uso sustentável dos recursos naturais,
ainda são a alternativa mais viável para a conservação, visto que não se conhece nem
mesmo a totalidade da diversidade de nossos ecossistemas, e, dessa forma, os esforços
ainda devem ser concentrados em manter intacto o pouco que nos restou.

Anderson Cleiton José é professor adjunto do curso de engenharia florestal da


Universidade Federal do Tocantins, Campus Universitário de Gurupi. Contato:
acjose@uft.edu.br.

33
Artigo

Evolução histórica do conceito de savana e a sua


relação com o Cerrado brasileiro
Por Fabiana de Gois Aquino
José Roberto Rodrigues Pinto
José Felipe Ribeiro

Agrupar a vegetação de uma região, de um país ou do planeta em categorias de fácil


reconhecimento parece, inicialmente, uma tarefa simples. Entretanto, os critérios, as
observações subjetivas, as escalas e outras variáveis consideradas no método de
classificação adotado dificultam que um mesmo padrão possa emergir nos diferentes
sistemas propostos por distintos autores. Embora certa uniformidade na conceituação e
na terminologia seja desejada, é muito difícil que um modelo universal defina ou
represente fielmente uma tipologia vegetacional, uma vez que as paisagens
apresentam variações e particularidades locais e regionais. Além disso, influenciam
sobremaneira no produto final da classificação, o tamanho da área, a escala e a ordem
hierárquica dos critérios e conceitos utilizados na separação das categorias.

Para a savana não é diferente. Talvez, de todos os tipos de vegetação, a savana seja a
mais difícil de definir, pois sua distribuição e origem são controversas, já dizia em 1960
a geobotânica Mônica Mary Cole. A definição de savana e a evolução histórica deste
termo são polêmicas e têm sido frequentemente colocadas em pauta nos vários fóruns
de discussões acadêmicas ao longo das últimas décadas. Apesar de bastante debatido,
o assunto ainda desperta controvérsias em função do alto número de interpretações.
Na literatura científica, são encontradas mais de duas centenas de termos técnicos
relacionados à palavra savana. Esse elevado número está associado à grande
quantidade de tipologias vegetacionais classificadas como savana.

Escrever em poucas páginas sobre um assunto tão extenso não é fácil. A intenção
apresentada aqui é oferecer uma visão geral das principais linhas de pensamento e
pontos de divergências, bem como apresentar a contribuição de alguns atores
envolvidos na árdua empreitada de ordenar conceitos, visões e impressões sobre as
savanas do nosso planeta. Como a literatura aponta, embora essa discussão conceitual
possa parecer inócua, ela tem implicações práticas diretas, pois dependendo do
conceito adotado, a distribuição geográfica, a extensão da savana no mundo e a
quantificação da biodiversidade muda drasticamente, refletindo nas políticas e
estratégias para sua conservação.

Historicamente, a evolução do conceito está associada aos critérios usados na definição


e/ou na classificação das savanas no mundo. Grande parte das definições de savana
disponíveis na literatura inclui aspectos fisionômicos, climáticos (estacionais),
latitudinais, geográficos, florísticos e ecológicos (por exemplo: competição e fogo),
além de sugerir o importante papel do tempo geológico. Entretanto, existem variações
no peso dos critérios usados em cada um dos diferentes sistemas de classificação,
culminando, conseqüentemente, nas diferenças terminológicas.

De acordo com Cole, o termo savana é ameríndio (nativo do continente americano) e


foi citado pela primeira vez, em 1535, pelo historiador e escritor espanhol Gonzalo
Fernández de Oviedo y Valdés em um trabalho nas Índias, para descrever “terra que
está sem árvores, mas com muita erva alta e baixa” (Cole, 1986).

Segundo os levantamentos realizados pelo pesquisador Bruno Machado Teles Walter, da


Embrapa, até meados do século XIX, o termo savana foi aplicado para descrever os

34
tipos vegetacionais desprovidos de árvores, localizados no Caribe e na América do Sul.
Esse pesquisador chamou atenção para o fato de que “embora, atualmente (no Brasil),
o público leigo associe savana a um domínio vegetacional do continente africano (e não
sul-americano), local de morada dos grandes mamíferos do planeta, foi somente muito
tempo depois de sua origem histórica, que o termo foi aplicado naquele continente e
em outras partes do globo” (Walter, 2006).

Em seus estudos, Walter ressaltou que o botânico e fitogeógrafo alemão August


Heinrich Rudolph Grisebach, em 1872, parece ter sido o primeiro a usar o termo savana
com significado mais difundido até o presente, ou seja, utilizando o termo para
designar paisagens com poucas árvores espalhadas em um ambiente graminóide em
outros lugares do mundo e não apenas em paisagens da América do Sul.
Posteriormente, o ecólogo alemão Oscar Drude e o fitogeógrafo francês Andreas Franz
Wilhelm Schimper estenderam o conceito de savana para a vegetação com ocorrência
esparsa de arbustos e árvores (Drude, 1890; Schimper, 1898); seguidos por várias
outras tentativas de definir com exatidão o termo. Porém, como o termo passou a ser
aplicado em diferentes partes do planeta, distintas definições foram incorporadas ao
longo do tempo com significados até mesmo conflitantes em função de particularidades
de cada região.

Uma grande contribuição para o entendimento sobre as savanas mundiais pode ser
creditada ao médico-ecólogo francês François Bourliére, que, em conjunto com
autoridades no tema, publicaram em 1983 o livro intitulado: Ecosystems of the world
13: tropical savannas, mostrando as características das savanas em todos os
continentes. Para eles, existem alguns fatores que, em conjunto, determinam a
formação da savana, entre eles as condições climáticas, edáficas, hidrológicas e
geomorfológicas, além do fogo e pastejo.

Atualmente, o termo savana tem sido utilizado de forma ampla para designar diferentes
formações vegetacionais no mundo, muitas vezes se referindo a conceitos conflitantes.
Para as duas escolas tradicionais em estudos ecológicos, a escola européia e a
americana, a principal diferença em termos conceituais está na área de distribuição
geográfica das savanas na Terra. Para as escolas seguidoras da corrente européia, as
savanas ocorrem na zona tropical, localizada entre os Trópicos de Câncer e de
Capricórnio (22,5º norte e sul da linha do Equador). Por outro lado, para a corrente
americana, as savanas ocorrem além da zona tropical, estendendo-se para a zona
subtropical (entre 23º e 35º ao sul do Trópico de Capricórnio e 23º e 35º ao norte do
Trópico de Câncer), incluindo no conceito parte da vegetação estépica do continente
norte americano.

Além da diferença quanto à área de ocorrência da savana, outro ponto de divergência


está na inclusão ou não das fitofisionomias arbóreas e das essencialmente herbáceas na
sua definição. Geralmente, o conceito de savana está relacionado aos aspectos
fisionômicos da vegetação. Exemplo disso são os inúmeros termos encontrados na
literatura, os quais fazem, via de regra, inferências sobre a presença ou não de
árvores, arbustos ou apenas campo (savana arborizada = savanna woodland, savana
arbustiva =savanna scrub, savana parque = savanna parkland, savana herbácea
= savannagrassland). Menos usual está o emprego do termo relacionado com as
condições ambientais locais, por exemplo, savana estacional
= savanna seasonal, savana hipersasonal = savanna hyperseasonal. Há ainda quem
separe as áreas de savanas no mundo em função das condições macroclimáticas, por
exemplo, savana úmida = savannawed e savana seca = savanna dry.

Para outros autores, como o professor George Eiten, as savanas no mundo podem ser
agrupadas numa macroescala de acordo com as condições climáticas regionais, onde a
sazonalidade no regime pluviométrica seria o fator determinante para ocorrência da

35
vegetação savânica, por exemplo, no continente africano (Eiten, 1982). Por outro lado,
as savanas também poderiam ser determinadas pelas condições edáficas, onde as
propriedades físico-químicas do solo é que determinariam a ocorrência desse tipo de
vegetação, como é o caso das savanas amazônicas, na América do Sul. Na região Norte
do Brasil, o clima é favorável para a formação da Floresta Tropical Úmida, no entanto,
na região amazônica há manchas de vegetação savânica que, certamente, são reflexos
das condições edáficas locais.

Voltando à discussão conceitual, de acordo com a visão antiga do termo, a savana pode
ser entendida como um tipo de vegetação desprovida de árvores e com abundante
estrato herbáceo. Por outro lado, na visão moderna e mais ampla, o termo savana, em
geral, pode ser definido como a vegetação caracterizada por um estrato graminoso
contínuo ou descontínuo com presença de árvores e arbustos dispersos na paisagem
(ver Collinson, 1988). Dentro desse conceito, as savanas podem ser encontradas na
América do Sul, África, Oceania e Ásia. A savana é considerada o quarto maior bioma
mundial em área, com cerca de 15 milhões de km 2, que correspondem a cerca de 33%
da superfície continental da Terra, 40% da faixa tropical e abriga 20% da população
mundial ( Whittaker, 1975; Mistry, 2000)

Distribuição das savanas no planeta.

Na América do Sul, a savana é o segundo maior tipo de vegetação em extensão, atrás


apenas da Floresta Tropical Úmida (florestas Amazônica e Atlântica). No entanto, não é
consensual quais os tipos de vegetação compõe a savana no continente sul americano.
O mais aceito é considerar como savana o Cerrado brasileiro, os Llanos venezuelanos e
colombianos do rio Orinoco, e os Llanos de Mojos da Bolívia. Por outro lado, a Gran
Sabana, nas Guianas, o Chaco boliviano, as savanas amazônicas, o Pantanal e a
Caatinga, no Brasil, são alguns dos exemplos de divergência quanto à sua inclusão ou
não no conceito.

O professor Eiten, em um trabalho pioneiro sobre as savanas brasileiras, no início da


década de 80, agrupou a vegetação savânica brasileira em cinco categorias climático-
geográficas: Brasil sul (southern Brazil), região de campos limpos; Floresta Atlântica
(Atlantic Forest region), onde ocorrem campos de altitude e/ou rupestres; Brasil central
(central Brazil), no domínio do Cerrado e Pantanal; Brasil nordeste (north-eastern
Brazil), no domínio da Caatinga; e Amazônia (the Amazon region), onde ocorrem as
“savanas amazônicas”, ou seja, para Eiten, as savanas são encontradas em todas as
regiões brasileiras (Eiten, 1982). Já para o pesquisador do Jardim Botânico do Rio de

36
Janeiro, Carlos Toledo Rizzini, em seu livro intitulado Tratado de Fitogeografia do
Brasil, no Brasil, a palavra savana “só devia-se empregar, restritamente, para indicar o
Cerrado” (Rizzini 1997), enfatizando mais uma vez as diferenças de interpretação.

De acordo com os pesquisadores da Embrapa, José Felipe Ribeiro e Bruno Machado


Teles Walter, o Cerrado é um “complexo vegetacional que possui relações ecológicas e
fisionômicas com outras savanas da América tropical e de continentes como a África e
Austrália”. Para eles, o Cerrado é uma palavra que possui três acepções técnico-
científicas. A primeira e mais abrangente, aplica-se ao bioma situado
predominantemente no Brasil Central; a segunda, Cerrado sentido amplo (cerrado lato
sensu), refere-se ao conjunto das formações savânicas e campestres do bioma; e a
terceira, Cerrado sentido restrito (cerrado stricto sensu), indica um dos tipos
fitofisionômicos que ocorre com maior freqüência na formação savânica, definido por
sua composição florística e fisionomia.

Distribuição dos biomas brasileiros. Bioma Cerrado na parte


central do território brasileiro (cor rosa).
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Para alguns autores, como o professor Leopoldo Coutinho, da Universidade de São


Paulo, o bioma Cerrado vai da fitofisionomia do Campo Limpo ao Cerradão, num
gradiente crescente do componente lenhoso (ver Coutinho, 1978). Para outros autores,
como os pesquisadores Ribeiro e Walter, o Cerrado é composto por um mosaico
fitofisionômico que contempla as formações campestres (por exemplo, Campo Limpo),
formações savânicas (por exemplo, Cerrado sentido restrito) e formações florestais (por
exemplo, Matas de Galeria) (ver Ribeiro e Walter, 2008). Dentro desse contexto, a
vegetação classificada como savana apresenta características estruturais intermediárias
entre as formações campestres e as formações florestais do Cerrado, por exemplo,
Campo Limpo e Cerradão, respectivamente. Portanto, o bioma como um todo não é
savana, uma vez que nele ocorrem florestas e campos puros, mas é caracterizado,
primordialmente, por uma típica vegetação de savana que ocupa a maior parte da área
de domínio do bioma.

37
Cerrado sentido restrito.
Foto: José Felipe Ribeiro.

A grande divergência entre esses sistemas de classificação, bem como do conceito de


Cerrado, está na inclusão ou não das fitofisionomias mais abertas e as mais fechadas
como bioma Cerrado e como savana. Tanto Coutinho (conceito mais restritivo) quanto
Ribeiro e Walter (conceito mais amplo) consideram o Cerrado como savana (Coutinho
2006; Ribeiro e Walter 2008). A diferença está na definição de quais fisionomias
compõe esse bioma, ou seja, se devemos incluir as formações campestres e as
florestais na definição de Cerrado. Enfim, considerando apenas o aspecto fisionômico, o
Cerrado pode ser então considerado como savana, pois, cerca de 80% a 90% do Brasil
Central é caracterizado como vegetação savânica (Cerrado sentido restrito e Campo
Sujo), enquanto que o restante é ocupado pelas formações florestais e campestres
(Eiten, 1972; 1978).

Segundo Walter, “não há como excluir o Cerrado sentido restrito do conceito de


savana, qualquer que seja a definição adotada”. No entanto, ele salienta que “já o
Cerrado sentido amplo e o bioma são realmente de análise mais complexa”, concluindo
que “realmente o Cerrado não é meramente um sinônimo brasileiro de savana, mas sim
um componente deste conceito”, como já havia afirmado o professor Eiten na década
de 70 (Eiten, 1972; 1978).

Por fim, para que o termo savana possa ser usado satisfatoriamente, é preciso levar em
conta as diferentes interpretações existentes. Por isso, é importante a observação do
professor Coutinho: “os termos empregados para definir uma tipologia vegetacional
deveriam ser seguidos pelos conceitos que os autores fazem deles para evitar
confusões, pois nem sempre seus conceitos coincidem entre si” (Coutinho, 2006).
Como os conceitos não são coincidentes, é fundamental que o autor entenda e
esclareça qual a definição está utilizando e seja coerente durante todo o texto.

Fabiana de Gois Aquino é pesquisadora da Embrapa Cerrados; José Roberto Rodrigues


Pinto é professor do Departamento de Engenharia Florestal, da Universidade de Brasília,
e José Felipe Ribeiro é pesquisador da Embrapa Sede.

Bibliografias consultadas

Ab'Sáber, A. N. Os domínios da natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 2ª Edição. São Paulo: Ateliê
Editorial. 2003. p. 115-135.
Bourliére, F. Ecosystems of the world 13: tropical savannas. Amsterdan: Oxford, New York: Elsevier Scientific
Publishing Company, 1983. 730p.
Cole, M. M. The savannas: biogeography and geobotany. London: Academic Press, 1986. 438p.
Collinson, A.S. Introduction to world vegetation. Unwin Hyman Ltda. 1988.
Coutinho, L. M. “Ecological effects of fire in brazilian Cerrado”. In: Huntley, B. J. e Walker, B. H. (Eds.).Ecology of
Tropical Savannas. Berlin: Springer-Verlag, 1982, p. 273-292.
Coutinho, L. M. “O conceito de Cerrado”. Revta. Brasil. Bot. n.1, p. 17-23. 1978.
Coutinho, L. M. “O conceito de bioma”. Acta bot. bras. n.20, v.1, p. 13-23. 2006.
Drude, O. Handbuch der pflanzengeographie. Stuttgart: Engelhorn, 1890. 582p.
Eiten, G. “Vegetation forms ”. Boletim, 4. São Paulo: Instituto de Botânica, v.4, 1968. 88p.
Eiten, G. “The cerrado vegetation of Brazil ”. The Botanical Review. n.38, v.2, p. 201-340. 1972.

38
Eiten, G. “Delimitação do conceito de cerrado”. Arquivos do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. v.21, p.125-134, 1977.
Mistry, J. World savannas. Ecology and human use. Longman (Pearson Education). Harlow. 2000.
Oliveira, P. S.; Marquis, R. J. (Eds.). The Cerrado of Brazil: ecology and natural history of a Neotropical
Savanna. New York: Columbia University Press. 2002.
Ribeiro, J. F.; Walter, B. M. T. “Fitofisionomias do Bioma Cerrado”. In: Sano, S. M.; Almeida, S. P. e Ribeiro, J. F.
(Eds.). Cerrado: ecologia e flora.
Rizzini, C. T. Tratado de fitogeografia do Brasil: aspectos ecológicos, sociológicos e florísticos. 2 a Edição. Rio de
Janeiro: Âmbito Cultural Edições Ltda. 1997. 747 p.
Walter, B. M. T. Fitofisionomias do bioma Cerrado: síntese terminológica e relações florísticas. Tese de Doutorado.
Universidade de Brasília. 2006. 389p.
Walter, B. M. T.; Carvalho, A. M. e Ribeiro, J. F. “O conceito de savana e de seu componente Cerrado”. In: Sano, S.
M.; Almeida, S. P. e Ribeiro, J. F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Planaltina: Embrapa Cerrados. 2008, p. 19-45.
Whittaker, R. H. Communities and ecosystems. New York: Macmillan Publishing Co, 1975. 385p. Planaltina: Embrapa
Cerrados. 2008, p. 151-212.

39
Artigo

Os cerrados e o fogo
Por Vânia R. Pivello

Assim como em todas as savanas tropicais, o fogo tem sido um importante fator
ambiental nos cerrados brasileiros desde há muitos milênios e tem, portanto, atuado na
evolução dos seres vivos desses ecossistemas, selecionando plantas e animais com
características que os protejam das rápidas queimadas que lá ocorrem. Nas plantas,
uma dessas características que talvez mais nos chame a atenção é a cortiça grossa das
árvores e arbustos (lenhosas), que age como isolante térmico durante a passagem do
fogo. Entretanto, um observador mais atento irá notar diversas outras respostas da
vegetação ao fogo, como a floração intensa do estrato herbáceo e a rápida rebrota das
plantas, dias após a queima, a abertura sincronizada de frutos e intensa dispersão de
suas sementes, a germinação das sementes de espécies que são estimuladas pelo fogo.
Ainda, o fogo promove todo um processo de reciclagem da matéria orgânica que, ao ser
queimada, transforma-se em cinzas, que se depositam sobre o solo e, com as chuvas,
têm seus elementos químicos solubilizados e disponibilizados como nutrientes às raízes
das plantas.

Sendo assim, ao contrário do que muitos pensam, o fogo de intensidade baixa ou


moderada não mata a grande maioria das plantas do Cerrado, que são adaptadas a
esse fator ecológico. Pelo contrário, para muitas espécies, principalmente as herbáceas,
o fogo é benéfico e estimula ou facilita diversas etapas de seu ciclo de vida, como
mencionamos acima.

Também os animais do Cerrado estão adaptados para enfrentar as queimadas: dentre


os vertebrados, muitos se refugiam em tocas ou buracos e ficam protegidos das altas
temperaturas, pois, a poucos centímetros de profundidade, o solo nem chega a
esquentar, devido à rapidez com que o fogo percorre os cerrados.

Mas por que as savanas – e dentre elas, também os cerrados – pegam fogo?

A distribuição esparsa das árvores e dos elementos lenhosos, que caracteriza as


savanas, permite a chegada de insolação no nível do solo e promove o desenvolvimento
de farto estrato herbáceo, formando um “tapete” graminoso. Devido ao seu ciclo de
vida, essas gramíneas têm suas folhas e partes florais dessecadas na época seca – que,
na região dos cerrados, geralmente vai de maio a setembro. Esse material fino e seco
passa a constituir um combustível altamente inflamável. Raios e também chamas e
faíscas provenientes de ações do homem (queima de restos agrícolas, fogueiras, etc)
podem iniciar a combustão da vegetação e, a partir de então, o fogo se propaga
rapidamente.

As queimadas causadas por raios, ditas “naturais”, geralmente ocorrem em setembro,


sendo esse o mês que marca o início da estação chuvosa na região dos cerrados. É
quando ocorrem chuvas fortes, com muitos raios, e também quando a biomassa
herbácea está no auge do dessecamento, tendo suas folhas e ramos se transformado
em material facilmente inflamável. As queimadas causadas pelo homem
(antropogênicas) geralmente são acidentais, mas também podem ser intencionais. Em
comparação com as queimadas naturais, as antropogênicas costumam ser antecipadas
para julho ou agosto, pois é quando a maior parte dos agricultores queima os restos da
colheita e prepara suas terras para novos plantios, causando o “escape” do fogo, ou
quando os pecuaristas deliberadamente queimam o pasto nativo para promover o
rebrotamento das gramíneas dessecadas e, assim, fornecer folhas frescas ao gado

40
nessa época de escassez.

O fogo como instrumento de manejo

Em épocas remotas, antes do surgimento do homem, as queimadas em ambientes


savânicos eram causadas basicamente por raios. Com o domínio do uso do fogo e o
grande crescimento de suas populações, o homem passou a aumentar muito a
frequência das queimadas nesses ambientes, além de alterar a época de ocorrência das
queimadas naturais.

As informações disponíveis revelam que o uso do fogo era muito difundido entre todos
os grupos indígenas que habitavam os cerrados. Por meio do fogo, eles manipulavam o
ambiente e se beneficiavam de diversas maneiras: estimulavam a floração e a
frutificação de plantas que lhes eram úteis, atraíam e caçavam animais que vinham
comer a rebrota do estrato herbáceo, espantavam animais indesejáveis – como cobras
–, livravam-se de algumas pestes (insetos, ácaros), “limpavam” áreas para instalar
suas vilas e seus cultivos, além de se utilizarem do fogo para sinalização e em rituais
religiosos.

Os indígenas tinham grande conhecimento dos efeitos que queimadas em diferentes


épocas do ano, ou de diferentes intensidades, ou ainda em diferentes frequências
anuais, podiam ter sobre cada grupo de plantas ou de animais. Por exemplo, sabiam
que, se queimassem o Cerrado todos os anos, poderiam prejudicar espécies arbóreas,
matando os indivíduos jovens, mas que, ao queimar a cada 2-3 anos, estimulavam a
frutificação das arbóreas e davam tempo aos jovens para que desenvolvessem
mecanismos de defesa contra o fogo (como cortiça grossa); geralmente queimavam o
Cerrado na época seca, logo após o pequizeiro (Caryocar brasiliense) lançar seus brotos
(agosto/setembro), a fim de não danificar sua floração e a produção de frutos, que se
iniciam em outubro, após a primeiras chuvas de verão. A forma de precisar a época
mais adequada para queimar era por meio de algumas espécies indicadoras (aquelas de
seu interesse), como o pequi, cujo fruto era muito utilizado como alimento e recurso
medicinal. Numa escala temporal mais refinada, também se guiavam pela formação de
nuvens, pelo nível dos rios, ou pelo comportamento de alguns animais para saber
quando melhor aproveitar os efeitos do fogo. Em geral, queimavam pequenas áreas, ou
áreas maiores num sistema de mosaico, intercalando locais queimados com não-
queimados, que serviam de refúgio à fauna e às espécies de plantas mais sensíveis ao
fogo.

Parte desse conhecimento foi transmitida aos agricultores e pecuaristas, porém, ao


contrário dos indígenas, seu estilo de vida sedentário não lhes permitia manter o
sistema de queima em mosaico, nem esperar alguns anos para voltar a queimar o
mesmo local, pois necessitavam maximizar, temporal e espacialmente, os benefícios do
fogo. Disso resultou um aumento na frequência e na extensão das áreas queimadas,
ocasionando, muitas vezes, a degradação do ambiente, em termos de esgotamento das
terras, erosão, exclusão do estrato arbóreo, extermínio de espécies nativas, infestação
por espécies ruderais, dentre outros.

Contudo, o mau uso do fogo não anula os benefícios que seu bom uso possa trazer. Nas
savanas, o fogo é um instrumento de manejo precioso, que pode levar a uma grande
gama de resultados ecológicos, em médio prazo. Lidando com os elementos que
compõem o regime de uma queimada – frequência, intensidade e época da queima – se
pode aumentar ou diminuir a produção de folhas e frutos, estimular ou excluir
determinadas espécies de plantas e animais, aumentar ou diminuir os nutrientes
disponíveis às plantas no solo, ralear ou adensar a vegetação arbórea. Assim, o uso
adequado e planejado do fogo pode ser uma estratégia de manejo boa e barata para a
manutenção de pastagens naturais e também de parques nacionais e reservas

41
biológicas que se destinam à proteção dos ecossistemas do Cerrado.

A aversão ao fogo que hoje se vê nos órgãos ambientais e na mídia provém de


informações equivocadas, que confundem conceitos válidos para as florestas tropicais
com o funcionamento e a dinâmica do Cerrado, coisas completamente distintas. É uma
pena, pois uma boa compreensão do papel do fogo e de seus efeitos nos ecossistemas
de Cerrado, adquirida por meio da combinação de conhecimentos técnico-científicos
gerados por pesquisadores e do conhecimento empírico acumulado pelos habitantes do
Cerrado, possibilitaria a aplicação adequada dessa ferramenta, com bons resultados
para a solução de diversos problemas que hoje atingem os cerrados naturais e semi-
naturais.

Vânia R. Pivello é professora do Departamento de Ecologia, do Instituto de Biociências


da Universidade de São Paulo

Leia mais:

Pivello, V.R. 2006. “Fire management for biological conservation in the Brazilian Cerrado”. In: Mistry, J. & Berardi, A.
(eds.) Savanas and d ry forests - linking p eople with nature. Ashgate, Hants. pp. 129-154.

42
Artigo

Tópicos para construção da ocupação pré-histórica do


Cerrado
Por Altair Sales Barbosa

O registro da pré-história sul-americana demonstra intensa movimentação adotada por


populações humanas nos sistemas andinos e pré-andinos, principalmente a partir de
12.000 anos A. P. (antes do presente). Essa movimentação coincide com mudanças
ambientais maiores de cunho continental, com matizes localizadas, responsáveis por
entropias nos sistemas físicos e culturais até então estruturados e por flutuações no
espaço por parte desses sistemas, culminando com a redução de áreas com savanas e
início de desertificação em certos setores, fatos que acentuam o processo de redução
faunística, principalmente a fauna de gigantes na parte centro-norte ocidental do
continente.

Parece claro que essas movimentações humanas estejam relacionadas com


modificações de ordem ambiental, mesmo que essas sejam mediatizadas pela cultura.
Os sistemas culturais são, de certa forma, desestruturados, e as populações são
impulsionadas a buscarem novas formas de planejamento ambiental/social e novas
alternativas de sobrevivência. Nesse contexto, as áreas abertas, representadas
especialmente pelos cerrados ainda existentes em manchas significativas nos baixos
chapadões da Amazônia, devem ter exercido papel fundamental no favorecimento de
novas expectativas de sobrevivência e novos arranjos culturais, desencadeando os
processos iniciais de colonização das áreas interioranas do continente.

Essa colonização dá-se preferencialmente em áreas de formações abertas. O início


acontece de forma acanhada, mas algum tempo depois, já é possível constatar a
formação de um horizonte cultural fortemente adaptado às novas condições ambientais,
principalmente quando se aproxima da grande área das formações abertas, existente
nos chapadões centrais brasileiro, cujas características físicas e biológicas mantêm-se
com alteração pouco significativa quando comparada com modificações que afetaram
outros biomas continentais durante o Pleistoceno Superior e fases iniciais do Holoceno.

Os estudos sobre a indústria lítica que compõe esse grande horizonte cultural que se
forma nos cerrados, quando comparados com outros sobre as indústrias líticas do
continente, situadas mais a oeste e mais recuadas temporalmente, parecem
demonstrar que alguns traços tecnológicos são mantidos, porém aperfeiçoados de
forma sui generis , originando uma indústria também bastante singular e
assustadoramente homogênea. Processo quase que similar ocorre com relação à
economia de subsistência.

O estudo de algumas áreas cujos vestígios estão preservados demonstra, quando


comparadas às áreas do oeste, uma tendência crescente à generalização que, em
pouco tempo, difunde-se como sistema econômico básico.

De onde vieram esses povoadores iniciais é um problema para o qual ainda não se tem
muita clareza, mas algumas áreas do oeste merecem mais atenção que outras, porque
podem ter funcionado como centros dispersores. O estudo comparativo de variáveis
bem definidas inevitavelmente conduzirá a algumas respostas.

Nesse sentido, o horizonte cultural que se formou nas savanas e formações xerófilas,

43
na área andina, representado principalmente pelas áreas nucleares de El Abra e
Ayacucho, cujas explorações das formações abertas já apontam elementos muito
significativos, devem converter-se num ponto de investigação inicial.

Entre 12.000 e 11.000 anos A. P., dois sistemas ocupacionais bem definidos já estão
definitivamente implantados no interior do continente. Trata-se da área nuclear do vale
do Guaporé, nas quebradas do planalto brasileiro, cuja cobertura vegetal é
caracterizada pelos cerrados, e a região das coxilhas gaúchas, cujas ocupações se
relacionam com as ocupações das estepes patagônicas, formando com esta um
horizonte cultural descontínuo.

As ocupações das coxilhas gaúchas não demonstram nenhum tipo de relacionamento


com as ocupações que se instalam imediatamente nos cerrados dos chapadões centrais
do Brasil. Pelo contrário, estão mais relacionadas com as ocupações das estepes
patagônicas, com processos evolutivos similares e muito diferente dos processos
adotados ou desenvolvidos pelas ocupações que formam o Grande Horizonte Cultural
dos Cerrados.

Já as ocupações do vale do Guaporé guardam ligeiras relações tanto com as ocupações


das savanas, localizadas mais para oeste e mais antigas, como com as ocupações
localizadas nos cerrados do leste, instalados em épocas ligeiramente mais recentes. A
indústria lítica demonstra certa transição evidenciada por uma desestruturação, e por
uma posterior adaptação exitosa.

Esse esquema explicativo seria perfeitamente compreensível se já não existisse no


interior, em ambiente similar, o registro das áreas ocupadas de São Raimundo Nonato
e Lagoa Santa. Não tomando em consideração a área de Central, na Bahia, em virtude
de as informações serem prematuras. A questão, entretanto, pode ser resolvida por
uma das duas formas seguintes:

1) se a época das ocupações dessas áreas for realmente anterior à ocupação das áreas
dos cerrados dos chapadões centrais do Brasil, é possível que as populações que
alcançaram São Raimundo Nonato e Lagoa Santa não migraram pelo cerrados dos
chapadões centrais, pois seus vestígios não foram encontrados nessa região, ou, se
migraram, os vestígios estão mascarados com a indústria que constitui a tradição
Itaparica. Quanto à primeira hipótese, apesar da amostragem ser significativa, os
espaços não foram esgotados e as escavações não avançaram em profundidade
suficiente, portanto ainda não se tem elementos definitivos para confirmá-la, embora a
maior parte dos dados direcionem neste sentido. Quanto à segunda hipótese, a análise
minuciosa e comparativa do material proveniente de pelo menos três áreas nucleares
da tradição Itaparica: Serranópolis e Caiapônia, em Goiás, e Gerais, na Bahia, não a
confirma;

2) se a antiguidade das ocupações de São Raimundo Nonato e Lagoa Santa for anterior
às ocupações dos cerrados, e se a migração não se deu por esse ambiente, é possível
que as populações atingiram essas áreas por via das caatingas, migrando ao longo das
depressões do rio Amazonas pelas duas margens, assentando-se de forma mais
duradoura em São Raimundo Nonato e posteriormente em Lagoa Santa , cuja migração
efetuou-se pelas caatingas da depressão Sanfranciscana. A inexistência de vestígios
entre São Raimundo Nonato e Lagoa Santa, situados nessa faixa cronológica, bem
como a inexistência dos mesmos vestígios na depressão amazônica e a falta de
cronologias mais antigas no oeste do continente não corroboram essa afirmação.

A possibilidade da migração via formações abertas da Venezuela e Guianas esbarra nos


mesmos obstáculos para comprovação. Assim, de acordo com os dados disponíveis até
o presente momento, envolvendo amostragem significativa em Mato Grosso do Sul,

44
quase a totalidade de Goiás, grande parte do Tocantins, oeste da Bahia e grande parte
de Minas Gerais, a ocupação efetiva do interior do continente sulamericano, inicia-se
com a implantação do Horizonte Cultural dos Cerrados a partir de 11.000 anos A. P..
Esse horizonte é caracterizado por uma indústria lítica muito homogênea, que constitui
a tradição Itaparica, intimamente ligada às formas de exploração dos cerrados, com
mecanismos adaptativos responsáveis por um sistema econômico, que perdura por dois
mil anos quase sem alteração, a não ser aquela decorrente da migração.

As populações detentoras da tecnologia que criou a indústria que constitui a tradição


Itaparica colonizaram uma área de grandeza espacial com cerca de dois milhões de
quilômetros quadrados: desde Mato Grosso, Goiás, Tocantins, até áreas com cerrados
no oeste da Bahia, norte e oeste de Minas Gerais e áreas com enclaves de cerrados em
ambientes dominados por caatingas do nordeste brasileiro, notadamente Pernambuco e
Piauí. Essas localidades, em conjunto, revelam o alcance dessa tradição e a maneira
homogênea de organizar o espaço; também revelam a importância que o Sistema
Biogeográfico dos Cerrados exerceu nesses processos iniciais de ocupação por
populações humanas.

II

O panorama do povoamento das áreas centrais do continente sul-americano começa a


se definir a partir de 11.000 anos A.P. e, para tal, contribui em muito o advento no
Planalto Central do Brasil de um complexo cultural denominado pela arqueologia.
"tradição Itaparica".

Há 10.000 anos, essa tradição está implantada sobre mais de 2.000 km de extensão. É
quase certo que ela cobriu a área dos cerrados dos chapadões centrais do Brasil e suas
extensões. Pelos processos a que estão associadas, sua implantação na área reveste-se
num marco referencial de fundamental importância para compreender os processos
culturais que caracterizam o alvorecer do povoamento humano nas áreas centrais da
América do Sul.

Por volta de 9.000 anos A. P., ou um pouco mais tarde, essa cultura perde suas
características básicas, representadas pela adoção de artefatos bem trabalhados e se
transforma em indústria de lascas, com poucos retoques, assinalando uma nova
tendência à especialização.

Os estudos arqueológicos têm demonstrado uma íntima relação entre a cultura da


tradição Itaparica e a área dos cerrados. O nível dessa relação é evidenciado não só
pelo manejo paleoecológico, mas também pelos restos de alimentos associados a essa
cultura encontrados nas escavações arqueológicas e a própria distribuição dos sítios
arqueológicos. Resta, portanto, esclarecer a seguinte questão: o que tem esse bioma
de especial, para atrair populações com economia de caça e coleta, favorecendo
ocupações duradouras e homogêneas? Tentou-se responder essa indagação cruzando
algumas informações:

Clima - Com relação ao clima, tanto em relação aos limites atuais como aos limites
antigos, a área do Sistema Biogeográfico dos Cerrados se caracteriza pela falta de
excessos e por um ciclo climático, e em consequência, também biológico, bastante
homogêneo, fato que permite às populações humanas de economia simples a adoção
de um planejamento também homogêneo.

Geomorfologia - Tanto nas áreas atuais como na periferia dos seus limites antigos, há
grande ocorrência de abrigos naturais, elemento fundamental para esses grupos
humanos em determinada época do ano.

45
Recursos vegetais - O Sistema Biogeográfico dos Cerrados fornece fibras, lenhas,
folhas ásperas que são utilizadas para acertar superfícies, palhas de palmeiras para
cobertura de abrigos etc. Mas o importante a ressaltar nesse item é que, de todos os
sistemas biogeográficos da América do Sul, esse é o que fornece maior variedade de
frutos comestíveis. E embora a maturação da maior parte esteja relacionada à época da
estação chuvosa, a grande variedade possibilita a distribuição regular de muitas
espécies durante todo o ano.

Recursos animais - Com relação aos recursos animais, resolveu-se buscar algumas
respostas correlacionando os mapas com a vegetação dos cerrados e os contornos das
províncias zoogeográficas da América do Sul estabelecidas por Cabrera e Yepes e Melo
Leitão. Desse estudo, constatou-se estreita relação entre uma fauna bastante peculiar
que caracteriza essas províncias zoogeográficas, com as áreas de vegetação aberta,
cerrado, caatinga e áreas de transição. Também se constatou, e isso é um dado
importante, que, embora essa fauna peculiar transite nesses ambientes, é na área de
vegetação dos cerrados, que se dá sua maior concentração. Os elementos para explicar
esse fato são a ocorrência do estrato gramíneo, flores e frutos e a diversidade de
ambientes que caracterizam o Sistema dos Cerrados, permitindo o estabelecimento de
uma complexa cadeia biológica.

Processos de adaptação - O fato de existir uma fauna que elege os cerrados como
ambiente prioritário, associado à grande variedade de frutos, ocorrência de abrigos
naturais e clima sem excessos, exerceu papel importante na fixação de populações
humanas, bem como no desenvolvimento de processos culturais específicos.

III

A região dos cerrados é um ponto de encontro entre a Amazônia, o Nordeste e o Sul. O


planalto, revestido de cerrado, é recortado pelos rios das três grandes bacias brasileiras
(do Amazonas, do Paraná e do São Francisco), acompanhadas de matas de galeria, ora
mais ora menos largas. No encontro dos rios das três bacias, formou-se uma extensão
maior de floresta, conhecida como Mato Grosso de Goiás. As áreas de matas oferecem
solos para cultivos, a serem instalados no começo das chuvas de verão, o Cerrado é
muito rico em caça e em grandes variedades de frutos que podem complementar a
agricultura no começo das chuvas; os rios proporcionam muito peixe no começo da
estação seca.

Muito antes dos horticultores ceramistas, os caçadores/coletores pré-cerâmicos se


haviam esparramado pelo território, utilizando os recursos de acordo com suas
necessidades e em conformidade com sua tecnologia. Não se tem ainda nenhuma idéia
de quando e como se instalaram os cultivos. Aparentemente, eles não surgiram nessa
área, porque as diversas tradições tecnológicas até agora estudadas pertencem a
horizontes mais amplos, e as datas mais altas para horticultores já instalados se
encontram fora da região. Faz exceção a tradição Uru, até agora só conhecida no oeste
de Goiás, mas que certamente ultrapassa os seus limites em direção ao Mato Grosso,
ainda não pesquisado. Os cultivos poderiam ter chegado através da migração de grupos
horticultores, ou pela aculturação dos caçadores/coletores anteriormente aí presentes,
que os poderiam ter recebido de vizinhos. É possível que ambos os fenômenos tenham
ocorrido.

Certamente, não se pode mais resumir todo o jogo do povoamento em deslocamentos


de grupos já prontos, porque sobra a pergunta: onde estes se formaram? Certamente,
como nas outras áreas do mundo, os sistemas agrícolas desenvolvidos por populações
indígenas, como as do Brasil Central, são o resultado final de um longo processo de
experimentação, de coleta, cultivo e domesticação, desenvolvimento e empréstimo de
técnicas de um ajustamento da sociedade. Talvez a transição do período úmido e

46
quente do altitermal para um período mais seco e ameno fosse a ocasião de
povoamento. O fato é que no centro do Brasil, ainda se desconhece por completo todo
o processo, e depois dos antigos caçadores, se encontram de repente, já formados, os
grupos horticultores ceramistas num tempo em que o ambiente supostamente já era o
atual. O mais antigo, até agora detectado, é o da fase Pindorama, supostamente
horticultor, que já tem cerâmica ao menos desde 500 anos a. C.. Depois, aparece a
tradição Aratu/Sapucaí, a Una, a Uru e a Tupiguarani.

As diferentes tradições (cerâmicas) de horticultores exploram ambientes e cultivos


diversos. A tradição Una coloniza vales enfurnados, geralmente pouco férteis, com
predominância de cerrados, usando como habitação os abrigos e grutas naturais, e
como economia, uma forte associação de cultivos, onde predomina o milho, com a caça
e com a coleta. Imagina-se que a população se distribuía em pequenas sociedades,
mais aptas para explorar os recursos diversificados que poderiam alcançar, do seu
ponto de instalação, o rio próximo, a pequena mata de galeria, o Cerrado e muitas
vezes o campo no alto do chapadão. Esse ambiente não é disputado pelos grupos que
constróem suas aldeias em áreas abertas.

Os primeiros aldeões conhecidos são os da tradição Aratu/Sapucaí. Seu domínio são os


contrafortes baixos das serras do centro-sul e leste de Goiás, especialmente as áreas
férteis e mais florestadas do Mato Grosso de Goiás, onde podem instalar uma economia
mais fortemente dependente de cultivos, mas provavelmente sem dispensar a
exploração dos frutos do Cerrado, a caça e a pesca. Sua população é numerosa e
nenhum outro grupo conseguiu infiltrar-se no seu território, que, por seus recursos,
deveria ser muito ambicionado. Suas aldeias populosas poderiam permanecer
longamente no mesmo lugar, e quando era desejado, poderiam se deslocar para um
espaço próximo, porque o território era fértil e estava sob domínio. Também o sistema
de cultivo, baseado em tubérculos e provavelmente no milho, pôde resistir aos avanços
dos grupos mandioqueiros da tradição Uru e Tupiguarani.

A tradição Uru chega mais tarde e domina o centro-oeste do estado de Goiás.


Avançando ao longo dos rios, ocupa terrenos mais baixos, provavelmente de pouca
utilidade para os aldeões que haviam se instalado antes, porém, mas importante para
eles por causa da locomoção e principalmente da pesca. Desta forma, se criou entre os
dois grupos uma fronteira bastante estável, talvez nem sempre pacífica, onde
aparentemente a tradição Aratu é mais receptiva, aceitando elementos tecnológicos
selecionados, entre os quais não está a mandioca e seu processo de transformação,
aceito apenas em locais restritos.

A tradição Tupiguarani parece a mais recente das populações aldeãs. Tendo um certo
domínio sobre o vale do Paranaíba, a partir dele acompanha os afluentes, indo acampar
nos abrigos anteriormente habitados pela tradição Uru. Também tem aldeias dispersas
na bacia do Alto Araguaia, mas aparentemente sem muita autonomia, convivendo às
vezes na mesma aldeia com grupos horticultores de outras tradições. O Tupiguarani da
bacia do Tocantins tem as aldeias ainda mais dispersas e recentes, como se realmente
fossem, tal qual se imagina, populações vindas já no período colonial, e que por isso,
enfrentariam não apenas os demais índios aldeões já instalados, mas também os
colonizadores brancos que os teriam trazido.

Se a tradição Uru e a tradição Tupiguarani, mandioqueiros, parecem mais próximas às


culturas amazônicas, embora talvez não tenham procedência imediata de lá, a tradição
Aratu/Sapucaí faz parte de uma tradição mais de Centro-Nordeste. A tradição Una, com
menos domínio sobre as áreas abertas, disputadas pelos aldeões da tradição anterior,
se comprime numa faixa entre estes e as populações coletoras-cultivadoras do planalto
meridional, tradicionalmente conhecidas por suas aldeias de casas subterrâneas. Não
obstante essa sua posição marginal, é nela, fora da Amazônia, que estão as datas mais

47
antigas para a cerâmica. Talvez seja uma forma de cultura anterior ao desenvolvimento
dos aldeões e, quem sabe, a origem deles.

Talvez com exceção do Tupiguarani, os representantes das outras tradições viveram no


território durante séculos sem muita movimentação, como numa terra que era deles;
entre 70 e 100 gerações de horticultores sem maiores mudanças, a não ser as novas
adaptações de fronteiras, onde populações mais antigas aceitam novas tecnologias
recém-vindas.

E assim viviam, até o dia em que irromperam na área, em grandes destacamentos


armados, homens diferentes, não interessados em plantar, colher e caçar, nem em
construir aldeias entre o Cerrado e a mata, ou à beira da lagoa ou do rio. Queriam levar
gente, pedras brilhantes e ouro. Para muito longe. Primeiros anos do século XVIII.

Era o caos. As roças foram pilhadas, as aldeias demolidas, as mulheres violentadas, as


terras de cultivo invadidas, as pessoas morrendo de doenças desconhecidas. A guerra
foi a solução ditada pelo desespero. A derrota, o aldeamento, a desmoralização, a
extinção ou a fuga, as consequências.

Altair Sales Barbosa é professor da Universidade Católica de Goiás e líder do grupo de


pesquisa “Cerrado: território e cultura”.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Altair Sales, “A ocupação humana no Cerrado” . In O universo do Cerrado . Vol 1, Goiânia (GO): Ed.
Universidade Católica de Goiás, 2008..
MELO LEITÃO, C.de. Zoogeografia do Brasil . 2. ed. São Paulo: Nacional, 1947. (Col. Brasiliana)
CABRERA, A. & YEPES, J. Mamíferos sul americanos . 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 1960. 2. v.
MEGGERS, B. J. “Aplicación del modelo biologico de diversificación e las distribuiciones culturales en las tierras
tropicales bajas de Sudamérica”. In Amazonia Peruana . Lima, 1976. v. 4, n. 8.
SCHMITZ, I. Caçadores e coletores da pré-história do Brasil . São Leopoldo (RS): Inst. Anchietano de
Pesquisas, 1984.

48
Resenhas

Sol na moleira
Obra que compila dados e discussões sobre o Cerrado deve contribuir
para implantar modelos de desenvolvimento sustentável

Por Rafael Evangelista

Com o perdão pela piada fácil, Cerrado: ecologia e flora é um livro árido. Não que seja
pobre, pois isso o Cerrado brasileiro também não é, mas não é de fácil travessia. Em
dois volumes, diversos pesquisadores de relevância e com experiência no estudo do
bioma, dividem-se na análise do clima, recursos hídricos, solos, frutas, biologia de
plantas, entre outros. No primeiro volume estão os textos, em 14 capítulos; no
segundo, uma grande lista com mais de 12 mil espécies da flora do Cerrado. Segundo
declarou um dos organizadores à Agência Fapesp, José Felipe Ribeiro, pesquisador da
Embrapa Cerrados, entre os objetivos da obra está contribuir com a implantação de
modelos de desenvolvimento sustentável.

De fato, diversos dos capítulos trazem recomendações pontuais de políticas para o


Cerrado, antecedidas por forte embasamento bibliográfico que as justificam. No
capítulo 13, por exemplo, que aborda a questão da fragmentação do bioma – as ilhas
de bioma que sobrevivem rodeadas por áreas degradadas –, os autores alertam para a
necessidade de, entre outros: “manter ou restaurar conexões naturais entre
fragmentos, como, por exemplo, criar corredores ecológicos e stapping stones”;
“manter a vegetação nativa em faixas remanescentes ao longo de rios, cercas, margens
de rodovia, redes elétricas e outros corredores, a fim de reduzir o efeito de borda e
distúrbios humanos”; ou “realizar estudos de longa duração para determinar
mecanismos do efeito de borda e suas implicações no Cerrado”.

Um dos maiores problemas ambientais para o bioma tem sido a expansão da fronteira
agrícola brasileira, em especial derivada do cultivo de soja pelo agronegócio. Nesse
sentido, o mesmo capítulo 13 cita estudo que aponta que os grandes fragmentos
possuem 25% mais espécies arbóreas do que os fragmentos pequenos e médios.
“Fragmentos pequenos nem sempre asseguram a existência de espécies raras ou de
distribuição agrupada”. De acordo com os autores, as espécies que sobrevivem em
pequenos fragmentos são aquelas que possuem pequenas áreas de vida. No Cerrado,
as áreas agriculturáveis são as mais devastadas e, por consequência, as espécies que
vivem nessas regiões são as mais prejudicadas. Os animais, assim como as plantas,
reagem de forma diferente à diminuição e alteração dos habitats. Algumas espécies,
como o lobo-guará, têm sua população aumentada; já o cateto e o tatu-canastra foram
negativamente afetados.

Além das recomendações para políticas públicas, Cerrado: ecologia e flora é uma obra
que tem uma grande preocupação em conceituar. Para o estudante interessado no
bioma, o livro tem especial valor, pois vários capítulos trazem históricos e revisões
bibliográficas para vários conceitos. O primeiro capítulo, por exemplo, trata da
controversa definição de savana e da ainda mais controversa pergunta: “o Cerrado é
uma savana?”. A polêmica residiria no fato de que há no Cerrado regiões específicas
como o Cerradão – floresta com árvores que podem chegar a 15 metros – ou o Campo
Limpo – campo puro, sem árvores – que não se encaixam na definição de savana. No
entanto, a resposta dos autores é positiva, o Cerrado seria sim uma savana, pois essa é

49
sua caracterização principal.

Nesse mesmo capítulo, é bastante interessante o posicionamento dos autores com


relação ao peso político que têm as definições conceituais. De acordo com eles, a idéia
correta de que a “savanização” de áreas de florestas deve ser combatida não pode
levar à concepção equivocada de que a savana brasileira – ou seja, o Cerrado – deve
também ser combatida. Eles alertam que a savana brasileira, que é natural, é tão rica
quanto as mais ricas florestas tropicais.

Com relação à preservação do Cerrado, reafirma-se um dado já bastante reconhecido


pela opinião pública: a presença de terras indígenas pode contribuir para a preservação
do bioma que ocupa. Atualmente, no Cerrado, elas corresponderiam a apenas 4,08%.
O histórico de ocupação indígena no bioma é apresentado de forma muito interessante
no capítulo 2, ao descrever como numerosas etnias já viveram ali. No
entanto, Cerrado: ecologia e flora perde a oportunidade de dar mais força a essa idéia
de preservação integrada com as populações humanas. A publicação é uma atualização
e complemento de outra datada de dez anos atrás e já esgotada e, no entanto, esse
capítulo foi o único a não ser atualizado. Embora seja muito completo em seu histórico
dos grupos indígenas, fica devendo ao apresentar dados populacionais do início da
década de 1980. Um capítulo com um panorama das populações indígenas que vivem
atualmente no bioma seria, com certeza, uma excelente contribuição.

A ausência, porém, não diminui o valor da obra. Como dito, sua travessia não é fácil, os
estudiosos que já conhecem os caminhos a aproveitam muito mais. Mas é bastante
enriquecedora, além de ser uma excelente base a quem se aventurar a fazer divulgação
científica sobre o bioma.

Cerrado: ecologia e flora – Volume I


José Felipe Ribeiro, Semíramis Pedrosa de Almeida e
Sueli Matiko Sano
Embrapa, 2008 (408 p.)

50
Entrevistas

Leopoldo Magno Coutinho


Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas, diz que “o sertão não
chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena” e “de
repente se estremece, debaixo da gente”. A história do botânico
Leopoldo Magno Coutinho parece confirmar a constatação roseana.

Por Flavia Natércia

Coutinho entrou em contato na infância com a vegetação do Cerrado em Franca (SP),


sem saber que anos mais tarde seria convidado pelo botânico pioneiro Mário Guimarães
Ferri a pesquisar como funciona o bioma onde se deparou com seu principal objeto de
estudo: o fogo. Em 1969, numa excursão, Coutinho descobriu flores se desenvolvendo
sob as cinzas e passou a botar fogo no Cerrado. Literalmente, mas com todo o cuidado,
controle e interesse científico. Sem ninguém saber. Aposentado, mas ainda ativo –
segue publicando artigos e dando eventuais cursos de campo –, ele se diverte
pensando que poderia ter sido preso por ter queimado uma área da Secretaria da
Agricultura de São Paulo. Sem ousadia, porém, não teria feito muitas de suas
descobertas pioneiras, como as adaptações à seca em plantas de Mata Atlântica; o
metabolismo ácido de crassuláceas, plantas suculentas, em bromeliáceas e
orquidáceas; as queimadas naturais no Cerrado; e a ciclagem de nutrientes promovida
pelo fogo.

ComCiência - Por que o senhor decidiu estudar o Cerrado? O que o atraiu?


Leopoldo Magno Coutinho - O Ferri, que me via diariamente, talvez por ter visto que
publiquei um trabalho como aluno de segundo, terceiro ano, sem falsa modéstia, me
convidou a trabalhar com ele no Cerrado de Pirassununga. E eu disse “ah, topo, vamos
lá, o que aparecer”. Nós ficávamos hospedados lá na Estação Experimental de Biologia
e Piscicultura da Secretaria de Agricultura, onde havia uma área onde o Ferri já tinha
trabalhado. Sendo de Franca, a vegetação do Cerrado me era familiar – na fazenda
aonde ia quando moleque, tinha uma área –, mas o Ferri me ensinou a reconhecer as
espécies e acabamos publicando um trabalho sobre balanço hídrico de plantas do
Cerrado na época do verão. O Ferri já tinha feito um trabalho sobre balanço hídrico no
inverno; então, a idéia dele era comparar verão e inverno. Ele resolveu fazer outro
trabalho, comparando cerrados de regiões diferentes – Pirassununga, Goiânia, Campo
Grande, Campo Mourão, no Paraná – e me convidou para trabalhar junto. Então,
viajamos por esses locais e acabamos publicando outro trabalho enquanto eu ainda era
estudante de graduação.

ComCiência - Como descobriu o papel do fogo no Cerrado?


Coutinho - Eu era professor da disciplina de ecologia vegetal na faculdade e, numa das
três excursões do curso, levávamos os alunos para passar uma semana no Cerrado de
Pirassununga. Quando chegamos em 1969, o Cerrado estava queimado. Mas aí vi uma
coisa que me chamou muita atenção: no estrato herbáceo, no meio da cinza, do
carvão, tinha um monte de flores... Eu tinha feito o doutorado em 1960 e já era 1969,
e eu estava procurando uma coisa para fazer como livre-docência. Tinha
experimentado, trabalhado com trocas de gás carbônico, com germinação de sementes,
fiz um monte de trabalhinhos paralelos, apalpando. Aí, em 1969, encontrei o Cerrado
todo florido onde havia pegado fogo. Era algo que podia estudar, que exigia trabalho de
campo, mas não equipamento. Bastava tocar fogo na vegetação para ver o que

51
acontecia. Fiz vários experimentos: queimando em épocas diferentes, fazendo fogo a
favor, fogo contra e levantando quais as espécies que floresciam depois da queima.
Descobri que tinha espécie que florescia uma semana depois da queima! Outras
demoravam 25 dias. Resolvi estudar se o fogo era essencial... Observava lá no campo
que aquela espécie florescia não somente na área queimada, mas no aceiro também,
onde a vegetação era carpida, mas somente superficialmente. As plantas permaneciam
ali e brotavam depois. Então, botando fogo, ela florescia, mas não era um efeito tudo-
ou-nada.

ComCiência - E o senhor também estudou o mecanismo de ação do fogo sobre


as plantas?
Coutinho - Havia duas hipóteses: ou a eliminação da parte aérea induzia a floração ou
a gema já era induzida, já estava pronta, e a eliminação da parte aérea só liberava a
distensão de estruturas que já estavam presentes. Aí, fiz a anatomia das gemas antes
de germinar, cinco, dez, quinze, vinte, vinte e cinco dias depois, acompanhando o que
acontecia. Então, pude verificar anatomicamente que havia uma indução, isto é, antes
de queimar ela era vegetativa, com cinco, dez dias, começava a se desenvolver e
começavam a aparecer estruturas florais. Em 1976, defendi minha livre-docência sobre
os efeitos do fogo sobre a floração de espécies de Cerrado. E aí comecei a colocar pós-
graduandos para trabalhar com isso. Aquele problema da floração, para mim, passou a
ser menor e o fator fogo passou a ser o objeto maior.

ComCiência - Por quê?


Coutinho - O fogo mexe com a ciclagem de nutrientes, com a própria vegetação, com
a fisionomia. Então, comecei a enveredar por esse lado relacionado com fogo. Por
exemplo, se você bota fogo com muita freqüência, a vegetação se abre. Se você não
põe fogo, ela se fecha. Aí, fiz vários trabalhos com alunos, sobre ciclagem de
nutrientes, o caminho dos nutrientes dentro do solo, a perda de nutrientes com a
fumaça. E a gente pôde verificar uma coisa que considero que foi significativa: com a
fumaça, 70% dos nutrientes presentes na biomassa vão para a atmosfera. Não é o que
se pensava. Pensava-se que a cinza caía no solo e adubava a terra. Não há grande
lavagem de nutrientes para o solo. Os nutrientes que entram no solo são logo
absorvidos pelas plantas que têm raízes superficiais. Como evoluíram nessas condições,
não vão deixar passar potássio, sódio, cálcio: elas absorvem. A grande perda se dá pela
fumaça. No caso do nitrogênio, 50% são perdidos para a atmosfera. No caso de outros,
como cálcio, fosfato, potássio, é algo em torno de 40%. Só que esse material que vai
para a atmosfera não vai ficar eternamente lá. O vento carrega, mas ele cai em algum
lugar. Há uma transferência de nutrientes via atmosfera. Então, um trabalho mostrou o
quanto sai, outro trabalho mostrou o quanto retorna para o Cerrado. Chegamos ao
resultado de que um terço daquilo que sai numa queimada retorna por ano, o que
significa que, a cada três anos, retorna tudo. Isso dá uma informação preciosa para o
manejo do fogo no Cerrado. Um problema é que queimar, simplesmente, faz perder
nutrientes. Agora, se você manejar, isto é, não queimar todo ano, e sim a cada três
anos, no mínimo, está dando um tempo para os nutrientes perdidos retornarem, um
terço a cada ano. E aí se pode queimar novamente sem perda. Muitos pecuaristas de
Goiás, de Mato Grosso já sabem disso. Quando lhes perguntava por que não
queimavam todo ano, eles respondiam: “Ah, porque o pasto enfraquece”, o que bateu
com o que encontramos. Se você queima todo ano, joga uma quantidade muito grande
de nutrientes na atmosfera. Esse também foi um resultado interessante.

ComCiência - Como conseguiu documentar a existência de queimadas


naturais?
Coutinho - Passei a levar os alunos de uma disciplina sobre ecologia de cerrados, na
Semana da Pátria, ao Parque Estadual das Emas, em Goiás. Era o melhor lugar, tem a
fauna ainda e as várias fisionomias, cerrado sensu strictu, campo limpo, campo sujo, só
não tem cerradão. Um aluno, Mário Barroso, ficou extasiado com tudo aquilo. Então,

52
ele se mudou para o parque, onde por sorte tinham construído um alojamento. Uma
vez que ele estava lá, quando aparecia uma fumacinha no horizonte, corria para ver. E,
pela primeira vez, pôde documentar a ocorrência de queimadas naturais no Brasil. Na
África do Sul, isso estava superdocumentado. Mas aqui não tinha nada, porque
ninguém tinha se dado ao trabalho de verificar, ninguém acreditava nisso no Ibama, no
IBGE. E queimada natural só se pode encontrar em áreas onde o Cerrado está
preservado; em outras áreas, o homem queima antes de um raio cair.

ComCiência - Por que o senhor acha que o Cerrado é desconhecido?


Coutinho - Porque, em geral, nossa cultura dá muito valor à mata, à madeira, algo
que tem valor imediato, fácil de ser medido. O que não é madeira é lixo. Nunca se deu
muita importância ao estrato herbáceo. Uma fazenda com mata vale mais que uma que
tem Cerrado, em primeiro lugar pela madeira, que está sendo explorada ilegalmente na
Amazônia. Plantas herbáceas requerem um esforço, estudo, só que isso demora.
Madeira, não, você pega, cerra, vende na mesma hora. Também chama mais a atenção
a aridez da paisagem. Visto da estrada, o Cerrado é feio, se você entra, começa a
observar os detalhes, a dinâmica... Tenho uma coleção de fotos de plantas floridas, o
Cerrado florido é um espetáculo. Os detalhes, as adaptações... 50 ou 60 dias depois do
fogo, o Cerrado está todo florido! Tenho foto. Já vi florido. Agora, o pessoal não tem
muito interesse turístico, é algo que não dá retorno imediato. Tem plantas medicinais
que podem trazer remédios contra várias doenças, só que tem de ser estudadas, as
plantas não vêm com rótulo. Como pode não render nada, muita gente não se
interessa. Mas o Cerrado tem muitas espécies endêmicas, que não se encontra em
nenhum outro lugar, e um grande número de espécies com potencial terapêutico.

ComCiência - Que efeitos pode ter o aquecimento global sobre o cerrado?


Coutinho - Não gosto de arriscar sobre o que vai acontecer. Evidentemente, ele vai se
alterar. Como, não há meio de dizer agora. Uma queimada na floresta destrói uma
floresta. Não há quem traga o carbono de volta. No Cerrado, não, o carbono pode ser
trazido de volta. Temos medidas de produtividade do estrato herbáceo. Há uma
produção de cerca de 6 toneladas por hectare por ano. Então, isso é bem razoável. Eu
estudava isso em áreas queimadas, o rebrotamento, a produção de fitobiomassa
naquela área.

ComCiência - O fato de o Cerrado ter várias fisionomias tem implicações para a


preservação desse bioma?
Coutinho - As áreas grandes são importantes, mas as pequenas também, porque são
como pequenas ilhas preservadas, não somente para a flora como também para a
fauna. Não sustentam grandes animais, mas podem sustentar muitos pequenos. Então,
sou favorável também à existência de pequenas áreas, que podem ser interligadas por
corredores ecológicos.

ComCiência - Quanto se estima que restou da cobertura de Cerrado?


Coutinho - É difícil dizer quanto resta do Cerrado. Não há uma única frente de
destruição, como aconteceu com a Mata Atlântica. A destruição se deu em mosaicos,
por exemplo, em áreas para plantar soja. Mas não é simples quantificar. Não há
estimativa confiável.

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Poema

Clichês
Por Carlos Vogt

A propósito do amor

dois pontos:

o amor ao amor excede

salvo as exceções de praxe

inscritas na prosa

da sintaxe:

uma mão lava a outra

a que condena e a que afaga

o amor o amor renova

o amor com amor se apaga

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