Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Re Vista Com Cien CIA
Re Vista Com Cien CIA
Re Vista Com Cien CIA
Cerrado
No. 105 - 10/02/2009
Artigos: Altair Sales Barbosa, Anderson Cleiton José, Fabiana de Gois Aquino
José Roberto Rodrigues Pinto
José Felipe Ribeiro, Laurindo Elias Pedrosa, Vânia R. Pivello
Segundo o Mapa de Biomas do Brasil, lançado, em 2004, pelo IBGE, juntamente com o
Mapa de Vegetação do Brasil, em comemoração ao Dia Mundial da Biodiversidade, o do
Cerrado é o segundo maior em extensão dos 6 biomas cartografados:
Fonte: http://www.ibge.gov.br
São Paulo tem, aliás, financiado pela Fapesp, envolvendo instituições de pesquisa de
todo o estado e também fora dele, numa mobilização impressionante de pesquisadores
em todo o país, um dos mais importantes programas voltados para a Mata Atlântica e
para o Cerrado: o projeto Biota, cujos dados já coletados e disponibilizados dão a
medida da riqueza e da variedade da vida animal e vegetal no ecossistema desses
2
biomas (http://www.biota.org.br/).
Diz-se que o Triângulo Mineiro é o Portal do Cerrado. Como nasci em Sales Oliveira, na
Alta Mogiana, traçado da Anhanguera, depois de Ribeirão Preto, entre Jardinópolis e
Orlândia, perto de Nuporanga, apontando para Igarapava, nas franjas do Rio Grande,
perto das Minas Gerais, acho que posso dizer que cresci na varanda do Cerrado que por
ali já se estendia pelo Campo da Coruja, como quem fosse para Orlândia, São Joaquim
da Barra e Guará, pela Fazenda 3 Barras, pela mata do Taboão, na direção de Franca,
passando por Batatais.
Na Coruja, havia um campo onde a meninada jogava futebol e ali, no meio do Cerrado,
assisti pela primeira vez ao pouso de um teco-teco que, diziam, estava com pane de
combustível e precisava urgente aterrizar para evitar o pior e para abastecer. O piloto,
quando o aeroplano parou, desceu da aeronave para subir no imaginário do pessoal
que se aglomerava para acompanhar o evento. Vestia-se como um piloto que só se
podia ver, mas que se via, em filmes exibidos no Cine Santa Rita: polainas marrons,
calças claras, casaco de couro da cor das polainas, casquete acompanhando o material
e a cor dos dois outros apetrechos e os indefectíveis óculos de proteção puxados sobre
a testa. Foi desse modo que o Cerrado descortinou-se em vôo para mim, como as aves
que têm nele seu habitat natural, como o gavião e a flecha que o filme com Burt
Lancaster, não sei por que cargas d'água, por que caminhos da imaginação, trouxe
também para aninhar-se no porão das lembranças confusas, mas precisas.
As frutas-de-lobo caíam maduras sob as lobeiras e, como sabíamos, por ouvir contar,
que os guarás delas se alimentavam ─ daí o nome ─ aguçávamos a curiosidade na
esperança de ver um deles aparecer em busca das frutas. Nunca vimos, embora muitos
houvesse na região, sendo inclusive caçados e mortos pela predação humana que, na
época, não tinha ainda muita consciência da devastação que já promovia e cujos efeitos
sistêmicos não conseguia ver nem avaliar.
3
que havia sido a casa de meus avós alsacianos, campos por onde transitavam outros
animais, outros personagens e onde reinava outro bucolismo artificial e alegórico, mas
feito também do Cerrado, no musgo que envolvia de pastagens a manjedoura, Jesus
menino, os reis magos, São José, os bois, as vacas, os bezerros, os cervos, tudo em
celulóide e todos com a cabeça móvel por um artifício que enganchava os pescoços aos
corpos de cada animal.
O Cerrado não era ainda o sertão, mas estava em tudo, em toda parte. Nos marolos
que achávamos e comíamos saboreando os gomos amarelos de cheiro forte, muito
doces, de sabor cortante; nos que trazíamos para casa e viravam licor para rivalizar
com o de jabuticaba, feitos ambos pela habilidade de grande cozinheira de minha mãe.
O fundo do quintal de minha casa fazia limite com a fazenda Boa Sorte; logo passando
o sítio de “seu” Minucci, começava, por efeito de erosão contínua, o que chamávamos
de Buracão, onde, no fundo, corria um riozinho que, em determinados trechos,
produzia quedas d'água e bacias nas quais íamos, meninos, nadar acompanhados
sempre das preocupações dos pais e, em particular, dos receios das mães. Por lá
apareciam, às vezes, pequenos jacarés, pacas, tatus, cotias não. Mas o que distinguia o
Buracão, ao menos na lembrança que agora tenho dele, eram as frutinhas de veludo,
nas suas ribanceiras e um magnífico pé de jenipapo sobraçando o vazio da erosão.
Como a fruta era de difícil acesso, grande era a sua disputa e forte acabou sendo a sua
inscrição na memória desse Cerrado da infância.
Como se viu, a área do bioma do Cerrado é enorme, ocupando, como foi dito, 23,92%
do território brasileiro e a sua devastação conta entre as maiores já ocorridas na
história das relações do homem com o seu meio ambiente. As políticas de proteção, de
preservação, de recuperação foram também se desenvolvendo na medida em que as
ameaças de extinção de espécies e de desequilíbrio ecológico sistêmico foram se
acentuando.
4
Reportagem
No coração do gigante
Por Enio Rodrigo
Esses efeitos antrópicos não são resultado da urbanização da região, uma vez que
hábaixa densidade demográfica, que possibilita vastas regiões disponíveis para
5
cultivo, este sim, responsável pela maior pressão ao bioma. Ao mesmo tempo, os altos
investimentos na produção agropecuária da região – estimados em R$ 41 bilhões,
apenas em 2007 – parecem não se reverter para melhorias no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) da região. Os estados onde o Cerrado é predominante
têm, na média, IDH equivalente a 0,768, ou seja, abaixo da média brasileira de 0,771
(incluindo o Distrito Federal), considerado desenvolvimento médio.
Multipaisagem
“A imagem que se tem do Cerrado, no geral, é a de um local com uma vegetação não
muito bonita e de um clima seco o ano todo, o que é completamente errado”, enfatiza
José Carlos Souza Silva, que coordena o Núcleo de Recursos Naturais da Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Cerrados, lembrando que o bioma é
considerado o “berço das águas” e compreende as nascentes dos rios Tocantins, Paraná
e São Francisco, além de vários rios que abastecem a região amazônica e o Pantanal.
De acordo com o pesquisador, essa imagem se deve à maioria dos livros didáticos,
consequência do pequeno esquecimento dos parlamentares da Constituição de 1988.
Consequência também de um estigma que acompanhou o Cerrado por muito tempo:
ser um bioma de “segunda classe”. O jornalista Washington Novaes – atualmente
supervisor geral do programa Repórter Eco, da TV Cultura de São Paulo – conta que em
uma das reuniões para o relatório da Rio 92, um dos participantes indagou o presidente
do Ibama sobre a inclusão, no relatório final, do desmatamento e das queimadas no
Cerrado. A resposta, testemunhada pelo jornalista, foi “ainda bem que é no Cerrado e
não na Amazônia”.
6
"A imagem que se tem do Cerrado, no geral, é a de um local com uma vegetação não
muito bonita e de um clima seco o ano todo, o que é completamente errado".
Foto: Photo in Natura/Daniel De Granville
Iniciativas
A rápida transformação do Cerrado e a ameaça às suas diversas espécies fez com que
iniciativas governamentais e não-governamentais (através de ONGs), pesquisadores e
mesmo a iniciativa privada fossem forçadas a tomar providências. Em 1996, foi criada
aRede Cerrado, uma iniciativa de várias ONGs para promover a implantação de
projetos sustentáveis. Em 2003, após quase dez anos de debate entre os diversos
grupos envolvidos com o tema, a Rede publicou uma carta aberta endereçada ao
Ministério do Meio Ambiente (à época para a ministra Marina Silva) com recomendações
de ações urgentes para a conservação da área, o que proporcionou a criação do
programaCerrado Sustentável. Há iniciativas estaduais, por exemplo, como as de
Goiás que, através da Agenda 21 Goiás, baseando-se nas idéias do Global
Environment Outlookda ONU, criou áreas de proteção, aumentando e consolidando
áreas existentes, especialmente projetos que consolidassem “corredores ecológicos”.
7
Há ainda outras iniciativas como as de ONGs internacionais, a exemplo da Conservação
Internacional (CI), a World Wildlife Foundation (WWF) e a The Nature Conservancy,
que trabalham focando em alternativas de economia sustentável junto às populações
locais próximas aos parques. Iniciativas privadas como da empresa O Boticário, que
visa a criação de reservas privadas, em parceria com ONGs, e iniciativas não
governamentais nacionais como o Instituto Cerrado.
Isso pode ser explicado pelo fato que o governo brasileiro não investe na proteção da
área. Segundo estudos feitos pela Conservação Internacional, apresentados no II
Simpósio Internacional de Savanas Tropicais, por exemplo, o dinheiro investido foi da
ordem de R$ 107 milhões, suficiente apenas para pagar os salários dos envolvidos em
projetos de conservação mantidos pelo Ministério do Meio Ambiente. Na verdade, a
palavra correta seria “revertido” pois, considerando os lucros das atividades
agropecuárias na região, o dinheiro deveria ser reinvestido na proteção das riquezas
naturais, manutenção de fontes de água e auxílio no equilíbrio do clima global e que
pertencem, em última instância, a todos os brasileiros. A estimativa da CI é que o ideal
seria reverter uma quantia equivalente a R$ 227 milhões, pelo menos, algo como 0,5%
do que foi investido na agropecuária através do Plano Safra de anos anteriores.
Pesquisas e soluções
“Uma coisa que é preciso entender é que não há antagonismo entre produção agrícola e
conservação. Ao aumentar a produção por meio da tecnologia ou projetos de pesquisa
de solo não é preciso aumentar a área de plantio com tanta voracidade”, diz Leandro
Baungarten. Mas é preciso regularizar a situação de fazendas implantadas
irregularmente. “Algumas delas não mantiveram sua área natural de reserva legal. A
solução é criar ferramentas e mecanismos para que isso seja resolvido”, sugere. Um
dos meios de fazer isso seria regenerando as áreas devastadas, comprando outras
8
áreas para serem conservadas ou comprando participações em reservas ambientais.
Mas ainda falta muito trabalho para que o bioma não pereça nas próximas décadas.
Entre outras coisas faltam números confiáveis, de acordo com Baungarten. A maioria
dos dados disponíveis para o Cerrado é, ainda, produzida a partir de estimativas
(consequentemente há grande variação em quase todas as informações) e observações
em trabalhos de campo, que aos poucos começam a ser compilados e transformados
em publicações (leia resenha). E falta muito a avançar na legislação também. Ainda
tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, a Proposta de Emenda à Constitução
(PEC) 115/95 que inclui o Cerrado (e a Caatinga, graças a uma nova redação) nos
biomas considerados patrimônio nacional, mas que está emperrada há quase 14 anos,
na bancada ruralista. Será que o “bioma de segunda classe” será um dia promovido ou
irá direto para o preocupante rol de ambientes em perigo de extinção?
9
Reportagem
O Cerrado possui vegetações ou fitofisionomias bastante variadas, por conta dos diferentes tipos de solo. Fotos: Rafael Oliveira/Daniel De
Granville/Carlos Terrana.
10
especialistas, centros de pesquisa e coleções científicas, além de dificuldades de acesso
às áreas para coleta de material biológico. Muitos grupos de pesquisadores do bioma
estão localizados em algumas poucas instituições, como é o caso da Universidade de São
Paulo (USP), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Federal de Goiás (UFG), além
da Embrapa. Mas o problema reside também nos baixos gastos governamentais no
bioma e em políticas ambientais que garantam rapidamente a proteção de áreas
maiores. A Conservação Internacional demonstra, através de análise dos recursos
aplicados pelo Ibama em 2007, que o Cerrado recebeu apenas 8% do montante
reservado para unidades de conservação, ou R$ 107 milhões, enquanto o valor mínimo
necessário seria de R$ 5.638 por hectare, ou seja, R$ 227 milhões. Recurso que
desaparece perto do gigantesco investimento na produção agrícola na região do Cerrado
no mesmo ano, de R$ 41 bilhões.
Segundo estimativas, o Cerrado abriga cerca de 5% de toda fauna e flora mundial, com altas taxas de endemismo, que pode chegar a 45%
em lagartos. Fotos : Carlos Terrana
Soluções em vista
“Temos receitas próximas da realidade para cada tipo de região, já que o Cerrado varia
de acordo com o tipo de solo”, afirma Manoel Cláudio da Silva Jr, do Departamento de
Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB) e membro da rede. Uma
estimativa feita pelos especialistas da Rede de Sementes constatou que seriam
11
necessárias 50 bilhões de mudas para recuperar apenas áreas de reserva legal (os 20%
de vegetação nativa que devem ser mantidos numa área), além da Área de Proteção
Permanente (APP) – como terrenos inclinados, frágeis, erodidos ou com nascentes de
rios. “A proposta da rede é legalizar o Cerrado”, defende o especialista.
O plantio de árvores em tempos de mudanças climáticas pode ser também uma forma de
gerar créditos de carbono. É o que aposta Ricardo Machado, da Conservação
Internacional. Ele esclarece que o valor gerado com os créditos de carbono daria para
cobrir o custo de manutenção da recuperação de áreas degradadas, mas não cobre o
lucro gerado pela agropecuária. O objetivo é promover o casamento entre empresas que
querem compensar a emissão de gás carbônico (um dos causadores do efeito estufa)
com fazendeiros locais ansiosos para resolver seu passivo ambiental, regularizando sua
situação, por meio de viveiros gerenciados por comunidades locais. “Do ponto de vista
dos fazendeiros com áreas degradadas, que foram estimulados pelo governo para ocupá-
las e para produzir, eles acreditam que também devem ser estimulados a recuperar suas
áreas”, afirma Machado.
12
Florestal Brasileiro, podendo chegar a 24% de perda com uma ocupação do bioma
equivalente a 75%. “Os números sugerem que é preciso fazer mais do que a legislação
ambiental exige, caso a sustentabilidade ambiental seja realmente considerada no
desenvolvimento econômico do Cerrado”, alertam os autores.
13
Reportagem
Nem bem completou 50 anos que o bioma começou a ser ocupado de forma mais
agressiva, por meio da expansão da fronteira agrícola, e o Cerrado vem sendo
devastado a olhos vistos. No entanto, monitorar a destruição dos dois milhões de
quilômetros quadrados desse que é o segundo maior bioma brasileiro é um desafio.
Responder a perguntas simples sobre a área que se mantém preservada e as taxas de
desmatamento ao longo dos anos ou mesmo anual, não é fácil, dado o alto nível de
incertezas.
14
Paulo e no sul de Minas Gerais, o Cerrado praticamente desapareceu. “Nessas áreas, a
vegetação remanescente está abaixo do mínimo exigido pelo Código Florestal”,
afirma Dias. Os remanescentes são o centro e norte de Minas Gerais, oeste da Bahia,
Piauí, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. O diretor do MMA conta que a região
montanhosa do nordeste do Goiás está razoavelmente bem preservada, assim como a
região alagada do Araguaia, embora projetos de irrigação de arroz já tenham alterado a
vegetação.
Usar a área dos limites oficiais dos biomas estabelecidos pelo IBGE em 2004 foi a
primeira sistematização do estudo. “Antes, existia o bioma de cada especialista, o que
dificultava as comparações”, acredita Dias. O IBGE usa o critério de contiguidade,
considerando as manchas de Cerrado dentro da Amazônia, por exemplo, como
disjunções do bioma Amazônia e não como pertencente ao bioma Cerrado. O mesmo
vale para o Cerrado das chapadas Diamantina e Araripe, que fazem parte do bioma
Caatinga. Além dos demais ajustes metodológicos de escalas e resoluções, a equipe
optou também por separar pastagem plantada da nativa. Segundo Bráulio Dias, em
alguns mapeamentos prévios todas as pastagens foram colocadas na categoria de
vegetação degradada. Mas é importante destacar que o objetivo do mapeamento não
foi avaliar o status de conservação da vegetação remanescente, e sim mapear áreas
potenciais para ações de conservação, recuperação e promoção do uso sustentável.
15
por exemplo, um acompanhamento da devastação ao longo dos anos mostra que a
cana-de-açúcar fez o Cerrado paulista sumir, restando atualmente meros 2% da
vegetação original, segundo dados do Instituto Florestal de São Paulo.
Todos os dados gerados nos estados têm sido de grande valor para acompanhar o
desmatamento, mas não fornecem o quadro geral. “Como cada estado usa uma
metodologia diferente, não é possível juntar os dados, porque cada um utiliza, por
exemplo, categorias de uso de terra diferentes”, explica Dias.
Dificuldades e avanços
16
uso da terra.
Ciente de todas as dificuldades, muitos avanços têm sido obtidos recentemente nas
metodologias e protocolos para detecção de desmatamentos no Cerrado. O Siad
Cerrado desenvolveu uma metodologia que usa imagens com resolução espacial de 250
metros, obtidas pelo sensor Modis, que está a bordo do satélite Terra, principal satélite
da Nasa para observação terrestre. Os pesquisadores detectam mudanças na biomassa
fotossinteticamente ativa, em determinados períodos de tempo, o que pode ser um
sinal de que a área foi desmatada. “Todas essas variações são inspecionadas
visualmente, com vistas a se minimizar os falsos alertas de desmatamentos”, explica
Laerte Ferreira. “Ainda que toda esta metodologia já esteja razoavelmente
amadurecida, continuamos o seu aperfeiçoamento, o que deve incluir, em futuro
próximo, o uso de imagens com maior resolução espacial (por exemplo, imagens do
satélite sino-brasileiro CBERS) e uma abordagem heurística e probabilística para
facilitar a validação dos polígonos de mudanças identificados”.
“No mundo da conservação, a prioridade sempre foi floresta”, avalia Bráulio Dias. “Em
última análise, é cultural, pois no mundo inteiro, as vegetações abertas, como savanas
e campos, chamam menos atenção. O Pampa e a Caatinga também foram muito
relegados e o Pantanal recebeu mais atenção por conta da fauna”. Aliado à questão
cultural de baixa apreciação das savanas, o Cerrado foi a área estrategicamente
escolhida pelo governo federal para a produção agrícola. “Nesta mentalidade ‘PIBiana',
a transformação do Cerrado em um grande celeiro de commodities agrícolas era (e
ainda é...) a prioridade”, diz Ferreira.
A destruição do Cerrado ocorre em larga escala. Há uns anos, para que uma viagem
nas proximidades de Brasília pela rodovia BR-040 passasse rapidamente, bastava
contar o número de ipês amarelos na beira da estrada. Hoje, falta pouco para que as
lavouras alcancem o próprio asfalto. Porém, tão importante quanto o alerta de que o
Cerrado está desaparecendo, é gerar números confiáveis de quanto efetivamente resta
da vegetação natural, além de entender e avaliar sua notável capacidade de
recuperação.
17
Reportagem
A migração para o interior do país, hoje mais intensa, começou a dar os seus primeiros
passos com os bandeirantes paulistas, já no século XVI. Esse movimento foi estimulado
pela coroa portuguesa para fixar seus limites geográficos em relação aos domínios
espanhóis no continente. Mas foi apenas em 1719 que a expedição comandada por
Pascoal Moreira Cabral encontrou ouro em Mato Grosso. Três anos depois, foi a vez de
Bartolomeu Bueno da Silva Filho retomar o caminho já desbravado por seu pai, o
Anhanguera, e encontrar ouro em Goiás. Com a exploração do ouro, começam a se
formar as primeiras vilas e povoados não indígenas no centro do país. Até 1748,
quando foi criada a capitania de Mato Grosso, as minas de lá eram subordinadas à
capitania de São Paulo. Já a capitania de Goiás foi criada em 1744, mas só se instalou
em 1749. “Em função da descoberta e da exploração do ouro, estabeleceram-se dois
caminhos entre essas minas e São Paulo. Um, por barco: pelos rios Tietê, Paraná e
Paraguai. Outro, por terra, passando pelo triângulo mineiro, Vila Boa de Goiás (atual
Goiás Velho, primeira capital goiana) e de lá até Vila Real do Senhor Bom Jesus do
Cuiabá (atual Cuiabá)”, conta o geógrafo Bernando Campolina Diniz, da Universidade
Federal de Tocantins, que estudou a economia do Cerrado em seu doutorado.
Segundo ele, o apogeu da exploração do ouro foi logo após a criação das capitanias,
entre 1750 e 1754, quando foram extraídos 35 mil quilos de ouro em Goiás e Mato
Grosso, cerca de 7 mil quilos por ano. Juntas, essas capitanias não conseguiam
alcançar a produção já enfraquecida de Minas Gerais, de 8.789 quilos por ano, e
também começaram a entrar em declínio. As economias da região começam a migrar
gradativamente para a pecuária, já expressiva na porção mineira do Cerrado, entre
Uberaba e Uberlândia, e para a agricultura, nas poucas regiões férteis do bioma. A
abertura para navegação do rio Araguaia, no século XIX, gera novas possibilidades de
ligação comercial, unindo Goiás e Mato Grosso ao Norte do país, ampliadas ainda mais
a partir da ligação por estrada de ferro entre São Paulo e Campo Grande, em 1911, e
Minas e Goiás, em 1913. A população e a economia no Brasil Central, no entanto, ainda
cresciam lentamente. “Embora a região dos cerrados tenha sido objeto de variados
esforços de ocupação ao longo da história, ela se manteve relativamente vazia, dos
pontos de vista econômico e populacional, até meados do século XX”, afirma Diniz.
Dois grandes fatores foram cruciais para acelerar esse processo, de acordo com o
geógrafo. O primeiro, uma idéia antiga, de José Bonifácio, do período do Império,
18
prevista no texto da primeira constituição republicana do país, de 1891: a transferência
da capital para o Planalto Central. Concretizada no governo de Juscelino Kubitcsheck,
em 1960, Brasília proporcionou a ligação do centro com o restante do país através de
rodovias, além de atrair a criação de infra-estrutura em energia e em telecomunicações
para a região central. O segundo fator, essencial para o agronegócio, foi o avanço da
pesquisa científica e tecnológica, particularmente a partir dos anos 1970, envolvendo
universidades e empresas e capitaneado pela Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa). Esse avanço, aliado à impossibilidade de ampliação das áreas
produtoras de grãos no Sul e em São Paulo, onde o preço da terra encareceu,
possibilitou a expansão da produção nos cerrados.
Para se ter uma idéia, de acordo com o IBGE, a área de cultivo de soja no Cerrado
saltou de 571 mil hectares, em 1975, para 10.092 mil hectares, em 2003, aumentando
a representação de 10% para 54% do total do país. Nesse período, a produção do grão
passou de 853 mil toneladas para 27.986 mil toneladas nos cerrados. O gado bovino
saltou de 33.960 mil cabeças, ou 34% do total, em 1975, para 85.057 mil cabeças ou
43% do total, em 2003. A produção de gado e soja trouxeram na esteira a indústria
processadora de matéria-prima de origem animal e vegetal. De 1970 a 2004, a
indústria frigorífica bovina do Centro-Oeste saltou de 25% do total de abates no país
para 40%, passando de 10,7 milhões de cabeças para 25,8 milhões de cabeças. Goiás,
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul tinham em 2004 mais da metade dos 125
matadouros frigoríficos instalados na região do Cerrado. Já o abate de suínos e de aves,
menos expressivo na região, subiu respectivamente de 5% para 12% do total, e de
3,6% para 10% do total. Na indústria esmagadora de soja, entre 1998 e 2004, Mato
Grosso saltou de 8,8 mil para 20,6 mil toneladas/dia de produção, e Goiás, de 9,7 mil
para 17 mil, e 45% da produção nacional do setor estava no Cerrado.
Outros dois produtos que têm se destacado recentemente na região são o algodão e a
cana-de-açúcar, que também podem atrair futuramente indústrias têxteis e de
processamento de álcool. A partir da queda na produção nacional de algodão, nos anos
1990, ela começa uma recuperação em Mato Grosso, graças a pesquisas da Embrapa
para adaptação das sementes, e se espalha pelas porções de Cerrado de Mato Grosso
do Sul, Goiás, Bahia e Minas Gerais. Em 2003, os cerrados já respondiam por 88% da
produção nacional com suas 1.944 mil toneladas de algodão. As pesquisas de
adaptação de cultivares também possibilitaram que o plantio de cana se expandisse nas
regiões de Cerrado, particularmente na porção paulista, no triângulo mineiro e nos
estados do Centro-Oeste. As 183.072 mil toneladas de cana produzidas em áreas desse
bioma representavam, em 2003, 43% do total produzido no país.
Apesar de ter uma forte participação no agronegócio, o Brasil Central ainda carece da
agregação de renda proporcionada pelo setor industrial, mas tem todas as condições
para atraí-la. “A região central desenvolveu o setor rural e o de serviços muito bem.
Está agora em condições de desenvolver o setor industrial”, afirma o economista Célio
Costa, consultor com expertise em mercado interno. Segundo ele, uma das bases para
isso é o atual mosaico demográfico brasileiro, que mudou consideravelmente após os
anos 1970. Agora, a população é majoritariamente urbana, e cresce significativamente
19
no interior do país. “Há demanda nesse mercado de perfil de consumo urbano, e o
tamanho da demanda não atendida pode dar margem ao crescimento da indústria. O
Centro-Oeste precisa melhorar o perfil de seu mercado e aumentar sua participação no
segmento industrial, que era só de 3,8% do total do país, pelos indicadores de 2006”,
aponta Costa.
O passivo ambiental
Todo esse crescimento da agroindústria nas últimas décadas, que pode impulsionar a
industrialização em um futuro recente, teve um preço alto para o Cerrado.
Os mapas do IBGE sobre a retração da vegetação nativa mostram que o bioma
encolheu consideravelmente nos últimos trinta anos. Mas esforços como o iniciado no
assentamento rural Andalucia, em uma região do Mato Grosso do Sul, contribui na luta
para reverter essa retração. Os próprios assentados criaram, em 1998, o Centro de
Produção, Pesquisa e Capacitação (Ceppec) para diversificar sua renda e preservar o
Cerrado. Trata-se de uma iniciativa pioneira que envolve o manejo de plantas nativas e
aplica nos cerrados o extrativismo sustentável, que já tem uma certa tradição em áreas
de floresta tropical como a Amazônia e a Mata Atlântica. A idéia iniciada no Andalucia
deu tão certo que hoje já atinge 50 assentamentos em 11 municípios, onde se realiza o
manejo extrativista e o processamento de castanha-do-cerrado, pequi, bocaiúva e
jatobá.
20
se colher tudo, para que haja regeneração da área e repovoamento das plantas
nativas”, completa. Ela afirma que no próprio Ceppec há uma mini-usina de
processamento. Após a coleta dos frutos, eles são lavados, cortados e torrados. A
farinha da castanha-do-cerrado, por exemplo, é vendida em padarias, mercados e
sorveterias. Já o pequi é usado em pratos da alimentação da própria comunidade, além
de também ser vendido para a indústria alimentícia. “No Ceppec, também tem uma
oficina de tecelagem, onde se usam corantes naturais a partir de frutos, flores e
cascas”, conclui. Tanto a tecelagem quanto os produtos alimentícios, além do trabalho
com turismo ecológico também desenvolvido no Ceppec, estão gerando renda para
dezenas de famílias da região. E a garantia dessa renda é justamente a manutenção
das plantas nativas em pé. O Cerrado agradece.
21
Reportagem
Mulheres e crianças Krahô em fim de tarde Cantoria de mulheres Kraho e cantador Krahô, Festa
Tradicional da Batata
Fotos: Veronica Aldè, na Aldeia Manoel Alves, Município de Itacajá, TO.
A Carta Aberta dos Povos Indígenas do Cerrado, assinada por representantes dos
Karajá, Krahô, Tapuia, Apinajé e Xavante em 2008, aponta que entre os problemas
enfrentados por esses povos estão os posseiros, a deficiência no tratamento de saúde,
a devastação no entorno dos territórios indígenas demarcados – devido ao avanço do
agronegócio – e a falta de diálogo a respeito do impacto das grandes obras
governamentais previstas no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Em seus
encontros com os indígenas, a musicista do ITS vivencia a força e resistência desses
povos no plano da cultura: “Eles mantêm seus rituais muito fortes, mesmo as aldeias
situadas próximas da cidade. É muito emocionante vê-los na natureza e perceber que
são suas formas de relação que mantém mais de 320.000 hectares de Cerrado
preservado”. O ITS tem auxiliado a comunidade a montar uma espécie de banco
sonoro, construir uma memória musical desses povos. “Talvez esse material possa ser
usado pelos professores indígenas nas comunidades, como um apoio didático-cultural
que a universidade pode oferecer”, avalia Aldè.
22
Maria de Lara e Mestre Salustiano, fontes de sabedoria e Espetáculo do Sons do Cerrado
musicalidade do Cerrado. Foto: http://www.overmundo.com.br
Foto: Leandro Caetano, Comunidade do Tatu, Correntina,
BA.
As discussões sobre cultura, território e Cerrado não tocam apenas nos povos
indígenas. Iara Monteiro Attuch, em seu mestrado na UnB, explorou os conhecimentos
de povos tradicionais associados à biodiversidade do Cerrado brasileiro e das relações
interculturais que se estabelecem entre seus detentores e a sociedade, fazendo um
estudo etnográfico com Dona Flor, uma raizeira e parteira de povoado de Moinho, em
Alto Paraíso, no estado de Goiás. Attuch traz à tona como essas comunidades vivem
entre estarem sujeitados e resistir – ao avanço da fronteira agrícola; às políticas de
turismo dentro e no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros; ao
aumento de compras de terras e sua conversão em Reservas Particulares de Proteção
Ambiental; além da expansão de pousadas e restaurantes. Para ela, a preservação da
cultura e do bioma do Cerrado está associada às iniciativas que forem capazes de abrir
caminhos para “ articular o manejo sustentável, a garantia do território, desde a boa
qualidade e acesso aos recursos naturais até a proteção dos conhecimentos tradicionais
locais, discutida atualmente, em que prevalece a propriedade e uso coletivo da terra”.
Se, por um lado, emergem importantes discussões sobre cultura e cidadania dos povos
do Cerrado, também ganha ainda mais força, nos últimos tempos, a aposta de que,
pela produção cultural, seja possível gerar novas sensibilidades com relação ao bioma.
É acreditando nessa possibilidade que Dércio Marques, violeiro e cantador mineiro,
junto com sua irmã, Doroty Marques, vão desenvolver um novo projeto com os Meninos
do Cerrado, na Vila São Jorge, também em Alto do Paraíso. “O desafio é fazer com que
os meninos criem músicas sem palavras, somente com sons e sentimentos. Queremos
despertar nesses meninos a capacidade de ouvir o silêncio e tirar algo dele. O silêncio
nosso, dos sons do Cerrado em movimento: das águas, do vento, etc. Empreender uma
luta contra a ditadura do som que vivemos hoje”, conta o músico entusiasmado.
Poetas, escritores e cientistas alimentam a fala de Dércio Marques sobre o Cerrado,
suas potencialidades e fragilidades. Diante de um cenário pouco animador, ele
manifesta sua crença na capacidade de tocar as pessoas pela arte, literatura e poesia.
23
Federal Fluminense, para construir sua argumentação em prol de uma política
ambiental mais atenta ao bioma, em sua Carta aberta à invisibilidade do Cerrado na
política ambiental, endereçada ao ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc: “Guimarães
Rosa, senhor ministro, por sua refinada criatividade e capacidade de escuta, foi capaz
de ouvir a cultura desses povos e nos deu uma obra – Grande Sertão: Veredas – que,
no próprio título, mostra a profunda compreensão das paisagens dos cerrados, suas
enormes e vastas chapadas onde o 'coração vive à larga', como o gado solto, – os
Grandes Sertões – e os fundos de vales onde os povos fazem suas ‘agri-culturas', – as
Veredas”. Ainda em outro trecho, diz: “Guimarães Rosa foi quem, melhor do que
ninguém, soube transcriar a riqueza cultural desses povos, ao afirmar que os gerais são
‘uma caixa d'água' e, com isso, mais do que os cientistas, iluminou a leitura de nossa
geografia aos nos fazer ver que os nossos rios nascem nos cerrados – o São Francisco,
o Jaguaribe, o Parnaíba, o Tocantins, o Araguaia, o Xingu, o Madeira, os formadores do
Paraguai (o Pantanal), o Paranaíba, o Grande, o Rio Doce”.
24
determinada memória coletiva: “O investimento para solidificar e dotar de duração e
estabilidade uma determinada memória, para representar o conjunto da sociedade,
configura operações de seleção, organização e uniformização da multiplicidade de
significados atribuídos ao passado”, analisa, expressando a imbricada relação entre
memória, cultura e política e uma preocupação com a homogeneização cultural. O
processo de tombamento de Goiás Velho gerou várias discussões. Não porque o
complexo arquitetônico e as belezas naturais não fossem dignas de serem consideradas
patrimônio da humanidade, mas pela exclusão de aspectos relacionados ao passado da
região e de grupos, culturas e saberes populares (veja texto do antropólogo e diretor
do Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás, Altair Sales
Barbosa).
25
“Quem se lembra? Quem se esquece?”. Um expressão interrogativa que mais do que
convocar pessoas, convoca forças políticas e poéticas que redesenham o Cerrado e suas
culturas por entre lembranças e esquecimentos.
26
Artigo
O presente texto tem como propósito formular alguns questionamentos e ainda trazer,
a partir de experiências vivenciadas, contribuições para a reflexão sobre a degradação
humana e ambiental francamente em curso no Cerrado brasileiro. As proposições
construídas, frutos de debates amplos e democráticos, tão ausentes no momento,
poderão resultar em ações concretas no seio da sociedade e que devem ser
implementadas por uma vigorosa política de educação ambiental formal e informal, em
conjunto com os movimentos sociais e por mobilizações populares, tendo em comum o
posicionamento que questione os empreendimentos voltados para o setor produtivo,
em especial o agronegócio e hidronegócio no Cerrado.
Vale ressaltar que atualmente estão localizados dentro da área de abrangência das
bacias hidrográficas do rio Paranaíba, Tocantins, Araguaia e São Francisco, no estado
de Goiás, importantes empreendimentos altamente impactantes, e estudos e
enquadramentos de vários outros vinculados ao agronegócio, agroenergético e de
aproveitamentos hidrelétricos, que se apresentam nos estudos e licenciamentos,
isolados e compartimentados, negligenciando e/ou desconsiderando os efeitos e
processos de interações e de sinergia que ocorrem no meio antrópico, físico e biológico.
Diante dos fatos e das intervenções relevantes para o ambiente natural e para a
sociedade, especificamente para o segmento dos atingidos direta e indiretamente pelos
empreendimentos e atividades de natureza econômica, argumentamos em defesa da
participação popular e do controle social e democrático, tendo como finalidade precípua
o direito à formação e à informação formal e informal.
27
passado não foram considerados por parte dos órgãos ambientais. São fartos os
documentos analisados e discutidos em momentos apropriados, sempre por
profissionais e militantes das causas socioambientais, percebendo com perplexidade
que a maioria da população, ou quase a sua totalidade, desconhece a relevância do
assunto.
Constata-se que os rios do Cerrado brasileiro têm sido agredidos por ações e
lançamentos de dejetos e de outros tipos de efluentes e resíduos de natureza diversa,
comprometendo e promovendo alteração física, química, físico-química e biológica, o
que é frequentemente noticiado e denunciado pela imprensa, em vários episódios
tristemente ocorridos, o que vem reforçar a preocupação.
Verifica-se que os vales dos rios do Cerrado foram, no passado, habitados e utilizados
como refúgios de antigos grupos humanos e das tradicionais nações e povos indígenas,
deixando um enorme legado de testemunhos e registros em forma de utensílios líticos,
cerâmicos, cemitérios e de pinturas rupestres, o que até o presente momento muito
pouco fora feito de concreto para a preservação, recuperação, valorização e
disseminação desse patrimônio da humanidade.
28
que estão sendo ignorados ou negligenciados pelos órgãos e agências de fiscalização e
licenciamento ambiental, uma vez que, frente aos documentos produzidos e discutidos
a esse respeito, pouco ou quase nada resultou em algo concreto por parte desses
órgãos.
Dessa forma, pensar com ética sobre a situação atual é envidar esforços por outro
modelo de desenvolvimento para o Cerrado brasileiro, bem como, a implementação de
uma agenda positiva para esse bioma, sendo, inicialmente, uma contribuição para o
debate, incluindo a educação ambiental formal e informal, subsidiando as tomadas de
decisões, contrapondo a situação real e patente da desinformação e da negligência, se
não, da subserviência do público diante do privado e de toda a postura antiética para
com a natureza e para com os povos do Cerrado, remanescentes de uma cultura
secular de existência e história que, a toda sorte, lutam para resistir aos impactos
gerados por um modelo econômico excludente, voltado unicamente para a produção,
reprodução e concentração do capital que, na atualidade, é implementado por uma
política agrícola e agrária com uma inovadora tríade: agronegócio, hidronegócio e
agroenergia.
29
Em última análise, vale considerar que a devida ausência das preocupações acima
descritas confere negligência no trato para com o meio ambiente e para com a
sociedade, caracterizando um verdadeiro crime contra a natureza e um afrontamento
às leis ambientais, portanto, uma conspiração contra a vida no Cerrado em suas mais
variadas formas e expressões.
Notas
O presente texto foi extraído de documentos produzidos e subscritos por vários seguimentos organizados da
sociedade civil e movimentos ambientais e populares, protocolados junto a diversos órgãos públicos, jurídicos, de
licenciamento e fiscalização, portanto, uma construção coletiva com expressiva contribuição dos professores do curso
de geografia do campus de Catalão/UFG, como também parte de projeto de pesquisa e extensão da PRPPG/UFG,
com o título “A hidrelétrica Serra do Facão: o outro lado da moeda”, coordenado por Helena Angélica de Mesquita.
30
Artigo
A forma mais eficiente para a proteção dos recursos naturais é a sua conservação in
situ. Isto consiste na manutenção das áreas intactas, mediante a criação de unidades
de conservação, tais como parques nacionais, reservas biológicas, florestas nacionais e
áreas de proteção ambiental, dentre outras. No Cerrado, infelizmente, o número de
unidades de conservação é muito baixo, quando comparado com outros biomas, e
essas, geralmente, são muito vulneráveis a ações antrópicas (fogo, desmatamento,
caça e pesca).
Dessa forma, devido à grande degradação verificada no bioma como um todo, mesmo
as áreas protegidas necessitam de uma atenção especial, para que a conservação
ocorra de forma efetiva. Uma maneira encontrada para diminuir os impactos sobre
essas áreas é a criação de corredores ecológicos, que são áreas que unem os
remanescentes florestais, possibilitando o fluxo gênico, que nada mais é do que o
trânsito de animais e a dispersão de sementes e pólen de espécies vegetais. Esses
corredores foram planejados para interligar remanescentes de vários biomas. No
Cerrado, estão previstos a criação dos corredores Araguaia-Pantanal, abrangendo 10
milhões de hectares nos estados de GO, TO, MT e PA, o corredor ecológico Jalapão-
Mangabeiras, situado na confluência dos estados de TO, PI e BA, o corredor ecológico
Cerrado-Pantanal, situado na bacia do rio Taquari, GO, interligando o Pantanal com o
Cerrado da região do Parque Nacional de Emas, e o corredor JICA, na região do Vale do
Paraná/Serra dos Pirineus, abrangendo os estados de GO, DF e TO.
A conservação também pode se dar através do uso sustentável dos recursos naturais.
Pesquisas recentes realizadas pela Universidade Federal de Lavras (MG) mostram que é
viável economicamente manejar a vegetação do Cerrado, como alternativa ao seu
desmatamento para a implantação de florestas de eucalipto, atividade que vem
ocorrendo em larga escala em vários estados brasileiros. Esses estudos, porém,
levaram em conta somente a utilização dos produtos madeireiros, deixando de lado o
que muitos consideram a grande riqueza deste bioma que é a enorme diversidade de
31
produtos que podem ser extraídos, tais como frutos, sementes, óleos, fibras, etc...
Os processos relacionados à reprodução têm sido alvo de muitas pesquisas nos últimos
anos. Compreender os mecanismos de propagação das espécies, bem como a
estruturação das espécies nos diversos habitats parece ser o ponto chave para o
estabelecimento de propostas de recomposição e conservação de áreas naturais.
Dessa forma, vários estudos utilizando técnicas baseadas na análise de DNA têm
ajudado os pesquisadores a entender os mecanismos fisiológicos relacionados ao
desenvolvimento, germinação e dormência de espécies florestais do Cerrado,
permitindo dessa forma, que um número maior de espécies seja utilizado nos projetos
de reflorestamento para a recomposição da flora.
Se por um lado a biotecnologia pode ter uma conotação negativa para alguns grupos da
32
sociedade – nesse caso, quando associada aos organismos geneticamente modificados
(transgênicos) –, por outro, pode ser uma ferramenta de fundamental importância para
a conservação dos recursos naturais.
A importância desses avanços, além da maior acessibilidade pela redução dos custos
das análises, reside na possibilidade do desenvolvimento de marcadores para diversos
processos fisiológicos, na redução do tempo para obtenção de informações e,
consequentemente, na possibilidade de acompanhar a dinâmica de populações de um
maior número de espécies.
33
Artigo
Para a savana não é diferente. Talvez, de todos os tipos de vegetação, a savana seja a
mais difícil de definir, pois sua distribuição e origem são controversas, já dizia em 1960
a geobotânica Mônica Mary Cole. A definição de savana e a evolução histórica deste
termo são polêmicas e têm sido frequentemente colocadas em pauta nos vários fóruns
de discussões acadêmicas ao longo das últimas décadas. Apesar de bastante debatido,
o assunto ainda desperta controvérsias em função do alto número de interpretações.
Na literatura científica, são encontradas mais de duas centenas de termos técnicos
relacionados à palavra savana. Esse elevado número está associado à grande
quantidade de tipologias vegetacionais classificadas como savana.
Escrever em poucas páginas sobre um assunto tão extenso não é fácil. A intenção
apresentada aqui é oferecer uma visão geral das principais linhas de pensamento e
pontos de divergências, bem como apresentar a contribuição de alguns atores
envolvidos na árdua empreitada de ordenar conceitos, visões e impressões sobre as
savanas do nosso planeta. Como a literatura aponta, embora essa discussão conceitual
possa parecer inócua, ela tem implicações práticas diretas, pois dependendo do
conceito adotado, a distribuição geográfica, a extensão da savana no mundo e a
quantificação da biodiversidade muda drasticamente, refletindo nas políticas e
estratégias para sua conservação.
34
tipos vegetacionais desprovidos de árvores, localizados no Caribe e na América do Sul.
Esse pesquisador chamou atenção para o fato de que “embora, atualmente (no Brasil),
o público leigo associe savana a um domínio vegetacional do continente africano (e não
sul-americano), local de morada dos grandes mamíferos do planeta, foi somente muito
tempo depois de sua origem histórica, que o termo foi aplicado naquele continente e
em outras partes do globo” (Walter, 2006).
Uma grande contribuição para o entendimento sobre as savanas mundiais pode ser
creditada ao médico-ecólogo francês François Bourliére, que, em conjunto com
autoridades no tema, publicaram em 1983 o livro intitulado: Ecosystems of the world
13: tropical savannas, mostrando as características das savanas em todos os
continentes. Para eles, existem alguns fatores que, em conjunto, determinam a
formação da savana, entre eles as condições climáticas, edáficas, hidrológicas e
geomorfológicas, além do fogo e pastejo.
Atualmente, o termo savana tem sido utilizado de forma ampla para designar diferentes
formações vegetacionais no mundo, muitas vezes se referindo a conceitos conflitantes.
Para as duas escolas tradicionais em estudos ecológicos, a escola européia e a
americana, a principal diferença em termos conceituais está na área de distribuição
geográfica das savanas na Terra. Para as escolas seguidoras da corrente européia, as
savanas ocorrem na zona tropical, localizada entre os Trópicos de Câncer e de
Capricórnio (22,5º norte e sul da linha do Equador). Por outro lado, para a corrente
americana, as savanas ocorrem além da zona tropical, estendendo-se para a zona
subtropical (entre 23º e 35º ao sul do Trópico de Capricórnio e 23º e 35º ao norte do
Trópico de Câncer), incluindo no conceito parte da vegetação estépica do continente
norte americano.
Para outros autores, como o professor George Eiten, as savanas no mundo podem ser
agrupadas numa macroescala de acordo com as condições climáticas regionais, onde a
sazonalidade no regime pluviométrica seria o fator determinante para ocorrência da
35
vegetação savânica, por exemplo, no continente africano (Eiten, 1982). Por outro lado,
as savanas também poderiam ser determinadas pelas condições edáficas, onde as
propriedades físico-químicas do solo é que determinariam a ocorrência desse tipo de
vegetação, como é o caso das savanas amazônicas, na América do Sul. Na região Norte
do Brasil, o clima é favorável para a formação da Floresta Tropical Úmida, no entanto,
na região amazônica há manchas de vegetação savânica que, certamente, são reflexos
das condições edáficas locais.
Voltando à discussão conceitual, de acordo com a visão antiga do termo, a savana pode
ser entendida como um tipo de vegetação desprovida de árvores e com abundante
estrato herbáceo. Por outro lado, na visão moderna e mais ampla, o termo savana, em
geral, pode ser definido como a vegetação caracterizada por um estrato graminoso
contínuo ou descontínuo com presença de árvores e arbustos dispersos na paisagem
(ver Collinson, 1988). Dentro desse conceito, as savanas podem ser encontradas na
América do Sul, África, Oceania e Ásia. A savana é considerada o quarto maior bioma
mundial em área, com cerca de 15 milhões de km 2, que correspondem a cerca de 33%
da superfície continental da Terra, 40% da faixa tropical e abriga 20% da população
mundial ( Whittaker, 1975; Mistry, 2000)
36
Janeiro, Carlos Toledo Rizzini, em seu livro intitulado Tratado de Fitogeografia do
Brasil, no Brasil, a palavra savana “só devia-se empregar, restritamente, para indicar o
Cerrado” (Rizzini 1997), enfatizando mais uma vez as diferenças de interpretação.
37
Cerrado sentido restrito.
Foto: José Felipe Ribeiro.
Por fim, para que o termo savana possa ser usado satisfatoriamente, é preciso levar em
conta as diferentes interpretações existentes. Por isso, é importante a observação do
professor Coutinho: “os termos empregados para definir uma tipologia vegetacional
deveriam ser seguidos pelos conceitos que os autores fazem deles para evitar
confusões, pois nem sempre seus conceitos coincidem entre si” (Coutinho, 2006).
Como os conceitos não são coincidentes, é fundamental que o autor entenda e
esclareça qual a definição está utilizando e seja coerente durante todo o texto.
Bibliografias consultadas
Ab'Sáber, A. N. Os domínios da natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. 2ª Edição. São Paulo: Ateliê
Editorial. 2003. p. 115-135.
Bourliére, F. Ecosystems of the world 13: tropical savannas. Amsterdan: Oxford, New York: Elsevier Scientific
Publishing Company, 1983. 730p.
Cole, M. M. The savannas: biogeography and geobotany. London: Academic Press, 1986. 438p.
Collinson, A.S. Introduction to world vegetation. Unwin Hyman Ltda. 1988.
Coutinho, L. M. “Ecological effects of fire in brazilian Cerrado”. In: Huntley, B. J. e Walker, B. H. (Eds.).Ecology of
Tropical Savannas. Berlin: Springer-Verlag, 1982, p. 273-292.
Coutinho, L. M. “O conceito de Cerrado”. Revta. Brasil. Bot. n.1, p. 17-23. 1978.
Coutinho, L. M. “O conceito de bioma”. Acta bot. bras. n.20, v.1, p. 13-23. 2006.
Drude, O. Handbuch der pflanzengeographie. Stuttgart: Engelhorn, 1890. 582p.
Eiten, G. “Vegetation forms ”. Boletim, 4. São Paulo: Instituto de Botânica, v.4, 1968. 88p.
Eiten, G. “The cerrado vegetation of Brazil ”. The Botanical Review. n.38, v.2, p. 201-340. 1972.
38
Eiten, G. “Delimitação do conceito de cerrado”. Arquivos do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. v.21, p.125-134, 1977.
Mistry, J. World savannas. Ecology and human use. Longman (Pearson Education). Harlow. 2000.
Oliveira, P. S.; Marquis, R. J. (Eds.). The Cerrado of Brazil: ecology and natural history of a Neotropical
Savanna. New York: Columbia University Press. 2002.
Ribeiro, J. F.; Walter, B. M. T. “Fitofisionomias do Bioma Cerrado”. In: Sano, S. M.; Almeida, S. P. e Ribeiro, J. F.
(Eds.). Cerrado: ecologia e flora.
Rizzini, C. T. Tratado de fitogeografia do Brasil: aspectos ecológicos, sociológicos e florísticos. 2 a Edição. Rio de
Janeiro: Âmbito Cultural Edições Ltda. 1997. 747 p.
Walter, B. M. T. Fitofisionomias do bioma Cerrado: síntese terminológica e relações florísticas. Tese de Doutorado.
Universidade de Brasília. 2006. 389p.
Walter, B. M. T.; Carvalho, A. M. e Ribeiro, J. F. “O conceito de savana e de seu componente Cerrado”. In: Sano, S.
M.; Almeida, S. P. e Ribeiro, J. F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Planaltina: Embrapa Cerrados. 2008, p. 19-45.
Whittaker, R. H. Communities and ecosystems. New York: Macmillan Publishing Co, 1975. 385p. Planaltina: Embrapa
Cerrados. 2008, p. 151-212.
39
Artigo
Os cerrados e o fogo
Por Vânia R. Pivello
Assim como em todas as savanas tropicais, o fogo tem sido um importante fator
ambiental nos cerrados brasileiros desde há muitos milênios e tem, portanto, atuado na
evolução dos seres vivos desses ecossistemas, selecionando plantas e animais com
características que os protejam das rápidas queimadas que lá ocorrem. Nas plantas,
uma dessas características que talvez mais nos chame a atenção é a cortiça grossa das
árvores e arbustos (lenhosas), que age como isolante térmico durante a passagem do
fogo. Entretanto, um observador mais atento irá notar diversas outras respostas da
vegetação ao fogo, como a floração intensa do estrato herbáceo e a rápida rebrota das
plantas, dias após a queima, a abertura sincronizada de frutos e intensa dispersão de
suas sementes, a germinação das sementes de espécies que são estimuladas pelo fogo.
Ainda, o fogo promove todo um processo de reciclagem da matéria orgânica que, ao ser
queimada, transforma-se em cinzas, que se depositam sobre o solo e, com as chuvas,
têm seus elementos químicos solubilizados e disponibilizados como nutrientes às raízes
das plantas.
Mas por que as savanas – e dentre elas, também os cerrados – pegam fogo?
40
nessa época de escassez.
As informações disponíveis revelam que o uso do fogo era muito difundido entre todos
os grupos indígenas que habitavam os cerrados. Por meio do fogo, eles manipulavam o
ambiente e se beneficiavam de diversas maneiras: estimulavam a floração e a
frutificação de plantas que lhes eram úteis, atraíam e caçavam animais que vinham
comer a rebrota do estrato herbáceo, espantavam animais indesejáveis – como cobras
–, livravam-se de algumas pestes (insetos, ácaros), “limpavam” áreas para instalar
suas vilas e seus cultivos, além de se utilizarem do fogo para sinalização e em rituais
religiosos.
Contudo, o mau uso do fogo não anula os benefícios que seu bom uso possa trazer. Nas
savanas, o fogo é um instrumento de manejo precioso, que pode levar a uma grande
gama de resultados ecológicos, em médio prazo. Lidando com os elementos que
compõem o regime de uma queimada – frequência, intensidade e época da queima – se
pode aumentar ou diminuir a produção de folhas e frutos, estimular ou excluir
determinadas espécies de plantas e animais, aumentar ou diminuir os nutrientes
disponíveis às plantas no solo, ralear ou adensar a vegetação arbórea. Assim, o uso
adequado e planejado do fogo pode ser uma estratégia de manejo boa e barata para a
manutenção de pastagens naturais e também de parques nacionais e reservas
41
biológicas que se destinam à proteção dos ecossistemas do Cerrado.
Leia mais:
Pivello, V.R. 2006. “Fire management for biological conservation in the Brazilian Cerrado”. In: Mistry, J. & Berardi, A.
(eds.) Savanas and d ry forests - linking p eople with nature. Ashgate, Hants. pp. 129-154.
42
Artigo
Os estudos sobre a indústria lítica que compõe esse grande horizonte cultural que se
forma nos cerrados, quando comparados com outros sobre as indústrias líticas do
continente, situadas mais a oeste e mais recuadas temporalmente, parecem
demonstrar que alguns traços tecnológicos são mantidos, porém aperfeiçoados de
forma sui generis , originando uma indústria também bastante singular e
assustadoramente homogênea. Processo quase que similar ocorre com relação à
economia de subsistência.
De onde vieram esses povoadores iniciais é um problema para o qual ainda não se tem
muita clareza, mas algumas áreas do oeste merecem mais atenção que outras, porque
podem ter funcionado como centros dispersores. O estudo comparativo de variáveis
bem definidas inevitavelmente conduzirá a algumas respostas.
Nesse sentido, o horizonte cultural que se formou nas savanas e formações xerófilas,
43
na área andina, representado principalmente pelas áreas nucleares de El Abra e
Ayacucho, cujas explorações das formações abertas já apontam elementos muito
significativos, devem converter-se num ponto de investigação inicial.
Entre 12.000 e 11.000 anos A. P., dois sistemas ocupacionais bem definidos já estão
definitivamente implantados no interior do continente. Trata-se da área nuclear do vale
do Guaporé, nas quebradas do planalto brasileiro, cuja cobertura vegetal é
caracterizada pelos cerrados, e a região das coxilhas gaúchas, cujas ocupações se
relacionam com as ocupações das estepes patagônicas, formando com esta um
horizonte cultural descontínuo.
1) se a época das ocupações dessas áreas for realmente anterior à ocupação das áreas
dos cerrados dos chapadões centrais do Brasil, é possível que as populações que
alcançaram São Raimundo Nonato e Lagoa Santa não migraram pelo cerrados dos
chapadões centrais, pois seus vestígios não foram encontrados nessa região, ou, se
migraram, os vestígios estão mascarados com a indústria que constitui a tradição
Itaparica. Quanto à primeira hipótese, apesar da amostragem ser significativa, os
espaços não foram esgotados e as escavações não avançaram em profundidade
suficiente, portanto ainda não se tem elementos definitivos para confirmá-la, embora a
maior parte dos dados direcionem neste sentido. Quanto à segunda hipótese, a análise
minuciosa e comparativa do material proveniente de pelo menos três áreas nucleares
da tradição Itaparica: Serranópolis e Caiapônia, em Goiás, e Gerais, na Bahia, não a
confirma;
2) se a antiguidade das ocupações de São Raimundo Nonato e Lagoa Santa for anterior
às ocupações dos cerrados, e se a migração não se deu por esse ambiente, é possível
que as populações atingiram essas áreas por via das caatingas, migrando ao longo das
depressões do rio Amazonas pelas duas margens, assentando-se de forma mais
duradoura em São Raimundo Nonato e posteriormente em Lagoa Santa , cuja migração
efetuou-se pelas caatingas da depressão Sanfranciscana. A inexistência de vestígios
entre São Raimundo Nonato e Lagoa Santa, situados nessa faixa cronológica, bem
como a inexistência dos mesmos vestígios na depressão amazônica e a falta de
cronologias mais antigas no oeste do continente não corroboram essa afirmação.
44
quase a totalidade de Goiás, grande parte do Tocantins, oeste da Bahia e grande parte
de Minas Gerais, a ocupação efetiva do interior do continente sulamericano, inicia-se
com a implantação do Horizonte Cultural dos Cerrados a partir de 11.000 anos A. P..
Esse horizonte é caracterizado por uma indústria lítica muito homogênea, que constitui
a tradição Itaparica, intimamente ligada às formas de exploração dos cerrados, com
mecanismos adaptativos responsáveis por um sistema econômico, que perdura por dois
mil anos quase sem alteração, a não ser aquela decorrente da migração.
II
Há 10.000 anos, essa tradição está implantada sobre mais de 2.000 km de extensão. É
quase certo que ela cobriu a área dos cerrados dos chapadões centrais do Brasil e suas
extensões. Pelos processos a que estão associadas, sua implantação na área reveste-se
num marco referencial de fundamental importância para compreender os processos
culturais que caracterizam o alvorecer do povoamento humano nas áreas centrais da
América do Sul.
Por volta de 9.000 anos A. P., ou um pouco mais tarde, essa cultura perde suas
características básicas, representadas pela adoção de artefatos bem trabalhados e se
transforma em indústria de lascas, com poucos retoques, assinalando uma nova
tendência à especialização.
Clima - Com relação ao clima, tanto em relação aos limites atuais como aos limites
antigos, a área do Sistema Biogeográfico dos Cerrados se caracteriza pela falta de
excessos e por um ciclo climático, e em consequência, também biológico, bastante
homogêneo, fato que permite às populações humanas de economia simples a adoção
de um planejamento também homogêneo.
Geomorfologia - Tanto nas áreas atuais como na periferia dos seus limites antigos, há
grande ocorrência de abrigos naturais, elemento fundamental para esses grupos
humanos em determinada época do ano.
45
Recursos vegetais - O Sistema Biogeográfico dos Cerrados fornece fibras, lenhas,
folhas ásperas que são utilizadas para acertar superfícies, palhas de palmeiras para
cobertura de abrigos etc. Mas o importante a ressaltar nesse item é que, de todos os
sistemas biogeográficos da América do Sul, esse é o que fornece maior variedade de
frutos comestíveis. E embora a maturação da maior parte esteja relacionada à época da
estação chuvosa, a grande variedade possibilita a distribuição regular de muitas
espécies durante todo o ano.
Recursos animais - Com relação aos recursos animais, resolveu-se buscar algumas
respostas correlacionando os mapas com a vegetação dos cerrados e os contornos das
províncias zoogeográficas da América do Sul estabelecidas por Cabrera e Yepes e Melo
Leitão. Desse estudo, constatou-se estreita relação entre uma fauna bastante peculiar
que caracteriza essas províncias zoogeográficas, com as áreas de vegetação aberta,
cerrado, caatinga e áreas de transição. Também se constatou, e isso é um dado
importante, que, embora essa fauna peculiar transite nesses ambientes, é na área de
vegetação dos cerrados, que se dá sua maior concentração. Os elementos para explicar
esse fato são a ocorrência do estrato gramíneo, flores e frutos e a diversidade de
ambientes que caracterizam o Sistema dos Cerrados, permitindo o estabelecimento de
uma complexa cadeia biológica.
Processos de adaptação - O fato de existir uma fauna que elege os cerrados como
ambiente prioritário, associado à grande variedade de frutos, ocorrência de abrigos
naturais e clima sem excessos, exerceu papel importante na fixação de populações
humanas, bem como no desenvolvimento de processos culturais específicos.
III
46
quente do altitermal para um período mais seco e ameno fosse a ocasião de
povoamento. O fato é que no centro do Brasil, ainda se desconhece por completo todo
o processo, e depois dos antigos caçadores, se encontram de repente, já formados, os
grupos horticultores ceramistas num tempo em que o ambiente supostamente já era o
atual. O mais antigo, até agora detectado, é o da fase Pindorama, supostamente
horticultor, que já tem cerâmica ao menos desde 500 anos a. C.. Depois, aparece a
tradição Aratu/Sapucaí, a Una, a Uru e a Tupiguarani.
A tradição Tupiguarani parece a mais recente das populações aldeãs. Tendo um certo
domínio sobre o vale do Paranaíba, a partir dele acompanha os afluentes, indo acampar
nos abrigos anteriormente habitados pela tradição Uru. Também tem aldeias dispersas
na bacia do Alto Araguaia, mas aparentemente sem muita autonomia, convivendo às
vezes na mesma aldeia com grupos horticultores de outras tradições. O Tupiguarani da
bacia do Tocantins tem as aldeias ainda mais dispersas e recentes, como se realmente
fossem, tal qual se imagina, populações vindas já no período colonial, e que por isso,
enfrentariam não apenas os demais índios aldeões já instalados, mas também os
colonizadores brancos que os teriam trazido.
47
antigas para a cerâmica. Talvez seja uma forma de cultura anterior ao desenvolvimento
dos aldeões e, quem sabe, a origem deles.
Referências bibliográficas
BARBOSA, Altair Sales, “A ocupação humana no Cerrado” . In O universo do Cerrado . Vol 1, Goiânia (GO): Ed.
Universidade Católica de Goiás, 2008..
MELO LEITÃO, C.de. Zoogeografia do Brasil . 2. ed. São Paulo: Nacional, 1947. (Col. Brasiliana)
CABRERA, A. & YEPES, J. Mamíferos sul americanos . 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 1960. 2. v.
MEGGERS, B. J. “Aplicación del modelo biologico de diversificación e las distribuiciones culturales en las tierras
tropicales bajas de Sudamérica”. In Amazonia Peruana . Lima, 1976. v. 4, n. 8.
SCHMITZ, I. Caçadores e coletores da pré-história do Brasil . São Leopoldo (RS): Inst. Anchietano de
Pesquisas, 1984.
48
Resenhas
Sol na moleira
Obra que compila dados e discussões sobre o Cerrado deve contribuir
para implantar modelos de desenvolvimento sustentável
Com o perdão pela piada fácil, Cerrado: ecologia e flora é um livro árido. Não que seja
pobre, pois isso o Cerrado brasileiro também não é, mas não é de fácil travessia. Em
dois volumes, diversos pesquisadores de relevância e com experiência no estudo do
bioma, dividem-se na análise do clima, recursos hídricos, solos, frutas, biologia de
plantas, entre outros. No primeiro volume estão os textos, em 14 capítulos; no
segundo, uma grande lista com mais de 12 mil espécies da flora do Cerrado. Segundo
declarou um dos organizadores à Agência Fapesp, José Felipe Ribeiro, pesquisador da
Embrapa Cerrados, entre os objetivos da obra está contribuir com a implantação de
modelos de desenvolvimento sustentável.
Um dos maiores problemas ambientais para o bioma tem sido a expansão da fronteira
agrícola brasileira, em especial derivada do cultivo de soja pelo agronegócio. Nesse
sentido, o mesmo capítulo 13 cita estudo que aponta que os grandes fragmentos
possuem 25% mais espécies arbóreas do que os fragmentos pequenos e médios.
“Fragmentos pequenos nem sempre asseguram a existência de espécies raras ou de
distribuição agrupada”. De acordo com os autores, as espécies que sobrevivem em
pequenos fragmentos são aquelas que possuem pequenas áreas de vida. No Cerrado,
as áreas agriculturáveis são as mais devastadas e, por consequência, as espécies que
vivem nessas regiões são as mais prejudicadas. Os animais, assim como as plantas,
reagem de forma diferente à diminuição e alteração dos habitats. Algumas espécies,
como o lobo-guará, têm sua população aumentada; já o cateto e o tatu-canastra foram
negativamente afetados.
Além das recomendações para políticas públicas, Cerrado: ecologia e flora é uma obra
que tem uma grande preocupação em conceituar. Para o estudante interessado no
bioma, o livro tem especial valor, pois vários capítulos trazem históricos e revisões
bibliográficas para vários conceitos. O primeiro capítulo, por exemplo, trata da
controversa definição de savana e da ainda mais controversa pergunta: “o Cerrado é
uma savana?”. A polêmica residiria no fato de que há no Cerrado regiões específicas
como o Cerradão – floresta com árvores que podem chegar a 15 metros – ou o Campo
Limpo – campo puro, sem árvores – que não se encaixam na definição de savana. No
entanto, a resposta dos autores é positiva, o Cerrado seria sim uma savana, pois essa é
49
sua caracterização principal.
A ausência, porém, não diminui o valor da obra. Como dito, sua travessia não é fácil, os
estudiosos que já conhecem os caminhos a aproveitam muito mais. Mas é bastante
enriquecedora, além de ser uma excelente base a quem se aventurar a fazer divulgação
científica sobre o bioma.
50
Entrevistas
51
acontecia. Fiz vários experimentos: queimando em épocas diferentes, fazendo fogo a
favor, fogo contra e levantando quais as espécies que floresciam depois da queima.
Descobri que tinha espécie que florescia uma semana depois da queima! Outras
demoravam 25 dias. Resolvi estudar se o fogo era essencial... Observava lá no campo
que aquela espécie florescia não somente na área queimada, mas no aceiro também,
onde a vegetação era carpida, mas somente superficialmente. As plantas permaneciam
ali e brotavam depois. Então, botando fogo, ela florescia, mas não era um efeito tudo-
ou-nada.
52
ele se mudou para o parque, onde por sorte tinham construído um alojamento. Uma
vez que ele estava lá, quando aparecia uma fumacinha no horizonte, corria para ver. E,
pela primeira vez, pôde documentar a ocorrência de queimadas naturais no Brasil. Na
África do Sul, isso estava superdocumentado. Mas aqui não tinha nada, porque
ninguém tinha se dado ao trabalho de verificar, ninguém acreditava nisso no Ibama, no
IBGE. E queimada natural só se pode encontrar em áreas onde o Cerrado está
preservado; em outras áreas, o homem queima antes de um raio cair.
53
Poema
Clichês
Por Carlos Vogt
A propósito do amor
dois pontos:
inscritas na prosa
da sintaxe:
54