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MOACIR GADOTTI eee) ae ii iee ler CO] Te RTOS E) do Conflito €Z €DITORA A UNIVERSIDADE BRASILEIRA: FUNCOE ESTRUTURA DE PODER, PERSPECTIVAS ———— Como postura inicial quero me declarar fiel & tradicao filos6fica, assumindo diante do tema proposto *, uma ‘exe geral. Parto da tese de que toda universidade € essencialmente politica (ndo necessariamente politizada), isto é, toda universidade defende certos interesses, que numa sociedade de classes sfio os interesses da classe economicamente dominante, Em outras palavras: toda uni- versidade &, no plano ideolégico, o reflexo da politica e da economia de uma sociedade dada. Essa tese me parece por demais clara para que possa ser con- testada. © que oferece alguma dificuldade € a anidlise da possibili- dade da universidade converter-se ou ndo num instrumento de mu- danga social. Se ela pode constituir-se em contra-ideologia. Onde estaria essa possibilidade? Se a tese anunciada for entendida me- canicamente, nao poderiamos ver possibilidade alguma. Para com- preendé-la d'aleticamente, anuncia uma anvi-tese: cntre a servidio da universidade & ordem classista e a rebelifio contra essa ordem, abre-se na universidade um espaco de luta, de conflito entre essas tendéncias. Haver sempre uma tendéncia dominante que acompa- nha a evolugéo da sociedade: 0 conflito na universidade reflete o conflito existente na sociedade. Esse conflito sera tanto mais agudo quanto mais agudo e intenso for o processo de mudanga social. Para explicar melhor essa tese geral ¢ sua anti-tese vou enfo ca-las sob dois pontos de vista, situando-os sempre dentro do con- texto brasileiro. Em primeiro lugar tratarei do ponto de vista das fungdes da universidade e, em seguida, da sua estrutura de poder. 1, Fungio Real e Funcio Aparente da Universidade Distingo na universidade uma fungio real e uma fungio apa- rente. A funcdo aparente € a que consta nos Estatutos da univer- sidade, onde, freqiientemente & feita a panacéia de seus objetivos e fins declaradamente humanisticos, democriticos, com realce para a (*) Notas de uma conferéncia promovida pela Associagiio de Do tes da Pontificia Universidade Catdlica de Campinas em outubro de 1979, sobre o tema: “A estrutura de poder na universidade 112 autonomia ¢ a liberdade. Se nos atermos a essa declaragao de prin- cipios, poderiamos concluir que a universidade, dentro da sociedade, ocupa um lugar privilegiado, onde nao ha conflitos, enfim, um odsis de neutralidade ¢ de pureza. Mas é preciso “ir ver” nos atos, como ela traduz essa pureza de intengdes. A discriminagdo comeca as Portas da universidade. © exame vestibular é uma classificagiio se- gundo a posigéo social e econédmica. Dados de uma pesquisa re- cente dio conta de que existe uma estreita relagio entre a renda dos pais ¢ a classificacdo dos filhos no vestibular. Ha um erro apenas de 2%. Depois de filtrado socialmente, o aluno ingressa submeten- do-se a toda sorte de mecanismos de selecdo € discriminagio que sao os curriculos e programas, os exames, as notas... armas de que dispde o professor, também ele preso na engrenagem da méquina (no aparelho de reprodugdo social que é a escola) para operar a discriminacao. Esta seria a fungo real da Universidade: operar a discriminacao, continuando o que é feito no primeiro e no segundo grau. Por que? Porque a universidade ndo tem autonomia para ditar os seus fins e cb‘etivos. Fazendo parte de um subsistema do sistema social e politico ela é (conforme o caso), mais ou menos submissa, mais ou menos obediente ao sistema politico. E qual seria a fisionomia, o rosto, do nosso sistema social e politico, daquilo que nés chamamos de “realidade brasileira’? Nossa realidade € marcada historicamente (nfo apenas depois de 1964), por protundas disparidades, diferentes. contradigdes de toda ordem: politicas (a divisio entre a Nagdo e o Estado por exem- plo), econémicas (abundancia e riquezas nacionais em face da miséria de milhdes de brasileiros), sociais, culturais, regionais, etc. O que faz 0 socidlogo francés Roger Bastide definir o Brasil como “um pais de contrastes”. Mais do que de contrastes, o Brasil é um pais de contradigées. Hoje mais do que nunca, esta contradigdo se evi- dencia por uma série de fatos que estéo criando sucessivos conflitos notadamente entre a sociedade civil e o Estado. Exemplo disso so as greves e o inconformismo manifestado, notadamente, pelo voto de IS de novembro de 1978. O povo, que dew maioria a Oposigdo, manifestou seu descontentamento diante de uma politic: social e econémica geradora da miséria. No fundo, esta é a con- tradi¢do geral do proprio sistema econdmico capitalista que gera a divisio da sociedade cm classes, nZo apenas diferentes, mas anta- gonicas, isto é, defendendo interesses opostos: a classe dos trabalha- dores, que produzem riquezas sem se beneficiar delas e a classe da- queles que possuindo os meios, o dinheiro, o capital, fazem multi- plicar esse capital pelo trabalho dos outros. A nossa realidade & marcada por este ponto: é uma realidade social e politica dividida. Esta diviséo esta estampada no rosto de cada brasileiro. Nao é 113 preciso ir fonge para reconhecé-la. Basta ir as ruas. O trago mar- cante da nossa realidade é a divisdo entre ricos e pobres, entre tra- balhadores (que sao a imensa maioria) e a minoria dominante e desfrutando da riqueza. A divisdo segue-se a reprodugdo ¢ a cons- Piragao. Divisdo, notadamente entre trabalho manual e trabalho in- telectual; reproducdo, tendendo A continuidade da injustiga gerada pela divisio social do trabalho; e conspiragdo, isto 6, uma sociedade onde a classe dominante esta constantemente armada para defender seus privilégios. Uma das armas dessa sociedade é a escola, a uni- versidade. Ela funciona como apaielho, como arma da sociedade de classes. Feita essa sucinta andlise do que ¢ a nossa realidade, voltemos & pergunta inicial: qual é a fungéo real da universidade? Se acei- tarmes as premissas enunciadas acima. temos, obviamente que admitir que a universidade tenderd, como subsistema do sistema politico, a executar a tarefa de dividir, reproduzir e conspirar. Seu cardter divisionista encontra-se na tegitimagao da ordem classista, retorgando os habitos e valores (por isso que podemos chami-la de “apa- relho ideolégico™) da classe dominante, economicamente dominante. Exemplo do seu cardter de reprodugdo & a relagdo existente entre 2 origem social c¢ os resultados obtidos na escola. Ainda, a escola apaziguando os conflitos sociais estaria justamente conspirando contra as classes emergentes, portadoras de outro projeto social e politico que se opde ao projeto social e politico dominante. A relagdo entre universidade ¢ sociedadle, entre escola ¢ socieda- de, porém, nao ¢ mecanica, Sua funcio real, como foi descrita acima. esta permeada de ambigitidades: ela também faz parte da sociedade € como tal, no sew seio também se revelam as mesmas contradicdes existentes na sociedade (em menor proporsio na universidade. pois nela ja se operou uma “depuracdc™ social ¢ nela, portanto, ha maior homogeneidade do que na sociedade). Apenas para introduzir um debate, gostaria de enunciar algumas dessas contradiges ~~ a necessidade de reproduzir uma cultura e criar uma outra; a contradigdo entre as necessidades dos alunos e as necessi- dades impostas pela instituigio através de seus agentes (os professo- tes): a dicotomia entre © trabalho intelectual e 0 trabalho: ma- nual; -— a divisdo entre as diversas Tileiras, ciclos, opcdes, estudos indidatos ocupam as vagas segundo a renda (os a contradigio entre a ideologia imposta e a idcologia das classes gue ingressum na_instituigdo: tl4 -— a contradi¢io entre a teoria e a pratica, entre a cultura bur- guesa e a cultura popular... em suma, a universidade reproduz as contradigées da sociedade. O antagonismo das classes sociais se apresenta também dentro da universidade, acompanhando a evolugio do antagonismo das classes na sociedade. Em outras palavras uma sociedade conservadora nao poderd ter uma universidade revolucio- néria e vice-versa. A universidade ndo é um lugar alheio a luta de classes. Nao & um lugar neutro, celestial, angelical, onde nao ha conflitos. Concretamente, escondendo-se atré s da ideologia da cién- cia e da técnica, a universidade tenta minimizat os conflitos. Mas, apesar disso, eles continuam e se manifestam, por vezes, com violén- cia. A universidade como um universo preservado, uma ilha de pureza, é uma ilusdo. E isso, contudo, que a classe dominante nos quer fazer crer para poder utilizar a escola, a universidade a seu favor. A universidade faz parte do mundo, da sociedade, mesmo que queiram cada vez mais afasta-la, isold-la, nos seus “campi”... A universidade fora da sociedade nao existe. E por isso que existe uma unidade entre as lutas pedagdgicas e as lutas sociais, 2. Estrutura de Poder na Universidade Brasileira A centralizacio do poder na universidade brasileira hoje é 0 resultado de uma politica educacional tragada nos primeiros meses que se sucederam ao golpe de 1964. Com efeito, foi em junho de 1964 que Castelo Branco indicou a diregdo que iria tomar a educacgio brasileira sob 0 regime militar. “O objetivo do meu governo, de- clarou ele, é restabelecer a ordem e a tranquilidade entre estudantes, operdrios e militares”. Naquele mesmo ano foi proibida a Unido Nacional dos Estudantes (Lei Suplicy de Lacerda). No ano se- guinte, o governo militar importou técnicos estrangeiros que forma- ram uma comissdéo para elaborar as recomendagées basicas da poli- tica educacional do governo em todos os graus de ensino. Essa comisséo era composta inicialmente por cinco especialistas norte- americanos, aos quais se juntou mais tarde dois brasileiros. Ao cardter autoritdrio dessa politica educacional, manifesto desde as primeiras medidas tomadas, juntava-se um outro ingrediente indis- pensavel: 0 colonialismo. As recomendagées dessa comissio nao foram divulgadas. O que se sabe é que o grupo que elaborou a Lei 5.540 (Reforma do Ensino Superior), refletia, no essencial, as tecomendagdes daquela comissio. A Reforma universitaria brasi- leira calcava-se no modelo norte-americano. O regime, sendo coerente consigo mesmo, impés a Reforma sem discussdes e debates. A Reforma foi votada em 60 dias. 115 Nao conseguindo o regime militar alcancar imediatamente o seu objetivo de “restabelecer a ordem e a tranquilidade entre os estudantes” através de uma nova politica educacional, teve que apelar para medidas repressivas como foi 0 caso do Decreto-Lei 477, que proibia qualquer participagao politica dos estudantes. O “jubila- mento” foi outra medida disciplinar que se compunha com o Decreto-Lei 477. Nas palavras do Ministro da EducagZo Ney Braga, © “jubilamento consiste num vestibular interno” pelo qual a Univer- sidade autoritéria! cumpre seu papel discriminatério, excluindo os estudantes “indesejaveis”. Se nem sempre esses instrumentos puni- tivos, militaristas, inseridos na Universidade, foram aplicados, é por- que o seu efeito psicolégico de intimidagéo e de pressdo foi sufi- ciente. Essas medidas, de carater eminentemente autoritério poderiam ser classificadas como medidas de ordem juridico-repressiva. Existe uma outra ordem de medidas que sao juridico-ideolégicas. No pri- meiro caso, é 0 Estado que, como aparelho repressivo, age direta- mente, ostensivamente, na educacéo. No segundo caso, o Estado utiliza-se da escola como intermedidrio, isto é, como aparelho ideo- légico. E nessa segunda ordem de medidas esta, por exemplo, 0 Decreto-Lei 869 de 1969 que introduz a Educagio Moral e Civica nos trés niveis de ensino. Como diz o texto da lei no seu artigo segundo, 0 seu objetivo é “a preservagdo do espirito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor 4 liberdade com responsa- bilidade, sob inspiragéo de Deus”. Ressalta ainda a necessidade de preservar a familia, preparar o cidadao, pelo “culto da obediéncia a lei”. Esse Decreto-lei e sua aplicacdo que deu origem a esquemas burocraticos de doutrinag&o em muitas escolas, serviria, ele sozinho, para demonstrar 0 cardter ideolégico do sistema escolar. Mas a orientagéo de todos os programas, os curriculos minimos dos cursos, os textos escolares também nao foram esquecidos, Nessa segunda ordem de medidas incluo ainda a institucionatizagio do Mobral, com © objetivo de cooptar e conter o operdrio, inculcando-lhe os valores do capitalismo autoritério, Da mesma forma incluo a Reforma do Ensino de 1.° e 2.° grau e o Ensino Supletivo, inserindo-as no mesmo contexto da politica educacional do regime que poderia ser classifi- cada de autoritéria e colonialista, submissa aos interesses ideoldgicos e econdmicos da burguesia nacional e estrangeira que est no poder. Toda a legislagdo, 0 aparato juridico-repressivo e juridico-ideoldgico, inspira-se nesses interesses. 1. Acrescente-se, porém, que a tradigao autoritaria ¢ clitista da universi- dade brasileira nZo foi inaugurada pelo regime militar, A universidade sem pre foi, entre nés, elitista ¢ autoritéria desde suas origens. 116 E nesse contexto que sitou a estrutura de poder na universidade. Nesta, o regime militar e o sistema capitalista foram mais coerentes € obtiveram ainda melhores resultados. A burocaria universitdria, censtituida em sua maioria por uma pequena burguesia em ascensio, submeteu-se muito mais facilmente do que os estudantes e os ope- rérios. Em alguns casos acovardou-se simplesmente. Nao ofereceu resisténcia. Ao contrario. A universidade pouco fez para se posi- cionar diante dessas medidas e assumir a sua autonomia {isto é, conquista do espaco critico). A maioria das instituicées de ensino superior do pais incorporou nos seus estatutos ou regimentos inter- nos o maior afronto a sua autonomia, coibindo qualquer participagio estudantil na vida politica brasileira. Seguindo 0 modelo do Estado autoritario, a universidade concentrou o seu poder no Executivo e enfraqueceu o Legislativo. As Reitorias se fortaleceram, os Conselhos Diretores ou Universitarios perderam sua forca, que j4 era reduzida. Algumas universidades coibiram a representacdo do corpo docente e discente e, em alguns casos, os Reitores chegaram a nomear esses representantes que serviam de meros agentes de seguranca do Exe- cutivo. Tem mais. Instituiu-se na Universidade uma coisa estranha totalmente a sua tradi¢do: as chamadas “Assessorias de Seguranca Interna (ASI) que passaram a exigir dos docentes um atestado de ideologia. H4 casos em que o chefe desse Servigo tornou-se reitor! O maior mal da universidade brasileira hoje € justamente essa tradigao de serviddo ao sistema que criou nesses Ultimos anos e que a faz menor de idade, contrastando com qualquer prinefpio de res- peito & independéncia intelectual, fundamental para que ela contri- bua para o progresso cientifico e cultural do pais. Esses fatos demonstram que houve uma certa militarizagdo da Universidade. Essa militarizagio foi mais aguda num certo mo- mento e hoje é 0 proprio regime que, preocupado em no acirrar as contradigées além do limite suportdvel, esté operando a desmilita- rizagio. Esse, porém, ndo € 0 problema central do poder na uni- versidade. O problema maior que vejo é que a Universidade esta servindo apenas aos interesses de uma minoria. As massas traba- Ihadoras, que pagam a universidade nao se beneficiam dela, porque essas nfo chegam a ter garantido nem o ensino fundamental. A universidade criada pelo regime militar é uma universidade fechada nela mesma, burocratizada, aplicando mal os seus recursos. Essa Universidade nao tem esperanga. Nao é criativa, ndo é critica, nado € produtiva. Nesse momento uma reforma da universidade seria insuficiente. Um “projeto esperanga” para a Universidade s6 tera lugar quando esta se integrar no quadro geral da educagdo e da sociedade no 17 Brasil. Isso s6 pode ocorrer quando os trabathadores a ela tiveram acesso de maneira plena. Isso supde uma mudanga no sistema so- cial e politico. Essas consideragdes me Jevam a outra antes de passar para outro item. Responsabilizar o regime militar pela injustiga social, da qual a injustiga estabelecida na universidade ¢ um reflexo, ¢ um erro de andlise. Responsdvel € o sistema capitalista, que gera a injustiga e a divisio da sociedade entre aqueles que acumulam as riquezas e aqueles que as constroem. Por isso nfo sera suficiente para que ocorra uma verdadeira mudanga, que os militares, pressionados pela crescente oposigdo ao regime, abandonem o poder e reassumam suas fungdes na sociedade, porque o sistema continuard: teremos um governo de patroes, de banqueiros, de empresdrios, etc., atrelados & burguesia internacional. FE provavel que, entio, teremos uma uni- versidade, porque nao seria eliminada a causa primeira do autorita- rismo que é a expl joragio capitalista do trabalho, sobre a qual todas as demais formas de violéncia se baseiam. A dominaciio de classe é © que gera o autoritarismo, 3. Existe Ainda uma Esperanca para essa Universidade? Embora esse quadro das fungées ¢ do poder na universidade seja um quadro melancélico, sugerindo que a solucdo estaria fora dela, alguns fatos novos dentro da universidade brasileira hoje pare- cem ser muito esperangosos. A universidade estd se armando hoje das armas que lhes sao proprias, acompanhando a evoluco das lutas sociais. As suas armas sido: a palavra, o debate, a critica, a competéncia. Os primeiros passos na direcio de uma outra universidade estiio sendo dados. Esses passos sao indicados hoje por uma luta pela auonomia universi- téria, embora ela seja sempre relativa, Tornar-se 0 lugar onde todas as correntes de pensamento e de acdo tenham acesso e audiéncia, parece ser um passo positivo. Nao se espere, porém, que ela possa avangar 4 frente da sociedade. Ela nao tem autonomia para isso. Além deste movimento de autonomia, que é muito ambiguo, alguma esperanca pode ser depositada ainda nas associacées de pro- fessores e de educadores. Na medida em que eles tomarem nas suas maos a educagdo no Brasil, abandonando a atitude colonialista e paternalista criada pelo regime autoritario, uma nova esperanga para a universidade parece possivel. Por outro lado, 0 discurso do poder insiste apenas numa tecla: a “qualidade do ensino”. Esse discurso é conservador ¢ reacio- 118 nério justamente porque tenta escamotear o problema da democrati- zagGo do ensino, justificando até o elitismo da universidade. Est4 escamoteando o problema da quantidade do ensino. Essa dicoto- mia entre qualidade e quantidade, nao fica apenas no discurso do poder. Ela aparece sempre na historia da nossa educagio como reag&o, toda vez que um movimento de democratizagao da educagao adquire forca. E bom o ensino que consegue despertar o aluno para prosseguir no seu aprendizado. Ora, é a consciéncia politica do aluno e do trabalhador (qualquer que seja o seu trabalho) que © incitaré a procurar aperfeigoar-se. Nesse sentido podemos afirmar que o problema tao repetido pelo poder referente 4 “queda de nivel” € um falso problema. Na verdade, a queda de nivel sé € verificada por um ingtrumento de avaliacéo que nao mede o rendimento do estudante, principalmente do estudante universitario, de um ponto de vista culturai, mais global. Se féssemos medir o grau de politi- zacao do estudante do inicio da década (periodo do “milagre”) com o estudante do final da década, poderiamos verificar um sen- sivel avanco. Esse posicionamento politico € um indicador (nao mensuravel por testes académicos) da melhoria da qualidade na cultura do estudante, sinal de que abriu seu horizonte cultural. Isso certamente nao se deve apenas a universidade. Mesmo assim, €& um fator a ser considerado quando todos concluem pela queda de nivel. Afinal, se queda de nivel houve realmente no “rendimento” técnico do estudante universitério, isso é fruto de uma politica edu- cacional de “despolitizacio” instaurada pelo regime militar, cuja ordem principal era ndo pensar. Porque insisto na primazia do politico sobre o cientifico e o técnico? Porque o inverso, isto é, a primazia do especialista sobre 0 folitico, tem ajudado a burguesia a manter o seu monopélio sobre a ciéncia e a técnica. Isso esté bem claro nos manuais técnico-cien- tificos utilizados em todos os graus da escolaridade. As questdes “para que serve”, “contra quem serve”, “porque”, etc. — que sao questées politicas — sao sistematicamente evitadas. Esses manuais esto formando gente para o colonizador. Ao discurso do poder & preciso opor um outro discurso. 2. Além do Brasil ser o pais da América Latina que tem a menor porcentagem do seu orgamento dedicado & educagéo (dados publicados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento em 1976), da-se ao luxo de ex- cluir da escola (para nao dizer “expulsar* o que seria mais correto), em termos globais, 65,6% das criangas com sete anos de idade (dados do Censo Demografico do Brasil de 1970). De 1000 alunos matriculados na 1.* série primaria em 1960, conseguiram alcangar a 1.4 série do ensino superior ape- nas 48 (MEC-Servico de Estatistica da Fducagio e Cultura, Estatisticas da Educagao Nacional ‘1960-1971, p. 12). 119 Se uma esperanca existe para que a universidade transite do velho para 0 novo, a estratégia deve ser esta: acolher os anseios da populacdo, os interesses da populagio excluida dos beneficios da industrializagao, do trabalho, do capital acumulado. A universidade precisa pensar constantemente nessa diregéo. E assim que ela se educa. Estudantes, professores, ultrapassando os muros para aprenderem junto 4 populacdo, ndo por curiosidade intelectual, mas porque aprendem ensinando. Como diz Darci Ribeiro, “orientar © jovem universitario para a convivéncia com os deserdados de sua propria geragéo é, também, uma forma de recuperd-lo para o pais real, de ganha-lo para uma vivéncia mais solidaria através da imersdo nas condigGes de existéncia do conjunto da populagao a que se pro- poe servir”.* Esta universidade estaria fazendo educagao popular. Nao se deve confundir “educagao popular” com a alfabetizago de adultos ou Mobral. Até certo ponto uma educagao popular po- deria ser feita em todos os niveis de ensino e fora dele. Pode-se pensar até em dispensar a alfabetizacio como tarefa prioritéria da educagdo popular quando existem outras prioridades ainda maiores do que a alfabetizaciio. como, por exemplo, 0 conhecimento das co digdes de existéncia do analfabeto, sua organizacao, sua participacio em movimentos e futas pelos seus direitos. A alfabetizagdo viria como conseqiiéncia, como desdobramento dessas necessidades aten- didas. O que a universidade nao pode continuar fazendo € o que Darci Ribeiro denuncia na “Universidade Necessdria’: formar agrénomos e velerinarios para servirem aos interessse dos proprietarios de terras; médicos e dentistas para garantirem a satide da classe dominante; economistas e administradores para cuidarem dos interesses privados; educadores para policiarem a ideologia na escola e hierarquizarem as forgas de trabalho; engenheiros para enriquecerem as empresas es- trangeiras, etc. Como os cursos de Direito podem ignorar a situa- cao do menor, a grilagem, a violéncia policial? Como o estudante de Medicina pode ignorar a situagio da saide da maioria da popu- lagio? © estudante brasitcire precisa hoje reiventar a universidade. Nao pode esperar que a universidade burocrdtica o faca espontanea- mente. Diante do problema sério que constitui a alimentagao neste pais, 0 aluno de Biologia, por exemplo, poderia estudar como melho- rar a producio agricola, como conservar melhor os alimentos. Em vez de estudar coisas como a multiplicagéo das asas azuis da bor- 3. A universidade necessdria, Rio, Paz e Terra, 1978, p. 265. 120 boleta, poderia fazer cursos mais voltados para a solugio de proble- mas imediatos da populagio. Uma mudanga nos contetidos dos cursos € necessaria. Para isso o estudante universitério deve exigir maior flexibilidade nas disciplinas. Pois a universidade burocratica tornou-se inflexivel em seus programas, seus planejamentos, seus computadores, sua organizagdo académica e departamental. Hoje ela est4 em crise justamente porque valorizou o transitério (a estru- tura) em detrimento do permanente (a cultura). Para isso é necessério que o estudante universitario se conscien- tize de que a universidade é dele, de que af nao é apenas o lugar onde ele passa algumas horas por dia durante alguns anos. £ o lugar que, sem ele, nao tem sentido, Tudo aqui deve ser feito por ele e com ele, Conscientizar-se de que uma nova universidade nao sera de tal ou tal reitor ou de um grupo de tecnocratas. Deve ser a comunidade de professores e alunos, de trabalhadores da educagio (& preciso pensar igualmente como tornar o estudante mais produ- tivo), Todos (inclusive os funciondrios) devem sentir-se responsd- veis pela direcdo da universidade. O projeto de uma nova univer- sidade, que sirva aos estudantes e a populagio como um todo e nao apenas & burguesia, deve partir deles e envolver a todos, professores e funciondrios. Quando isso ocorrer, a universidade deixard de ser esse lugar piegas, esse lugar de “defuntos vivos™ para se tornar em algo vivo e vivido, cheio de esperanga e de vida, face & universidade morta e cheia de conformismos que € esta universidade que a classe dominante nos oferece. Sem alteracdes profundas sécio-econdmicas a proposta de uma educagdo popular no sentido aqui exposto néo poderd existir na universidade burguesa que ai esta. Mesmo assim, muita coisa pode ser feita dentro dessa universidade burguesa. Mesmo porque, a mudanga para uma outra (nova?) universidade nao se efetuaré sem essas pequenas mudangas que podem ocorrer hoje, desde que alunos e professores se unam forgando as burocracias ¢ a legislagio a ce- derem espago para a cultura. A relagio universidade-sociedade é dialética: a universidade cria cultura para uma sociedade, mas ela é também fruto, reflexo de certas condigdes culturais que permitem o seu surgimento. Essa telagio é particularmente evidente nos paises de tradic¢do autoritaria como 0 nosso. © autoritarismo cria o dogmatismo, o conformismo, a inércia cultural, o obscurantismo. A universidade responde tam- bém no mesmo tom: inércia cultural, autoritarismo, dogmatismo ¢ perde sua funcao bisica, isto é, 0 seu papel critico. Por outro lado, ao acender-se a critica na universidade, ela tera evidentes reflexos na sociedade. O fim da década de 70 assiste a esse novo alento. 121 A critica chega a universidade. E essa € uma esperanca para a universidade. Nesse caminho seré possivel um repensar dessa insti- tuigdo. Ela deve repensar-se, auto-afirmar-se por ela mesma, jd que a vigilancia e a repressdo do inicio da década, gue impedia esse repensar critico, se afrouxaram no final da década. Como alternativa vejo hoje esse caminho aberto para a con- quista de uma autonomia para a universidade, entendida como de- bate, como lugar de critica politica e de discussio. E ja houve épocas em que a universidade no Brasil era o palco de grandes debates dos problemas nacionais. Havia liberdade de expressdo e de catedra. Isso pode ocorrer efetivamente no momento em que houver um quadro politico e cultural de liberdade. Por outro lado, se a tendéncia de fazer do ensino superior um negécio, continuar, essa universidade sera dificil] de brotar, pois o debate e a critica nado sdo rentaveis e quando o sao alguma coisa est errada. A liberdade € condigdo essencial para que a universidade possa desempenhar seu papel social de elaborar a cultura e o conhecimento cientifico tecnoldgico ao mesmo tempo em que é a consciéncia critica da iedade, porque essa atividade sé pode existir sem medo. A universidade nao pode viver sob ameacas. E tem sido sob ameagas que ela conviveu com o regime militar autoritario As armas dessa nova Universidade, sfo, portanto, a autonomia e a participacio. Sao as armas que poderio transformé-la de ctimplice da ordem classista num lugar habitavel por todos e para todos. Resta portanto uma esperanca para a universidade que vem essencialmente da luta de seus trabalhadores: professores e alunos. Para que a universidade que sonhamos seja possivel sera necessario que continuas conguistas se efetuam. Nao esperar a mudanga, mas caminhar em diregéo dela, Uma mudanga qualitativa sé sera pos- sivel mediante esforcos quantitativos constantes no sentido da orga- nizagao das associacdes que lutam no interior da Universidade: cen- tres, diretorios, associagdes de alunos e de professores: conferéncias, ciclos de estudo, simpdsios, seminarios que sensibilizem e conscien- tizem 0 maior numero possivel. Esse espirito de debate e de critica que anima uma universidade aberta ¢ livre é condigio para trans- forma-la de um “cemitério de vivos” como ¢ atualmente numa das forcas renovadoras da sociedade. 122

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