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O ATO DE LER E COMPREENDER O TEXTO:

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

CRISTIANE SANTOS AGUIAR SCOTO

O que é ler?

Não é de hoje que os estudiosos procuram definir o que é o ato


de ler. Há alguns anos, para muitos de nós, pais e educadores, ler era
tão somente decodificar as letras a fim de formar palavras e, conse-
qüentemente, frases sem que para isso houvesse um entendimento
global do texto. Hoje, sabe-se que ler é muito mais que decodificar a
escrita, que formar palavras ou reproduzir na fala o que está escrito.
Ler é um ato de compreensão em todos os sentidos.
Para ler e compreender um texto é necessário criar uma rela-
ção entre o leitor e o texto. E essa relação tende a ser prazerosa se for
estimulada, desde cedo, uma interação produtiva, com processos
lúdicos, criativos e voltados para o mundo do leitor em questão.

A leitura é o momento crítico da constituição do texto, é o mo-


mento privilegiado da interação, aquele em que os interlocutores
se identificam como interlocutores e, ao se constituírem com tais,
desencadeiam o processo de significação do texto. (Orlandi,
1996, p. 186)

O que é compreender um texto?

Em princípio, pode-se pensar que para compreender um texto


basta saber ler. Mas, nós, educadores, sabemos que a questão não é
tão simples assim. É fato que todo aquele que consegue compreender
um texto escrito sabe ler, mas o inverso não é verdade. Muitos leito-
res não conseguem compreender os vários sentidos existentes em um
texto e fazer correlações – aqui tratamos daqueles considerados leito-
res por serem alfabetizados.
Em sala de aula, podemos observar que muitos alunos chegam
ao final do Ensino Fundamental ainda sem conseguir ler e compre-
ender um texto. Concluem essa etapa sendo considerados “analfabe-
tos funcionais”. Enfim, verificamos que essa não é a realidade apenas
de determinada escola, mas sim, uma situação que ocorre em todo o
território nacional, pois de acordo com recente pesquisa realizada
sobre a capacidade de leitura dos brasileiros, 68% dos entrevistados
foram considerados analfabetos funcionais. Um índice ainda muito
elevado para um país que está em busca da erradicação do analfabe-
tismo.

Em 1958 a UNESCO definia como analfabeto um indivíduo que


não consegue ler ou escrever algo simples. Vinte anos depois,
adotou o conceito de analfabeto funcional: uma pessoa que,
mesmo sabendo ler e escrever frases simples, não possui as habi-
lidades necessárias para satisfazer as demandas do seu dia-a-dia e
se desenvolver pessoal e profissionalmente. (Indicador Nacio-
nal de Analfabetismo Funcional (Inaf), coordenado pelo
Instituto Paulo Montenegro (IPM), braço social do Ibope, e
pela ONG Ação Educativa, 2006)

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Em sala de aula

Minha experiência como docente de Língua Portuguesa (Gra-


mática) no Ensino Fundamental – 5a. a 8a. série – no Colégio do Sol
(nome fictício para preservar a identidade dos envolvidos), uma insti-
tuição de ensino particular no município de São Gonçalo, no Rio de
Janeiro, levou-me a observar a dificuldade de alguns alunos para
interpretar textos. Essa dificuldade se dá não só com textos didáti-
cos, mas também com poemas, textos teóricos, jornalísticos e enun-
ciados de questões. Acredito que uma das causas talvez seja a pouca
prática na leitura, e até mesmo a falta dela. E o objetivo de abordar
este tema é mostrar que o hábito de ler não tem sido cultivado dentro
dos principais ambientes em que vivem estes alunos: a casa e a esco-
la.
Por volta de 1950, os alunos tinham outros hábitos e valores:
não havia a concorrência da televisão, do computador, dos jogos de
videogame, da internet; os pais eram mais presentes na educação dos
filhos, sempre acompanhando o aprendizado e os deveres escolares;
a escola – aqui entendida por direção, coordenação e corpo docente –
por sua vez, era mais empenhada em incentivar a leitura, inclusive
apresentando os clássicos aos alunos.
Hoje a situação que encontramos é muito diferente: alunos que
ao chegarem em casa encontram vários meios de diversão para tirar-
lhes a atenção dos estudos, pais que trabalham muito ou não têm
interesse no dia-a-dia escolar de seus filhos, e por isso não acompa-

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nham seu rendimento, menos ainda, estimulam a leitura. Os alunos
consideram que ficar em frente ao computador ‘navegando na net’
pode ser mais atraente que ler um livro. Ao passo que a escola dei-
xou de fazer leituras obrigatórias, já que sob a ótica capitalista preci-
sam adaptar-se aos alunos que, sozinhos, dificilmente se interessarão
por livros.

A pesquisa

Decidi fazer uma pesquisa entre meus alunos de 5a. a 8a. para
verificar seus hábitos de leitura. Foram pesquisados 85 alunos (47
meninos e 38 meninas), de 5a. a 8a. séries, assim divididos: 22 alunos
da 5a. série, com idade média de 11 anos; 26 alunos da 6a. série, com
idade média de 12 anos; 23 alunos da 7a. série, com idade média de
13 anos e 14 alunos da 8a. série, com idade média de 14 anos.
Veja a seguir o resultado da pesquisa realizada entre os dias 19
e 21 de setembro de 2006, com o foco na freqüência com que eles
lêem livros, quais são as principais fontes de informação e o hábito
de visitar bibliotecas. Em um segundo momento os alunos se auto-
avaliaram em relação à capacidade de compreensão textual que acre-
ditam ter.
Quando perguntamos quantos livros eles leram neste ano para
algum trabalho escolar, dispensando os que serviram apenas para
pesquisa didática (ou seja, aqueles que eles somente consultaram
algum capítulo para desenvolver o trabalho), o resultado foi o se-

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guinte: 50,59% dos alunos não leram qualquer livro; 28,23% leram
um livro; 8,24% leram dois livros; 3,53% leram três livros e 9,41%
leram quatro livros ou mais.
Perguntados sobre a quantidade de livros extras que leram este
ano, considerando-se aqui aqueles lidos por prazer, sem fins escola-
res, obtivemos o seguinte resultado: 22,35% não leram qualquer
livro; 21,18% leram apenas um livro; 21,18% leram dois livros;
16,47% leram três livros e 29,41% leram quatro livros ou mais.
Questionados sobre as outras fontes de leitura e informação
que possuem, responderam: 47% lêem jornais; 72% lêem revistas;
58% lêem HQ (histórias em quadrinhos); 72% lêem artigos na inter-
net e 30% têm outras fontes também.
Foram abordadas também as visitas à biblioteca com o seguin-
te resultado: 81,18% dos alunos não foram à biblioteca da escola
neste ano; 5,88% foram uma única vez; 2,35% foram duas vezes;
3,53% foram três vezes ou mais e 7,06% não responderam. Se a
visita foi à outra biblioteca – de outra escola, municipal, entre outras
– o resultado muda um pouco: 55,29% dos alunos não foram a ne-
nhuma biblioteca neste ano; 12,94% foram uma única vez; 10,59%
foram duas vezes; 15,29% foram três vezes ou mais e 5,89% não
responderam.
Por último, perguntamos se eles se consideram bons leitores e
explicamos que um bom leitor é aquele que não somente lê muito
como também é capaz de compreender e interpretar um texto. Ve-

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jamos o resultado: 72% dos alunos responderam que sim, são bons
leitores e 28% deles disseram não.

Reflexões sobre os resultados obtidos

Pesquisas mostram que o brasileiro lê 1,8 livros por ano, bem


atrás de países como França: 7 livros; Estados Unidos: 5,1; Itália: 5;
Inglaterra: 4,9. Mostram ainda que dos brasileiros de 15 a 64 anos:
61% têm muito pouco ou nenhum contanto com os livros; 47% pos-
suem no máximo dez livros em casa; 30% localizam informações
simples em uma frase; 37% localizam informação em texto curto e
só 25% estabelecem relações em textos longos (Fonte: Câmara Bra-
sileira do Livro, Instituto da Biblioteca Nacional, Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social, Ministério da Educação,
2001). Uma realidade bastante difícil e que parece não ter melhora-
do nos últimos anos.
O resultado da nossa pesquisa mostrou que muitos desses alu-
nos não têm contato direto com qualquer livro que não seja o didáti-
co, durante a aula. Notamos que o menor índice leitores está na 8a
série, justamente naquela em que se espera encontrar os leitores mais
assíduos por estarem no último ano do Ensino Fundamental. Perce-
bemos ainda que tais alunos, em um percentual em massa, não pos-
suem contato com a biblioteca da escola e que a maioria não costuma
freqüentar quaisquer outros espaços de leitura e pesquisa fora da

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escola. Acreditamos que a falta desse contato colabora muito para
que esses alunos não se habituem à leitura.
Surpreendeu-nos a resposta de alguns alunos no quesito leitura
por prazer, em que 29,41% afirmam ter lido quatro ou mais livros
este ano sem fins escolares. É claro que não podemos deixar de con-
siderar o percentual daqueles que não leram um livro sequer
(22,35%) por prazer ou para trabalhos escolares (50,59%), como um
índice altíssimo se desejarmos formar leitores conscientes e críticos.
Gostaríamos de destacar também a opinião de os alunos em re-
lação à própria capacidade de leitura e compreensão. Na presente
pesquisa, encontramos 72% dos alunos dizendo-se bons leitores e, na
prática, o que constatamos não é essa a realidade. Inúmeras vezes
encontramos alunos com dificuldade de interpretar um simples enun-
ciado ou, ainda, incapazes de correlacionar sinonímias simples, devi-
da à falta de variedade vocabular dos mesmos. Um bom exemplo é
se trabalharmos sempre em sala de aula com um enunciado do tipo:
“Retire do texto...” e na avaliação substituirmos por: “Transcreva do
texto...”, muitos alunos não conseguem compreender o enunciado e
alegam que o professor nunca trabalhou tal conteúdo em sala de aula.
Provavelmente sua pouca experiência com os livros os impede de
adquirir um vocabulário mais extenso.

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Algumas sugestões

Poderia ser muito produtivo realizar alguns pequenos incenti-


vos com os alunos para que eles adquiram o hábito de ler por prazer
e, com isso, melhorar o vocabulário, o nível de compreensão textual,
não somente com uma palavra ou frase isolada, mas com o texto
como um todo e, conseqüentemente, melhorar sua produção escrita.

Ao professor cabe a tarefa de despertar no educando uma atitude


crítica diante da realidade em que se encontra inserido, prepa-
rando-o para ‘ler o mundo’: a princípio, o seu mundo, mas, daí
em diante, e paulatinamente, todos os mundos possíveis. (Koch,
1993, p. 160)

Esta é uma das tarefas do professor: colaborar com o educando


para que ele possa aprender a “ler” o mundo, mas não é uma tarefa
só dele; depende da ajuda e do incentivo de pais e direção. Um pro-
fessor, sozinho, raramente consegue despertar no aluno o senso críti-
co e o gosto pela leitura se não houver continuidade deste trabalho
fora da sala de aula.
Cabe também aos pais incentivar e ensinar as crianças, desde
cedo, a gostar de ler; e, acompanhar o processo de desenvolvimento
da capacidade de interpretação. Sugerimos uma leitura compartilhada
entre pais e alunos, para que os pais leiam as mesmas obras que seus
filhos e possam discutir com eles as várias possibilidades de interpre-
tação, assim, criar um ciclo de incentivo à leitura, não só para os
alunos, mas também para eles.

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Aos diretores e coordenadores escolares cabe a tarefa de in-
centivar, não só os alunos, mas também os professores, em ativida-
des que desenvolvam a interpretação, a compreensão, a criatividade e
também a produção de textos. Acreditamos que a partir da leitura
constante o aluno será capaz de produzir textos melhores, mais con-
cisos, coerentes e criativos.
Bons resultados podem surgir com a criação de eventos comu-
nitários como: feiras, saraus, oficinas de leitura e criação textual,
exibição de peças teatrais de grandes escritores como também as de
autoria dos próprios alunos, visitas a bibliotecas públicas, entre ou-
tros. Por que não transformar a escola em um grande espaço criativo,
estimulando a leitura, interpretação e produção de textos literários,
científicos, jornalísticos e tantos outros mais? Acreditamos que es-
timular a participação da família e da comunidade no processo edu-
cacional pode dar excelentes resultados.
Outra atitude simples é incentivar os alunos a freqüentar a bi-
blioteca da escola, dando-lhes oportunidade de conhecer o espaço,
visualizar as obras, tatear o material e pegar livros literários empres-
tados. Cremos que este tipo de incentivo é de fundamental importân-
cia para desenvolver o hábito da boa leitura. O contato visual e o tato
são importantes, assim como a possibilidade de ler pequenos trechos,
resumos e resenhas sobre as obras no sentido de auxilia-los na esco-
lha do que ler.
Acreditamos que a leitura constante de livros extraclasse tam-
bém faz falta. Tal leitura não se faz com o objetivo de obrigar o alu-

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no a ler para uma avaliação, mas de desenvolver sua capacidade de
compreensão e de recontar a história sob sua ótica. Uma prática que
pode produzir excelentes trabalhos e despertar o gosto pela leitura.
Sabemos que aquele que possui o hábito de ler sabe mais, tem
mais facilidade para compreender os textos e o mundo, adquire co-
nhecimentos globais e cultura, viaja por lugares onde talvez nunca
tenha condições de conhecer pessoalmente, transforma indivíduos e
cria cidadãos conscientes de seu papel na sociedade. Mas, não nas-
cemos leitores. Precisamos de estímulos para que o leitor floresça
dentro de cada um.
Transformar analfabetos funcionais em exímios leitores, e tal-
vez em grandes escritores, é uma tarefa árdua para nós educadores e
pais; mas com um resultado que valerá cada esforço positivo em prol
da educação.
Muito ainda deve ser investigado sobre o assunto. Iniciamos
apenas um ponto de discussão sobre um assunto tão importante e
amplo nos dias de hoje, pois acreditamos que muitas soluções podem
surgir a partir do engajamento de escola e comunidade.

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Referências Bibliográficas

BENCINI, Roberta. Todas as leituras. Revista Nova Escola, São


Paulo, Ano XXI, nº 194, p. 30-37, agosto, 2006.
FARACO, Carlos A; TEZZA, Cristóvão e CASTRO, Gilberto de.
(Orgs). Diálogos com Bakhtin. Edição comemorativa dos 100 anos
de Mikhail Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001.
FERRARI, Márcio. É preciso dar sentido à leitura. Revista Nova
Escola, São Paulo, Ano XXI, nº 195, p.13-6, setembro, 2006.
GALHARDO, Ricardo – O Globo – De 15 a 64 anos, 75% dos bra-
sileiros lêem mal. MONTFORT Associação Cultural. Disponível em:
<http://www.montfort.org.br/index.php?secao=imprensa&subsecao=
cotidiano&artigo=20050909&lang=bra> Acesso em: 25/09/2006 às
18h 14min.
INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. Indicador Nacional de A-
nalfabetismo Funcional. <http://www.ipm.org.br/an.php> Acesso em
25/09/2006 às 18:00h.
KOCH, Ingedore. A argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez,
1993.
ORLANDI, Eni P. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do traba-
lho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
YUNES, Eliana. Leitura, a complexidade do simples: do mundo à
letra e de volta ao mundo. Revista Palavra, Rio de Janeiro, 2001. V.
7, p. 76-106.

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