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É por demais conhecido que Teresa de Jesus foi mulher presente ao seu tempo, ao
seu ambiente, e à sua realidade histórica. Embora sendo “monja de clausura” teve ampla
notícia do como se desenvolvia a vida, não apenas no seu entorno familiar, monacal ou
social, mas também recebeu informação sobre os acontecimentos da vida social,
1
Edith STEIN, El Castillo interior, em Id., Obras Completas vol. III, Burgos 2007, pp. 1112-1113
2
Certamente a compreensão e visão apresentada por Teresa sobre o ser do homem e a sua vida interior é muito
mais abrangente e rica daquela que iremos desenhar nestas páginas. Nossa pretensão é aproximarmo-nos
daqueles elementos que, desde a experiência de Teresa, melhor definem e concretizam o ser e a vida da pessoa
humana.
1
política e religiosa da Espanha de Carlos V e Felipe II, do mesmo modo que de fora da
Espanha, tanto no âmbito europeu, com as suas mudanças e guerras de religião, quanto
no âmbito das Américas, a través das notícias diretas recebidas dos seus irmãos,
emigrantes no Novo Mundo atrás da fortuna, ou a través dos relatos de missionários que
traziam maiores detalhes de quanto ali estava acontecendo 3
De fato, Teresa não parece ficar indiferente diante das muitas “barbáries” cometidas
tanto num lugar quanto no outro. Realidades que não só lhe causam preocupação e que
ela censura, mas que também são ocasião para questionar-se sobre as causas ou razão
última do porquê tudo isso está acontecendo. Em carta ao seu irmão Lourenço, por
aquele então vivendo em Quito (Equador), Teresa diz: “... isto é o que muito me faz
sofrer: o considerar quantas se perdem, em particular esses índios que não me custam
pouco. O Senhor lhes dê luz. Por aqui, como por lá, há muita desventura. Como ando
por tantos lugares e muitas pessoas me falam, não sei muitas vezes o que pensar, senão
que somos piores que animais, pois não entendemos a grande dignidade da nossa alma,
rebaixando-a a coisas tão baixas como são as da terra. O Senhor nos dê luz”4
“Não entendemos a dignidade da nossa alma”. Para esta afirmação confluem todas as
situações de injustiça que regem o funcionamento da sociedade humana. Pode-se falar
de muitas causas e razões, porém, no fundo, todas elas acabam por apontar a esse
princípio: em última instância, a razão do comportamento está condicionada pelo modo
como nos enxergamos a nós mesmos e, em consequência, como percebemos os outros
seres humanos. Estamos diante de uma causa que tem suas raízes no próprio homem: no
desconhecimento que tem do seu próprio ser, daquilo que confere o verdadeiro sentido e
fundamenta a sua dignidade. Não surpreende que Teresa afirme que somos “piores que
animais”.
3
Uma leitura do seu epistolário possibilita ver, bem de perto, esta imersão. Existem, ainda, claras ressonâncias
da situação no Livro da Vida e em Fundações
4
Carta a Lourenço de Cepeda, 17 janeiro de 1570, nº 25 da ed. bras.
2
foram explorados pelos sábios e místicos de todos os tempos”5. E desde a antropologia,
por exemplo o Dr. Pedro Cerezo Galán, não poupa palavras para asseverar que “no livro
da Vida (de Santa Teresa de Jesus) está a ata de nascimento da intimidade moderna”6
Por isso, também não surpreende que a psicologia coincida com Teresa de Jesus ao
destacar - tal e como iremos apresentando - que a pedra angular sobre a que se ergue a
edificação da pessoa e a sua felicidade é o conhecimento de si própria, e a conseguinte
aceitação da própria verdade. Falar de conhecimento de si ou falar do próprio
conhecimento é adentrar-se em um tema que atinge a todos nós de modo profundamente
existencial. E por muitos que forem os anos da nossa vida nunca atingiremos um
conhecimento próprio total e exaustivo do nosso ser e da nossa personalidade. Trata-se
do mistério que envolve sempre e continuadamente a vida do ser humano. Do grau de
conhecimento próprio que atingirmos depende - segundo o pensamento da grande
maioria das escolas atuais de psicologia - tudo o quase tudo em nossa existência. E, o
que é mais importante: é disso que depende a nossa realização como pessoas felizes e
satisfeitas consigo mesmas. Não é por nada que a psicologia moderna ressalta este
elemento como fundamental visando a boa saúde psíquica e espiritual.
5
F. RODRÍGUEZ BERNAECHEA, Transcender el ego, em M. RODRÍGUEZ-ZAFRA, Crecimiento personal:
aportaciones de Oriente y Occidente (Colección Serendipy 98), Desclée de Brower, Bilbao 2004 p. 252
6
P. CEREZO GALÁN, La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesús, en La recepción de los místicos
Teresa de Jesús y Juan de la Cruz, Salamanca 1997
3
O conhecimento próprio acaba por constituir-se como um esteio fundamental no
caminho místico e espiritual, tanto para Teresa de Jesus como para outros místicos da
sua escola (João da Cruz7 ou Edith Stein8). Tudo na vida do ser humano depende desta
fator: uma relação autenticamente humana com o mundo, com os outros, dependerá do
grau de interioridade atingido. Estamos, pois, perante uma das chaves fundamentais do
humanismo teresiano.
No momento que Teresa escreve a sua grande síntese (já ultrapassando os 60 anos de
idade), o livro das Moradas, já possui um conhecimento completo de todo o caminho
espiritual e uma muito bem provada experiência mística, que lhe torna capaz de
desenhar todo o processo atendendo aos elementos fundamentais e primordiais do
mesmo. O ponto de partida, caracterizado pela entrada decidida no caminho da
meditação ou da oração mental, vem acompanhado pelo insubstituível conhecimento de
si, ao qual Teresa conceder-lhe-á um rol todo particular: “antes de conceder estas
graças, dá o Senhor um grande conhecimento próprio”9, quer dizer, sem conhecimento
de si não há chance de adentrar-se numa duradoura e autêntica experiência mística.
7
O próprio João da Cruz, no momento de traçar o percurso completo do caminho espiritual, na sua obra mestra
Cântico Espiritual, não duvida em destacar a importância do conhecimento de si mesmo - e o que isso significa
– a fim de ser possível o processo de crescimento ou seguimento. Assim lemos no comentário à estrofe primeira
do Cântico (CB 1,1): “Caindo a alma na conta do que está obrigada a fazer, vê como a vida é breve (Jó 14,5), e
quão estreita é a senda da vida eterna (Mt 7,14), que mesmo o justo dificilmente se salva (1Pd 4,18) e que as
coisas do mundo são vãs e ilusórias, pois tudo se acaba como a água corrente (2Rs 14,14), que o tempo é
incerto, a conta rigorosa, a perdição muito fácil, e a salvação bem difícil; conhecendo, por outra parte, a sua
enorme dívida para com Deus que lhe deu o ser a fim de que a alma pertencesse totalmente a ele, deve, por tanto,
só a Deus o serviço de toda a sua vida. Em ter sido remida por ele ficou-lhe devedora de tudo, e na necessidade
de corresponder ao seu amor, livre e voluntariamente, e em outro mil benefícios que se acha obrigada para com
Deus...” Neste texto o Santo nos oferece uma admirável síntese dos elementos que compõem e explicam
substancialmente tal conhecimento de si, um conhecimento da verdade teologal do ser humano. No comentário à
estrofe quarta (CB 4), explicitamente concede ao conhecimento de si o primeiro lugar no processo espiritual.
Vede, também, o 1º livro da Noite Escura (12,5)
8
A filósofa Edith Stein dedicará ao tema belas páginas nos seus escritos antropológicos. Ao longe desta
exposição reportar-nos-emos a ela em várias oportunidades. Pensamos que o seu conhecimento da
espiritualidade teresiana e o seu interesse pela antropologia espiritual, ofertam a nós múltiplos elementos que
complementam e esclarecem o pensamento de Teresa.
9
6M 9,15
10
Afirma o Pe. Tomás ALVAREZ, Guía al interior del Castillo. Lectura espiritual de las “Moradas”, Monte
Carmelo, Burgos 2000, p. 32: “Sim, é espontânea essa evocação do grande filósofo grego. Ele não apenas
4
A psicologia moderna e a pedagogia não cansam de insistir na importância da
aceitação de si mesmo. Sem este pressuposto as relações “ad extra” (com o mundo e
com os outros) facilmente adquirem matizes doentios. Afirma-se, desde a psicologia,
que o ser humano age desde a visão e compreensão que de si mesmo tem. Como poderia
amar-se a si mesmo alguém que não se conhece e nem se aceita? Como seria o seu amor
pelo outro? Com qual medida se defrontaria consigo mesmo? O tema não se constitui,
pois, apenas como uma realidade psicológica, senão profunda e substancialmente
humana, e por isso mesmo religiosa e espiritual11. Pedro Cerezo Galán, referindo-se ao
papel dos místicos no tempo deles, afirma: “Porém, ao mesmo tempo, esta reforma não
era arcaizante, isto é, não se produzia em oposição ao espírito do seu tempo, mas em
sintonia com as novas tendências em prol da humanização do mundo e da
individualização do eu, constitutivas da Renascença”12
Seria suficiente ter presente a imagem sobre a qual Teresa constrói o caminho da
oração pare percebermos a importância do tema. Quando ela fala do homem (ou da
alma) como sendo um castelo, e apresenta o caminho da oração como um adentrar-se
nele até conquistar o centro, no fundo não faz outra coisa senão traçar um caminho
místico em sintonia com o caminho de conquista-conhecimento de si. “Não sei se fui
clara o bastante, porque a questão de nos conhecer é tão importante que eu gostaria
que não houvesse nisso nenhuma negligência, por mais elevadas que estejais nos
céus”13. Teresa nunca deixa de lado a dimensão humana do sujeito, antes parece ser um
requisito para dar solidez e autenticidade ao caminho místico.
Por trás desta insistência e da importância que Teresa dá a este aspecto esconde-se
uma concepção do ser humano em chave teologal e positiva. Teresa parte do princípio,
fruto da sua própria experiência, de que Deus habita o centro da alma14; que não
estamos vazios, mas habitados nada menos que pelo Infinito. A consequência
diretamente implicada é que a pessoa humana adquire o valor do mesmo Deus. Teresa
apresenta-se, destarte, como a grande humanista, porque vive convicta da dignidade do
captara a consigna pragmática do oráculo de Delfos -“conhece-te”- mas havia-lhe dado uma versão profunda,
próxima do evangelho de Jesus. A um dos seus discípulos prediletos, Alcibíades, Sócrates lhe explica que para
conhecer-se a si mesmo não é suficiente conhecer o seu corpo, deve conhecer a alma de Alcibíades. E não
conseguirá conhecer a sua alma, se não conhecer essa faísca de divindade que nela existe”
11
Edith Stein em seu escrito Potenz und Akt (ESW XVIII), p.90 afirma: “Viver espiritualmente significa, ainda,
ser ciente deste movimento, ser transparente para si mesmo, estar consciente de si mesmo e tal vez do outro”.
12
Pedro CEREZO GALÁN, La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesus, em La Recepción de los
místicos Teresa de Jesus y Juan de la Cruz, Salamanca 1997, p. 171.
13
1M 2,9
14
Cfr. por exemplo: V 40,6; C 28, 11. Também, em referência a Cristo: C 28,2
5
ser humano, a imagem e semelhança do próprio Deus15. A força que adquire o
fundamento do conhecimento próprio no caminho místico é destacada por Teresa já no
seu primeiro escrito: “... o conhecimento próprio nunca deva ser abandonado...;
porque não há estado de oração tão elevado que torne desnecessário voltar ao
princípio com frequência, sendo os pecados e o conhecimento próprio o pão com que
todos os manjares, por mais delicados, devem ser comidos neste caminho de oração,
pão sem o qual ninguém poderia se sustentar...”16
15
Cfr. 1M 1,1
16
V 13,15 (O negrito é meu) Esta mesma importância aparece destacada em: V 15,2-3.8; 1M 1,2
17
P. CEREZO, a.c., p. 203, afirma: “Numa época, de resto egoísta e secularizada, onde o homem, qual novo
Narciso, encontra onde quer os vestígios da sua própria imagem até perecer afogado no labirinto de
intermináveis espelhos, Teresa de Ávila descobria aquele outro espelho interior, polido de silencia e anseios,
aonde a imagem transcende-se a si mesma no seu original. Era o requebro mais elegante, a ironia mais fina
que poder-se-ia imaginar contra o mero humanismo. Porque toda projeção de si mesmo tem um curto rádio, ou
se extravia em infinitas ilusões –humanas, demasiadamente humanas, multiplicados fetiches de si mesmo-, não
fosse projetada sobre ela a ânsia viva ou o desejo transfigurado de um Deus maior do que a nossa miséria e
mais forte do que a morte” (o negrito é meu)
6
ideologias ou de condicionantes temporários e históricos. Pode-se concordar ou não
com a crenças religiosas de Teresa, porém ninguém pode negar que, dentro da dinâmica
por ela apresentada, não pode achar-se fundamento mais sólido para o valor do ser
humano.
Descobrir tal dignidade do ser humano resiste contra qualquer outra atitude negativa
que pudesse vir a anular ou destruir o ser humano, quer seja porque pode perder-se na
angústia da própria miséria, ou porque “faça de conta” frente a ela, para evitar ter que
descobrir-se diferente dos parâmetros sociais ou idealismos pessoais (é a perigosa
atitude do não aceitar-se a si mesmo).
No fundo, não se trata de outra coisa senão da atitude fundamental do ser humano
que procura entender o sentida da sua existência. Acontece que, no caso de Teresa, tal
sentido é visto e complementado à luz de uma compreensão teologal do ser humano que
descobre-se “criatura” e não “senhor”18
Um aspecto importante que o conhecimento próprio leva atrelado a si, junto com a
descoberta da própria dignidade, é o reconhecimento da dignidade do outro.
Descobrindo a raiz e fundamento daquilo que confere o valor infinito ao meu próprio
ser, como consequência necessária irei descobrir que tal fundamento está à base do
sentido e do valor de todos ser humano, a quem já não mais poderei perceber de
maneira diferente.
18
É a atitude continuamente manifestada por Teresa em sua visa após a sua definitiva conversão; (cfr. V 3,5: “...
me fizeram compreender as verdade que entendera quando menina: a inutilidade de tudo o que há no mundo, a
vaidade existente neste, a rapidez com que tudo se acaba. Passei a pensar e a temer que tal vez fosse para o
inferno, caso morresse naquele momento”. Cfr V 15,11: “que tudo (o criado) era nada”). Nessa mesma dinâmica
expõe João da Cruz o início de todo processo espiritual (cfr, CB 1,1)
19
1M 2,13
7
Nos seus escritos, tal e como já acenamos, este é um tema nuclear, se bem que não
lhe dedique um apartado exclusivo ou faça grandes discursos ao respeito20. Mas será
sobretudo em Moradas onde emerge com toda a sua força e valor capital dentro do que
poderíamos denominar o caminho de crescimento da pessoa humana (tanto desde a
perspectiva antropológica como mística). A pessoa cresce na medida em que descobre e
abre os olhos ao verdadeiro valor do seu próprio ser.
Até por três vezes repete Teresa o qualificativo “formosura”. Este texto é o ponto de
partida, onde plasma solenemente a sua definição e compreensão da dignidade do ser
humano. De fato, o processo espiritual proposta por Teresa como fruto da sua longa
experiência mística, consiste principalmente em ir aprofundando e descobrindo cada vez
mais essa grande “formosura” escondida que, por “culpa nossa” tantas vezes somos
incapazes de descobrir. Teresa situa aqui o núcleo da questão, e até poderíamos dizer
21
Cfr. 1M 1,1
22
1M 1,1
9
que a razão pela qual os humanos somos tão miseráveis é porque não conhecemos a
grande dignidade que carregamos. Este era o argumento para explicar o porquê de tantas
injustiças. Agora retorna a ele, lamentando que malgastamos o melhor da vida por não
abrirmos os olhos à nossa verdadeira condição: “Não é pequena lástima e confusão que,
por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos. Não
seria grande ignorância, filhas minhas, que se perguntasse a uma pessoa quem é e ela
não se conhecesse nem soubesse quem foi seu pai, sua mão ou a terra em que nasceu?
Se isto seria grande insensatez, muito maior, sem comparação, é a nossa quando não
procuramos saber quem somos e só nos detemos no corpo. Sabemos que a nossa alma
existe apenas por alto, porque assim ouvimos dizer e assim nos diz a fé. Mas poucas
vezes consideramos as riquezas existentes nessa alma, seu grande valor, quem nela
habita; e assim, não damos importância a conservar sua formosura. Todos os cuidados
se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste castelo, que são os nossos
corpos”23
Mas tem mais, ainda. Esta descrição que Teresa faz do ser humano, sintetiza o
essencial do processo irá apresentar-nos: conhecer, resgatar e viver a grandeza do que
somos. Neste sentido, desde já Teresa transmite como a sua insistência no
“conhecimento de si” não se reduz a uma percepção psicologista ou simplesmente
antropológica da nossa identidade, mas desde esses interrogantes existenciais podemos
caminhar para uma plenitude que está ao alcance de todos, porque é o que nos define
como seres humanos. E porque, além do mais, evidencia o que somos para Deus: entes
com um valor sem medida, infinito e em quem Deus pôs e põe a sua confiança. Deus
estabeleceu sua morada no interior de cada homem, malgrado a sua condição fraca e
pecadora.
23
1M 1,2
10
convida anão ficarmos presos em “nossa miséria”, pois destarte nunca avançaremos e
nem chegaremos à mora em que o Rei habita.
Este ponto de partida teresiano, que tornar-se-á ponto de chegada (cf M epílogo 3)
nos situa diante da compreensão e necessidade que ela manifesta em relação com a vida
mística.
Daí que o conhecimento próprio nunca chegará a ser total se a pessoa não se
aproximar do mistério. Nele nos é desvelada a identidade mais profunda do que somos:
“pois em nos mesmos estão grandes segredos que não entendemos”24 Para Teresa é o
encontro com o Mistério quem nos conduz à uma compreensão do que verdadeiramente
somos.
Teresa convida a nos abrirmos ao mistério como a via que torna possível reconhecer
a nossa condição mais autêntica. Fechar-nos ou esconder-nos em nós mesmos não deve
entender-se, apenas, em sentido voluntarista, pois são muitos os riscos a que nos
expomos se não nos abrir-nos à dimensão positiva do que somos: “Pois tudo isso lhes
parece humildade, bem como outras muitas coisas que eu poderia dizer. A causa é o
24
4M 2,5
25
1M 2,8 (o negrito é meu)
11
fato de não nos conhecermos devidamente; distorcemos o conhecimento próprio e, se
nunca saímos de nós mesmos, esses e outros males devem causar-nos temor... e evitará
que o nosso conhecimento próprio se torne rasteiro e covarde. Porque, embora esta
seja apenas a primeira morada, é extremamente rica e de grande valor. Se escaparmos
dos parasitas que nela existem, conseguiremos avançar”26
26
1M 2,11
27
F 2,7
28
V 13,2
12
caras, ambas formando parte do ser da pessoa, se bem que não em idênticas condições.
Se prestarmos atenção à imagem usada por Teresa para descrever a pessoa humana,
como um castelo de diamante ou de cristal, a condição de miséria não faz parte do
castelo, é algo que está do lado de fora, com o poder de sujá-lo ou escurecê-lo, porém
sem poder mudar e nem alterar a natureza do castelo. Isto significa que o que
verdadeiramente nos identifica, e alvo para onde deve dirigir-se o conhecimento, é a
descoberta da grandeza e formosura do próprio castelo, quer dizer, ultrapassar a visão
superficial e materialista do ser humano que acaba por anular a sua verdadeira condição,
quer seja no campo religioso, acentuando apenas a condição de ser pecador, quer seja no
campo social, reduzindo o ser humano a quanto ele possui, produz ou consome.
Esta perspectiva é algo que vai ficando claro à medida em que nos adentramos no
nosso próprio castelo e deixamos as parasitas do lado de fora: “Como estas moradas já
se encontram mais perto de onde está o Rei, é grande a sua formosura, havendo coisas
tão delicadas para ver e entender que o intelecto não consegue fazê-lo de modo
adequado, resultando tudo bastante obscuro para os que não tem experiência. Quanto
aos que já a possuem - particularmente os que a tem muita -, bem o entenderão”29
29
4M 1,2
30
6M 4,11
13
lindos jardins, fontes e coisas tão deleitosas que desejareis desfazer-vos em louvores ao
grande Deus, que criou esse castelo à sua imagem e semelhança”31
Para Teresa, a pessoa que quiser caminhar com passo firme para a sua plenitude e
felicidade, deve considerar e aceitar a sua verdadeira condição, que ela define nestes
três enunciados:
Tudo isto fundamenta poder falar da grande dignidade e formosura da alma. Sim,
é verdade que Teresa não deixa de falar da miséria, do pecado, da pequenez, da
indignidade, etc... que formam parte do que é o homem. Porém, isso em modo algum
esgota o seu ser. O princípio que irá reger o caminho da vida espiritual aponta para
descobrir a percepção que o próprio Deus tem sobre o homem e, por isso mesmo,
aponta para assumir tal princípio de credibilidade. Esta é a dimensão mais autêntica do
ser humano. Não é o pecado que nos define, mas o sermos imagem; não nos define e
nem esgota a limitação, mas a nossa inserção no infinito... Por isso, a pessoa humana
goza da mesma dignidade de que deriva o seu ser e a sua existência. O nosso pecado, a
nossa miséria... tantas vezes são freio no progresso do crescimento, porque nos
estorvam no adentrar-nos no castelo onde encontramos Deus... Mas adotar como ponto
de partida, não a sujeira que envolve o diamante, mas a convicção da existência desse
diamante por baixa da crosta da sujeira, isso deve ser motor de uma mística viva e
dinâmica, enraizada no ser do homem. Neste sentido, acredito que Teresa está
totalmente certo quanto ao ponto de partida.
Esta visão, no entanto, não se encerra na compreensão daquilo que o ser humano é
em si mesmo. A experiência e abertura interior ao ser, nos abre constantemente à
percepção da gratuidade, da descoberta que o que me define e identifica é algo que me
foi dado gratuitamente: o que, desde a perspectiva da vivência mística teresiana
encontra a sua mais profunda revelação no mistério da redenção. Sentir-se redimido por
15
Cristo: “Ó almas remidas pelo sangue de Jesus Cristo! Entendei-vos e tende dó de vós
mesmas! Como é possível que, entendendo essa verdade, não procureis tirar o piche
desse cristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar dessa luz. Ó
Jesus! O que é ver uma alma afasta dela”34
5 – Como conclusão...
Deu não pode não habitar senão em lugar primoroso; como não aventurar-nos neste
caminho para a própria interioridade, e descobrir que nela encontra-se o mais valioso
tesouro que podemos almejar? “Pois não achais que assim será o aposento onde um Rei
tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão pleno de todos os bens se deleita?... Se assim é, e
não há dúvida disso, não há razão para nos cansar buscando compreender a formosura
deste castelo...”35
34
1M 2,4
35
1M 1,1
16
formosura. Todos os cuidados se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste
castelo, que são os nossos corpos”36
36
1M 1,2
37
4M 2,5
17