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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

“A grande formosura da alma e a grande capacidade” (1M 1,1)

Frei Javier Sancho Fermín

O conhecimento da vida íntima da alma, graças à “experiência dos místicos”, abre-


nos a um mundo que, de outro modo, permaneceria por demais desconhecido. Mesmo
no conhecimento de si própria, a pessoa que quiser chegar ao mais profundo centro do
seu ser, do sentido da vida e da sua liberdade, necessita percorrer um caminho que passa
pela interiorização. A filósofa fenomenóloga, Edith Stein, discípula e assistente de
Husserl na universidade de Freiburg, afirmava: “Não é possível, no entanto, oferecer
um quadro preciso da alma – nem mesmo superficial e deficiente – sem antes falar
daquilo que compõe a sua vida íntima. Para tanto, as experiências fundamentais sobre
as que devemos fundar-nos são os testemunhos dos grandes místicos da vida de oração.
E neste nível, o Castelo Interior revela-se insuperável: quer seja pela experiência
interior da Autora, que no momento em que escreve já atingira o mais alto grau da vida
mística; quer seja pela sua extraordinária capacidade de expressar em termos
inteligíveis suas vivências interiores, ao ponto de tornar-se claro e evidente o inefável,
e carimbado com o selo da mais alta veracidade; quer seja pela força que permite
compreender o seu nexo interior e apresenta o conjunto em uma acabada obra de
arte”1. Nossa atenção ira centrar-se precisamente nesta obra das Moradas, com o intuito
de assinalar umas linhas mestras e fundamentais na compreensão que Teresa de Jesus
nos oferece do homem concreto, não em chave teórica, mas experiencial2

1 - Ponto de partida: o conhecimento e experiência da própria humanidade

É por demais conhecido que Teresa de Jesus foi mulher presente ao seu tempo, ao
seu ambiente, e à sua realidade histórica. Embora sendo “monja de clausura” teve ampla
notícia do como se desenvolvia a vida, não apenas no seu entorno familiar, monacal ou
social, mas também recebeu informação sobre os acontecimentos da vida social,

1
Edith STEIN, El Castillo interior, em Id., Obras Completas vol. III, Burgos 2007, pp. 1112-1113
2
Certamente a compreensão e visão apresentada por Teresa sobre o ser do homem e a sua vida interior é muito
mais abrangente e rica daquela que iremos desenhar nestas páginas. Nossa pretensão é aproximarmo-nos
daqueles elementos que, desde a experiência de Teresa, melhor definem e concretizam o ser e a vida da pessoa
humana.
1
política e religiosa da Espanha de Carlos V e Felipe II, do mesmo modo que de fora da
Espanha, tanto no âmbito europeu, com as suas mudanças e guerras de religião, quanto
no âmbito das Américas, a través das notícias diretas recebidas dos seus irmãos,
emigrantes no Novo Mundo atrás da fortuna, ou a través dos relatos de missionários que
traziam maiores detalhes de quanto ali estava acontecendo 3

De fato, Teresa não parece ficar indiferente diante das muitas “barbáries” cometidas
tanto num lugar quanto no outro. Realidades que não só lhe causam preocupação e que
ela censura, mas que também são ocasião para questionar-se sobre as causas ou razão
última do porquê tudo isso está acontecendo. Em carta ao seu irmão Lourenço, por
aquele então vivendo em Quito (Equador), Teresa diz: “... isto é o que muito me faz
sofrer: o considerar quantas se perdem, em particular esses índios que não me custam
pouco. O Senhor lhes dê luz. Por aqui, como por lá, há muita desventura. Como ando
por tantos lugares e muitas pessoas me falam, não sei muitas vezes o que pensar, senão
que somos piores que animais, pois não entendemos a grande dignidade da nossa alma,
rebaixando-a a coisas tão baixas como são as da terra. O Senhor nos dê luz”4

“Não entendemos a dignidade da nossa alma”. Para esta afirmação confluem todas as
situações de injustiça que regem o funcionamento da sociedade humana. Pode-se falar
de muitas causas e razões, porém, no fundo, todas elas acabam por apontar a esse
princípio: em última instância, a razão do comportamento está condicionada pelo modo
como nos enxergamos a nós mesmos e, em consequência, como percebemos os outros
seres humanos. Estamos diante de uma causa que tem suas raízes no próprio homem: no
desconhecimento que tem do seu próprio ser, daquilo que confere o verdadeiro sentido e
fundamenta a sua dignidade. Não surpreende que Teresa afirme que somos “piores que
animais”.

Na identificação do fundamento, já intuído por Teresa no século XVI, hoje as


ciências humanas acabam concordando com ela. Assim por exemplo, desde a psicologia
transpessoal entende-se o crescimento pessoal como um processo de “autoconstrução” e
“autorreconhecimento” enquanto indivíduo em relação, está convencido de que “a
recuperação desses valores universais que devem ser “vividos” e não pensados de
maneira intelectual, pode realizar-se mediante - o que o autor denomina - as “quatro
portas para transcender o eu”. Nelas se resumem os diferentes caminhos espirituais que

3
Uma leitura do seu epistolário possibilita ver, bem de perto, esta imersão. Existem, ainda, claras ressonâncias
da situação no Livro da Vida e em Fundações
4
Carta a Lourenço de Cepeda, 17 janeiro de 1570, nº 25 da ed. bras.
2
foram explorados pelos sábios e místicos de todos os tempos”5. E desde a antropologia,
por exemplo o Dr. Pedro Cerezo Galán, não poupa palavras para asseverar que “no livro
da Vida (de Santa Teresa de Jesus) está a ata de nascimento da intimidade moderna”6

O fato de Teresa e muitas das diversas correntes de pensamento atuais apontarem


para a necessidade de resgatar a “dignidade da pessoa humana” nos situam na linha do
desenvolvimento deste artigo. Da mão de Teresa de Jesus, e desde tudo quanto foi o seu
caminho experiencial, trataremos de identificar aquilo sobre o qual ela consegue
fundamentar a dignidade inalienável do ser humano. É provável que nenhuma tendência
humanista seja capaz, em si mesma, de conferir a tais termos a compreensão do ser
humano enquanto à sua riqueza e valor infinitos. Vamos descobrir como o caminho da
mística acaba por fundamentar e fundamentar-se na descoberta do ser humano enquanto
ser único e insubstituível.

Por isso, também não surpreende que a psicologia coincida com Teresa de Jesus ao
destacar - tal e como iremos apresentando - que a pedra angular sobre a que se ergue a
edificação da pessoa e a sua felicidade é o conhecimento de si própria, e a conseguinte
aceitação da própria verdade. Falar de conhecimento de si ou falar do próprio
conhecimento é adentrar-se em um tema que atinge a todos nós de modo profundamente
existencial. E por muitos que forem os anos da nossa vida nunca atingiremos um
conhecimento próprio total e exaustivo do nosso ser e da nossa personalidade. Trata-se
do mistério que envolve sempre e continuadamente a vida do ser humano. Do grau de
conhecimento próprio que atingirmos depende - segundo o pensamento da grande
maioria das escolas atuais de psicologia - tudo o quase tudo em nossa existência. E, o
que é mais importante: é disso que depende a nossa realização como pessoas felizes e
satisfeitas consigo mesmas. Não é por nada que a psicologia moderna ressalta este
elemento como fundamental visando a boa saúde psíquica e espiritual.

Possivelmente estamos diante de um tema fundamental, não apenas no


desenvolvimento da própria pessoa, mas também enquanto à sua capacidade de
relacionamento com os outros. O fato de não conhecer-se e de não aceitar-se supõe uma
dificuldade enorme de cara ao sucesso das relações consigo mesmo, com os outros, com
a realidade.

5
F. RODRÍGUEZ BERNAECHEA, Transcender el ego, em M. RODRÍGUEZ-ZAFRA, Crecimiento personal:
aportaciones de Oriente y Occidente (Colección Serendipy 98), Desclée de Brower, Bilbao 2004 p. 252
6
P. CEREZO GALÁN, La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesús, en La recepción de los místicos
Teresa de Jesús y Juan de la Cruz, Salamanca 1997
3
O conhecimento próprio acaba por constituir-se como um esteio fundamental no
caminho místico e espiritual, tanto para Teresa de Jesus como para outros místicos da
sua escola (João da Cruz7 ou Edith Stein8). Tudo na vida do ser humano depende desta
fator: uma relação autenticamente humana com o mundo, com os outros, dependerá do
grau de interioridade atingido. Estamos, pois, perante uma das chaves fundamentais do
humanismo teresiano.

No momento que Teresa escreve a sua grande síntese (já ultrapassando os 60 anos de
idade), o livro das Moradas, já possui um conhecimento completo de todo o caminho
espiritual e uma muito bem provada experiência mística, que lhe torna capaz de
desenhar todo o processo atendendo aos elementos fundamentais e primordiais do
mesmo. O ponto de partida, caracterizado pela entrada decidida no caminho da
meditação ou da oração mental, vem acompanhado pelo insubstituível conhecimento de
si, ao qual Teresa conceder-lhe-á um rol todo particular: “antes de conceder estas
graças, dá o Senhor um grande conhecimento próprio”9, quer dizer, sem conhecimento
de si não há chance de adentrar-se numa duradoura e autêntica experiência mística.

Se os estudiosos da fenomenologia mística prestassem atenção a estas afirmações


teresianas, certamente o seu modo de proceder e as conclusões finais seria bem
diferentes. O que está em questão não é o fenômeno, mas a realização integral da
pessoa, núcleo do interesse do místico autêntico. É por isso que se fala de “socratismo
teresiano”, rememorando a grande intuição de Sócrates que convida: “conhece-te a ti
mesmo”10

7
O próprio João da Cruz, no momento de traçar o percurso completo do caminho espiritual, na sua obra mestra
Cântico Espiritual, não duvida em destacar a importância do conhecimento de si mesmo - e o que isso significa
– a fim de ser possível o processo de crescimento ou seguimento. Assim lemos no comentário à estrofe primeira
do Cântico (CB 1,1): “Caindo a alma na conta do que está obrigada a fazer, vê como a vida é breve (Jó 14,5), e
quão estreita é a senda da vida eterna (Mt 7,14), que mesmo o justo dificilmente se salva (1Pd 4,18) e que as
coisas do mundo são vãs e ilusórias, pois tudo se acaba como a água corrente (2Rs 14,14), que o tempo é
incerto, a conta rigorosa, a perdição muito fácil, e a salvação bem difícil; conhecendo, por outra parte, a sua
enorme dívida para com Deus que lhe deu o ser a fim de que a alma pertencesse totalmente a ele, deve, por tanto,
só a Deus o serviço de toda a sua vida. Em ter sido remida por ele ficou-lhe devedora de tudo, e na necessidade
de corresponder ao seu amor, livre e voluntariamente, e em outro mil benefícios que se acha obrigada para com
Deus...” Neste texto o Santo nos oferece uma admirável síntese dos elementos que compõem e explicam
substancialmente tal conhecimento de si, um conhecimento da verdade teologal do ser humano. No comentário à
estrofe quarta (CB 4), explicitamente concede ao conhecimento de si o primeiro lugar no processo espiritual.
Vede, também, o 1º livro da Noite Escura (12,5)
8
A filósofa Edith Stein dedicará ao tema belas páginas nos seus escritos antropológicos. Ao longe desta
exposição reportar-nos-emos a ela em várias oportunidades. Pensamos que o seu conhecimento da
espiritualidade teresiana e o seu interesse pela antropologia espiritual, ofertam a nós múltiplos elementos que
complementam e esclarecem o pensamento de Teresa.
9
6M 9,15
10
Afirma o Pe. Tomás ALVAREZ, Guía al interior del Castillo. Lectura espiritual de las “Moradas”, Monte
Carmelo, Burgos 2000, p. 32: “Sim, é espontânea essa evocação do grande filósofo grego. Ele não apenas
4
A psicologia moderna e a pedagogia não cansam de insistir na importância da
aceitação de si mesmo. Sem este pressuposto as relações “ad extra” (com o mundo e
com os outros) facilmente adquirem matizes doentios. Afirma-se, desde a psicologia,
que o ser humano age desde a visão e compreensão que de si mesmo tem. Como poderia
amar-se a si mesmo alguém que não se conhece e nem se aceita? Como seria o seu amor
pelo outro? Com qual medida se defrontaria consigo mesmo? O tema não se constitui,
pois, apenas como uma realidade psicológica, senão profunda e substancialmente
humana, e por isso mesmo religiosa e espiritual11. Pedro Cerezo Galán, referindo-se ao
papel dos místicos no tempo deles, afirma: “Porém, ao mesmo tempo, esta reforma não
era arcaizante, isto é, não se produzia em oposição ao espírito do seu tempo, mas em
sintonia com as novas tendências em prol da humanização do mundo e da
individualização do eu, constitutivas da Renascença”12

Seria suficiente ter presente a imagem sobre a qual Teresa constrói o caminho da
oração pare percebermos a importância do tema. Quando ela fala do homem (ou da
alma) como sendo um castelo, e apresenta o caminho da oração como um adentrar-se
nele até conquistar o centro, no fundo não faz outra coisa senão traçar um caminho
místico em sintonia com o caminho de conquista-conhecimento de si. “Não sei se fui
clara o bastante, porque a questão de nos conhecer é tão importante que eu gostaria
que não houvesse nisso nenhuma negligência, por mais elevadas que estejais nos
céus”13. Teresa nunca deixa de lado a dimensão humana do sujeito, antes parece ser um
requisito para dar solidez e autenticidade ao caminho místico.

Por trás desta insistência e da importância que Teresa dá a este aspecto esconde-se
uma concepção do ser humano em chave teologal e positiva. Teresa parte do princípio,
fruto da sua própria experiência, de que Deus habita o centro da alma14; que não
estamos vazios, mas habitados nada menos que pelo Infinito. A consequência
diretamente implicada é que a pessoa humana adquire o valor do mesmo Deus. Teresa
apresenta-se, destarte, como a grande humanista, porque vive convicta da dignidade do

captara a consigna pragmática do oráculo de Delfos -“conhece-te”- mas havia-lhe dado uma versão profunda,
próxima do evangelho de Jesus. A um dos seus discípulos prediletos, Alcibíades, Sócrates lhe explica que para
conhecer-se a si mesmo não é suficiente conhecer o seu corpo, deve conhecer a alma de Alcibíades. E não
conseguirá conhecer a sua alma, se não conhecer essa faísca de divindade que nela existe”
11
Edith Stein em seu escrito Potenz und Akt (ESW XVIII), p.90 afirma: “Viver espiritualmente significa, ainda,
ser ciente deste movimento, ser transparente para si mesmo, estar consciente de si mesmo e tal vez do outro”.
12
Pedro CEREZO GALÁN, La experiencia de la subjetividad en Teresa de Jesus, em La Recepción de los
místicos Teresa de Jesus y Juan de la Cruz, Salamanca 1997, p. 171.
13
1M 2,9
14
Cfr. por exemplo: V 40,6; C 28, 11. Também, em referência a Cristo: C 28,2
5
ser humano, a imagem e semelhança do próprio Deus15. A força que adquire o
fundamento do conhecimento próprio no caminho místico é destacada por Teresa já no
seu primeiro escrito: “... o conhecimento próprio nunca deva ser abandonado...;
porque não há estado de oração tão elevado que torne desnecessário voltar ao
princípio com frequência, sendo os pecados e o conhecimento próprio o pão com que
todos os manjares, por mais delicados, devem ser comidos neste caminho de oração,
pão sem o qual ninguém poderia se sustentar...”16

É preciso assinalar, contudo, que quando Teresa fala do conhecimento próprio,


certamente não está pensando numa realidade meramente cognoscitivo-psicológica. E
aqui radica a genialidade da mística teresiana, que carecendo de uns pressupostos
científicos sobre os que se embasa um crescimento harmônico da personalidade, a sua
experiência mística de Deus abre-lhe os olhos frente a tal realidade, de tal modo que a
sua mística descobre aqui um fator que não a empurra a abstrair-se da realidade
humana, mas, muito pelo contrário, faz com que a pressuponha e encaminhe para a
plenitude total.

O conhecimento próprio sobre o que Teresa tanto insiste é descoberta e tomada de


consciência da própria realidade essencial e existencial. Mesmo centrando o olhar sobre
o “eu”, o conhecimento próprio é o pressuposto que nos leva a romper com o egoísmo e
a alargar o panorama do próprio mundo da alteridade. Um conhecimento próprio que se
abre ao infinito do Mistério que é o único capaz de fundamentar de maneira infinita e
inalienável o inquietante mistério do ser humano, que sempre inquietou a mente do
pensador, quer seja filósofo ou não, que procura um sentido ou razão de ser para a
existência do homem17. O fundamento que encontra Teresa para a compreensão do ser
humano eleva ao máximo o sentido da sua própria dignidade. Não emerge desde uma
realidade caduca, temporal, e nem mesmo trata-se de algo que deva ser-lhe dado
mediante um sistema, uma instituição ou um estado. A dignidade pertence ao ser
humano como sendo a sua própria natureza, razão pela qual está muito acima de

15
Cfr. 1M 1,1
16
V 13,15 (O negrito é meu) Esta mesma importância aparece destacada em: V 15,2-3.8; 1M 1,2
17
P. CEREZO, a.c., p. 203, afirma: “Numa época, de resto egoísta e secularizada, onde o homem, qual novo
Narciso, encontra onde quer os vestígios da sua própria imagem até perecer afogado no labirinto de
intermináveis espelhos, Teresa de Ávila descobria aquele outro espelho interior, polido de silencia e anseios,
aonde a imagem transcende-se a si mesma no seu original. Era o requebro mais elegante, a ironia mais fina
que poder-se-ia imaginar contra o mero humanismo. Porque toda projeção de si mesmo tem um curto rádio, ou
se extravia em infinitas ilusões –humanas, demasiadamente humanas, multiplicados fetiches de si mesmo-, não
fosse projetada sobre ela a ânsia viva ou o desejo transfigurado de um Deus maior do que a nossa miséria e
mais forte do que a morte” (o negrito é meu)
6
ideologias ou de condicionantes temporários e históricos. Pode-se concordar ou não
com a crenças religiosas de Teresa, porém ninguém pode negar que, dentro da dinâmica
por ela apresentada, não pode achar-se fundamento mais sólido para o valor do ser
humano.

Descobrir tal dignidade do ser humano resiste contra qualquer outra atitude negativa
que pudesse vir a anular ou destruir o ser humano, quer seja porque pode perder-se na
angústia da própria miséria, ou porque “faça de conta” frente a ela, para evitar ter que
descobrir-se diferente dos parâmetros sociais ou idealismos pessoais (é a perigosa
atitude do não aceitar-se a si mesmo).

No fundo, não se trata de outra coisa senão da atitude fundamental do ser humano
que procura entender o sentida da sua existência. Acontece que, no caso de Teresa, tal
sentido é visto e complementado à luz de uma compreensão teologal do ser humano que
descobre-se “criatura” e não “senhor”18

Um aspecto importante que o conhecimento próprio leva atrelado a si, junto com a
descoberta da própria dignidade, é o reconhecimento da dignidade do outro.
Descobrindo a raiz e fundamento daquilo que confere o valor infinito ao meu próprio
ser, como consequência necessária irei descobrir que tal fundamento está à base do
sentido e do valor de todos ser humano, a quem já não mais poderei perceber de
maneira diferente.

2 – Fundamentos da dignidade do ser humano

No apartado anterior fiz uma explanação geral sobre a centralidade do conhecimento


próprio na obra teresiana e no processo espiritual e místico, tipo pedra angular sobre a
qual deve ser erguida a construção toda da pessoa, em palavras tantas de Teresa tantas
vezes repetidas “o que mais importa”19. Esta aproximação ajuda-nos a perceber sem
margem do erro, que a compreensão que Teresa chega a atingir sobre a interioridade do
ser humano não é mero resultado de umas crenças religiosas, ou de uma simples
intuição de fé. Emerge ao contato mesmo com a subjetividade inerente ao ser humano.

18
É a atitude continuamente manifestada por Teresa em sua visa após a sua definitiva conversão; (cfr. V 3,5: “...
me fizeram compreender as verdade que entendera quando menina: a inutilidade de tudo o que há no mundo, a
vaidade existente neste, a rapidez com que tudo se acaba. Passei a pensar e a temer que tal vez fosse para o
inferno, caso morresse naquele momento”. Cfr V 15,11: “que tudo (o criado) era nada”). Nessa mesma dinâmica
expõe João da Cruz o início de todo processo espiritual (cfr, CB 1,1)
19
1M 2,13
7
Nos seus escritos, tal e como já acenamos, este é um tema nuclear, se bem que não
lhe dedique um apartado exclusivo ou faça grandes discursos ao respeito20. Mas será
sobretudo em Moradas onde emerge com toda a sua força e valor capital dentro do que
poderíamos denominar o caminho de crescimento da pessoa humana (tanto desde a
perspectiva antropológica como mística). A pessoa cresce na medida em que descobre e
abre os olhos ao verdadeiro valor do seu próprio ser.

De fato, a colocação que acompanha o processo todo que Teresa oferece em


Moradas, intuitiva e explicitamente está alicerçado no conhecimento próprio, O
caminho consiste em conhecer as diversas moradas que descobertas em nosso castelo
interior. Não se trata de um caminho “ad extra”, mas “ad intra”. Teresa, no esboço geral
da obra já consegue que vejamos como o caminho todo identifica-se com o “processo de
conhecimento próprio”. Seria possível afirmar que o dinamismo místico apresentado
por Teresa em sua obra principal está embasado nisto: ajudar-nos a conhecer essa
interioridade que cada um de nós somos, descobrir o que pode acontecer nela, e o que
nós iremos encontrar.

Uma chamada de atenção: quem estiver familiarizado com os escritos da Santa


abulense, cedo percebe a constante insistência com que ela se apresenta a si mesma:
autodenomina-se mulher ruim e pecadora, destacando, qual se de um estribilho se
tratasse, a sua miséria. Tais afirmações correm o rico de acabar criando no leitor a
“sensação” de que Teresa tem um conceito muito negativo de si própria, e poderia leva-
lo a concluir, de maneira errada, que o importante no processo é reconhecer
constantemente a “própria miséria”, como se ela fosse quase que a única condição que
define o sujeito.

Mas o certo é que essa conclusão, que poderia alterar substancialmente a


compreensão do humanismo de base que Teresa pretende transmitir-nos, não é um
elemento absoluto na compreensão que Teresa faz de si própria, e nem aquela que
apresenta a respeito do ser humano em geral. Bem é verdade que a experiência da
limitação, da miséria, do não gostar de si mesmo, etc..., são realidades que acompanham
o processo do conhecimento próprio; porém, não se esgota aí a compreensão de quanto
20
Sobre o tema do conhecimento próprio em Teresa não existe muita literatura. Tive a oportunidade de escrever
sobre o tema em relação com o Livro da Vida: F. J. SANCHO FERMÍN, El conocimiento de sí em la meditación
teresiana, em Id. (coord.), La meditación teresiana, CITeS-Universiad de la Mística, Ávila 2012 (2ª ed.), pp. 51-
90. Também a intervenção de Elisabeth MÜNZEBROCK, La importancia y relevancia del conocimiento de sí en
el proceso espiritual de Teresa, a la luz del Libro de la Vida, en F.J. SANCHO – R. CUARTAS (dir.), El libro
de la Vida de Santa Teresa de Jesus. Actas del I Congreso Internacional Teresiano, Monte Carmelo-Universidad
de la Mística-CITeS, Burgos 2011, pp. 397 ss.
8
somos, e, menos ainda, ela é a dimensão do nosso ser que verdadeiramente nos define.
Neste sentido, a dinâmica que descobrimos nas Moradas convencer-nos-á com a
suficiente nitidez de que, no fundo, a visão antropológica de Teresa é, bem ao contrário,
enormemente positiva.

As primeiras linhas do Castelo Interior já assim o constatam. Teresa adota como


ponto de partida deste escrito, e do caminho que irá propor, a apresentação daquilo que
verdadeiramente somos, aquilo que nos define: o ser humano é na sua interioridade, na
sua alma (quer dizer, naquilo que sustenta e rege a sua vida), um ser de uma beleza
incomparável, um ser que, longe de carecer de sentido ou de estar vazio por dentro, está
habitado pelo próprio Deus; um ser, em definitivo, que é imagem e semelhança de
Deus21., Em tão poucas linhas, não se pode dizer mais a respeito da grandeza e
dignidade do ser humano: “para começar com algum fundamento: que é considerar
nossa alma como um castelo todo de diamante, ou de cristal muito claro, onde há
muitos aposentos... A bem da verdade, irmãs, não é outra coisa a alma do justo senão
um paraíso onde Ele disse ter suas delícias. Pois não achais que assim será o aposento
onde um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão pleno de todos os bens se deleita?
Não encontro outra coisa com que comparar a grande formosura de uma alma e a sua
grande capacidade. De fato, a nossa inteligência - por aguda que seja – mal chega a
compreendê-la, assim como não pode chegar a compreender Deus; pois Ele mesmo
disse que nos criou à sua imagem e semelhança. Se assim é - e não há dúvida disso -,
não há razão para nos cansar buscando compreender a formosura deste castelo. Pois,
ainda que entre ele e Deus exista a diferença que há entre Criador e criatura - já que
esse castelo é criatura -, basta que sua Majestade diga que o fez à sua imagem para
que possamos entender a grande dignidade e formosura da alma”22 Não acharemos
nenhum outro parágrafo em que se fundamente de maneira tão positiva e radical aquilo
que define o ser humano.

Até por três vezes repete Teresa o qualificativo “formosura”. Este texto é o ponto de
partida, onde plasma solenemente a sua definição e compreensão da dignidade do ser
humano. De fato, o processo espiritual proposta por Teresa como fruto da sua longa
experiência mística, consiste principalmente em ir aprofundando e descobrindo cada vez
mais essa grande “formosura” escondida que, por “culpa nossa” tantas vezes somos
incapazes de descobrir. Teresa situa aqui o núcleo da questão, e até poderíamos dizer

21
Cfr. 1M 1,1
22
1M 1,1
9
que a razão pela qual os humanos somos tão miseráveis é porque não conhecemos a
grande dignidade que carregamos. Este era o argumento para explicar o porquê de tantas
injustiças. Agora retorna a ele, lamentando que malgastamos o melhor da vida por não
abrirmos os olhos à nossa verdadeira condição: “Não é pequena lástima e confusão que,
por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos. Não
seria grande ignorância, filhas minhas, que se perguntasse a uma pessoa quem é e ela
não se conhecesse nem soubesse quem foi seu pai, sua mão ou a terra em que nasceu?
Se isto seria grande insensatez, muito maior, sem comparação, é a nossa quando não
procuramos saber quem somos e só nos detemos no corpo. Sabemos que a nossa alma
existe apenas por alto, porque assim ouvimos dizer e assim nos diz a fé. Mas poucas
vezes consideramos as riquezas existentes nessa alma, seu grande valor, quem nela
habita; e assim, não damos importância a conservar sua formosura. Todos os cuidados
se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste castelo, que são os nossos
corpos”23

Mas tem mais, ainda. Esta descrição que Teresa faz do ser humano, sintetiza o
essencial do processo irá apresentar-nos: conhecer, resgatar e viver a grandeza do que
somos. Neste sentido, desde já Teresa transmite como a sua insistência no
“conhecimento de si” não se reduz a uma percepção psicologista ou simplesmente
antropológica da nossa identidade, mas desde esses interrogantes existenciais podemos
caminhar para uma plenitude que está ao alcance de todos, porque é o que nos define
como seres humanos. E porque, além do mais, evidencia o que somos para Deus: entes
com um valor sem medida, infinito e em quem Deus pôs e põe a sua confiança. Deus
estabeleceu sua morada no interior de cada homem, malgrado a sua condição fraca e
pecadora.

Teresa revela-se profundamente inteligente e sábia com este fundamento que


estabelece para o caminho espiritual: progredir no caminho místico será um processo de
humanização, pois que é no “humano” onde se encontra a grandeza do que somos e do
quanto Deus nos deu e forjou em cada um de nós. Uma visão tão positiva do ser
humano só pode emergir em Teresa quando, após ter percorrido o processo todo,
consegue perceber que Deus nos une a Ele em nossa humanidade, porque quere elevá-la
e conduzi-la à plenitude. E nesse caminho o homem adquire um protagonismo de
colaboração que leva inscrito no seu próprio ser. Por isso Teresa constantemente nos

23
1M 1,2
10
convida anão ficarmos presos em “nossa miséria”, pois destarte nunca avançaremos e
nem chegaremos à mora em que o Rei habita.

Este ponto de partida teresiano, que tornar-se-á ponto de chegada (cf M epílogo 3)
nos situa diante da compreensão e necessidade que ela manifesta em relação com a vida
mística.

Daí que o conhecimento próprio nunca chegará a ser total se a pessoa não se
aproximar do mistério. Nele nos é desvelada a identidade mais profunda do que somos:
“pois em nos mesmos estão grandes segredos que não entendemos”24 Para Teresa é o
encontro com o Mistério quem nos conduz à uma compreensão do que verdadeiramente
somos.

Ao se abrir ao Mistério, a pessoa pode chegar a um maior conhecimento de si.


Porém, não se trata apenas disso, mas aprenderá a agir desde a positividade infinita que
a define, em lugar de ficar na limitação de sua miséria. Assim se expressa Teresa: “...
mesmo que seja o do próprio conhecimento, por mais necessário que seja. Entendam-
me bem: mesmo as almas a quem o Senhor tiver chamado ao aposento íntimo em que se
encontra, por mais enlevadas que ai estejam, não devem negligenciar o conhecimento
próprio. Nem o poderão fazer, ainda que o queiram, porque a humildade é como uma
abelha na colmeia: sempre fabrica o seu mel. Sem isto, tudo estaria perdido. Mas
consideremos que a abelha não deixa de sair e voar para trazer flores. Do mesmo
modo, a alma voltada para o próprio conhecimento deve voar algumas vezes, a fim de
considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Ela constatará a sua baixeza mais
do que olhando para si, libertando-se dos parasitas que entram nos primeiros
aposentos, que são os do próprio conhecimento. Embora seja grande misericórdia de
Deus a alma exercitar-se nisso, tanto se peca por excesso como por falta, segundo se
costuma dizer. E crede nisto: com a virtude de Deus praticaremos assim melhor a
virtude do que muito presas ao nosso barro”25

Teresa convida a nos abrirmos ao mistério como a via que torna possível reconhecer
a nossa condição mais autêntica. Fechar-nos ou esconder-nos em nós mesmos não deve
entender-se, apenas, em sentido voluntarista, pois são muitos os riscos a que nos
expomos se não nos abrir-nos à dimensão positiva do que somos: “Pois tudo isso lhes
parece humildade, bem como outras muitas coisas que eu poderia dizer. A causa é o

24
4M 2,5
25
1M 2,8 (o negrito é meu)
11
fato de não nos conhecermos devidamente; distorcemos o conhecimento próprio e, se
nunca saímos de nós mesmos, esses e outros males devem causar-nos temor... e evitará
que o nosso conhecimento próprio se torne rasteiro e covarde. Porque, embora esta
seja apenas a primeira morada, é extremamente rica e de grande valor. Se escaparmos
dos parasitas que nela existem, conseguiremos avançar”26

3 – A toma de consciência de nossa “grandeza” leva-nos a agir positivamente.

A consideração de quanto somos, avoluma em nós a capacidade de agir


positivamente. É um princípio claro e evidente em Teresa, como já constatamos; e trata-
se de um princípio hoje muito ponderado por muitas correntes e movimentos focados
em ajudar ao ser humano na conquista da sua realização. Teresa, muito embora as
grandes limitações que teve que sofrer em sua vida, tanto por doenças como por sua
condição de mulher do século XVI, não se escondeu numa estéril lamentação, nem
permitiu encolher os seus “sonhos” bem como os seus desejos de agir em consequência.
Aliás, ela descobre, no entanto, que uma formiga pode realizar grandes coisas: “Oh
grandeza de Deus! Como manifestais vosso poder dando ousadia a uma formiga. E
como, Senhor meu, não é por vossa culpa que não fazemos grandes coisas, nós que vos
amamos, mas pela nossa própria covardia e pusilanimidade! Nunca tomamos uma
decisão, cheios de temores e prudência humanas e, assim, não realizais vossas
grandezas e maravilhas. Quem é mais amigo de dar, se tivesse a quem, ou de receber
serviços às suas próprias custas?27 E, por isso, aconselha sempre a aspirar a grandes
coisas, a não amedrontar a alma: “sua Majestade deseja almas corajosas e é amigo
delas, desde que sejam humildes e sempre desconfiem de si mesmas. Nunca vi quem
assim age perder-se no caminho, nem uma alma covarde que, sob pretexto de
humildade, percorresse em muitos anos o que as outras percorrem em pouco tempo.
Causa-me forte impressão a grande importância que tem, nesse caminho, procurar
grandes coisas; mesmo que não tenha forças logo, a alma vence uma enorme distância,
embora, como ave de asas fracas, cansa e para”28 Estes textos manifestam, mais uma
vez, o humanismo positivo subjacente a toda experiência mística autêntica.

Até agora estivemos assistindo a um contraste, e até apreciação contraditória, entre


os elementos que definem o conhecimento próprio: miséria e grandeza. Ambas
realidades fazem parte da verdade do que somos. Estamos perante uma moeda de duas

26
1M 2,11
27
F 2,7
28
V 13,2
12
caras, ambas formando parte do ser da pessoa, se bem que não em idênticas condições.
Se prestarmos atenção à imagem usada por Teresa para descrever a pessoa humana,
como um castelo de diamante ou de cristal, a condição de miséria não faz parte do
castelo, é algo que está do lado de fora, com o poder de sujá-lo ou escurecê-lo, porém
sem poder mudar e nem alterar a natureza do castelo. Isto significa que o que
verdadeiramente nos identifica, e alvo para onde deve dirigir-se o conhecimento, é a
descoberta da grandeza e formosura do próprio castelo, quer dizer, ultrapassar a visão
superficial e materialista do ser humano que acaba por anular a sua verdadeira condição,
quer seja no campo religioso, acentuando apenas a condição de ser pecador, quer seja no
campo social, reduzindo o ser humano a quanto ele possui, produz ou consome.

Esta perspectiva é algo que vai ficando claro à medida em que nos adentramos no
nosso próprio castelo e deixamos as parasitas do lado de fora: “Como estas moradas já
se encontram mais perto de onde está o Rei, é grande a sua formosura, havendo coisas
tão delicadas para ver e entender que o intelecto não consegue fazê-lo de modo
adequado, resultando tudo bastante obscuro para os que não tem experiência. Quanto
aos que já a possuem - particularmente os que a tem muita -, bem o entenderão”29

Teresa ensina a considerar o positivo do ser humano, até na descoberta da nossa


miséria e pobreza: “Ó cegueira humana! Até quando, até quando permaneceremos com
os olhos cheios de terra? Pois, embora entre nós não pareça ser tanta que nos cegue de
todo, vejo uns argueirinhos, umas manchazinhas que, se os deixarmos crescer, bastarão
para nos causar prejuízo. Pelo amor de Deus, irmãs, que isto não aconteça, mas
aproveitemos essas faltas para conhecer a nossa miséria; elas nos darão uma melhor
visão, como a deu o lodo ao cego que curou o nosso Esposo. Dessa forma, vendo-nos
tão imperfeitas, supliquemos-Lhe continuamente que extrai bem de nossas misérias, a
fim de em tudo contentarmos sua Majestade”30. Torna-se uma constante no caminho,
até nos mais altos cumes da vida mística.

Poderia alegar-se, tal e como, erradamente, em ocasiões se entende, que o “conhecer-


se” e apenas uma fase do caminho. Para Teresa é em nossa humanidade que deita raízes
nosso verdadeiro tesouro e dignidade. E não cessará de adverti-lo com insistência,
inclusive no final do escrito de “Moradas”: “Embora não se trate senão de sete
moradas, cada uma delas comporta muitas outras: por baixo, por cima, dos lados, com

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4M 1,2
30
6M 4,11
13
lindos jardins, fontes e coisas tão deleitosas que desejareis desfazer-vos em louvores ao
grande Deus, que criou esse castelo à sua imagem e semelhança”31

4 – A dignidade e beleza inalienáveis da pessoa

A modo de síntese, podemos concluir destacando o processo pedagógico e formativo


que Teresa traça para percorrer o caminho místico. Já foi apontado antes que Teresa
inicia este itinerário como se quisesse responder a uma pergunta de entrada necessária:
quem é o homem? Para Teresa, ele é o fundamento ou rocha firme onde se ergue o
castelo da vida da pessoa. De outro modo corre-se o perigo de começar a construir
castelos no ar ou sobre areia, edificando a vida ou o sentido dela sobre realidades
caducas e temporárias, devido ao que o risco de perder o horizonte torna-se permanente.
Neste sentido, convém pôr em evidência tudo quanto Teresa pretende fundamentar no
ser humano desde a compreensão teologal dele mesmo.

Para Teresa, a pessoa que quiser caminhar com passo firme para a sua plenitude e
felicidade, deve considerar e aceitar a sua verdadeira condição, que ela define nestes
três enunciados:

O homem é “Morada de Deus”32. Esta primeira imagem segunda a ordem de


comparência neste escrito teresiano, ressalta não apenas um conceito muito elevado do
que é o ser humano. Poderia parecer uma afirmação ingênua, como fruto de uma
determinada visão religiosa do homem. Mas o certo é que tal afirmação carrega no bojo
um teor bem maior do que a aparência espelha. Dizer que o homem está “habitado pelo
próprio Deus”, significa afirmar que aquilo que lhe dá consistência é uma Presença,
uma presença que nunca desaparece, porquanto a dignidade é valor permanente do ser
humano, e que ninguém lhe pode arrebatar. É o encontro com a beleza do que somos e
que nunca se perde: “Deve-se considerar aqui que a fonte, aquele sol resplandecente
que está no centro da alma, não perde seu resplendor e formosura. Ele continua sempre
dentro dela, e nada pode tirar-lhe o brilho”33 Este princípio oferece uma visão holística
do valor infinito do ser humano diante de si próprio, que nunca perde sua qualidade,
mesmo quando ele achar que a perdeu. Deus permanece sempre fiel à sua criatura,
motivo pelo qual o ser humano, no pensamento teresiano, tem assegurada a sua
dignidade em um princípio infinito e não caduco. Isto implica, além do mais, que o ser
humano, malgrado as suas deficiências, é sujeito de uma confiança constante nele da
31
M epílogo 3
32
1M 1,1
33
1M 2,3
14
parte de Deus. Esta compreensão antropológica abre o místico à compreensão de que
Deus nada espera e nada exige do homem que antes Ele não tenha dado em abundância.
Isto revelar-se-á um grande desafio à vida de fé do crente: mergulhar para ver como e
quem é Deus para ele. Para Teresa uma compreensão basilar do que o homem é firma-
nos, ainda mais, no ser de Deus.

O homem é Imagem e Semelhança de Deus: é o conceito bíblico do homem por


excelência. As implicações atreladas a esta afirmação aparecem já desde o início do
livro das Moradas. Para Teresa trata-se da justificação antropológica no sentido de que a
sua experiência mística tem fundamento na própria humanidade; que não se trata, então,
de algo subjetivo, mas de algo que pertence ao ser que define a existência do homem e a
sua razão de ser. A raiz e o fundamento da sua dignidade. A experiência mística que
assume este princípio como um dogma fundamental, abre-se à descoberta nova do que o
ser humano é em si mesmo.

Tudo isto fundamenta poder falar da grande dignidade e formosura da alma. Sim,
é verdade que Teresa não deixa de falar da miséria, do pecado, da pequenez, da
indignidade, etc... que formam parte do que é o homem. Porém, isso em modo algum
esgota o seu ser. O princípio que irá reger o caminho da vida espiritual aponta para
descobrir a percepção que o próprio Deus tem sobre o homem e, por isso mesmo,
aponta para assumir tal princípio de credibilidade. Esta é a dimensão mais autêntica do
ser humano. Não é o pecado que nos define, mas o sermos imagem; não nos define e
nem esgota a limitação, mas a nossa inserção no infinito... Por isso, a pessoa humana
goza da mesma dignidade de que deriva o seu ser e a sua existência. O nosso pecado, a
nossa miséria... tantas vezes são freio no progresso do crescimento, porque nos
estorvam no adentrar-nos no castelo onde encontramos Deus... Mas adotar como ponto
de partida, não a sujeira que envolve o diamante, mas a convicção da existência desse
diamante por baixa da crosta da sujeira, isso deve ser motor de uma mística viva e
dinâmica, enraizada no ser do homem. Neste sentido, acredito que Teresa está
totalmente certo quanto ao ponto de partida.

Esta visão, no entanto, não se encerra na compreensão daquilo que o ser humano é
em si mesmo. A experiência e abertura interior ao ser, nos abre constantemente à
percepção da gratuidade, da descoberta que o que me define e identifica é algo que me
foi dado gratuitamente: o que, desde a perspectiva da vivência mística teresiana
encontra a sua mais profunda revelação no mistério da redenção. Sentir-se redimido por

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Cristo: “Ó almas remidas pelo sangue de Jesus Cristo! Entendei-vos e tende dó de vós
mesmas! Como é possível que, entendendo essa verdade, não procureis tirar o piche
desse cristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar dessa luz. Ó
Jesus! O que é ver uma alma afasta dela”34

Porém, como desde o início viemos frisando, a experiência mística não se


fundamenta em verdades teóricas ou princípios, por relevantes que puderem ser. A
mística autêntica se justifica desde o dinamismo de vida que assume e faz próprios tais
princípios, permitindo ser por eles transformada e revitalizada. E é nessa dinâmica que
se movimenta Teresa. E desde aqui podemos entender o porquê uma experiência mística
autêntica e duradoura acaba por modelar na pessoa um processo de amadurecimento e
de realização da própria humanidade, embora com suas deficiências e limitações.

5 – Como conclusão...

Essas verdades conhecidas pela fé e reconhecidas pela experiência, vão forjando as


consequências existenciais para o ser humano e para o místico. Tais consequências nos
são apresentadas por Teresa como um desafio, como uma verdadeira motivação para
não renunciar a percorrer esta fascinante aventura da autêntica humanização.

Deu não pode não habitar senão em lugar primoroso; como não aventurar-nos neste
caminho para a própria interioridade, e descobrir que nela encontra-se o mais valioso
tesouro que podemos almejar? “Pois não achais que assim será o aposento onde um Rei
tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão pleno de todos os bens se deleita?... Se assim é, e
não há dúvida disso, não há razão para nos cansar buscando compreender a formosura
deste castelo...”35

Necessidade de ser consequentes com nosso autêntico ser, e tratar de aprofundar em


quanto nos manifesta, especialmente em relação com o que somos no próprio interior. A
consequência é que temos a obrigação de adentrar-nos, conhecer-nos, se quisermos
encontrar-nos com o sentido e valor da nossa vida e alcançar a plenitude e a felicidade:
“...por nossa culpa não nos entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos...
maior é a nossa quando não procuramos saber quem somos e só nos detemos no corpo.
Sabemos que a nossa alma existe apenas por alto, porque assim ouvimos dizer e porque
assim nos diz a fé. Mas poucas vezes consideramos as riquezas existentes nessa alma,
seu grande valor, quem nela habita; e assim não damos importância a conservar sua

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1M 2,4
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1M 1,1
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formosura. Todos os cuidados se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste
castelo, que são os nossos corpos”36

No fim das contas, o caminho místico e o caminho do conhecimento e realização da


nossa dignidade convergem num mesmo fim e projeto, “pois a verdade é que vejo
segredos em nós mesmos que muitas vezes me espantam”37

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1M 1,2
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4M 2,5
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