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Susan Sontag
Ensaios Sobre Fotografia
Lisboa, Publicações Dom Quixote (Colecção: Arte e Sociedade, nº5, 1986, 178 pp.
Título original: “On Photograhy” (Penguin Books)
ÍN D IC E G ER AL:
• Introdução (p.11)
• N a C averna de Platão (p.13-32)
• A América Vista Através de Fotografias, Sombriamente
• O bjectos Melancólicos (p.53-80)
• O H eroísmo da Visão (p.81-104)
• O s Evangelhos Fotográficos
• O Mundo das Imagens (p.135-158)
• Breve Antologia de C itações (H omenagem A W . B.) (p.159-178)
NA CAVERNA DE PLATÃO
duvida, parece ficar provado graças a uma fotografia. Numa das variantes da sua
utilidade, o registo de uma câmara incrimina. Desde a sua utilização pela polícia de
Paris na perseguição sanguinária aos Communards em Junho de 1871, a fotografia
tornou-se um instrumento precioso dos estados modernos para a vigilância e controle
das suas populações, que têm uma crescente mobilidade. Numa outra versão da sua
utilidade, o registo de uma câmara justifica. Uma fotografia passa por ser uma prova
incontroversa de que uma determinada coisa aconteceu. Por mais distorcida que a
imagem se apresente, há sempre a presunção de que algo existe ou existiu, algo que é
semelhante ao que vemos na imagem. Sejam quais forem as limitações (no caso do
amadorismo) ou pretensões (no caso da capacidade artística) do fotógrafo, uma
fotografia — qualquer fotografia — parece ter uma relação mais inocente, e por isso
mais exacta, com a realidade visível do que os outros objectos miméticos. Virtuosos da
imagem nobre como Alfred Stieglitz e Paul Strand, ao comporem vigorosas e
inesquecíveis fotografias década após década, mais não pretendiam do que mostrar
em primeiro lugar algo que «está ali», à semelhança do possuidor de uma Polaroid
para quem as fotografias são um meio prático e rápido de tomar notas, ou do
aficionado que, com a sua Brownie, tira instantâneos para recordar o seu quotidiano.
Enquanto que uma pintura ou descrição em prosa nunca podem ser mais do que
uma simples interpretação selectiva, uma fotografia pode ser encarada como uma
simples transparência selectiva. Mas, apesar da presunção de veracidade que confere
à fotografia a sua autoridade, interesse e sedução, o trabalho do fotógrafo não é uma
excepção genérica às relações habitualmente equívocas entre arte e verdade. Mesmo
quando os fotógrafos se propõem sobretudo reflectir a realidade, estão ainda
constrangidos por imperativos tácitos de gosto e de consciência. Os membros da Farm
Security Administration, projecto fotográfico do fim dos anos 30, todos eles com imenso
talento (entre outros, Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn e Russel Lee),
tiraram dúzias de retratos frontais de cada rendeiro até estarem seguros de terem
obtido o aspecto que pretendiam: a expressão correcta do rosto que transmitisse as
suas próprias noções da pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria. Ao
decidirem como deverá ser uma imagem, ao optarem por uma determinada exposição,
os fotógrafos impõem sempre normas aos temas que fotografam. Embora, num certo
sentido, a câmara, não só interprete, mas capte de facto a realidade, as fotografias são
tanto uma interpretação do mundo como as pinturas ou os desenhos. As ocasiões em
que tirar uma fotografia é um gesto relativamente irreflectido, promíscuo ou em que o
fotógrafo se anula, não desmentem o didactismo da actividade no seu conjunto. É esta
própria passividade, ubiquidade, do registo fotográfico que é a «mensagem» da
fotografia, a sua capacidade de agredir.
As imagens que idealizam (como a maior parte das fotografias de moda e de
animais) não são menos agressivas do que as que valorizam a ausência de beleza
(como fotografias de aulas banalíssimas como sórdidas naturezas mortas e retratos de
criminosos). Há uma agressão implícita sempre que se usa uma câmara. Isso é tão
evidente nas duas primeiras e gloriosas décadas da fotografia, as de 1840 e 1850,
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como nas seguintes, em que a tecnologia tornou possível uma crescente difusão da
mentalidade que vê o mundo como uma série de potenciais de fotografias. Mesmo no
que se refere aos primeiros mestres, como David Octavius Hill e Julia Margaret
Cameron, que utilizaram a câmara como um meio para obterem imagens pictóricas, o
motivo que os levava a fotografar era já bem diferente do objectivo dos pintores. A
fotografia desde o seu início, dedicou-se ao tratamento do maior número possível de
assuntos. A pintura nunca teve tão grandes ambições. A posterior industrialização da
tecnologia da câmara limitou-se a concretizar uma expectativa inerente à própria
fotografia desde os seus primórdios: democratizar todas as experiências traduzindo-as
para imagens.
A época em que fotografar requeria uma maquineta cara e incómoda — o brinquedo
dos inteligentes, dos ricos e dos obcecados — parece na verdade muito distante da
era das atraentes e convidativas câmaras de bolso. As primeiras câmaras, construídas
em França e Inglaterra no início da década de 1840, apenas eram manuseadas pelos
seus inventores e por grupo de entusiastas. Como não havia fotógrafos profissionais
também não podiam existir amadores, e fotografar não tinha uma utilidade social
evidente; era uma actividade gratuita, ou seja, artística, com poucas pretensões de se
transformar em arte. Só com a sua industrialização é que a fotografia se assumiu como
arte. A industrialização, ao estabelecer utilidades sociais para as actividades do
fotógrafo, provocou reacções que reforçaram a autocons-ciência da fotografia como
arte.
A fotografia, mais recentemente, transformou-se num divertimento quase tão
praticado como o sexo e a dança, o que significa que, como todas as formas de arte de
massas, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como arte. É sobretudo
um rito social, uma defesa contra a ansiedade e um instrumento de poder.
O primeiro uso popular da fotografia estava relacionada com a comemoração de
realizações de indivíduos enquanto membros de uma família (bem como de outros
grupos). Durante, pelo menos, um século, a fotografia de casamento fez parte da
cerimónia quase ao mesmo título que as fórmulas verbais. As câmaras acompanham a
vida familiar. De acordo com um estudo sociológico feito em França, a maioria dos
agregados familiares possuem uma câmara, mas a probabilidade de uma família com
crianças ter, pelo menos, uma câmara é duas vezes maior. Não fotografar crianças,
particularmente quando são pequenas, é um sinal de indiferença dos pais, do mesmo
modo que não posar para uma fotografia de fim de curso é um gesto de rebeldia
adolescente.
Cada família constrói, através da fotografia, uma crónica de si mesma, uma série
portátil de imagens que testemunha a sua coesão. Sejam quais forem as actividades
fotografadas o que importa é que as fotografias sejam tiradas e conservadas com
carinho. A fotografia torna-se um rito familiar precisamente no momento em que, nos
países industrializados da Europa e da América, a própria instituição familiar começa a
sofrer uma transformação radical. À medida que o núcleo familiar, unidade
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média1) , foi substituída pelo mistério do turista japonês, sempre em grupo, recém
liberto da sua prisão insular graças ao milagre da sobrevalorização do iene, e
geralmente munido de duas câmaras, uma em cada ombro.
A fotografia tornou-se um dos principais meios de acesso à experiência, a uma
ilusão de participação. Um anúncio de página inteira apresenta um pequeno grupo de
pessoas apertadas umas contra as outras, como que emergindo da fotografia; todas, à
excepção de uma parecem aturdidas, excitadas e perturbadas. Essa, que revela uma
expressão diferente, tem uma câmara à altura dos olhos; parece segura de si, esboça
um sorriso. Enquanto as outras são espectadoras passivas e visivelmente alarmadas,
a que tem uma câmara está transformada numa pessoa activa, num voyeur: só ela
conseguiu dominar a situação. O que é que essas pessoas vêem? Não sabemos. Nem
isso interessa. Trata-se de um acontecimento: algo que vale a pena ver e, portanto,
fotografar. No terço interior da fotografia, o texto do anúncio, letras brancas contra o
fundo negro, semelhante a notícias que aparecem em teletipo consiste apenas em seis
palavras: «... Praga... Woodstock... Vietname... Sapporo... Londonderry... LEICA.»
Esperanças frustradas, excentricidades da juventude, guerras coloniais e desportos de
inverno, tudo é semelhante, uniformizado pela câmara. Tirar fotografias provoca uma
relação « voyuerística» crónica com o mundo, que nivela o significado de todos os
acontecimentos.
Uma fotografia não é apenas o resultado de um encontro entre o fotógrafo e um
acontecimento; fotografar é em si mesmo um acontecimento, cada vez com mais
direitos: o de interferir, ocupar ou ignorar tudo o que se passa à sua volta. A própria
maneira como sentimos uma situação é agora articulada com a intervenção da câmara.
A omnipresença das câmaras sugere persuasivamente que o tempo só compreende
acontecimentos interessantes, acontecimentos que vale a pena fotografar. O que, por
sua vez, nos leva facilmente a sentir que qualquer acontecimento, uma vez precipitado
e seja qual for o seu carácter moral, deveria ir até ao fim, para que assim possa surgir
mais alguma coisa: a fotografia. Quando o acontecimento tiver acabado, a fotografia
ainda existirá, o que confere ao acontecimento uma espécie de imortalidade (e
importância) que de outro modo nunca teria. Enquanto pessoas concretas se suicidam
e se matam umas às outras, o fotógrafo fica atrás da sua câmara, criando um
minúsculo elemento de um outro mundo: o mundo de imagens que se propõe
sobreviver a todos nós.
Fotografar é essencialmente um acto de não intervenção. Parte do horror provocado
por esses memoráveis feitos do foto- jornalismo contemporâneo, como as imagens do
bonzo vietnamita procurando alcançar a lata da gasolina ou do guerrilheiro bengali no
momento em que trespassa à baioneta um colaboracionista amarrado, deriva de se ter
1)
No original «Babbittry» alusão ao romance de Sinclair Lemis, Babbitt, obra que «forneceu à Europa
uma definição do americano médio», segundo John Brown, em Panorama da Literatura Americana do
Século XX, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1973. (N do T.)
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Tal como um carro, uma câmara é vendida como uma arma predatória, uma arma
tão automatizada quanto possível, pronta a disparar. O gosto popular prefere uma
tecnologia simples e invisível. Os fabricantes garantem aos seus clientes que
fotografar não exige qualquer habilidade ou conhecimentos profundos, que a máquina
funciona sozinha e reage à mais pequena manifesta- cão da vontade. Tão simples
como pôr o carro a trabalhar ou carregar no gatilho.
As câmaras, como as armas e os carros, são máquinas-fantasia cujo uso é viciante.
No entanto, apesar das peculiaridades da linguagem vulgar e da publicidade, não são
letais. Na hipérbole que leva a comercializar os carros como se fossem armas, há, pelo
menos, uma grande verdade: à excepção dos períodos de guerra, os carros matam
mais pessoas do que as armas. A câmara-arma não' mata, e assim a agressiva
metáfora parece ser completamente enganadora, tal como a fantasia masculina de
possuir uma arma, uma faca ou uma ferrramenta entre as pernas. Apesar disso existe
qualquer coisa de predatório no acto de registar uma imagem. Fotografar pessoas é
violá-las, vendo-as como elas nunca se vêem, conhecendo-as como elas nunca se
poderão conhecer; é transformá-las em objectos que podem ser possuídas
simbolicamente. Assim como a câmara é uma sublimação da arma, fotografar alguém é
um assassínio sublimado, um assassínio suave, digno de uma época triste e
assustada. Talvez as pessoas venham a aprender a descarregar as suas agressões
mais por intermédio da câmara e menos com as armas, com a contrapartida de um
mundo cada vez mais asfixiado por imagens. Um exemplo de que as pessoas podem
trocar as balas por filme são os safaris fotográficos que tendem a substituir os safaris
na África Oriental. Os caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez
de olharem através de uma mira telescópica para apontar a carabina, olham através
de um visor para enquadrar uma imagem. Na Londres de fim de século, Samuel Butter
queixava-se de que «havia um fotógrafo em cada arbusto, comportando-se como um
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leão esfomeado à procura de uma vítima». O fotógrafo ataca agora feras verdadeiras,
sitiadas e demasiado raras para poderem ser mortas. Nesta comédia séria que é o
safari ecológico, as armas metamorfosearam-se em câmaras, porque a natureza
deixou de ser o que sempre foi: aquilo de que o homem tinha de se proteger. Agora a
natureza — subjugada, ameaçada, em perigo de extinção — necessita de ser
protegida das pessoas. Quando sentimos medo, disparamos. Mas quando nos
sentimos nostálgicos, tirarmos fotografias.
Vivemos um período nostálgico, e a fotografia promove intensamente a nostalgia. A
fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temas
fotografados, são, pelo simples facto de serem fotografados, afectados pelo pathos.
Um tema feio ou grotesco pode ser comovente por ter sido dignificado pela atenção do
fotógrafo. Um tema belo pode provocar sentimentos de compaixão por ter envelhecido,
perdido importância ou já não existir. Todas as fotografias são momento mori.
Fotografar é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma outra
pessoa ou objecto. Cada fotografia testemunha a inexorável dissolução do tempo,
precisamente por seleccionar e fixar um determinado momento.
As câmaras começaram a duplicar o mundo na altura em que a paisagem humana
passou a estar submetida a um vertiginoso ritmo de transformação: enquanto uma
imensidão de formas de vida social e biológica são destruídas num brevíssimo espaço
de tempo, surge uma invenção que permite o registo do que vai desaparecendo. A
Paris melancólica de Atget e Brassaï, com a sua intrincada estrutura, já praticamente
não existe. Tal como os amigos e parentes já mortos preservados no álbum de família
em fotografias que exorcizam parte da ansiedade e remorsos provocados pelo seu
desaparecimento, também as fotografias dos bairros agora demolidos, das zonas
rurais desfiguradas e deslocadas compensam a nossa precária relação com o
passado.
Uma fotografia é simultaneamente uma pseudopresença e um signo de ausência.
As fotografias, especialmente de pessoas, de paisagens distantes e cidades
longínquas, de um passado irrecuperável, assim como uma lareira numa sala, são
incitamentos ao devaneio. A sensação do inatingível que as fotografias conseguem
evocar alimenta os sentimentos eróticos daqueles para quem o desejo é estimulado
pela distância. A fotografia do amante escondida na carteira de uma mulher casada, o
poster de uma estrela rock por cima da cama de um adolescente, a imagem de um
político na lapela de um eleitor, o instantâneo dos filhos de um motorista no seu táxi —
todos esses usos talismânicos da fotografia exprimem uma sensibilidade emotiva e
implicitamente mágica: são tentativas de alcançar ou possuir outra realidade.
As fotografias podem instigar o desejo do modo mais directo e utilitário, como
quando se coleccionam fotografias de exemplos anónimos do desejável como estímulo
para a masturbação. A questão torna-se mais complexa quando a fotografia é utilizada
para estimular impulsos morais. O desejo não tem história — pelo menos é
experimentado em cada momento como incontornável e imediato. É suscitado
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Designação americana para os filhos de emigrantes japoneses. (N do T)
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dos vietnamitas (muitas das quais eram provenientes de fontes militares e tinham sido
tiradas com propósitos bem diversos) porque os jornalistas se sentiram apoiados nos
seus esforços para obterem essas fotografias, já que o acontecimento tinha sido
definido por uma parte significativa da população como uma selvagem guerra
colonialista. A guerra da Coreia foi encarada de maneira diferente — como parte da
justa luta do Mundo Livre contra a União Soviética e a China — e, em função dessa
caracterização as fotografias das atrocidades causadas pelo ilimitado poder bélico
americano teriam sido irrelevantes.
Embora o termo acontecimento tenha chegado a significar, precisamente, algo que
merece ser fotografado, é ainda a ideologia (no seu sentido lato que determina o que
constitui um acontecimento).
Um acontecimento só pode ser comprovado, fotograficamente ou doutro modo, se
ele próprio assim tiver sido designado e caracterizado. E não é nunca a prova
fotográfica que pode construir, ou mais correctamente, identificar, acontecimentos; a
contribuição da fotografia segue-se sempre à identificação do acontecimento. É a
existência de uma forte consciência política que determina a possibilidade de sermos
moralmente afectados por fotografias. É provável que, sem o contexto político, as
fotografias das carnificinas da história fossem apenas sentidas como irreais ou
provocassem um impacto emocional e desmoralizante.
O tipo de sentimentos, e mesmo a ofensa moral a que as fotografias dos oprimidos,
dos explorados, dos esfomeados e dos massacrados podem fazer apelo, depende
também do grau de familiaridade de estas imagens. As fotografias que Don McCullin
tirou aos esqueléticos biafrenses no início dos anos 70 tiveram muito menos impacto
do que as fotografias de Werner Bischof das vítimas da fome na Índia no início da
década de 50, porque essas imagens se tinham tornado banais; e as fotografias de
famílias Tuaregue morrendo de fome na região do Subsara, que apareceram nas
revistas do mundo inteiro em 1973, devem ter parecido a muitos uma insuportável
repetição de uma já familiar exibição de atrocidades.
É por revelarem qualquer coisa de original que as fotografias podem causar
impacto. Lastimavelmente, a parada é cada vez mais alta o que em parte se deve à
própria proliferação dessas imagens de horror. O primeiro contacto com o inventário
fotográfico do horror absoluto é uma espécie de revelação, o protótipo da revelação
moderna: uma epifania negativa. No meu caso, foram as fotografias de Bergen-Belsen
e Dachau que descobri por acaso numa livraria de Santa Mónica em Julho de 1945.
Nunca vi nada, quer em fotografias, quer na vida real, que me atingisse de um modo
tão claro, profundo e instantâneo. Na verdade, é possível dividir a minha vida em duas
partes: antes e depois de (com doze anos) ter visto essas fotografias, embora isso se
passasse vários anos antes de ter entendido completamente o seu significado. De que
me serviu tê-las visto? Eram apenas fotografias, de um acontecimento de que mal
tinha ouvido falar, de um sofrimento dificilmente imaginável e sem remédio. Quando
olhei para elas algo quebrou. Tinha atingido um qualquer limite, que não era apenas o
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do horror; senti-me irrevogavelmente magoada, ferida, mas uma parte dos meus
sentimentos começou a endurecer; algo morreu, algo ainda chora.
Uma coisa é sofrer, outra é viver com as imagens fotográficas do sofrimento, que
não reforçam necessariamente a consciência e a capacidade de compaixão. Também
podem corrompê-las. Depois de termos visto imagens como essas, iniciamos um
percurso irreversível. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Um
acontecimento conhecido através de fotografias torna-se certamente muito mais real
do que se não tivessem sido visto dessa forma, por exemplo, a Guerra do Vietname.
(Como exemplo inverso, pense-se no Arquipélago de Goulague, de que não temos
fotografias.) Mas também se pode tornar menos real após uma repetida exposição às
imagens.
O mesmo princípio é tão válido para o mal como para a pornografia. O impacto
provocado pelas fotografias de atrocidades vai diminuindo com sucessivas
observações, tal como a surpresa e a estupefacção sentidas ao ver pela primeira vez
um filme pornográfico vão desaparecendo depois de termos visto mais alguns. O
sentido do tabu que provoca a nossa indignação e tristeza, não é mais forte do que o
que regula a definição do que é obsceno. Em anos recentes, ambos têm sido
intensamente postos à prova. O vasto catálogo fotográfico de miséria e injustificação
no mundo familiarizou-nos de certo modo com a atrocidade, fazendo com que o
horrível pareça vulgar, familiar, remoto («é só uma fotografia»), irremediável. Na época
das primeiras fotografias dos campos nazis essas imagens não eram nada banais.
Trinta anos depois, parece ter-se atingido um ponto de saturação. Nestas últimas
décadas, a fotografia «comprometida» contribuiu tanto para insensibilizar a nossa
consciência como para a despertar.
O conteúdo ético das fotografias é frágil. Com a possível excepção das fotografias
desses horrores, como as dos campos nazis, que alcançaram o estatuto de pontos de
referência éticos, a maioria das fotografias não mantém a sua carga emocional. É
provável que uma fotografia de 1900, cujo tema a tornava então comovedora, hoje nos
afecte mais por ter sido tirada em 1900. As qualidades e intenções específicas das
fotografias, tendem a ser absorvidas pelo pathos generalizado do passado. O
distanciamento estético parece fazer parte da própria experiência de ver fotografias,
senão de imediato, seguramente com o passar do tempo. O tempo acaba por elevar
quase todas as fotografias, mesmo as mais amadorísticas, ao nível da arte.
A industrialização da fotografia permitiu a sua rápida absorção pelos modos
racionais ou seja, burocráticos, de funcionamento da sociedade. Acabaram-se as
imagens de brinquedo, as fotografias tornam-se parte do conjunto de objectos que nos
rodeiam, pedra de toque e confirmação da abordagem redutiva da realidade, aquela
que é considerada realista. As fotografias foram chamadas a prestar serviço, como
objectos simbólicos e como elementos de informação, em importantes instituições de
controle, nomeadamente a família e a política. Por isso, na catalogação burocrática do
mundo, muitos documentos importantes só se tornam válidos se tiverem aposta uma
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3)
Jornal ilustrado de Nova Iorque. (N. do T)
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