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Susan Sontag — Ensaios Sobre Fotografia: 1.

N a C averna de Platão 1/14

Susan Sontag
Ensaios Sobre Fotografia
Lisboa, Publicações Dom Quixote (Colecção: Arte e Sociedade, nº5, 1986, 178 pp.
Título original: “On Photograhy” (Penguin Books)
ÍN D IC E G ER AL:
• Introdução (p.11)
• N a C averna de Platão (p.13-32)
• A América Vista Através de Fotografias, Sombriamente
• O bjectos Melancólicos (p.53-80)
• O H eroísmo da Visão (p.81-104)
• O s Evangelhos Fotográficos
• O Mundo das Imagens (p.135-158)
• Breve Antologia de C itações (H omenagem A W . B.) (p.159-178)

NA CAVERNA DE PLATÃO

A humanidade permanece irremediavelmente presa na Caverna de Platão,


continuando a deliciar-se, como é seu velho hábito, com meras imagens da verdade.
Mas ser-se educado por fotografias não é o mesmo que ser-se educado por outras
imagens mais antigas e mais artesanais. Na realidade, a quantidade de imagens que
nos rodeia e exige a nossa atenção é agora muito maior. O inventário teve o seu início
em 1839 e desde então tudo, ou quase tudo, parece ter sido fotografado. Esta
insaciabilidade do olhar fotográfico altera os termos da reclusão na caverna, o nosso
mundo. Ao ensinar-nos um novo código visual, as fotografias transformam e ampliam
as nossas noções do que vale a pena olhar e do que pode ser observado. São uma
gramática e, mais importante ainda, uma ética da visão. Por fim, o resultado mais
significativo da actividade fotográfica é dar-nos a sensação de que a nossa cabeça
pode conter todo o mundo — como uma antologia de imagens.
Coleccionar fotografias é coleccionar o mundo. Os filmes e programas de televisão
iluminam os écrans, vacilam e desaparecem; mas na fotografia a imagem é também
um objecto, leve, barato e fácil de transportar, acumular e conservar. Em Les
Carabiniers (1963) de Godard dois pobres e preguiçosos camponeses deixam-se atrair
para o Exército Real com a promessa de que poderão pilhar, violar, matar ou fazer ao
inimigo o que mais lhe agradar, e ainda ficar ricos. Mas a mala que Miguel Angelo e
Ulisses, anos mais tarde, trazem triunfalmente para as suas mulheres, só contém
postais, centenas de postais ilustrados de monumentos, grandes armazéns,
mamíferos, maravilhas da natureza, métodos de transporte, obras de arte e outros
tesouros classificados do mundo inteiro. A ironia de Godard parodia com
expressividade a magia equívoca da imagem fotográfica. As fotografias são talvez o
mais misterioso de todos os objectos que constituem e dão consistência ao ambiente
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que consideramos moderno. Na realidade, as fotografias são experiências capturadas,


e a câmara o instrumento ideal da consciência na sua atitude aquisitiva.
Fotografar é apropriarmo-nos da coisa fotografada. Significa envolvermo-nos numa
certa relação com o mundo que se assemelha ao conhecimento e, por isso, ao poder.
Tem-se pressuposto que uma primeira queda na alienação, agora evidente, que nos
habituou a resumir o mundo em palavras impressas, deu origem a esse excesso de
energia faústica e de mal-estar psíquico indispensáveis para a construção das
sociedades modernas, inorgânicas. Mas a imprensa parece uma forma muito menos
traiçoeira de filtrar o mundo, de o converter num objecto mental, do que as imagens
fotográficas, que fornecem hoje em dia a maior parte do conhecimento que temos do
que foi o passado e do alcance do presente. O que se escreve sobre uma pessoa ou
um acontecimento é uma mera interpretação, à semelhança de depoimentos visuais
artesanais como a pintura e o desenho. As imagens fotográficas não parecem tanto ser
depoimentos sobre o mundo como seus fragmentos, miniaturas da realidade que todos
podem fazer ou adquirir.
Mas as fotografias, que jogam com a escala do mundo, podem elas próprias ser
reduzidas, ampliadas, cortadas, retocadas, adulteradas e trocadas. Envelhecem
quando atacadas pelas doenças habituais dos objectos de papel; desaparecem;
tornam-se valiosas, compram-se e vendem-se; são reproduzidas. As fotografias, que
armazenam o mundo, parecem incitar ao armazenamento. São guardadas em álbuns,
emolduradas e colocadas sobre as mesas, postas nas paredes, projectadas sob a
forma de diapositivos. São exibidas em jornais e revistas; classificadas pela polícia;
expostas em museus e coligidas pelos editores.
Durante muitas décadas, o livro foi o modo mais utilizado para organizar (e
normalmente miniaturizar) fotografias, garantindo-lhes assim a longevidade, senão a
imortalidade — as fotografias são objectos frágeis que facilmente se rasgam ou se
extraviam — e um público mais vasto. A fotografia num livro é, obviamente, a imagem
de uma imagem. Mas como é, antes de mais, um objecto impresso e plano, uma
fotografia perde muito menos as suas qualidades essenciais quando reproduzida em
livro do que uma pintura. Ainda assim, o livro não é um meio completamente
satisfatório para fazer circular pela generalidade do público um conjunto de fotografias.
A sequência em que as fotografias devem ser olhadas é proposta pela ordem das
páginas, mas nada obriga os leitores a seguirem a ordem recomendada ou indica a
quantidade de tempo que devem dedicar a cada fotografia. O filme de Chris Marker, Si
Favais quatre dromadaires (1966), uma meditação brilhantemente orquestrada sobre
fotografias de todos os géneros e assuntos, sugere um modo mais rigoroso e subtil de
armazenar (e ampliar) fotografias. Tanto a ordem como o tempo exacto para olhar
cada fotografia são impostos, o que aumenta a legibilidade visual e o impacto
emocional. Mas as fotografias transcritas num filme deixam de ser objectos
coleccionáveis, como apesar de tudo ainda são quando apresentadas em livro.
As fotografias fornecem provas. Qualquer coisa de que se ouve falar mas de que se
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duvida, parece ficar provado graças a uma fotografia. Numa das variantes da sua
utilidade, o registo de uma câmara incrimina. Desde a sua utilização pela polícia de
Paris na perseguição sanguinária aos Communards em Junho de 1871, a fotografia
tornou-se um instrumento precioso dos estados modernos para a vigilância e controle
das suas populações, que têm uma crescente mobilidade. Numa outra versão da sua
utilidade, o registo de uma câmara justifica. Uma fotografia passa por ser uma prova
incontroversa de que uma determinada coisa aconteceu. Por mais distorcida que a
imagem se apresente, há sempre a presunção de que algo existe ou existiu, algo que é
semelhante ao que vemos na imagem. Sejam quais forem as limitações (no caso do
amadorismo) ou pretensões (no caso da capacidade artística) do fotógrafo, uma
fotografia — qualquer fotografia — parece ter uma relação mais inocente, e por isso
mais exacta, com a realidade visível do que os outros objectos miméticos. Virtuosos da
imagem nobre como Alfred Stieglitz e Paul Strand, ao comporem vigorosas e
inesquecíveis fotografias década após década, mais não pretendiam do que mostrar
em primeiro lugar algo que «está ali», à semelhança do possuidor de uma Polaroid
para quem as fotografias são um meio prático e rápido de tomar notas, ou do
aficionado que, com a sua Brownie, tira instantâneos para recordar o seu quotidiano.
Enquanto que uma pintura ou descrição em prosa nunca podem ser mais do que
uma simples interpretação selectiva, uma fotografia pode ser encarada como uma
simples transparência selectiva. Mas, apesar da presunção de veracidade que confere
à fotografia a sua autoridade, interesse e sedução, o trabalho do fotógrafo não é uma
excepção genérica às relações habitualmente equívocas entre arte e verdade. Mesmo
quando os fotógrafos se propõem sobretudo reflectir a realidade, estão ainda
constrangidos por imperativos tácitos de gosto e de consciência. Os membros da Farm
Security Administration, projecto fotográfico do fim dos anos 30, todos eles com imenso
talento (entre outros, Walker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn e Russel Lee),
tiraram dúzias de retratos frontais de cada rendeiro até estarem seguros de terem
obtido o aspecto que pretendiam: a expressão correcta do rosto que transmitisse as
suas próprias noções da pobreza, luz, dignidade, textura, exploração e geometria. Ao
decidirem como deverá ser uma imagem, ao optarem por uma determinada exposição,
os fotógrafos impõem sempre normas aos temas que fotografam. Embora, num certo
sentido, a câmara, não só interprete, mas capte de facto a realidade, as fotografias são
tanto uma interpretação do mundo como as pinturas ou os desenhos. As ocasiões em
que tirar uma fotografia é um gesto relativamente irreflectido, promíscuo ou em que o
fotógrafo se anula, não desmentem o didactismo da actividade no seu conjunto. É esta
própria passividade, ubiquidade, do registo fotográfico que é a «mensagem» da
fotografia, a sua capacidade de agredir.
As imagens que idealizam (como a maior parte das fotografias de moda e de
animais) não são menos agressivas do que as que valorizam a ausência de beleza
(como fotografias de aulas banalíssimas como sórdidas naturezas mortas e retratos de
criminosos). Há uma agressão implícita sempre que se usa uma câmara. Isso é tão
evidente nas duas primeiras e gloriosas décadas da fotografia, as de 1840 e 1850,
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como nas seguintes, em que a tecnologia tornou possível uma crescente difusão da
mentalidade que vê o mundo como uma série de potenciais de fotografias. Mesmo no
que se refere aos primeiros mestres, como David Octavius Hill e Julia Margaret
Cameron, que utilizaram a câmara como um meio para obterem imagens pictóricas, o
motivo que os levava a fotografar era já bem diferente do objectivo dos pintores. A
fotografia desde o seu início, dedicou-se ao tratamento do maior número possível de
assuntos. A pintura nunca teve tão grandes ambições. A posterior industrialização da
tecnologia da câmara limitou-se a concretizar uma expectativa inerente à própria
fotografia desde os seus primórdios: democratizar todas as experiências traduzindo-as
para imagens.
A época em que fotografar requeria uma maquineta cara e incómoda — o brinquedo
dos inteligentes, dos ricos e dos obcecados — parece na verdade muito distante da
era das atraentes e convidativas câmaras de bolso. As primeiras câmaras, construídas
em França e Inglaterra no início da década de 1840, apenas eram manuseadas pelos
seus inventores e por grupo de entusiastas. Como não havia fotógrafos profissionais
também não podiam existir amadores, e fotografar não tinha uma utilidade social
evidente; era uma actividade gratuita, ou seja, artística, com poucas pretensões de se
transformar em arte. Só com a sua industrialização é que a fotografia se assumiu como
arte. A industrialização, ao estabelecer utilidades sociais para as actividades do
fotógrafo, provocou reacções que reforçaram a autocons-ciência da fotografia como
arte.
A fotografia, mais recentemente, transformou-se num divertimento quase tão
praticado como o sexo e a dança, o que significa que, como todas as formas de arte de
massas, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como arte. É sobretudo
um rito social, uma defesa contra a ansiedade e um instrumento de poder.
O primeiro uso popular da fotografia estava relacionada com a comemoração de
realizações de indivíduos enquanto membros de uma família (bem como de outros
grupos). Durante, pelo menos, um século, a fotografia de casamento fez parte da
cerimónia quase ao mesmo título que as fórmulas verbais. As câmaras acompanham a
vida familiar. De acordo com um estudo sociológico feito em França, a maioria dos
agregados familiares possuem uma câmara, mas a probabilidade de uma família com
crianças ter, pelo menos, uma câmara é duas vezes maior. Não fotografar crianças,
particularmente quando são pequenas, é um sinal de indiferença dos pais, do mesmo
modo que não posar para uma fotografia de fim de curso é um gesto de rebeldia
adolescente.
Cada família constrói, através da fotografia, uma crónica de si mesma, uma série
portátil de imagens que testemunha a sua coesão. Sejam quais forem as actividades
fotografadas o que importa é que as fotografias sejam tiradas e conservadas com
carinho. A fotografia torna-se um rito familiar precisamente no momento em que, nos
países industrializados da Europa e da América, a própria instituição familiar começa a
sofrer uma transformação radical. À medida que o núcleo familiar, unidade
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claustrofóbica, se afastava de um agregado familiar, muito mais vasto, a fotografia


surgia para recordar e restabelecer simbolicamente a precária continuidade e o
progressivo desaparecimento da vida familiar. As fotografias são marcas fantasmáticas
que permitem a presença simbólica dos parentes dispersos. Um álbum de família
refere-se geralmente à família no seu sentido mais amplo e, com frequência, é tudo o
que dela resta.
Assim como as fotografias proporcionam a posse imaginária de um passado irreal,
também ajudam a dominar o espaço em que as pessoas se sentem inseguras. Assim,
a fotografia desenvolve-se em consonância com uma das actividades mais
características da actualidade: o turismo. Pela primeira vez na história, um largo sector
da população sai regularmente do seu meio habitual por curtos períodos de tempo.
E parece pouco natural passear sem levar uma câmara fotográfica. A fotografia será
a prova indiscutível de que a viagem foi feita, de que o programa se cumpriu e de que
as pessoas se divertiram. As fotografias documentam sequências de actividades
realizadas longe da família, dos amigos ou dos vizinhos. Por mais que se viaje, a
dependência da câmara, enquanto instrumento que torna real a experiência vivida, não
diminui. Tirar fotografias preenche as mesmas necessidades tanto para os
cosmopolitas que acumulam troféus fotográficos das suas viagens de barco pelo Nilo
Alberto ou dos catorze dias que passaram na China, como para os turistas da baixa
classe média que tiraram instantâneos da Torre Eiffel ou das cataratas do Niagara.
A fotografia, sendo uma forma de comprovar a experiência, é também um meio de a
negar, ao limitá-la a uma procura do fotogénico, ao convertê-la numa imagem, numa
recordação. A viagem torna-se uma estratégia para acumular fotografias. O próprio
acto de fotografar é tranquilizante e atenua a sensação de desorientação que as
viagens provavelmente exacerbam. A maioria dos turistas sente-se constrangida a
interpor a câmara entre si e tudo o que de assinalável se lhes depara. Indecisos sobre
outras possíveis reacções, fotografam. E assim moldam a experiência: parar, tirar uma
fotografia e continuar. O método é especialmente atraente para os povos submetidos a
uma impiedosa ética do trabalho: alemães, japoneses e americanos. Uma câmara
apazigua a ansiedade que os obcecados pelo trabalho sentem por não trabalharem
quando estão em férias e se sentirem compelidos a divertirem-se. Têm assim qualquer
coisa para fazer e que se assemelha a uma reconfortante imitação do trabalho: tirar
fotografias.
Os povos desapossados do seu passado parecem ser os que mais ferverosamente
se dedicam à fotografia, tanto nos seus países como no estrangeiro. Todos os que
vivem numa sociedade industrializada são a pouco e pouco obrigados a renunciar ao
passado mas, em alguns países, como os Estados Unidos e no Japão, esta ruptura foi
particularmente traumática. No início da década de 70, a fábula do impertinente turista
americano dos anos 50 e 60, cheio de dólares e impregnado pelos valores da classe
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média1) , foi substituída pelo mistério do turista japonês, sempre em grupo, recém
liberto da sua prisão insular graças ao milagre da sobrevalorização do iene, e
geralmente munido de duas câmaras, uma em cada ombro.
A fotografia tornou-se um dos principais meios de acesso à experiência, a uma
ilusão de participação. Um anúncio de página inteira apresenta um pequeno grupo de
pessoas apertadas umas contra as outras, como que emergindo da fotografia; todas, à
excepção de uma parecem aturdidas, excitadas e perturbadas. Essa, que revela uma
expressão diferente, tem uma câmara à altura dos olhos; parece segura de si, esboça
um sorriso. Enquanto as outras são espectadoras passivas e visivelmente alarmadas,
a que tem uma câmara está transformada numa pessoa activa, num voyeur: só ela
conseguiu dominar a situação. O que é que essas pessoas vêem? Não sabemos. Nem
isso interessa. Trata-se de um acontecimento: algo que vale a pena ver e, portanto,
fotografar. No terço interior da fotografia, o texto do anúncio, letras brancas contra o
fundo negro, semelhante a notícias que aparecem em teletipo consiste apenas em seis
palavras: «... Praga... Woodstock... Vietname... Sapporo... Londonderry... LEICA.»
Esperanças frustradas, excentricidades da juventude, guerras coloniais e desportos de
inverno, tudo é semelhante, uniformizado pela câmara. Tirar fotografias provoca uma
relação « voyuerística» crónica com o mundo, que nivela o significado de todos os
acontecimentos.
Uma fotografia não é apenas o resultado de um encontro entre o fotógrafo e um
acontecimento; fotografar é em si mesmo um acontecimento, cada vez com mais
direitos: o de interferir, ocupar ou ignorar tudo o que se passa à sua volta. A própria
maneira como sentimos uma situação é agora articulada com a intervenção da câmara.
A omnipresença das câmaras sugere persuasivamente que o tempo só compreende
acontecimentos interessantes, acontecimentos que vale a pena fotografar. O que, por
sua vez, nos leva facilmente a sentir que qualquer acontecimento, uma vez precipitado
e seja qual for o seu carácter moral, deveria ir até ao fim, para que assim possa surgir
mais alguma coisa: a fotografia. Quando o acontecimento tiver acabado, a fotografia
ainda existirá, o que confere ao acontecimento uma espécie de imortalidade (e
importância) que de outro modo nunca teria. Enquanto pessoas concretas se suicidam
e se matam umas às outras, o fotógrafo fica atrás da sua câmara, criando um
minúsculo elemento de um outro mundo: o mundo de imagens que se propõe
sobreviver a todos nós.
Fotografar é essencialmente um acto de não intervenção. Parte do horror provocado
por esses memoráveis feitos do foto- jornalismo contemporâneo, como as imagens do
bonzo vietnamita procurando alcançar a lata da gasolina ou do guerrilheiro bengali no
momento em que trespassa à baioneta um colaboracionista amarrado, deriva de se ter

1)
No original «Babbittry» alusão ao romance de Sinclair Lemis, Babbitt, obra que «forneceu à Europa
uma definição do americano médio», segundo John Brown, em Panorama da Literatura Americana do
Século XX, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1973. (N do T.)
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compreendido até que ponto se tornou plausível, em situações em que o fotógrafo


pode optar entre uma fotografia e uma vida, decidir-se pela fotografia. Quem intervém
não pode registar; quem regista não pode intervir. O grande filme de Dziga Vertov
Tchelovek s Kinoaparatom (1929) (0 Homem da Câmara), transmite-nos a imagem
ideal do fotógrafo como alguém em perpétuo movimento, que se desloca através de
uma sequência de acontecimentos díspares com uma tal agilidade e rapidez que
qualquer intervenção se torna impossível. Rear Window (1954) (Janela Indiscreta) de
Hitchcock, dá-nos a imagem complementar: o fotógrafo interpretado por James
Stewart, precisamente porque tem uma perna partida e se encontra preso a uma
cadeira de rodas tem, através da sua câmara, uma intensa relação com um
determinado acontecimento; o facto de estar temporariamente imobilizado impede-o de
agir sobre o que vê e torna ainda mais importante fotografar. Usar uma câmara é uma
forma de participar, embora incompatível com a intervenção num sentido físico. Apesar
de a câmara ser um posto de observação, o acto de fotografar é mais do que mera
observação passiva. Tal como o «voyeurismo» sexual, é uma forma de fazer perdurar,
pelo menos tacitamente, e por vezes explicitamente, o que está a acontecer.
Fotografar é ter interesse pelas coisas tal como estão, pela manutenção do status quo
(pelo menos tempo necessário para que se consiga uma «boa» imagem), é ser
cúmplice daquilo que torna um assunto interessante, digno de ser fotografado,
incluindo, se for caso disso, a dor ou o infortúnio alheios.
«Sempre considerei que fotografar era uma travessura o que, aliás foi uma das
coisas que mais me atraiu», escreveu Diane Arbus, «e quando fotografei pela primeira
vez senti-me muito perversa». A actividade do fotógrafo profissional pode ser
considerada como uma travessura para usar o termo popular de Ar- bus, quando esta
vai à procura de temas duvidosos, tabus ou marginais. Mas esses temas já não são
hoje em dia fáceis de encontrar. E qual é exactamente esse lado perverso da
fotografia? Se os fotógrafos profissionais têm muitas vezes fantasias sexuais quando
se encontram por detrás da câmara, talvez a perversão resida no facto de essas
fantasias serem simultaneamente plausíveis e deslocadas. Em Blowup (1966),
Antonioni faz o fotógrafo da moda debruçar-se convulsivamente sobre o corpo de
Veruska enquanto se ouve o ruído da sua câmara. E de facto uma travessura. Na
verdade, a câmara não é a melhor maneira de nos aproximarmos sexualmente de
alguém. Entre o fotógrafo e o modelo tem de haver distância. A câmara não viola nem
possui, embora possa ser atrevida, intrometer-se, invadir, deformar, explorar e, no
máximo alcance da metáfora, assassinar — tudo actividades que, ao contrário do
impulso sexual, podem ser conduzidas à distância e com alguma indiferença.
No extraordinário filme de Michael Powell, Peeping Tom (1960), pode encontrar-se
uma fantasia sexual muito mais forte, não sobre um «mirone», mas sobre um psicopata
que assassina mulheres, enquanto as filma, com uma arma escondida na sua câmara.
Nunca toca nas suas vítimas. Não deseja os seus corpos; quer a sua presença sob a
forma de imagens filmadas — imagens que as mostram no momento em que sentem a
sua própria morte — e que projecta em casa para seu solitário prazer. O filme assume
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relações entre a impotência e a agressão, entre o olhar profissional e a crueldade, que


remetem para a fantasia central ligada à câmara. A câmara como falo é, quando muito,
uma variante inconsistente da inevitável metáfora que todos utilizamos
inconscientemente. Por mais esbatida que seja a nossa consciência dessa fantasia,
ela é mencionada sem subtilezas sempre que falamos em «carregar» e «apontar» uma
câmara ou em «disparar».
As câmaras antigas eram mais toscas e difíceis de carregar do que um mosquete
Bess. As câmaras modernas procuram aproximar-se da pistola de raios. Há um
anúncio que diz:
A Yashica Electro-35 GT é a câmara da era espacial que a sua família vai
adorar. Tire boas fotografias de dia ou de noite. Automaticamente. Sem
problemas. Basta apontar, focar e disparar. O seu ordenador GT e obturador
electrónico farão o resto.

Tal como um carro, uma câmara é vendida como uma arma predatória, uma arma
tão automatizada quanto possível, pronta a disparar. O gosto popular prefere uma
tecnologia simples e invisível. Os fabricantes garantem aos seus clientes que
fotografar não exige qualquer habilidade ou conhecimentos profundos, que a máquina
funciona sozinha e reage à mais pequena manifesta- cão da vontade. Tão simples
como pôr o carro a trabalhar ou carregar no gatilho.
As câmaras, como as armas e os carros, são máquinas-fantasia cujo uso é viciante.
No entanto, apesar das peculiaridades da linguagem vulgar e da publicidade, não são
letais. Na hipérbole que leva a comercializar os carros como se fossem armas, há, pelo
menos, uma grande verdade: à excepção dos períodos de guerra, os carros matam
mais pessoas do que as armas. A câmara-arma não' mata, e assim a agressiva
metáfora parece ser completamente enganadora, tal como a fantasia masculina de
possuir uma arma, uma faca ou uma ferrramenta entre as pernas. Apesar disso existe
qualquer coisa de predatório no acto de registar uma imagem. Fotografar pessoas é
violá-las, vendo-as como elas nunca se vêem, conhecendo-as como elas nunca se
poderão conhecer; é transformá-las em objectos que podem ser possuídas
simbolicamente. Assim como a câmara é uma sublimação da arma, fotografar alguém é
um assassínio sublimado, um assassínio suave, digno de uma época triste e
assustada. Talvez as pessoas venham a aprender a descarregar as suas agressões
mais por intermédio da câmara e menos com as armas, com a contrapartida de um
mundo cada vez mais asfixiado por imagens. Um exemplo de que as pessoas podem
trocar as balas por filme são os safaris fotográficos que tendem a substituir os safaris
na África Oriental. Os caçadores levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez
de olharem através de uma mira telescópica para apontar a carabina, olham através
de um visor para enquadrar uma imagem. Na Londres de fim de século, Samuel Butter
queixava-se de que «havia um fotógrafo em cada arbusto, comportando-se como um
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leão esfomeado à procura de uma vítima». O fotógrafo ataca agora feras verdadeiras,
sitiadas e demasiado raras para poderem ser mortas. Nesta comédia séria que é o
safari ecológico, as armas metamorfosearam-se em câmaras, porque a natureza
deixou de ser o que sempre foi: aquilo de que o homem tinha de se proteger. Agora a
natureza — subjugada, ameaçada, em perigo de extinção — necessita de ser
protegida das pessoas. Quando sentimos medo, disparamos. Mas quando nos
sentimos nostálgicos, tirarmos fotografias.
Vivemos um período nostálgico, e a fotografia promove intensamente a nostalgia. A
fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temas
fotografados, são, pelo simples facto de serem fotografados, afectados pelo pathos.
Um tema feio ou grotesco pode ser comovente por ter sido dignificado pela atenção do
fotógrafo. Um tema belo pode provocar sentimentos de compaixão por ter envelhecido,
perdido importância ou já não existir. Todas as fotografias são momento mori.
Fotografar é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma outra
pessoa ou objecto. Cada fotografia testemunha a inexorável dissolução do tempo,
precisamente por seleccionar e fixar um determinado momento.
As câmaras começaram a duplicar o mundo na altura em que a paisagem humana
passou a estar submetida a um vertiginoso ritmo de transformação: enquanto uma
imensidão de formas de vida social e biológica são destruídas num brevíssimo espaço
de tempo, surge uma invenção que permite o registo do que vai desaparecendo. A
Paris melancólica de Atget e Brassaï, com a sua intrincada estrutura, já praticamente
não existe. Tal como os amigos e parentes já mortos preservados no álbum de família
em fotografias que exorcizam parte da ansiedade e remorsos provocados pelo seu
desaparecimento, também as fotografias dos bairros agora demolidos, das zonas
rurais desfiguradas e deslocadas compensam a nossa precária relação com o
passado.
Uma fotografia é simultaneamente uma pseudopresença e um signo de ausência.
As fotografias, especialmente de pessoas, de paisagens distantes e cidades
longínquas, de um passado irrecuperável, assim como uma lareira numa sala, são
incitamentos ao devaneio. A sensação do inatingível que as fotografias conseguem
evocar alimenta os sentimentos eróticos daqueles para quem o desejo é estimulado
pela distância. A fotografia do amante escondida na carteira de uma mulher casada, o
poster de uma estrela rock por cima da cama de um adolescente, a imagem de um
político na lapela de um eleitor, o instantâneo dos filhos de um motorista no seu táxi —
todos esses usos talismânicos da fotografia exprimem uma sensibilidade emotiva e
implicitamente mágica: são tentativas de alcançar ou possuir outra realidade.
As fotografias podem instigar o desejo do modo mais directo e utilitário, como
quando se coleccionam fotografias de exemplos anónimos do desejável como estímulo
para a masturbação. A questão torna-se mais complexa quando a fotografia é utilizada
para estimular impulsos morais. O desejo não tem história — pelo menos é
experimentado em cada momento como incontornável e imediato. É suscitado
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arquétipos e, nesse sentido, é abstracto. Mas os sentimentos morais estão embebidos


na história, cujos personagens são concretos e cujas situações são sempre
específicas. Assim, há regras quase opostas que são válidas na utilização da
fotografia, quer para despertar o desejo, quer para despertar a consciência. As
imagens que mobilizam a consciência estão sempre relacionadas com uma situação
histórica determinada. Quanto mais gerais forem, menos hipóteses têm de ser
eficazes.
Uma fotografia que nos informa sobre situações insuspeitas de miséria, não pode
ter impacto na opinião pública se não encontrar um contexto de sentimento e atitudes
propício. As fotografias que Mathew Brdy e seus colegas tiraram dos horrores das
batalhas não levaram a que diminuísse o entusiasmo pela Guerra Civil. As fotografias
dos prisioneiros maltrapilhos e esqueléticos detidos em Andersonville inflamaram a
opinião pública do Norte contra o Sul. (A repercussão das fotografias de Andersonville
ter-se-á devido, em grande parte, ao facto de ser uma novidade nessa altura ver
fotografias.) A consciência política que muitos americanos atingiram na década de 60
ter-lhes-ia permitido reconhecer a verdadeira dimensão das fotografias que Dorothea
Lange tirou na Costa Ocidental aos nisai2) quando, em 1942, foram transportados para
campos de internamento: um crime cometido pelo governo contra um vasto grupo de
cidadãos americanos. Poucas das pessoas que viram estas fotografias nos anos 40
podiam ter tido uma reacção tão inequívoca; os fundamentos de um juízo como esse
estavam ocultos pelo consenso a favor da guerra. As fotografias não podem gerar
posições morais, mas podem reforçá-las e contribuir para consolidar as que se iniciam.
As fotografias podem ser mais facilmente memorizadas do que as imagens em
movimento, pois não são um fluxo, mas fracções precisas de tempo. A televisão é uma
corrente de imagens indiscriminadas, em que cada uma anula a precedente. Cada
fotografia é um momento privilegiado convertido num pequeno objecto que se pode
conservar e olhar repetidamente. Fotografias cimo a que apareceu na primeira página
da maioria dos jornais do mundo em 1972 — uma criança sul-vietnamita, despida, que
acabava de ser atingida pelo napalm americano, correndo pela estrada em direcção à
câmara de braços abertos, gritando de dor — talvez contribuam mais para aumentar o
repúdio do público pela guerra do que cem horas de atrocidades televisionadas.
Gostaríamos de imaginar que o público americano não teria sido tão unânime na
sua concordância com a guerra da Coreia se tivesse sido confrontado com as provas
fotográficas da devastação desse país, um ecocídio e genocídio nalguns aspectos
ainda mais intensos do que os infligidos no Vietname dez anos depois. Mas a
suposição é irrelevante. O público não viu essas fotografias porque ideologicamente
não havia espaço para elas. Ninguém trouxe fotografias da vida quotidiana em
Pyongyang, mostrando a face humana do inimigo, como as que Felix Green e Marc
Riboud trouxeram de Hanói. Os americanos tiveram acesso a fotografias do sofrimento

2)
Designação americana para os filhos de emigrantes japoneses. (N do T)
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dos vietnamitas (muitas das quais eram provenientes de fontes militares e tinham sido
tiradas com propósitos bem diversos) porque os jornalistas se sentiram apoiados nos
seus esforços para obterem essas fotografias, já que o acontecimento tinha sido
definido por uma parte significativa da população como uma selvagem guerra
colonialista. A guerra da Coreia foi encarada de maneira diferente — como parte da
justa luta do Mundo Livre contra a União Soviética e a China — e, em função dessa
caracterização as fotografias das atrocidades causadas pelo ilimitado poder bélico
americano teriam sido irrelevantes.
Embora o termo acontecimento tenha chegado a significar, precisamente, algo que
merece ser fotografado, é ainda a ideologia (no seu sentido lato que determina o que
constitui um acontecimento).
Um acontecimento só pode ser comprovado, fotograficamente ou doutro modo, se
ele próprio assim tiver sido designado e caracterizado. E não é nunca a prova
fotográfica que pode construir, ou mais correctamente, identificar, acontecimentos; a
contribuição da fotografia segue-se sempre à identificação do acontecimento. É a
existência de uma forte consciência política que determina a possibilidade de sermos
moralmente afectados por fotografias. É provável que, sem o contexto político, as
fotografias das carnificinas da história fossem apenas sentidas como irreais ou
provocassem um impacto emocional e desmoralizante.
O tipo de sentimentos, e mesmo a ofensa moral a que as fotografias dos oprimidos,
dos explorados, dos esfomeados e dos massacrados podem fazer apelo, depende
também do grau de familiaridade de estas imagens. As fotografias que Don McCullin
tirou aos esqueléticos biafrenses no início dos anos 70 tiveram muito menos impacto
do que as fotografias de Werner Bischof das vítimas da fome na Índia no início da
década de 50, porque essas imagens se tinham tornado banais; e as fotografias de
famílias Tuaregue morrendo de fome na região do Subsara, que apareceram nas
revistas do mundo inteiro em 1973, devem ter parecido a muitos uma insuportável
repetição de uma já familiar exibição de atrocidades.
É por revelarem qualquer coisa de original que as fotografias podem causar
impacto. Lastimavelmente, a parada é cada vez mais alta o que em parte se deve à
própria proliferação dessas imagens de horror. O primeiro contacto com o inventário
fotográfico do horror absoluto é uma espécie de revelação, o protótipo da revelação
moderna: uma epifania negativa. No meu caso, foram as fotografias de Bergen-Belsen
e Dachau que descobri por acaso numa livraria de Santa Mónica em Julho de 1945.
Nunca vi nada, quer em fotografias, quer na vida real, que me atingisse de um modo
tão claro, profundo e instantâneo. Na verdade, é possível dividir a minha vida em duas
partes: antes e depois de (com doze anos) ter visto essas fotografias, embora isso se
passasse vários anos antes de ter entendido completamente o seu significado. De que
me serviu tê-las visto? Eram apenas fotografias, de um acontecimento de que mal
tinha ouvido falar, de um sofrimento dificilmente imaginável e sem remédio. Quando
olhei para elas algo quebrou. Tinha atingido um qualquer limite, que não era apenas o
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do horror; senti-me irrevogavelmente magoada, ferida, mas uma parte dos meus
sentimentos começou a endurecer; algo morreu, algo ainda chora.
Uma coisa é sofrer, outra é viver com as imagens fotográficas do sofrimento, que
não reforçam necessariamente a consciência e a capacidade de compaixão. Também
podem corrompê-las. Depois de termos visto imagens como essas, iniciamos um
percurso irreversível. As imagens paralisam. As imagens anestesiam. Um
acontecimento conhecido através de fotografias torna-se certamente muito mais real
do que se não tivessem sido visto dessa forma, por exemplo, a Guerra do Vietname.
(Como exemplo inverso, pense-se no Arquipélago de Goulague, de que não temos
fotografias.) Mas também se pode tornar menos real após uma repetida exposição às
imagens.
O mesmo princípio é tão válido para o mal como para a pornografia. O impacto
provocado pelas fotografias de atrocidades vai diminuindo com sucessivas
observações, tal como a surpresa e a estupefacção sentidas ao ver pela primeira vez
um filme pornográfico vão desaparecendo depois de termos visto mais alguns. O
sentido do tabu que provoca a nossa indignação e tristeza, não é mais forte do que o
que regula a definição do que é obsceno. Em anos recentes, ambos têm sido
intensamente postos à prova. O vasto catálogo fotográfico de miséria e injustificação
no mundo familiarizou-nos de certo modo com a atrocidade, fazendo com que o
horrível pareça vulgar, familiar, remoto («é só uma fotografia»), irremediável. Na época
das primeiras fotografias dos campos nazis essas imagens não eram nada banais.
Trinta anos depois, parece ter-se atingido um ponto de saturação. Nestas últimas
décadas, a fotografia «comprometida» contribuiu tanto para insensibilizar a nossa
consciência como para a despertar.
O conteúdo ético das fotografias é frágil. Com a possível excepção das fotografias
desses horrores, como as dos campos nazis, que alcançaram o estatuto de pontos de
referência éticos, a maioria das fotografias não mantém a sua carga emocional. É
provável que uma fotografia de 1900, cujo tema a tornava então comovedora, hoje nos
afecte mais por ter sido tirada em 1900. As qualidades e intenções específicas das
fotografias, tendem a ser absorvidas pelo pathos generalizado do passado. O
distanciamento estético parece fazer parte da própria experiência de ver fotografias,
senão de imediato, seguramente com o passar do tempo. O tempo acaba por elevar
quase todas as fotografias, mesmo as mais amadorísticas, ao nível da arte.
A industrialização da fotografia permitiu a sua rápida absorção pelos modos
racionais ou seja, burocráticos, de funcionamento da sociedade. Acabaram-se as
imagens de brinquedo, as fotografias tornam-se parte do conjunto de objectos que nos
rodeiam, pedra de toque e confirmação da abordagem redutiva da realidade, aquela
que é considerada realista. As fotografias foram chamadas a prestar serviço, como
objectos simbólicos e como elementos de informação, em importantes instituições de
controle, nomeadamente a família e a política. Por isso, na catalogação burocrática do
mundo, muitos documentos importantes só se tornam válidos se tiverem aposta uma
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fotografia da cara do cidadão.


A visão «realista» do mundo compatível com a burocracia redefine o conhecimento
como técnica e como informação. As fotografias são valiosas porque fornecem
informação. Dizem-nos o que existe; fazem um inventário. Para espiões,
metereologistas, médicos-legistas, arqueólogos e outros profissionais da informação, o
seu valor é inestimável. Mas nas situações em que a maior parte das pessoas usa as
fotografias, o seu valor informativo é da ordem da ficção. A informação que as
fotografias podem dar começou a ser valorizada no momento da história da cultura em
que todos julgam ter direito àquilo a que chamamos notícias. As fotografias eram vistas
como um modo de dar informação a pessoas que não tinham o hábito da leitura. O
Daily News ainda se autodenomina New York's Picture Newspaper3), apelando a uma
identificação populista. No extremo oposto da escala, o Le Monde, um jornal destinado
a leitores preparados, bem informados, não utiliza quaisquer fotografias, pois
pressupõe-se que, para os seus leitores, a fotografia só serviria de ilustração para a
análise contida num artigo.
Em torno da imagem fotográfica tem vindo a elaborar-se um novo sentido da noção
de informação. A fotografia é uma pequena fracção tanto do espaço como do tempo.
Num mundo dominado pelas imagens fotográficas, qualquer limite («enquadramento»)
parece arbitrário. fiado pode tornar-se descontínuo tudo pode separar-se de tudo:
basta enquadrar o assunto de modo diferente. (Reciprocamente, tudo se pode tornar
adjacente de tudo.) A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade social
como integrando pequenas unidades em número aparentemente infinito, já que o
número de fotografias que se pode tirar de qualquer coisa é ilimitado. Através das
fotografias, o mundo transforma-se num conjunto de partículas desconexas e
independentes; e a história, passada e presente, num conjunto de anedotas e faits
divers. A câmara atomiza a realidade, torna-a manuseável e opaca. E uma visão do
mundo que nega a inter- -relação, a continuidade, e que confere a cada momento as
características de um mistério. Qualquer fotografia tem uma multiplicidade de sentidos;
com efeito, ver algo sob a forma de fotografia é deparar com um potencial objecto de
fascinação. O extremo ensinamento da imagem fotográfica é poder dizer: «Aqui está a
superfície. Agora pensem, ou antes, sintam, intuam o que está por detrás, como deve
ser a realidade se esta é a sua aparência.» As fotografias, que por si só nada podem
explicar, são inesgotáveis convites à dedução, especulação e fantasia.
A fotografia implica que conhecemos o mundo se o aceitarmos como a câmara o
regista. Mas isto é o oposto da compreensão, que se inicia justamente por não se
aceitar o mundo como parece ser. Toda a possibilidade de compreensão está
enraizada na capacidade de dizer não. Em rigor, nunca se pode compreender nada a
partir de uma fotografia. É claro que as fotografias preenchem vazios nas nossas
imagens mentais do presente e do passado, por exemplo, as imagens de Jacob Riis da

3)
Jornal ilustrado de Nova Iorque. (N. do T)
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miséria e sordidez de Nova Iorque na década de 80 do século passado são


particularmente instrutivas para os que desconhecem como era «dickensiana» a
pobreza urbana na América do final do século XIX. No entanto, a maneira como na
câmara apresenta a realidade esconde mais do que revela. Como Brecht observou,
uma fotografia das fábricas Krupp não revela praticamente nada sobre essa
organização. Em contraste com a relação amorosa, que é baseada na aparência, a
compreensão é baseada no modo como as coisas funcionam. E esse funcionamento
ocorre no tempo e nele necessita de ser explicado. Só o narrativo nos pode permitir
compreender.
O limite do conhecimento fotográfico do mundo consiste em que, embora possa
despertar consciências, nunca pode ser um conhecimento ético ou politico. O
conhecimento que as fotografias permitem adquirir é sempre uma espécie de
sentimentalismo, cínico ou humanista. É um conhecimento de saldo: um simulacro de
conhecimento, um simulacro de sabedoria; tal como o acto de fotografar é um
simulacro de apropriação, um simulacro de violação. É o próprio mutismo do que,
hipoteticamente, é compreensível em fotografia, que constitui a sua atracção e
provocação. A omnipresença da fotografia tem um incalculável efeito na nossa
sensibilidade ética. Ao dotar este mundo, já tão congestionado, com um duplicado de
imagens, a fotografia faz-nos sentir que o mundo é mais acessível do que na verdade
é.
A necessidade de comprovar a realidade e de engrandecer a experiência através
das fotografias é uma forma de consumismo estético a que todos nos entregamos. As
sociedades industriais transformam os seus cidadãos em viciados de imagens; trata-se
da mais irresistível forma de poluição mental. Um vivo desejo de beleza, de acabar
com a investigação do que se encontra por baixo da superfície, da redenção e
celebração do corpo do mundo — todos estes elementos da sensação erótica se
afirmam com o prazer que as fotografias nos dão. Mas outros sentimentos menos
libertadores também aí encontram expressão. Não seria errado falar de pessoas com
uma compulsão para fotografar, transformando a própria experiência numa forma de
visão. Em última análise, ter uma experiência é o mesmo que fotografá-la, e participar
num acontecimento público é cada vez mais, equivalente a vê-lo fotografado.
Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo o que existe no
mundo existe para vir a acabar num livro. Hoje em dia, tudo o que existe, existe para
vir a acabar numa fotografia.

***

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