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DÊIXIS E REFERÊNCIA DEÍCTICA

Deítico – Palavra cuja significação referencial só pode ser definida em função da


situação, do contexto, do locutor e do receptor de um acto de fala.
In Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea

1. Atentemos nos seguintes enunciados:

a) Eu vou às compras. Queres vir?


b) Queres ver a minha mochila nova?
Estes enunciados mostram-nos, através do pronome pessoal EU, do determinante possessivo
MINHA e das pessoas verbais ( “vou” – 1.ª pessoa e “queres” – 2.ª pessoa), que há um
falante, um “EU”, que se dirige a um locutor, um “TU”. As marcas enumeradas funcionam, pois,
como referências deícticas pessoais (deícticos pessoais).
c) Ficamos aqui ou vamos para ali?
d) Prefiro este livro a esse.

Encontramos nestes enunciados referências que situam o locutor em relação a um local e a um


livro. “ALI” indica-nos que o local é mais distante que o “Aqui” em que se situa o locutor;
assim como “ESTE” e “ESSE” nos transmitem a noção do livro que está mais próximo dele. As
palavras sublinhadas funcionam pois como referências deícticas espaciais (deícticos
espaciais).
e) Ontem fui ao cinema.
f) Ofereceram-lhe um livro que eu tinha comprado.

No primeiro enunciado, o advérbio “ONTEM” e o tempo verbal utilizado (pretérito perfeito)


indicam-nos que o locutor refere uma acção realizada no dia anterior ao momento da
enunciação. No outro enunciado, a utilização dos verbos no pretérito indica que as duas
ocorrências (“oferecer” e “comprar”) são anteriores ao momento da enunciação mas, entre
elas, estabelece-se uma nova relação temporal: a segunda (“comprar”) é anterior à primeira
(“oferecer”) conforme indica a utilização do pretérito-mais-que perfeito composto. Assim,
advérbios ou locuções adverbiais e tempos verbais funcionam nestes exemplos como
referências deícticas temporais (deícticos temporais).

Marcas do EU que fala e do OUTRO a quem se Deícticos Pessoais:


dirige ▪ pronomes pessoais (implícitos, por vezes, na
flexão verbal)
▪ pronomes ou determinantes possessivos
Marcas do TEMPO que se entende em função do Deícticos Temporais:
AGORA do enunciado ▪ advérbios ou locuções adverbiais de tempo
▪ tempos verbais

Deícticos Pessoais Deícticos Espaciais Deícticos Temporais


- relacionados com o EU/TU da - relacionados com o AQUI da - relacionados com o AGORA
situação de enunciação situação de enunciação da situação de enunciação
▪ ▪
pronomes pessoais: ▪ determinantes e pronomes advérbios e locuções
eu, me, mim, nós, nos, tu, te, demonstrativos: adverbiais:
ti, você, vós, vos, vocês este/a(s), esse/a(s), agora, hoje, neste momento,
aquele/a(s), isto, isso, aquilo já, imediatamente, ontem,
▪ determinantes e pronomes amanhã
possessivos: ▪ advérbios: ▪
meu(s), minha(s), nosso(s), aqui, ali, lá, cá, acolá, além tempos verbais:
nossa(s), teu(s), tua(s), presente, pretérito
vosso(s), vossa(s)

▪ flexão verbal:
pessoa – número

A dêixis (palavra importada do grego antigo, com o significado de “acção de mostrar” ) é uma
das formas de conferir o seu referente a uma sequência linguística, situando um enunciado no espaço e/ou
no tempo em relação ao enunciador.
É uma forma de designar o tipo de relação referencial que se estabelece entre uma expressão linguística
( dita deíctica ) e um elemento da situação de enunciação. O modelo deste tipo de referência é o signo
eu, que designa, no enunciado, a pessoa que diz “ eu “.

A dêixis designa o conjunto de palavras ou expressões (expressões deícticas) que têm como função
‘apontar’ para o contexto situacional. Deste modo, essas palavras ou expressões, ao serem utilizadas num
discurso, adquirem um novo significado, uma vez que o seu referente depende do contexto. Por outras
palavras, a dêixis pode ser definida como o conjunto de processos linguísticos que permitem inscrever no
enunciado as marcas da sua enunciação, que é única e irrepetível. Assim, assinalam o sujeito que enuncia
(locutor), o sujeito a quem se dirige (interlocutor), o tempo e o espaço da enunciação.
O sujeito da enunciação/locutor é o ponto central a partir do qual se estabelecem todas as coordenadas do
contexto: eu é aquele que diz eu no momento em que fala; tu é a pessoa a quem o eu se dirige; agora é o
momento em que o eu fala; aqui é o lugar em que o eu se encontra; isto é um objecto que se encontra
perto do eu, os tempos verbais indicam um tempo anterior, simultâneo ou posterior ao momento da
enunciação (ex.: escrevi, escrevo, escreverei). Com efeito, é o sistema de coordenadas referenciais
(EU/TU—AQUI—AGORA) da enunciação que possibilita a atribuição de sentidos referenciais.
“A própria palavra dêixis, pelo seu sentido etimológico, está associada ao gesto de “apontar”.

O diálogo que se segue apresenta a negrito os elementos deícticos:

Joana: Eu amanhã encontro-te aqui às 10h.


Pedro: Eu não estou disponível! Pode ser de tarde?

No primeiro enunciado, eu significa Joana, enquanto, no segundo, eu significa Pedro, tal como o
pronome pessoal te do primeiro enunciado. Também o deíctico amanhã só pode ser correctamente
interpretado com conhecimento do dia em que decorreu este diálogo, uma vez que significa sempre o dia
seguinte ao da enunciação. Do mesmo modo, o advérbio aqui apenas pode ser definido conhecendo o
local da enunciação. Finalmente, sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto e pessoa-número indicam,
neste caso, simultaneamente a pessoa e o tempo verbal: o tempo utilizado (presente do indicativo) indica
uma acção que decorrerá num futuro próximo ao do presente da enunciação.
Assim, a interpretação deste enunciado requer o conhecimento das coordenadas AGORA-AQUI, caso
contrário, a comunicação revela-se ineficaz. O mesmo acontece em relação à coordenada temporal num
cartaz em que se omitiu a data a que se refere hoje:

Hoje, greve geral dos ferroviários!

Os deícticos inserem-se em diversas categorias gramaticais, adquirindo sentido pleno apenas no contexto
em que se emitem. Assim, pertencem à categoria dos deícticos:
— os pronomes pessoais;
— os pronomes e determinantes possessivos;
— os pronomes e determinantes demonstrativos;
— os advérbios de lugar e de tempo;
— os tempos verbais;
— alguns vocábulos, como ir / vir (movimento de afastamento / aproximação em relação ao espaço em
que se encontra o locutor e interlocutor, respectivamente).

Em função da sua natureza deíctica, é possível apresentar a seguinte classificação:

Dêixis pessoal — indica as pessoas do discurso, permitindo seleccionar os participantes na interacção


comunicativa. Integram este grupo os pronomes pessoais (ex.: tu, me, nós, etc.), determinantes e
pronomes possessivos (ex.: o meu, o vosso, teu, etc.), sufixos flexionais de pessoa-número (ex.: falas,
falamos, etc.), bem como vocativos. (Algumas formas verbais não apresentam um sufixo flexional
específico de pessoa-número (ex.: falo, disse, fizer, etc.). Nestes casos, o sufixo inclui as informações
relativas ao tempo-modo-aspecto e pessoa-número, tratando-se assim de uma amálgama).

Quanto eu disser não ouças,


quanto eu fizer não vejas;
e, se eu estender as mãos,
não me estendas as tuas.

Aceita que eu exista como os sonhos


que ninguém sonha,
as imagens malditas que no espelho
são noite irreflectida

Talvez que então


da pura solidão
eu desça à vida.
(J. Sena, Fidelidade)

Dêixis espacial — assinala os elementos espaciais, tendo como ponto de referência o lugar em que
decorre a enunciação. Ou seja, evidencia a relação de maior ou menor proximidade relativamente ao lugar
ocupado pelo locutor. Cumprem esta função os advérbios ou locuções adverbiais de lugar (ex.: aqui, cá,
além, acolá, aqui perto, lá de cima, etc.), os determinantes e pronomes demonstrativos (ex.: este, essa,
aquilo, o outra, a mesma, etc.), bem como alguns verbos que indicam movimento (ex.: ir, partir; chegar;
aproximar-se; afastar-se, entrar, sair, subir, descer, etc.).
— Vamos até ali... — convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.
— Ali, aonde? — perguntou ela, sem forças para resistir.
— Ali adiante...
(M. Torga, Novos Contos da Montanha)

Dêixis temporal — localiza, no tempo, factos, tomando como ponto de referência o “agora” da
enunciação. Desempenham esta função os advérbios, locuções adverbiais ou expressões de tempo (ex.:
amanhã, ontem, na semana passada, no dia seguinte, etc.) e sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto
(ex.: falarei; faláveis, etc.).

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...


Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
(…)
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital...


Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã
(Álvaro de Campos, Poesias)

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