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LENDAS E FATOS

(Crônicas do rjo Gurguéia)


ARTUR PASSOS

LENDAS E FATOS
(Crônicas do rio Gurguéia)

1958
SERVIÇO GRÁFICO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATfSTICA
RIO DE JANEIRO
Recebendo a incumbência de ler e opinar sôbre · o tra- ·
balho literário, anexo, de Artur Passos, sem outros detalhes
capazes de orientar-me quanto ao objetivo a atingir, ou
prisma a observá-lo, fico meio indeciso em dar correto de-
sempenho à tarefa, visto exercer atividade em repartição
de caráter e finalidades absolutamente técnicas- nos ramos
da geografia e da estatística.
Não resta dúvida de que o Instituto tende, mais cedo
ou mais tarde, a tornar-se, sem fal~ :·n as suas atribuições
normais, no maior recipiendiário de informes municipais, es-
pelhando-os e retratando-os sob todos os seus ângulos de
atividade, desde a literária à administrativa, no mais remo-
to rincão territorial brasileiro. Espécie de enciclopédia da
dinâmica nacional nos seus mais variegados aspectos.
Dêsse modo e sendo o livro um repositório de episódios e
ocorrências da "geografia humana e social do vale do Rio
Gurgéia" no Piauí, passarei a apreciá-lo sôbre o triplo as-
pecto: AUTOR: descrição, conhecimento da região, proprie-
dade da linguagem, clareza e objetividade - O LIVRO: con-
teúdo informativo, hábitos e fatos da vida rural- FOLKLO-
RE, ASPECTOS GEOGRAFICOS DO RI.P GURGUÉIA e por
fim CONCLUSõES.
I

Compõe-se o trabalho de: Prefácio, Ofertório, Seis his-


tórias ou crônicas, Folklore e o Retrato do Rio Gurguéia.
O prefaciador, em retrospecto, lembra as fases alegres
e despreocupadas de todos os que, nascidos nas cidades sim-
ples do interior, desfrutam de infância irresponsável e
bucólica. Estabelece a seguir o paralelo contrastante que,
em geral, acontece depois, ao chegar a hora de ganhar
a vida noutras terras, lutando em desigualdade de
condições, contra elementos hostis, recebendo parca remu-
neração, pelo seu labor duro e diário - para sustento de
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prole numerosa, anos e anos, passando pela velhice e atin-


gindo o fim : a morte. Assim tem sido a vida do autor, desde
que saiu de sua terra natal, o qual não olvidando jamais as re-
miniscências de sua passada vida campestre, empreendeu,
através a publicação do livro prefaciado, o retôrno à terra em
que nasceu, revivendo fatos ligados à meninice em sua pro-
víncia, na melhor e mais enternecedora quadra da existência
humana.

O autor - Oferece o livro à terra natal, o seu sertão do


sul piauiense, a vila de Jeromenha: Arrebatado pelas recor-
dações da gleba em que veio ao mundo e viveu o verdor da
existência, já velho, tece verdadeiro hino de exaltação e amor
aos fastos idos, às festas familiares e religiosas, belezas natu-
rais da região que conhece admiràv:elmente e o modus-viven-
do daquele longínquo lugarejo. Demonstrando cultura e di s-
cernimento dos costumes locais, descreve com riqueza de de-
talhe não só de órdem técnica (quando trata de Folklore
e do Rio) mas da natureza humana, os tipos e personagens
verdadeiros que ensejaram motivos para as crônicas enfei-
xadas no livro.
É um narrador agradável que sabe colorir o amb:ente
em que têm lugar os episódios revividos, impressionando bem
o leitor e o ajudando a compôr e compreender com facilidade
os seus heróis aldeões, suas proezas e tropelias. Detalha fato
por fato, episódio por episódio, de maneira clara e objetiva,
em linguagem correta, na qual às vêzes sem meios têrm~, tal
qual os escritores da atualidade, conta a história sem rebu-
ços de linguagem, ainda que escabrosa ou por demais rea-
lista. Contundente, à margem do fato real, vai tirando con-
clusões que oferece desnudas à curiosidade do leitor, que
assim pode melhor justificar e entender usos e abusos de
terra pequéna e sem civilização, em que tudo - direito,
religião e deveres - se cinge às conveniências de uma mino-
ria arrogante, ou de família com algumas letras.

O livro - seis crônicas: Destroços de um falso valentão;


a última festa do Fidalgo; Os Aquinos; Mestre Valentim;
Testamento fatídico; Fanatismo religioso, Folklore e Rio
Gurguéia.
i.
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Destroços de um falso valentão: história comum no hin-


terland, em que surgem naquelas pequenas comunidades,
pacatas e desorganizadas, um fanfarrão que a domina e go-
verna. É a lei, a religião, o senhor todo poderoso. Certo dia
a cidade é surpreendida com a presença de tipo de aspecto
repugnante e agigantado que desafia o dominador local.
Após várias peripécias em que o povo desejava ver o final
com a vitória do desconhecido e intruso, vingador de sua
honra ofendida, é o mesmo encontrado morto, sem ter es-
boçado a mínima reação, vítima de animais selvagens, pró-
ximo à localidade de Escondido onde se desenrolaram os
fatos.

A última festa do Fidalgo: Pai, vmvo, com dois filhos ,'


dos quais, um conhecido valentão. Há festa na casa do lugar
Fidalgo, os convidados vão chegando, o baile tem início em
meio a alegria geral, anedotário picante, grupos dançando,
vozerio etc. Chega então um velho magro, conhecido na
região pelo apelido de "Garfo", vendedor de cachaça, por-
tando um rifle. Em meio ao contentamento, que já contagiou
a todos, surgiu grave desinteligência entre o filho valentão
do viúvo e o "Garfo", que morre, matando antes o velho
e todos os seus filhos, que acorreram em defesa do irmão.

Os Aquinos: História de encontro macábro, o cadáver de


um homem, segundo imaginavam as autoridades locais. For-
mada a diligência que devia procurar o defunto, em meio
aos boatos mais desconsertantes dos moradores da localida-
de, descobriu-s.e tratar-se na verdade de um balão de São
João, que a fértil imaginação do dono de cartório Aquino
transformou num homem assassinado. A narrativa gira ainda
em tôrno dos Aquinos, uma família complicada, tradicional,
e sôbre a qual recaia tôda sorte de disparates e excentrici-
dades tão do agrado dos fuxiqueiros da vila onde moravam
J eromenha, Pi.

Mestre Valentim: História de um mestre ferreiro e ex-


-escravo, pobre, simplório e caridoso que empregou tôda a
vida e os poucos ganhos em minorar o sofrimento do próxi-
mo. Praticou a renúncia no mais elevado gráu tendo, assim,

..
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ao morrer, obtido consagração e reverência unânime de todos


os habitantes da localidade.

Testamento fatídico - Episódio relacionado com os tes-


tamentos que aparecem nas figuras grotescas que encarnam
Judas, o Iscariotes. É comum o aparecimentos dêsses testa-
mentos, nos quais há. oferecimentos de remédios, auxilio,
promessas de emprêgo etc. aos elementos de projeção local.
As vêzes êsses testamentos contêm insultos, alusões à honra
e às atividades dos políticos. O fato principal, segundo a cró-
nica, ocorreu em Jeromenha, onde apareceu um testamento
envolvendo os homens de prol da localidade. Apurado o fato,
atribuiu-se a autoria a determinado empregado de farmácia
que perseguido e homisiado veio a ser, depois, prêso, ocasião
em que se suicidou ingerindo veneno.

Fanatismo religioso - Narrativa sôbre a apançao no


lugar Coqueiro de uma estranha mulher que iniciou pregação
de fundo religioso, mas francamente hostil à religião cató-
lica. Instalada na casa de um habitante da localidade, in-
cutiu no seu espírito que êle e seus familiares deveriam reti-
rar-se para longínquo sitio a fim de se purificar. Passaram
7 dias naquêle local distante, sem comer, resultado en-
fraquecerem até chegar à inanição. Deveriam, após aquêle
sacrifício, ser envolvidos e arrebatados por uma nuvem. Não
ocorrendo o milagre, a falsa santa o atribiu à incredulidade
de alguns presentes. Deviam assim ser sacrificados os cin-
co filhos menores do casal que hospedou a fanática, o que
foi feito, pois o ambiente criado favorecia o inominável
atentado.

Folklore - O autor parece estudioso do assunto, pois


inicia seu trabalho definindo a palavra folklore (deduzindo
seu significado, origem e emprêgo). Mostra as diferenciações,
não obstante a unidade de nossa língua, existentes entre as
expressões e linguajar, hábitos, costumes e crenças etc. do
nordestino e do sulista. Estabelece comparação entre o tra-
balho folklórico que não "inventa enredos" e a literatura que
se ocupa de narrativa e fantazias de autores conhecidos, para
concluir que · o folklore deve ser classificado numa categoria
LENDAS E FATOS 9

diferente de literatura. Demonstra que o pesquisador . folkló-


rico encontra nos países civilizados amplíssimo campo de
ação, enquanto no Brasil poucos são os cultores da ciência.
Cita os nacionais que se interessam pelo assunto.. os traba-
lhos que produziram, que vão aumentando, dia a dia, a ponto
de jã hoje poder ser considerada a produção literãria, do
gênero, apreciãvel, dado o esfôrço dêsses pioneiros e incan-
sãveis estudiosos. Após estudar o labôr literário dêsses cul-
tores do folklore, passa o autor ao estudo mais aprofundado
-do folklore no Piauí, com o que obtém bem documentado
trabalho, rico em detalhes e cheio de informações, citações
de obras, estudo interessante para os que se dedicam ao me-
lhor conhecimento das lendas, contos e narrativas de cunho
popular do sul piauiense. Realça as figuras populares de
"Zé Rodrigues, singular !esteiro" e de "Pedro Mouco, o maior
dedilhador de vióla do sul do Piau". Alude a crendices, his-
tórias mal assombradas, documentando o assunto com "Adi-
vinhações", "Folguedos de criança", "Galinha Gorda", "Vea-
dinho", "Poder de Deus", "Variante Sertaneja", "Circulo Vi-
cioso", "Lenda do Picapau", "Toque Sombra e Beijo", ver-
sões correntes de casos e histórias de trancoso' ou duvidosas
na sua contestura.

Rio Gurguéia - Descreve o rio com o maior curso dãgua,


tipicamente piauiense, provando que o Parnaíba é interes-
tadual; dã suas origens, extensão e municípios que banha;
alude às possibilidades em recursos naturais e ao seu valor
histórico; falta de seu melhor aproveitamento, redundando
em progresso e riqueza considerãvel para a região, ao demons-
trar a pobreza e ignorância dos piauienses. Daí faz minu-
cioso estudo da região, hãbitos, padrão de vida, formação de
vilas e quistos regionais, dificuldades, males, pauperismo e
ignorância dos habitantes; aconselha, prega, formúla remé-
dios; fornece elementos populacionais de vilas da região re-
tratada; analisa ciclo por ciclo em que se desenvolveu a ci-
vilização marginal ao rio Gurguéia sendo assim, todo o
trabalho valioso repositório de elemen.tos de interêsse para
qualquer pesquisa que se pretenda fazer acêrca daquela
imensa e abandonada região.
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Conclusões: Sem ter conhecimento prévio, como afirmei


no início do presente, das finalidades das observações que
devia fazer sôbre êste trabalho, dei-lhe rumo analítico e
prático: li-o e de forma suscinta, resumi os seus capítulos
descritivos, para que se possa ter noção de seu conteúdo,
como também idéia da personalidade de seu autor.
Interessante e minucioso focalizando vasta gleba do sul
do Piauí e o respectivo núcleo populacional, encontram-se no
livreto preciosos elementos que poderão informar e documen-
tar qualquer pesquisa de caráter histórico-social, sócio-econô-
mico e sócio-geográfico, bem como hábitos, usos, costumes,
lendas, crendices, formação étnica, espiritual, moral e reli-
giosa. Ademais, dados estatísticos e informações geográficas
completam, compõem e documentam os assuntos focalizados ,
como para corroborar a paciência e seriedade com que se dis-
pôs o autor a elaborar seu apreciável e bem documentado
ensaio.
Rio de Janeiro, em 20 de fevereiro de 1957.

WILSON TÁVORA MAIA


PREFACIO

Era muito deleitosa a infância vivida no recanto rural


ou na longínqua aldeia do interior nordestino, onde o clima
de violentos contrastes compõe mutações animosas. O céu e
os largos horizontes da planície, limpos e transparentes du-
rante a maior parte do ano, são uma espécie de livro colo-
rido de maravilhosas figuras . Vive-se um certo .tipo de vida
arbórea, principalmente porque as ásvores tortuosas, esga-
lhando logo acima do solo como se ofer tassem degraus, livres
de parasitas e de musgos, são propícias à escalada e à per-
manência, bem como, na época própria, à colheita de frutos
sabor osos, que abundam porque sobejam a necessidade da
popu lação rarefeita .
As águas correntes da estação chuvosa, céleres e trans-
bordantes, os barrancos e o leito sêco dos rios, na outra es-
tação, recobertos de areia fina e enxuta, refrescante ao ama-
nhecer e ao anoitecer, convidam a movimentos de júbilo e
de excitação. As vertiginosas correrias no dorso nú dos ca-
valos, ao longo dos caminhos e nos descampados, açulam o
gôsto áspero de aventuras e de audácias.
As distâncias, as longas caminhadas, os ninhos, as per-
seguzções e as ciladas aos bichos e aos pássaros, os refúgios
e esconderijos à sombra das grandes moitas rasteiras e es-
pessas e na massa compacta dos arbustos e do ervaçal, são
meios abundantes de _diversões.
A nenhuma ou pouca ocupação em escalas e estudos
deixa folga sobeja para tudo isto e, ao mesmo tempo, tudo
isto tem um sabor de liberdade, de amplitude e de variação
que perdura em vínculos resistentes, em fios incontáveis de
ligação regressiva, que naquêle tempo teciam uma forte sen-
12 ARTUR PASSOS

sibilidade e legam para sempre um acêrvo de memórias


indelévei1.
Nada mais do que vem depois da infância de pobreza pode
igualar ou compensar êsse tesouro perdido. Depois, só culti-
vam a inteligência, aquêles que têm vocação para a vida
intelectual, à base do esfôrço penoso de auto-didata, correndo
à margem do esf6rço permanente e principal imp6sto pela
necessidade de subsistência. Não tarda o casamento prema-
turo e prolífico, a constituição acelerada de família numerosa,
impondo o trabalho profissional, drduo e incessante, por uma
remuneração parcamente necessária à manutenção mai$ po-
bre do casal e da eldstica prole. Tudo que se consegue apren-
der sdi à custa do lazer e tudo que se pode produzir, com pre-
tensões de pureza intelectual, adultera-se pela impregnação
de um objetivo imediato de ganho elementar.
Assim transitou Artur Passos por uma longa vida, lutan-
do para sustentar, educar e encaminhar dezena e meia de
filhos, passando pelos postos iniciais e médios de uma carrei-
ra provinciana de jornalismo, de politica e de mal remune-
rada burocracia estadual. Guardou sempre, porém, com ava-
reza de rico, os velhos tesouros espirituais de aspirações lite-
rdrias, de imaginação e de fecundas memórias de remota
vida aldeiã. E quando a idade avançando veio restaurar e re-
doirar o fóco dessas memórias, sob o faddrio crepuscular de
só rejuvenescermos pelas recordações dos rincões distantes
e dos deleites da vida principiante, éle empreendeu o regres-
so literdrio à velha aldeia. Este livro é a devolução afetiva de
Artur Passos à gleba inesquecível. O deuso fluxo emotivo des-
ta devolução alteou-lhe a inspiração e reverdeceu-lhe o es-
tilo, para que assim remoçado pudesse éle reviver, com sabor
nostdlgico~ os aspectos, as imagens e episódios vivos e signi-
ficativos da geografia humana e social do vale do rio GUÍ'
guéia. ·
A aldeia rediviva é aquela que parou no tempo e que · só
a memória reencontra por entre ruínas ·e por sob cinzas. A
nova cidade, animada de progresso, em que pode estar evo-
luída, é uma nova imagem, pertencente a novas gerações, que
não detém, antes ajuda o ímpeto das memórias. · Além disto,
a aldeia não é outra vida .diferente dC+ vida rural. t apernz.$.
LmfDAS. I'ATOS 13

uma Ugetra condensação da vida rural, acalentada e nutrida,


prolongada sem solução de continuidade, pelo campo e pela
mata, pela chapada e pelas aguadas, que a rodeiam e a bor-
dejam. Ntio admira, portanto, que tanto as imagens da habi-
tação, como as dos h-mos, alternem ou se misturem no mes-
mo ret6rno das antigas vivências.
Empreende êste ltvro, assim, a sempre fascinante via-
gem espiritual aos tempos impalpáveis, irreversíveis, às vi-
sões mortas, ds emoções extintas, às paixões consumidas, d
aldeia trammudada e ao seu envólucro rural, espiritualizan-
do, pelo esf6rço da inteligência literária, até mesmo o espaço
que tenha ficado intransferível. Precisamos ao menos destas
viagens para dçvassar, ao menos por partes, éste Brasil maior,
ainda refugindo para o seu imenso espaço territorial, oculto
nas distâncias e nos êrmos, cheio de enigma e de desafios
mudos.
CLAUDIO PACHECO
OFERTóRIO

Minha terra natal!

Eu me arrebato, ainda hoje, tantos anos decorridos, so-


letrando e sentindo a ingênua poesia de meu sertão sulino,
onde a inteligência, aberta aos segredos da natureza, me-
lhor assimila e compreende a grandeza da sabedoria de Deus
nos contrastes de seus decretos imutáveis.

* * *
Recobrando as fôrças de meu destino, vislumbro em tôr-
no de mim, 6 minha terra! o espírito de tuas coisas aben-
çoadas - os místicos encantos da igreja já velhinha, tôda
de pedra e de recordações; os lindos novenários da Senhora
de Lourdes, geradores de sonho e . . . de realidades ; a maciez
de manhãs doiradas e o rubro pôr-de- sol de tardes sem iguais;
os longos e abrasados dias de verão calmoso, e o encanto de
noites estranhamente iluminadas; o perfume agreste, mas
envolvente, das flores e das ninfas; o ambiente bucólico de
paz e amor em que desabrocharam os da minha geração,
ainda sob os bons auspícios de sua majestade imperial o Se-
nhor D. Pedro Segundo - tôdas essas coisas tecidas de re-
cordações e de luz, que formam teus característicos incon-
fundíveis no conjunto histórico e geográfico do Piauí têm, na
branda aragem de teus campos ilimitados, seu brilhante e
sublime cantor.
16 ARTUR PASSOS

Com que ternura eu revejo, embevecido, na claridade evo-


cativa de puras reminiscências de amor, o horizonte familiar
de minha terra I
Sob o pálio de meu grande sofrimento moral, dêsde que
te deixei naquela tarde de abril, com lágrimas na voz ester-
torada e com a bôca e as mãos e o corpo contraídos pela dôr,
tenho vivido apenas de tua cruciante saudade.
Porque eu te quero é porque quero mesmo, com as tuas
intérminas chapadas povoadas de duendes; com os teus cer-
rados juremais, ricos de caça; com os moitêdos que te circun-
dam, abundantes de saborosos frutos; com as venosas verê-
das, largas e extensas, como extintos rios, que te recruzam
a epiderme; com os teus férteis e incontáveis baixões sequio-
sos de racional cultura; com as tuas misteriosas fontes, cho-
rosas de sedução e de desejos; com os teus claros e trace-
jantes regatos; com o teu torcicoloso Gurguéia, de águas trai-
çoeiras e barrentas, e com o cheiro singular de teu mato e
de tua terra de argila e areia -, partícula de meu próprio
ser-, e que só eu sei compreender e sentir. Eu não te quero
nem te busco, como vês, por tuas riquezas materiais, que são
muitas, mas pelo amor de mim mesmo, que sou, eu bem o
sinto, um teu prolongamento; por minha sensibilidade, por
minha imaginação, e mais do que tudo, pelo encanto moral
de tuas excelsas virtudes de gleba cristã, sossegada e boa.
E agora que completas duzentos anos de sagração espiritual,
eu confesso, comovido -, com a necessidade que tem o ho-
mem de um ponto estável, do qual partiu e para o qual
um dia regressará - , que só em ti, 6 minha Jeromenha I
ó minha terra - bêrço ! eu reencontro o perdido caminho
da vida que sempre desejei viver.

• • •
A tradicional bondade de tua gente; às transparentes
águas de teus casquinantes ribeiros ; ao zumbido das aladas
colmêias e ao traço cintilante das raínhas no vôo triunfal do
himineu; à energia destruidora das queimadas, de galhadas
LENDAS E FATOS 17

pendentes e troncos que ardem silenciosamente; às feras que


trucidam e aos insetos que fecundam as flores; ao chão pie-
doso de teu campo santo, onde dormem três seráficos reben-
tos de meu ser - a minha carícia, o meu afago de amor, a
minha melancólica saudação, sem altitude, apesar da gran-
deza afetiva do assunto, mas sincera, nascida de um coração
que te não esquece, da alma de um teu obscuro filho vencido
nas duras competições utilitárias da civilização.

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DESTROÇOS DE UM VALENTAO

Na crônica dos heróis por acaso deve-se sem dúvida re-


servar um lugar para o valente conquistador do Escondido,
obscura aldeia grudada às faldas da serra do Vai-e-Vem, num
recanto ainda agora solitário do extremo sul do Piauí.
Escondido teve a honra de pertencer, por direito de
conquista, ao famanaz José Pequeno, autor de inúmeras mor-
tes e dono ostensivo de um harém pífio. Era senhor de baraço
e cutelo: açoitava, pesponteava a pontaços os que lhe caíam
ao desagrado ~ às mãos, chegando certa vez, ardendo em
zêlo amoroso, a enforcar, no alto da serra, um pobre diabo
que esboçára um medroso sorriso ao passar por uma das
fêmias do famelga.
Para reinado de cangaceiro foi longo, relativamente pa-
cífico e incontestado o de José Pequeno, no Escondido, onde
aliás a única autoridade respeitada e temida era a sua.
Entre outros privilégios que reclamava, sob penas pu-
nitivas, severas e irregováveis, destacava-se o de lhe ser en-
viado o melhor pedaço de carne das rêses que lá uma ou ou-
tra vez, com licença prévia, eram abatidas para o consumo
daquela pobre gente abandonada naquele buraco, à beira de
extensa caatinga infestada de feras, sem assistência moral
e espiritual, pois a sede do govêrno municipal ficava muito
longe e os representantes da lei e da religião, sem recursos
materiais, não se atreviam a cumprir seus deveres no âm-
tro de José Pequeno, sem graves e funestas conseqüências.
E não se submetesse o dono da rês à imposição I
Um magarefe, um só, ainda um tanto indisciplinado, teve
a veleidade de murmurar umas tantas coisas. No dia seguinte
LENDAS E FATOS 19

correu no povoado a notícia segundo a qual o infeliz teria


sido encontrado moído a páu.
Era aguentar firme. O homenzinho tinha o braço com-
prido e a mão pesada como um martelo mecânico.
Mas, em determinado dia, toma a porta da feira uma fi-
gura estranha, um indivíduo alto como um monumento, de
barba hirsuta, exalando o fétido característico dos negros.
Coberto de armas, falando grôsso e ríspido, a todos ame-
drontou. Entrou de feira a dentro alisando a barba e o cabo
de um longo e afiado punhal, sem prestar a menor atenção
aos presentes, que se escafederam transidos de mêdo.
Espalhou-se pelo Escondido, como um incêndio em cam-
po árido, a cruciante novidade.
Marchou ao talho e apanhou dois tassalhos de carne,
justamente os da alcatra e lombo, reservados para o senhor
da gente e do lugar.
O magarefe, pressentindo desgraça, fêz um gesto, um
· gesto apenas, pois no mesmo instante, tracejando uma ca-
rêta e piscando os olhos, prenúncio evidente de sangue, sur-
giu o cangaceiro reinante. O negro enorme e peludo como um
gorila, olhou, calmo, do alto de seu arcaboiço, para o outro,
pequeno, sêco, vibrante como uma jararaca assanhada.
Parecia que o mundo iria abaixo naquele encontro de
dois valentes do sertão sem lei e sem Deus. José Pequeno
cometeu o êrro funesto de não atacar. Pegado de surpresa,
teve esta saída: "Preciso vê-lo, a sós, alí", e esticou o braço
trêmulo de raiva impotente. "Seja", respondeu o Chapadão - ,
que êste era o nome de guerra do intruso-, sem abrir mão da
carne destinada ao outro.
Era um duélo em prespectiva, um combate singular a
faca ou a punhal que se previa entre um sujeito que naquêle
transe iria defender o prestígio e a vida e um maluco, intei-
ramente desconhecido, porém que a todos pareceu medonho
no feitio e terrível no gesto. A verdade era que o Escondido
não comportava dois senhores, como numa colmeia só go-
verna uma raínha.
Do ofendido em seu amor próprio, na sua vaidade, no
seu orgulho estuante de valentão todos ali sabiam e atesta-
20 ARTUR PASSOS

vam sua indômita corágem pessoal, seu arrôjo nas agressões,


sua crueldade de instinto. Não tinham nem podiam ter a me-
nor dúvida a respeito do que sucederia, a não ser que o
recém-chegado, cuja feiura espantava, sobretudo pela enor-
midade do porte, fôsse algum Hércules mitológico que es-
trangulasse entre os possantes músculos negros o execrado
José Pequeno.
A história do Chapadão só mais tarde chegou a ser
conhecida. Oriundo de certa localidade fincada às margens
de pequeno afluente do rio São Francisco, se notabilizára,
entre os seus, desde moleque, pelo precoce desenvolvimento
físico e por uma covardia inata. Viveu sempre apanhan-
do dos outros moleques do lugar. Homem já, para encobrir
falta de outrem, casaram-no à fôrça e, anos depois, ainda
por covardia, deixára a mulher e filhos. A conselho de
um gaiato próspero entendeu de viajar por novas terras, onde
não fôsse conhecido e podesse fingir de valente. Recebeu de
seu conselheiro um velho e enferrujado punhal, um facão de
cabo de páu, um surrão cabeludo de couro de bode e uma
goéla de ema com algumas moédas de cobre. Deixou crescer
a barba e enterrou, para sempre, ao transpôr as divisas da
terra natal, o riso inexpressivo dos parvos e o ar humilde
dos espaldeirados. Fechou-se dentro de sua própria carcassa.
E caminhou firme para oéste.
Mêses depois, ao transpôr alguns casebres à borda de
uma aguada notou, satisfeito, que os homens quedavam-se
surpresos e as mulheres, entre esconjuras, bensiam-se. Com-
preendeu que já infundia respeito ou, melhor, causava mêdo,
que era o essencial . Em certa ocasião, ao pedir água numa
barraca de pequenos lavradores, as crianças tremeram e cho-
raram alto, em desespêro.
Pigarreou, sacudindo os ombros, certo já então da lem-
brança feliz de ter deixado aquela miserável existência de
mendicidade e humilhações. Acreditou em tudo quanto pre-
cisava acreditar, inclusive que era um super-homem da man-
driagem e do crime. Nada lhe pediam. Tudo lhe davam : co-
mida, água, fumo para o queixo e para o pito, às pressas,
ansiosos que o hóspede desocupasse a varanda e podesse ser
visto pelas costas, ao longe.
LENDAS E FATOS 21

Matutava, viajando, nas belezas daquela imensa e fru-


tuosa aventura quando, ao passar pelas terras de um po-
tentado, foi abordado: o ricaço estava há dias a espera de
uma "visita" perigosa. Precisava de mercenários que se em-
penhassem em verdadeiros combates. Amatulou-se ao ban-
do com o coração aos pulos. Era, afinal de contas, a primeira
eventualidade propícia que topava pela frente. Aquilo signi-
ficava sem dúvida a prova de fogo que se lhe oferecia espon-
tânea naquela bendita peregrinação pelo desconhecido. Afi-
ou o punhal, amolou o facão virgens, até ali, de sangue
humano.
A "visita", pelo número crescente de aliciados e pela
fortificação da casa, afigurou-se-lhe iminente.
Dois dias depois, ao jantar, tomou assento entre a ca-
broeira, sob a presldência do chefe. Todos se serviam e co-
miam armados e silenciosos. Haviam abatido um boi no dia
anterior e a ossada ali estava numa gamela, no centro da
mesa. Notou que um dos cangaceiros batera um chambaril
da rês na própria cana do braço, chupando o tutano calmo
e satisfeito. Outros, com a maior naturalidade, fizeram o mes-
mo. Chapadão fingia não dar pelo ato temerário, no seu
modo de vêr, praticado por aquêles desconhecidos companhei-
ros. Empurraram. a gamela em sua direção. Era sua vez, pen-
sou, desolado. Escolheu, com a vista conturbada, o ôsso que
lhe pareeeu mais apropriado, estendeu a mão e, com o busto
um tanto retorcido descarregou o chambaril, num ímpeto de
alucinado, na cabeça do conviva da esquerda, um cabra baixo,
grosso, mal-encarado.
O homem escabujou sob a mesa, num estertor. Houve um
estremecimento. As cobras vibram os guizos. As armas ti-
niram em tôrno. Chapadão, como que alheiado das ocorrên-
cias, ouvia a respiração ofegante dos bandidos.
Salvou a situação o patrão, que assistiu, da cabeceira da
mesa, ao sacrifício do João Grosso. A um gesto seu as armas
desapareceram, enquanto Chapadão, por mais incrível que pa-
reça, continuava no repasto, como uma gibóia, tranquilo e
obstinado, sem imaginar o que sairia de tudo aquilo.
Habituado, o chefe, ao sacrifício de vidas, aquêle original
assassínio, todavia, o surpreendera. Aquêle tipo, por sua ex-
22 ARTUR PASSOS

centricidade, a princípio e, agora, por sua fôrça e crueldade,


constituía, ali em sua propriedade, mais um perigo nas en:..
cruzilhadas sertanejas, mas, - quem sabe? poderia, noutra
oportunidade, ser útil numa daquelas constantes corrimaças.
Assim pensando, perduou. Levantou-se. Deu ordens para que
deixassem livre o assassíno. Fêz mais: chamou-o à parte, ..
entregando-lhe um pequeno saco com cinco mil réis de cobre
e, ao empurrá-lo para o páteo, disse, pensativo: "é possível
que ainda venha precisar de seus serviços; é bem possível."
Chapadão, ao dobrar, à esquerda, a extrema curva dó ca~
minha, sempre em direção ao poente, tomou fôlego. Em que
se metera, santo Deus ! Também não seria possível bater
um corredor de boi na can a de seu braço, como faziam aquê-
les brutos. Que homens t erríveis!
Quinze dias após, numa radiante manhã de junho, al-
cança o belíssimo vale do Paraim e nêle o humilde povoado do
Escondido onde, com a mesma indumentária, as mesmas ar-
mas e a mesma insensibilidade moral deixámos Chapadão me-
tido na pior encruzi.lhada: entestado com o mais desgarrado
bandoleiro da zona.
Havia ao lado do povoado pequena várzea na direção da
qual apontára José Pequeno.
Não se sabe bem por que, mais o certo é que Chapadãq
não rejeitou a parada.
O povo, no fundo, desejava a derrota do abominado do-
minador, causa segundo pensava, de seu infortúnio e per-
manente sofrimento.
A verdade é que José Pequeno sentiu o abandono e o
vácuo em tôrno de si após o incidente da feira, pois ali fôra
duramente desacatado em público. Agora era preciso um
golpe de fôrça, ferir fundo, matar aquela bêsta sórdida à
vista de todos. Só assim, pensava, poderia reabilitar-se e cas-
tigar exemplarmente os que, por um instante, duvidaram de
sua temibilidade.
Oculto, mas presente pelos olhos, de dentro das moitas
circundantes, ali estava o povinho à espera do desenlace.
Surgem os homens. Penetram na pequena várzea por
pontos opostos: um do norte, outro do sul. Chapadão então
LENDAS E FATOS 23

já havia feito uma espécie de exame de consciência, segundo


o qual não se deveria bater (abater). Sentia calefrios, sinal
manifesto de covardia. Por um golpe rápido de vista certificou-
-se da ausência de expectadores. O melhor era aproveitar o mo-
mento e pedir ao outro que, certamente, movido à piedade - ,
piedade de cangaceiro ! - , o deixaria afundar em sua misé-
ria moral.
Com êsses propósitos marchou para o contendor, afas-
tado ainda algumas dezenas de metros. E o fêz deitando fora
o punhal, o velho facão e até o surrão, que levava às costas,
indefectível como as leis da natureza.
Psicologicamente derrotado desde o desacato da feira.
horas antes, José Pequeno n ão atinou, não compreendeu o
gesto e muito menos o intento, tomando talvez em oposto
sentido aquela inesperada e imprevista resolução. Teve mêdo.
Sentiu no rosto o vento frio da desgraça. Um fundo senti-
mento de inquietação dominou-o. Supôs ter pela frente um
monstro esfaimado e estrondeante ou, talvez, uma desgarrada
divindade infernal. Como que em delíquio, por sua vez, dei-
xou cair as armas, tintas de sangue da última carniçaria.
Correu ao encontro do gigante, pensando que êste o esmaga-:
ria a punhadas. E caiu-lhe aos pés, rápido, convulso, ani-
quilado.
A espetaculosidade da cena dominou a oculta assistên-
cia. A várzea foi inopinadamente invadida e Chapadão, sor-
ridente, afinal, deixou-se carregar nos braços de seus fiéis
súditos.
Poucos .meses esteve Chapadão à frente dos infortúnios
do povoado.
Por motivos estranhos à compreensão daquela infeliz
gente, numerosos membros da família Aguiar, da vila de
Parnaguá, pegaram em armas contra o govêrno de Oeiras.
Seus agentes aliciavam homens à luta cruenta. Chegaram,
assim, ao Escondido. Chapadão foi intimado a apresentar-se
em Parnaguá chefiando um contingente. Todavia, mal os
emissários deram de rédeas, tomou o punhal, o facão, o saco
.
24 ARTUR PASSOS

de coiro, a goéla de ema e sorrateiramente afundou na caatin-


ga, sem rumo preestabelecido, sem matalotagem, doido de
mêdo.
Os choques e constantes reencontros dos revoltados com
as fôrças do govêrno prendiam as atenções. Não se cogitou
daquela fuga, porque muitas eram então as fugas e deser-
ções em ambas as facções.
Decorrido algum tempo, no entanto, dois caçadores pro-
fissionais, empregados de uma fazenda da região do Crumatá,
encontravam no centro da caatinga um esqueleto humano.
Examinaram atentamente os ossos desarticulados, espa-
lhados a êsmo, constatando fratura do crâneo e dos braços.
Era, sem a menor dúvida, mais uma vítima das onças, pinta-
das ou pretas, abundantes e agressivas naquela região. De re-
dor embainhados, sinal evidente de nenhuma tentativa de re-
sistência, descobriram os caçadores um punhal, um velho fa-
cão de cabo de páu, e um surrão de coiro de bode, tristes !fes-
pojos de um falso valentão.
úLTIMA FESTA DO FIDALGO

Naquele resplendente dia de verão os Amaros não fôram


ao trabalho.
O velho Joaquim Amaro havia arrendado um carnaubal
no Fidalgo e ali estal{a a tirar palhas e a preparar a cêra au-
xiliado pelos filhos Joaquim Amaro Júnior, Quincas por ape-
lido - , e Absalão Amaro, sócios na indústria extrativa.
Pequenos criadores à margem direita do rio Gurguéia,
onde gozavam de conceito, naquêle ano tomaram de arren-
damento o carnaubal do Capitão Valentim e para lá se trans-
portaram aparelhados à labuta estafante.
Viúvo há muitos anos, Joaquim Amaro, do matrimônio,
destacava o Quincas, que se mostrava morigerado, traba-
lhador, econômico, sempre preocupado com o futuro e bem
estar da família constituída há pouco tempo.
De uma ligação ilícita, após a viuvez, obtivera dois filhos ,
Benedita e Absalão. Êste se fizera homem endurecido na rude
aspereza da roça e do pastoreio. Caboclo desempenado, forte
como um atleta, em breve chegaria, nas festas da redondeza,
. a fazer-se notar pela desenvoltura dos gestos e dotes físicos,
patenteando em várias ocasiões admirável coragem pessoal. No
campear o gado, no roçado ou nas caçadas, Absalão Amaro
ganhava fama, justificada dia a dia. Tendia, aos poucos, en-
tretanto, para o copo e alcoolizado provocava distúrbios a cada
passo. Tornou-se, assim, com o correr dos tempos, um incor-
rigível comprador de brigas.
- O Absalão anda com a enxada às costas, diziam.
E andava mesmo, como se verá.
O Velho Amaro já esgotara a energia a aconselhar aquê-
le filho de fora que, não obstante, lhe soubera prender o co-
26 ARTUR PASSOS

ração mais, talvez, que os legítimos. Levara-o para o Fidalgo


justamente por causa de uma quezília que lhe parecera de
consequências funestas.
E naquêle dia, 6 de agôsto, não iriam ao trabalho por
ser dia de guarda, pois no Fidalgo festejavam Bom Jesus da
Lapa, sendo Joaquim Amaro um dos juizes da festa.
A casa do Fidalgo era, como quase tôdas as casas do
sertão, encravada em uma eminência, à margem de um qué-
rulo regato de águas claras. O páteo imenso, ia até limitar
com o próximo carnaubal, cujas elegantes palmeiras, batidas
pelo forte vento de agôsto, eram vistas da porta no embele- "
zamento encantador dos campos adjacentes.
Apenas um pequeno outeiro, coroado por um lindo ca-
jueiro, então florido, quebrava a paisagem uniforme do espa-
ço descoberto e dependente da casa.
Desde cedo o movimento ia num aumento animador. Sa-
crificavam-se animais domésticos para o grande banquete aos
convidados. A latada da porta recebia os últimos retoques.
Os bancos improvisados saiam dos limites naturais e se dis-
seminavam sob as grandes árvores do páteo. O salão desti-
\ nado ao novenário, com o tôsco altar ao fundo, do qual so-
bressaia uma velha litografia de Bom Jesus da Lapa, esta-
va enfeitado de aromáticas flores agrestes. A rouqueira des-
de cedo conclamava os convivas dos logares mais afastados
e tudo predizia que a festa daquêle dia ficaria memorável na
tradição oral daquêle trecho do sertão piauiense. Á tarde, pe-
los caminhos que se bifurcavam em todos os sentidos, repon-
tavam os esperados convivas, em filas interminaveis que atin-
giam o páteo e invadiam a latada e casas de rancho.
Quando a lua, em crescente, surgiu, alta, no horizonte,
nostalgiando os corações e se perdiam no silêncio das várzeas
as últimas notas plangentes dos benditos estropeados, a as-
sistência foi despertada pela chegada de um comensal que se
não esperava. Tocando uma carga de ancorêtas, o preto João
Gargo, conhecido em tôda a ribeira, pediu agasalho e tirando
o chapéu de coiro num largo cumprimento foi deitando a
pequena bagagem sôbre um dos bancos, disposto a passar a
noite. Célere correu a notícia de que o preto era negoci-
LENDAS E FATOS 27

ante ambulante de cachaça e que ali estava sob a compla-


cência do próprio dono da casa, que de antemão soubera e
até concordara com o negócio. O fato, todavia, vulgaríssimo
nas reuniões sertanejas, não mereceu maiores reparos e horas
depois, se não fôsse a exaltação crescente de alguns festeiros,
ninguém se lembraria de Garfo e de sua perigosa mercadoria.
Tratava-se em todo caso de um indivíduo de hábitos hones-
tos e, por isso mesmo, da confiança de certo pequeno indus-
trial que o empregava na venda ambulante de seus produtos.
Amparo de sua velha mãe, com quem vivia, nunca se dera,
como é de uso no mato, a ligações amorosas ostensivas e
jamais fôra visto em libações reprováveis. Comprido e sêco,
da constituição física lhe viera a alcunha de Garfo, que rece-
beu sem protestos. Sem envolver-se nunca em contendas, tôda
gente o conhecia como um preto altivo, incapaz de um escor-
rêgo de covardia. Abancou-se frente á latada, distribuiu os
trastes e começou a dispôr pacientemente do líquido apete-
cido. Estava, entretanto, armado de rifle.

* * *

Os grupos dos que não dançavam ao som fanhoso de


surrada sanfona se fôram formando em tôrno das fogueiras
crepitantes, pelo páteo. O frio sêco do verão compelia àquele
recurso e a conversa, logo depois, generalizada, versava na-
turalmente sôbre assuntos que diziam respeito à sociedade
ali reunida.
O Júlio Bôca da Noite, imaginoso e fabulista, contava
cousas arripíantes. Já vira "mulas-sem-cabeça" e sabia de um
certo sujeito que virava "Lobishomem". O Antônio Lima, por
exemplo, ex-amante da Joaquina Simôa, era apontado como
tal. Em uma sexta-feira, dizia o Bôca da Noite, convidara êle
a amante para um passeio ao roçado. Lá procurara pretexto
para demorar-se mais do que habitualmente o fazia. Voltaram
à noite. Ao saírem da roça, já na porteira, pediu Antônio
Lima à companheira que o esperasse por um instante en-
quanto iria apanhar o facão. Afastou-se, mas momentos de-
pois um estranho e peludo animal atacava, rápido, a pobre
mulher que mal teve tempo de trepar na cêrca aos gritos,
28 ARTUR PASSOS

trêmula de mêdo. O bicho a bufar, esquálido e medonho ras-


gava-lhe a fímbria do vestido, de vêz que lhe não podia atin-
gir o corpo, encolhido no cimo da cêrca salvadoura. Com a
fuga do bicho reaparece o companheiro desapontado, arque-
jante, imundo. Passaram mal a noite e a Simôa, pela manhã,
observou, horrorizada, por entre os dentes do amante uns es-
garçados fios de sua sáia mastigada pelo "Lobishomem" na
cêrca do roçado.
Neste mesmo dia fugira de casa.
Noutro grupo um vaqueiro famoso em tôda a redondeza
contava proezas de correrias doidas pelos cerrados do rio Pra-
ta ante a admiração dos presentes que lhe conheciam o va-
lor, invejado pelos homens e proclamado pelas raparigas ca-
sadoiras, que disputavam as preferências daquêle campeador
entrajado de coiro, a corvetear em ginete de dar e apanhar.
Ainda em outro grupo falava-se da recente nomeação
de Manuelzinho do Mucaitá .para o cargo, julgado impor-
tante, de terceiro suplente do subdelegado do quinto dis-
trito, que abrangia o Fidalgo.
Comentavam-se os preços, então já elevados, da cêra
de carnaúba e do babaçú. E um engraçado, a propósito de
babaçú, pergunta pelo Bernardino da Trindade, que de-
saparecera, de repente, deixando ao abandono os seus
cocais.
- O Bernardino?
-Sim. O Bernardino da Trindade.
- Esperem, então vocês não sabem do caso interes-
sante que o fêz passar o rio Parnaíba, homiziando-se entre
parentes, na Ponta da Serra?
- Não. Ninguém sabia ao certo.
- Pois eu lhes conto, disse um indivíduo que alcan-
çara o apelido de Grilo, por caminhar aos saltos.
Com a morte do Antônio Pato, a viúva, irmã da mu-
lher de Bernardino, foi morar na Trindade. Mulher nova
e atraente, o cunhado para logo entrou a requestá-la por
tôdas as fôrmas. Ela, coitada, a chorar ainda as saudades
LENDAS E FATOS 29

do finado, que a deixara sem filhos, é verdade, mas em


extrema pobreza.
O conquistador insiste, obstinado. Persegue-a a todo
transe. Surge inesperadamente na cacimba de beber, na fon-
te de lavagem, na apanha de lenha, no cocai, em tôda parte,
onde fosse possível avistar a Sabina, que murmurava de-
solada:
- Tenha modos, Bernardino. Olhe que todo mundo está
vendo. Que será de mim se a Rosa souber?
O Bernardino, pelo contrário, apertava o cêrco, supon-
do a praça enfraquecida.
Não suportando mais, Sabina, um dia, em pranto, tudo
conta à irmã.
- Espera. Eu resolverei o caso. Amanhã falaremos .
Combinaram que Sabina, afinal, aceitasse as propos-
tas do cunhado e o aprazasse para a casa de farinhada, noite
alta. A Rosa iria, no entanto, substituir a irmã na entrevista
com o próprio e iludido marido. Hora certa, ao primeiro
canto do galo, lá se foi o Bernardino, - pé ante pé. Pene-
tra no quarto do paiol, às apalpadelas. Toca no corpo pal-
pitante que êle, perturbado, supunha da mulher há muito
cubiçada. Cobre-a de carícias. Diz loucuras. Traça projetas
de futuro. E a mulher calada, trêmula de raiva a se deixar
arrastar ao extremo daquêle sui-generis encontro amoroso.
Apagada a labarêda da paixão, Rosa se ergue, num salto;
bate o fósforo à altura do rosto:
- Olha bem pra minha cara; senvergonha ! Eis aí, con-
clui Grilo, por entre as gargalhadas dos ouvintes, por que
o Bernardino da Trindade, fulminado de vergonha, fugiu
para a Ponta da Serra, no Maranhão.
Outros encetavam negócios, reviam parentes e amigos,
animados todos pela esperança de próximo inverno, que um
relâmpago fugidio no levante anunciava como certo, ou dis-
cutiam velhas questões de divisas reavivadas com o valor
econômico do babaçú e da cêra de carnaúba, palmeiras que
abundam nas margens do Gurguéia e de seus afluentes. Mas
a atenção geral foi atraída para dois homens que alterca- ·
30 ARTUR PASSOS

vam. Formaram em tôrno os curiosos. Absalão Amaro ques-


tionava com o preto João Garfo sôbre o fútil pretexto de um
trôco. Intervieram. Acalmaram-se. A sanfona, mais fanhosa
ainda, recomeçou e a festa, por instantes, voltou ao ritmo
comum. Alguém, porém, observara que aquêles homens se
haviam medido face a face, num desafio de morte. Um meio
ébrio, com fama de valente e armado de punhal; o outro
em seu perfeito juizo, mas destemido também e, além do
mais, certo do perigo que o ameaçava. O velho Joaquim
Amaro, que havia testemunhado o desagradável incidente,
chamou o filho à fala. Procurou até retirar-se antes que
uma segundo provocação se efetivasse. O filho, fora de si,
desobedeceu. Voltou à latada das danças ameaçando céus
e terra.
- Vou receber meu trôco daquêle canalha, disse, alto,
avançando contra João Garfo. E de punhal em punho agre-
diu, agil, o vendedor de cachaça. A lâmina coruscou à luz
do luar e se embebeu no corpo de João Garfo, passando-o
de lado a lado. Mas, um tiro estrondeou e Absalão, camba-
leante, levou a mão ao peito fendido e da boca lhe corria
um filete de sangue. Quincas vendo o irmão agonizante,
avança, recebendo, no entanto, uma bala na cabeça, baquean-
do, morto. Só restava o velho Amaro que, alucinado, procura
chegar-se aos filhos. Apenas dá alguns passos. Atingido tam-
bém num braço e na face cai, exângue, ao lado dos seus I
- Ainda há ai algum Amaro, indaga João Garfo, como
um demônio, de rifle alçado e fumegante. Ninguém lhe po-
deria responder. Na latada, nos bancos e até na casa já não
havia vivalma. Todos corriam àquela loucura funesta, àquela
xarqueada brutal. O preto, então, calmamente, sustendo os
intestinos que lhe escapavam, meteu doze balas no rifle e
relanceou em tôrno o olhar esgaseado.
Uma fímbria esbranquiçada no levante anunciava a au-
rora. Os passarinhos, no brejo, atrás da casa, saudavam o dia.
Uma única vela alumiava a litografia, perfurada por um pro-
jétil perdido, lá no fundo do salão deserto do altar.
João Garfo, sêco e alto, fita a imágem que lhe parecia res-
plandecente num halo de glória celestial. Revê, em segun-
LENDAS E FATOS 31

dos, tôda a sua existência de pária, envolta na poeirenta mi-


séna da vida sertaneja. Recorda a velha mãe inválida e já
agora ao abandono. Baixa a vista moribunda sôbre os cor-
pos que escabujam mordendo o pó batido dos pares em fuga
e reza, ó ! com que unção ! reza em soluços uma prece in-
gênua aprendida na infância miserável de moleque sem lar.
Recua, aos poucos, devorado de ardentíssima sede. Procura
fugir e mal atinge uma parte do páteo. Acolhe-se, já à luz
vitoriosa daquela maravilhosa manhã de agôsto, ao cimo
do outeiro, sob os galhos floridos do cajueiro, onde estertora
e morre, fechando, com aquela horrível página de sangue,
o cíclo dos festejos anuais do Fidalgo.
OS AQUINOS

Não era natural aquêle movimento pelas ruas. Muita


gente estacionada pelas portas e janelas das casas próximas
ao largo da igreja indicava, de fato, algo de extraordinário.
O escrivão Aquino fôra visto minutos antes comfabu-
lando, no largo da cadeia, com o oficial de justiça João Mar-
reca. E o delegado de polícia, de comum tardo no andar,
acabava de entrar às pressas em casa do juiz Saboia, con-
valescente de uma pleurisia, que o acamara por longos dias.
Que há? Que mistério é êsse?
Ninguém sabia. O certo era que os dois magros e tristes
soldados do destacamento, chamados com urgência, esta-
cionavam armados à porta do delegado, ainda em confe-
rência com o honrado magistrado. O boticário Oliveira, que
todos acatavam e ouviam, achava que o vai-e-vem das au-
toridades indicava assunto sério, crime de morte, pelo me-
nos. E logo mais tarde a suposição tomou vulto com o com-
parecimento do escrivão, por sua vez, à casa do Dr . Saboia.
Estávamos em junho, nos últimos dias do mês.
Por volta das duas da tarde, naturalmente depois de
tudo concertado em sigilo entre as autoridades responsáveis,
a apreensiva população viu uma diligência levantando a
poeira luminosa da tarde, na estrada da antiga Colônia de
São Pedro de Alcântara, posteriormente elevada ao predica-
menta de vila, com o mesmo nome, a êsse tempo pertencen-
te à jurisdição da comarca de Jeromenha, sendo afinal ele-
vada à categoria de cidade, com o nome Floriano, em 1897,
bem depois dos esvoaçantes episódios revistos nesta crónica.
Não obstante a cautela policial que envolveu a aventura,
nas "três esquinas", ponto preferido dos desocupados, sur-
LENDAS E FATOS 33

giu, e circulou pela vila, a primeira versão, segundo a qual


o escrivão Aquino, pela manhã daquêle dia, teria encontrado
por detrás do morro do Pinga, na esplanada dos Calheiros, o
cadáver de um homem, certamente assassinado. Outra logo
apareceu: andando à caça, esporte de sua particular predi-
leção, o notário teria, talvez num incontida impulso de mêdo,
ou de alucinação, espingardeado um desconhecido, sem dú-
vida um transviado nos êrmos daquêle chapadeirão infre-
quentado. ~

Por isso mesmo enorme era a ansiedade. Vila sossegada,


onde nada acontecia, o misterioso evento dava em cheio na
quietude do lugarejo, revolvendo-o de alto a baixo.
"A diligência, cuidosamente planejada, viajára certa de
pleno êxito," dizia o austero juiz Saboia a certo amigo que o
procurára queimado de curiosidade. Aliás tôda a gente já su-
punha saber o ponto exato do fúnebre descobrimento. Era
uma "alegoria da fatalidade", afirmava, em tom doutoral, o
prestigioso boticário, evocando, por cima dos óCulos de áros
de oiro, a "dança macabra" da Idade Média. A população
se deslocára cedo ainda para as adjacências do morro do Pin-
ga, por onde deveriam regressar os investigadores: o delegado
Ataíde, o oficial de justiça Marreca, as duas únicas praças
destacadas na vila, e o escrivão, guia e herói da espetacular
excursão. Mas enquanto se aguardava o resultado da avança-
da de feitio nada militar, cujo chefe, a conselho do juiz, an-
tes de tudo, deveria proceder ao levantamento do cadáver
constando do auto todos os detalhes, discutia-se ou im-
putava-se a êsse ou àquele a autoria do suposto delito, ten-
do muito em vista a vida pregressa de indivíduos suspeitá-
veis, da vila e redondeza. O magarefe Antônio Pedro ouvira de
um dos soldados, muito em reserva, que se tratava de um
homem de côr branca, e barbado, levando com êsse indício
maior confusão ao raciocínio daquela gente em febre alta
de expectativa.
Como? Um homem branco e barbado? Não era conhe-
cido; por certo não era dali. Quem seria? De onde teria vin-
do essa pobre criatura de Deus ?
O escrivão afirmára ao delegado, na presença das pra-
ças: "trata-se de um indivíduo alto, branco e barbado", acres·
34 ARTUR PASSOS

centando - "risquei o chão para provar mais tarde, no cor-


rer do processo, que só tinha avançado até ali; assinalei, além
do mais, em duas árvores, à direita e à esquerda, o ponto exa-
to do qual avistei, uns cinquenta metros à frente, o defunto,
e para melhor certificar-me do que via, subi a uma das árvo-
res assinaladas constatando, sem sombra de dúvida, a exis-
tência do vulto estirado a fio comprido sôbre o capim agres-
te". Louvando-se na assertiva do serventuário declarou o juiz
de direito, recostado em sua cadeira de convalescente! -
"realmente é um fato inconcusso".
O lugar, segundo se depreendia do arripiante relato,
não distava muito, duas léguas, quando muito. O sol leve e
agradável em junho, já se ocultava atrás da serra do Ma-
nopla, do outro lado do rio. Três horas eram passadas depois
da saída da diligência, que o povo esperava a pé firme, la-
deando a estrada. O fogueteiro Antônio Franco, que não tomá-
ra muito a sério aquela estranha história, pois conhecia de
perto as maluquices do Aquino, postado no ápice do morro,
no desempenho do papel de vigia, fêz um sinal, riscando o ar
por três vêzes com um lenço branco. Era afinal a diligência
que voltava; e foi um reboliço. Descendo a escarpa da grata
da velha Izabel, a uns quinhentos metros, fôram vistos, uns
após outros, os componentes da jornada inquiridora. Pela
postura amolentada do andar pareceu a todos, à primeira
vista, que regressavam frustrados. Pelo menos, como seria de
esperar, não traziam o corpo antevisto pelo denunciante. O
delegado tinha cara de pouca conversa; o Aquino, temendo
sérias conseqüências, logo que foi possível quebrou à esquer-
da, furtando-se à curiosidade e ao ridículo. Só o oficial de
justiça, seguido das praças, enfrentou o público. Sobraçava o
Marreca algo listrado de branco e preto, e às naturais inter-
pelações dos conhecidos respondia troçando, mas visivelmen-
te enfiado. E tudo se esclareceu .:...._ era um balão da noite de
São João, caído intacto na chapada dos Galheiros e trans-
formado pela imaginação delirante do Aquino num homem
misteriosamente assassinado ali às portas da vila.

* * *
LENDAS E FATOS 35

Apagados um tanto ou quanto sob a poeira do tempo


deixaram os Aquinos, no vale do Gurguéia, traços e vestí-
gios que não devem desaparecer no seu caráter de tradição,
ligando o passado ao presente.
Como por direito de sucessão, três fôram os que se se-
guiram ou se revezaram no domínio e posse de um dos car-
tórios de Jeromenha. Procedente de São Luís do Maranhão, o
primeiro da série apareceu em Oeiras por volta de 1839, no
auge da luta contra os balaios, que então invadiam a pro-
víncia do Piauí de norte a sul.
Portador de cartas de empenho junto ao visconde da
Parnaíba, ali se deixou ficar por algum tempo à sombra aco-
lhedora de Souza Martins, ao tempo entregue de corpo e
alma aos afazeres relacionados com o sangrento conflito.
-O recém-chegado, manhoso e solerte captou, em dois
tempos, a familiaridade de l.l.m homem desconfiado como era
o famoso pachá de Oeiras, dando-lhe mesmo ocupações de
confiança, como as de secretário particular, portador de re-
cados aos amigos e às autoridades, criado de quarto, etc. e
tal. Diligente, de ação pronta e imediata era, no entanto, bai-
xinho e franzino, trazendo apagado o ôlho esquerdo. Inápto
para a milícia-, o que mais interessava na ocasião-, o vis-
conde o deixou de lado entre os inúmeros domésticos do pa-
lácio presidencial. O emprêgo de que falavam as. cartas ro-
gatórias ficaria para depois. Dormindo ocasionalmente e se
não alimentando como convinha à saúde de um homem de
62 anos, combalido e cansado, o presidente por isso mesmo
adoeceu gravemente do canal intestinal, com privação com-
pleta de evacuação. Era a oportunidade. Aquino deu um pas-
so à frente, auxiliando a família do enfêrmo naquela aflição
que a tódos contristava e abatia. Fêz-se enfermeiro. Substituía
o boletim médico, percorrendo a cidade pela manhã, diària-
mente, para informar os amigos e o público da marcha insi-
diosa da moléstia. Um belo dia o ilustre empachado deixou
escapar, com ruído, boa porção de gás. Todos no quarto ou-
viram o estrépito, e todos compreenderam que aquilo era a
almejada melhora que se fazia anunciar.
Servil como êle mesmo, o improvisado enfermeiro dispa-
rou pelas ruas esburacadas da velha capital, anunciando de
36 ARTUR PASSOS

casa em casa a grande novidade : "seu visconde bufou", pou-


co se lhe dando do nôjo que a ignomínia provocava entre ami-
gos ou inimigos do velho titular. No entanto a cousa agra-
dou de tal modo que, voltando à atividade, o primeiro ato
do presidente foi despachar o lorpa para o cartório de Je-
romenha.
Outros galos lhe cantaram dêsde então. Assim foi que
colaborou ativamente na organização inicial da célebre co-
luna de tropas denominada de Oeste, comandada pelo ma-
jor José Martins de Souza -, rebento da imensa tríbu pre-
sidencial-, coluna que se destinava a bater, como bateu em
sucessivos recontros, os sublevados de Parnaguá, seguindo o
novo comandante logo depois para Jeromenha, sede esco-
lhida para o desenvolvimento e adestramento das fôrças des-
tinadas ao sul piauiense, levando secretas ordens de não dar
quartel aos rebeldes: "Que sejam estuporados êsses tratan-
tes ; não tenho onde guardá-los", cochichava o visconde, som-
brio e sanguinário, esteiado no condenado princípio segundo
o qual os fins justificam os meios. A verdade é que, exceto,
talvez, a carnificina de 7 de maio de 1840 nas matas de Co-
rumatá e Egito, ao norte, comandada por Moraes Cid, em
nenhum outro ponto do território conflagrado os combates
fôram tão violentos, as vinditas tão cruéis. As ordens secretas
do presidente fôram cumpridas à risca, de sorte que ao en-
trar triunfante na capital da província em dezembro de 1840,
o comandante da coluna de Oeste não exibia, à moda roma-
na, um só dos vencidos. Todos haviam sido estuporados, in-
clusive os cem rebeldes à última hora capturados pelo capi-
tão Ribeiro Soares e entregues ao bravo comandante, na fa-
tídica fazenda Paraíba. Mas . . . fechemos este parêntese in-
grato e atroz.
Juntando-se às fôrças do impávido José Martins de Sou-
za, assumiu Aquino as funções do cargo. De envolta com a
soldadesca, entretanto, até lá já havia chegado a notícia jo-
cosa do .prêço do cartório, sendo crismado com o apelido que
o levaria à sepultura, de "tabelião da bufa" .
Inteligente e letrado, serviu bem o emprêgo, que guardou
até 1867, quando geitosamente o passou, por invalidez, ao
segundo Aquino, que não desmentiu o pai em atividade e com-
LENDAS E FATOS 37

petência, bem assim no abaixar-se aos detentores ocasionais


do poder. Tinha gôsto em levar e trazer enredinhos, aumen-
tados ou deturpados ao seu belprazer. Era tido e havido como
páu pra tôda obra: ajudava o vigário à missa, secretariava
as irmandades do Santíssimo e Rosário, recitava discursos
de aniversários. Contavam-se muitas cousas mais, acréscimos,
certamente, de maldizentes, de inimigos do notário, que quan-
do era amigo era amigo mesmo, mas ninguém o queria por
inimigo, sobretudo se tivesse culpa no cartório. Passaram-lhe
pelas mãos processos célebres ainda hoje na tradição local, so-
bressaindo o de virtuosa mulher, vítima de um Othelo entraja-
do de coiro que, no próprio tálamo, usando de inconcebível
traição, a teria apunhalado pelo canal vaginal, perfurando-lhe
_o coração através do útero e de outros órgãos vitais, Anormal
como o genitor -, o improvisado enfermeiro do visconde -,
e como o filho -, o do balão de papel de sêda transformado
em defunto -, êsse Aquino todavia deixou memória de possuir
boa leitura. Sempre que se lhe perguntava: "quanto é hoje",
dizia a data, e acrescentava, como falando de si para si, em
solilóquio: "reina o imperador Pedro II, governa a província
o Dr. Fulano de tal, a llla foi ou será cheia tal dia".
Teria lido porventura "Vida de Boemia", de Murger? De
fato, os boêmios do escritor francês, num dia de efêmera
prosperidade, arranjaram um gracioso criado cuja precípua
obrigação consistia em despertá-los, todos os dias, com pa-
lavras idênticas alusivas ao rei de França e às fáses da lua.
Correu o vale do Gurguéia que em um de seus constan-
tes e solitários passeios pelas abas da serra de São Camilo,
visível do adro da igreja, descobriu numa das cavidades da
cordilheira uma corrente pendente da abóbada. Ao lado, den-
tro da furna, uma chave de ferro de tamanho descomunal.
"São sinais evidentes de oculto tesoiro", pensou o Aquino.
Apanhou a chave, recoberta de ferrugem, e começou a exa-
miná-la atentamente. Notou, surpreso, que o extraordinário
achado se transformava entre seus dedos trêmulos. Ilumina-
-se, fulgura, como iluminados e fulgu~antes se iam tornan-
do seus dedos. Deixou cair o objeto miraculoso e fugiu aos
pinchos morro abaixo, arrepiado de mêdo quando, para com-
38 ARTUR PASSOS

pletar a lenda, o deveria ter jogado para o ar e feito , pelo me-


nos, uma estrêla.
Tudo fêz crer que o imaginoso tabelião leu ainda "Lenda
dos Séculos", de Vítor Hugo, porque a chave disforme e re-
vestida de ferrugem inventada por João Aquino é apenas uma
paródia, imitação burlesca do grande, negro e horrendo in-
seto forjado no pandemônio pelo gênio do mal, e com o qual
Deus, atirando-o para o alto, iluminou perpétuamente a plu-
ralidade dos mundos habitados.
O último dos Aquinos, perdido o cartório, que anterior-
mente, por injustificável malquerença, já haviam desdobrado,
tornou-se misantropo. Privado do patrimônio ancestral e fra-
co do peito tentou ainda reagir, abrindo aula particular de
ensino primádo. Sua pedagogia, contrária à de Pestalozzi era
feita, infelizmente, de rispidez, de palmatoadas violentas e
intempestivas. Fugindo do professor como rato de gato, os
alunos, atemorizados, desapareceram. E no entanto, em mo-
mentos de · serenidade tinha afagos de paternal carinho,
contando aos discípulos, fora de aula, e muito à vontade,
lendas da terra, ·velhos contos agrestes do vale do Gurguéia
- o do "Caçador de Abelhas", o da "Fôlha de Picapau", o
da "Formiga do Lageado", o do "Morro Roncador", o do
"Veado Barbudo" e invulnerável a perseguir bisonhos caça-
dores nos juremais assombradiços do Gêjo, de envolta com
histórias fabulosas de Mil e Uma Noites, de Carlos Mágno e
seus paladinos, de Dom Quixote de la Mancha, e coisas lin-
das e evocativas dos remotos Aquinos de além-mar.
Cativo das belezas naturais de sua terra, que êle ama-
va a seu modo, passava horas e dias debruçado sôbre si mes-
mo a meditar sem dúvida sôbre a ingratidão dos homens,
pitando em "pensativo" cachimbo, à margem de poético ri-
beiro, sempre enamorado da linfa cristalina a saltar cantan-
do de pedra em pedra ou, de olhos semicerrados, a ouvir en-
levado o pipilar das aves no umbroso bosque circundante;
Morreu como devia morrer um perfeito sectário do roman-
tismo: afogado no sangue de desatada hemorragia pulmonar.

* * •
LENDAS E FATOS 39

Vítima de moléstia contagiosa, resolveram fazer auto-


-de-fé de seus trastes: utensílios, pequenos móveis de uso
diário, peças de roupa, pilhas de papéis dilacerados, e velhos
livros sebosos, faltando fôlhas, alguns por metade e por
cima salpicados do sangue de t rês gerações de tuberculosos.
Quando fôram varrer a casa, sete dias depois do sepulta-
mento, de tudo, que era quase nada, fizeram um montículo,
no saguão interno, e a velha Joaquina - oh! se me lem-
bro ! -, bateu o isqueiro.
A fumaça subiu em linha reta na tarde calmosa e.
abafada. Um curioso, o boticário Oliveira, de bengala na
mão, foi afastando e correndo os olhos sôbre alguns daquê- .
les livros, empurrando-os depois para a pequena, mas cre-
pitante fogueira inquisitorial. É foi dizendo em voz alta:
"Jerusalem Libertada", de Tasso; "Livro dos Reis", do An-
tigo- Testamento; Gênio do Christianismo", de Chateau-
briand; um punhado dos "Lusíadas", "Curso de Literatura",
de Sotero dos Reis, de par com fragmentos de alguns dos
livros de Joaquim de Macedo.
Que não teria lido em silêncio aquêle tresloucado amigo!
Só então compreendemos, seus antigos alunos, testemu-
nhas do auto-de-fé-, revivescência do Santo Ofício -, o
vêio rico de onde tirava tantas histórias bonitas que nos
contava em dias de bom humor!
MESTRE VALENTiM

Caiu sôbre a vila, naquela fria madrugada de maio, a


triste notícia da morte do Mestre Valentim. Soube-se que o
bom padre Monteiro, chamado a tempo, ungira o enfêr-
mo com os santos óleos, a extrema unção dos desesperados,
quedando-se o velho vigário em prece demorada e como-
vida por aquela alma simples, mas sincera e, sobretudo,
piedosa.
Já então todos corriam a ver o corpo vestido por mãos
piedosas para a grande e misteriosa viagem do além, en-
tregue à visitação pública na própria oficina, entre o ereto
tôrno de limagem e a forja increpitante.
Como a viração pela folhagem, o povo perpassava pelo
modesto ataúde, ladeado de absortas velas de carnaúba,
contrito, murmurando súplicas tiradas do apertado coração.
Tôda a vila, desde cedo, se movimentava para o entêrro
à tarde, e os sinos, aumentando a ansiedade e a tristeza, de
meia em meia hora dobravam com tal sentimento, com uma
consciência íntima de dôr moral tão forte e impressiva que
muitas pessoas soluç_avam pelas ruas poerentas do lugarejo.
O ferreiro não tinha família. Casara-se moço ainda com
uma criatura alegre demais e dessa união passageira e hu-
milhante restou-lhe uma filha gaiteira, entregue aos cuida-
dos de uma velha tia inupta da qual não seguiu os exemplos,
nem ouviu os conselhos.
Como seria de esperar, um belo dia "trovejou no mun-
do", e nunca mais se ouviu falar da Ursulina.
Silencioso e conformado, Mestre Valentim não alterou
seu modo de vida, aplainando o quintal, centralizado por
uma cacimba circundada de ervas medicinais, sempre na
oficina, ao lado, que era, ao mesmo tempo, a moradia do
LENDAS E FATOS 41

trabalhador indefeso. No ouro de sua bondade transbor-


dante, Mestre Valentim, junto aos doentes sob seus cuida-
dos, sabia como ninguém ressaltar os benéficos e miraculo-
sos efeitos dos enfusos.
De estatura meã, andava, sem dúvida, quando na me-
ninice o conhecemos, pelos quarenta anos.
Movia-se com visível esfôrço, gingando, curvado sôbre
si mesmo, dando a impressão de rebocar as pernas disfor-
mes dos joelhos aos pés sem cava, inchados, monstruosos.
Moléstia do ofício. Enfermidade de quem passa dois
terços da vida de pé.
Tinha os olhos pequenos, pequenos demais, talvez, e
velados, em parte, pelas pálpebras semi-cerradas, guardan-
do na retina, como num aparelho fotográfico, um mundo
saci_?.do de aflições.
Falava sem pressa, suavemente, num cício, e lá uma
ou outra vez deixava escapar um sorriso doce e envolvente.
Era, evidentemente, um contemplativo tateando, con-
fuso e ignaro, os primeiros degráus da escada mística _de
Jacob.
Todavia, na minha irreverência desatinada, ao vê-lo
girando pela tenda em desordem, ou passando vagaroso, aos
domingos, pelas ruas , de avental de pele de veado, eu me
recordava do episódio facêto das meias que lhe tentaram
meter nos pés para a ceri,mônia do casório. Cortaram as
peças a tesoura e pespontaram-nas depois de acomodadas às
proeminências nodosas do nubente, de plantas largas e li-
sas como tábuas.
Daí o brocardo regional - apertado como meia no pé
do Valentim - aplicado a determinadas pessoas assediadas
de credores, ou com a justiça à porta. •
Rivalizando com as velhas batedeiras de algodão, mal
um espigão luminoso aparecia ao nascente lá estava o im-
penitente madrugador a golpear a bigorna. O martelo em
suas mãos calosas tinha estranha sonoridade. Ninguém sa-
bia, nem êle mesmo, donde vinha aquilo.
Era um dom, uma dádiva dos céus. Os outros sem
contemporâneos solfejavam por tliferentes instrument.os: o
Anacleto pelo oficlido, o Miguel Liberato pelo baixo, o Chico
42 ARTUR PASSOS

Ourives pelo clarinete, o Pedro Mouco - , mestre inimitá-


vel -, pela vióla, o Mariano, ao tempo dos festejos do Ro-
sário, pela caixa, que era uma ·lindeza. Por mais incrível
que pareça, Mestre Valentim melodiava pela bigorna, rumo-
rejado entre dentes: "dão-dim", seu Valentim, dão-dim, seu
Valentim, bate ferro, bate ferro, bate ferro Valentim, bate
ferro Valentim". Era um encanto, um hino ao trabalho al-
tivo e forte. As crianças assobiavam, cadenciados, os sons
argentinos do privilegiado martelo e o sineiro, emotivo,
transplantou para os domínios sagrados a musicalidade in-
tuitiva do singular virtuose. Um compositor, o malogra-
do Cinobelino, pegou de tudo aquilo e escreveu uma polca
- A Bigorna - corh pleno êxito.
O bom homem, no entanto, não se envaidava com a
espontânea notoriedade, com a evidência alcançada pelos
mais c.omesinhos atos de sua vida solitária. É que êle, de
feitio, era assim mesmo, fora do comum dos mortais, fe-
chado aos contentamentos e às angústias.
Ninguém, nenhum frio observador de almas poderia
distinguir em sua face a linha divisória entre a alegria e a
tristeza.
Sem o querer, sem o pensar, talvez, consubstanciava
Mestre Valentim as fundas máguas de sua gente, só tendo,
por isso, à flor da cara amortecida, a rijeza desconcertante
dos que circulam entre os seus semelhantes pela contigên-
cia natural de circular, sem objetivos materiais presentes,
sem finalidades futuras.
Com a facilidade natural que tinha de incutir suas
surpreendentes idéias teria sido, se o quisesse, se houvesse
ambiente e estímulo, um Cosme da Balaiada, cruel e brutal.
Sua vida, vivida à base de alto sentimento de renúncia, de-
dicada por inteiro ao sacrifício, não autorizaya, como se vê,
tal prognóstico. Pelo contrário, dando sobejas provas ao
comprido de longa e harmoniosa existência, era Mestre Va-
lentim uma alma faminta de amor do próximo. Era um
egresso da dor e das trevas. Seus parentes gemeram em
duro cativeiro, e êle mesmo só se saíu da ignomínia, aos
vinte e cinco anos, pela porta do ofício que aprendeu -,
pelo silêncio das noites, e mesmo assim sabe Deus como -,
LENDAS E FATOS 43

e praticava com destacada perícia. Viu, assim, de perto,


em sua própria carne, as atrocidades da sujeição: as ne-
gras· velhas substituindo os negros válidos -, presos ao
eito, ou ao t ronco, ou ainda à fome - , tocando a récua;
de balaio de algodão à cabeça e fuso em punho, no desem-
penho, ao mesmo tempo, de duas tarefas: compelir para
frente o comboio e entregar, ao meio dia, no descanso, um
novêlo de duas libras de fio, e um outro, à noite, n a dor-
mida. As negras novas corriam léguas após léguas à reta-
guarda das cavalgadas para oferecer tamboretes às damas
no momento exato da parada. Falava de um parente sa-
érificado impiedosamente por ter salvo, num n aufrágio, a
filha mais velha de seu senhor, e ter visto, na luta com as
águas revôltas do rio, o corpo meio despido e inanimado
da sinhá môça. De um outro sabia também que morrera
no banco -de suplício pelo crime de haver humildemente
oferecido, em momento excepcional, uma pitada de torrado
a um orgulhoso parente da casa grande. Foi testemunha de
horrores: flagelo ao cêpo por dias seguidos; corpos reta-
lhados a vergalhos e polvilhados de sal, por falta venial,
quase sempre; assassínios frios, enforcamentos forçados, o
bem, a prosperidade e a riqueza pagos com o Mal, expresso
com maiúscula. Um seu primo, Luciano, escravo e pagem
de' um côxo e ébrio habitual, servia de p01üe ·à luz do sol e
das estrêlas. Transitando de tasca em tasca gritava pelo ne-
gro sempre que se lhe oferecesse um obstáculo à perna man-
ca e ao corpo atafulhado de {!achaça -, um pequeno sulco
aberto pelas àguas, . ou um imprevisto lamaçal. E Luciano,
sem a menor crispação de face, de olho ao rijo chicote que
sim caviloso dono nunca abandonava, deita-se de bruços sô-
bre o lameira·, as pernas bem juntas, a testa sôbre os braços
cruzados, e o côxo, sem o menor respeito à dignidade hu-
mana, passava claudicando por cima do corpo palpitante
de um homem feito à imagem e semelhança de Deus.
O melhor era que Mestre Valentim, senhor de uma
grande integridade de coração e que, por isso mesmo, sa-
bia, como ninguém, confortar os deserdados da sorte, sé
vingava da abatid.a branquidade rememorando, sem acri-
mônia, como era de seu feitio original, os efeitos morais e
44 ARTUR PASSOS

jurídicos da lei áurea, dizendo de como aquêles maus se-


nhores a receberam - acovardados, cadavéricos, receiosos
menos pelo lado econômico que pela suposta e temida re-
presália dos pretos, livres em massa, ébrios de liberdade,
pouco se lhes dando, em verdade, que aquelas almas pena-
das, condenadas de antemão ao purgatório, vagueassem pela
terra em forma humana.
Aos domingos e dias de guarda saía pelos caminhos
de Deus em visita de confôrto aos doentes e desvalidos,
obtendo previamente tôda sorte de utilidades para a distri-
buição de costume: remédios, alimento, roupa, comodidade
material para os sem amparo, de envolta com a assistência
espiritual, que essa era o ponto alto de seus anseios.
Tudo quanto ganhava em duro e afanoso lidar lhe es-
corria das mãos dadivosas para o seio vazio dos pobres, dos
mais pobres do que êle, dirimindo ainda questiúnculas e atri-
tos de conseqüências danosas entre pessoas chegadas ou não
à esfera de sua natural e crescente influência.
Recorrendo à memória, esfumada por mais de meio
século de afastamento voluntário do meio em que se mo-'
veu o perfil deletreado de Mestre Valentim, darei aqui al-
guns episódios dos muitos que me escaparam e que então
tornaram mais singulares ainda a vida e as atitudes do fa-
moso operário de seu próprio renome.
Certa vez, nos primórdios da República, um chefe polf..;
tico derrotado fôra vítima de pérfida cilada.
Dia de feira, pela manhã. Sentado à porta em palestra
com amigos dedicados e pessoas da família, estava o cida-
dão destituído há poucos meses das posições oficiais, quan-
do se lhe aproxima um desconhecido, um vagabundo vulgar
dos muitos que perlustram as feiras sertanejas, de sacola
às costas. Pediu licença para deixar ali o surrão sujo e
gasto enquanto iria ao açougue próximo. A verdade é que
ninguém se apercebeu da estranha solicitação, que não foi
recusada, nem deferida. Logo depois, ao voltar, deu por
falta, disse, alto, da quantia de duzentos mil réis que teria
deixado entre os trapos. E ergueu a voz, agressivo: "quero
o meu dinheiro, e se mo não devolverem, irei à policia".
LENDAS E FATOS 45

Era uma cilada, ultrajante acusação insinuada pelos


situacionistas, todos ali, desde logo, se aperceberam. Dis-
cutiu-se o assunto, às pressas, nervosamente, e o mêdo ven-
ceu mais uma vez.
Pessoa íntima da família vilipendiada, desejando evi-
tar o escândalo urdido e iminente, e possivelmente o recru-
descimento de perseguições, passou ao insolente o dinheiro
reclamado.
Ao Mestre Valentim que, por acaso, assistiu à cena, cou-
be desfazer o entrecho da comédia.
A parte, suavemente, sem interferências, compeliu o
desconhecido a confessar a infâmia praticada e a devolver,
à socapa, a quantia. sem expôr os mandantes ou reclamar
castigo para aquêle instrumento de alheios rancores, que
desapareceu de coração aliviado. ·
Ao tempo da desobstrução de um pequeno trecho enca-
choeirado do Rio Gurguéia, em 1888, se me não engano, ale-
gando excesso de serviço e, por isso mesmo, falta de car-
vão vegetal para a forja, entendeu o Mestre Valentim de
mudar a oficina, temporàriamente, para o lado esquerdo
do rio, fixando-a na barra do riacho Lava-bunda, velho e
carrancudo nome vindo do tempo colonial. :í!:le sempre em-
birrára com essa tradicional denominação, perfeitamente jus-
tificada, tendo em conta a passagem limosa, escorregadia
que, todavia, melhor se oferecia então aos transeuntes víti-
mas, às vêzes. de jocosas, mas inofensivas quedas.
Aceitaram todos a alteração imposta e o pobre córrego
passou, mutilado no nome secular, a ser apenas riacho do
"Lava".
Perto da sede da freguesia há uma extensa e torcico-
losa vereda de nome primitivamente escabroso, oposto mes-
mo às conveniências ou ao decôro da sociedade cabocla que
ali vivia pouco antes da independência política do Brasil.
Segundo a crônica ou a tradição local, um grupo de por-
tuguêses viajando de Oeiras para a freguesia de Santo An-
tônio do Gurguéia perdera, um dos componentes do grupo,
uma pequena boceta atestada de rapé. Era uma peça vinda do
reino, de alto valor estimativo. Pesquisaram inutilmente.
46 ARTUR PASSOS

Ofereceu-se prêmio convidativo a quem encontrasse a jóia,


mas tudo debalde.
E êles mesmos, os lusos, deram apelido à vereda, que
desde então, não obstante o repúdio dos nativos, passou a ser
conhecida pelo nome de "Vereda da Boceta". Constituía, o
nome, um vexame, não para os estrangeiros, ao tempo, nu-
merosos ali, mas para a gente da terra, que torcia o nariz a
tal epíteto.
O ferreiro, muitos anos depois, supondo solucionar o
caso a contento geral deu de chamar o local de "Vereda
das Mulheres". O povo, sem atinar que a emenda era pior
que o soneto, apoiou a invencionice. O certo é que até hoje
lá está, a desafiar o tempo, às portas da localidade, a céle-
bre "Vereda das Mulheres".
Daí o interêsse, a curiosidade e o sentimento de fundo
pesar cristão e humano despertados pelo traspasse do ar-
tífice humilde, ouvido, em vida, e aceito com deferência e
sem preconceito pela comunidade unida em tôrno dos res-
tos mortais daquela criatura que se dera por inteiro ao
próximo na prática de permanente renúncia, descendo, re-
verenciado, ao seio da mãe viva de todos que morrem.
Na muda para a eternidade, numa evocativa tarde de
paz e repouso, Mestre Valentim experimentou o primeiro
sorriso da popularidade, pondo em evidência, uma vez mais,
que o homem é nobre ou ignóbil conforme o seu procedimen-
to, e nunca conforme o seu nascimento.
Irmanando almas e corações, ali estava o corpo ina-
nimado de um ex-excravo detendo, após meio século de
altruísmo, o piedoso respeito de tôda uma população -
autoridades públicas, associações religiosas, família e o povo
- não faltando à homenagem de redenção as mulheres de
fácil comércio amoroso da rua do Saco e os vagabundos
freqüentadores do Páu dos Quebrados .
• • •
Os sinos da igrejinha, no último instante do serviço fú-
nebre, mandaram ao éter, ao flúido imponderável que en-
che os espaços, a derradeira mensagem de fé transcendente,
reafirmando que além da cessação completa da vida há um
lugar de delícias onde estão as almas dos santos e dos justos.
TESTAMENTO FATíDICO

As manifestações concretas do povo catolico de repúdio


à memória execrável de Judas Iscariote, um dos apóstolos,
cujo nome passou, desde a tragédia do Gólgota, a ser sinô-
nimo de traidor, variam de região em região, mesmo dentro
do território brasileiro. Variam e recuam, ano após ano, dos
centros urbanos para os núcleos humanos mais isolados.
O Judas de trapos no entanto ainda constitui os anseios
maiores da meninada descalça e de cabeça ensolarada, no
sábado da Ressurreição, nos vilarêjos incultos do sertão
nordestino. Efetivamente, nêsse dia memorável do catoli-
cismo, de Alelúias, de evocativas solenidades nos lares e nas
igrejas das cidades, a população juvenil do sertão, com o
apôio tácito das famílias sacrifica, simbolicamente, o mau
discípulo, que quase sempre se vinga de seus algozes, em
documento escrito, pondo à rua as mazelas dos habitantes
da localidade num duro encontro de obrigações e de faltas
recíprocas. Mas nem sempre permitem ao traidor número
um, prêso a um poste, cavalgando insofrido poldro ou em
excursão fluvial, centralizado, no primeiro caso, por impro-
visado hôrto, simulacro por certo do Jardim das Oliveiras,
onde Jesus Cristo fez sua última prece neste vale de lágrimas,
a assim proceder.
Em diferentes regiões o infeliz abre mão do testamen-
to, às vêzes facêto e brincalhão; às vêzes recheado de ran-
çosa filosofia popular, porém lá uma ou outra vez adubado
de graves ofensas morais de consequências funestas, como
se verificou no encontrado, em triplicata, nas algibeiras do
Judas imolado em março de 1883 na vila de Jeromenha.
Dois exemplos apenas, nos extremos geográficos do Bra-
sil, de como se confeccionavam e destruíam Judas.,
48 ARTUR PASSOS

Li algures que em certos pontos do Rio Grande, na


chamada faixa missioneira, se me não engano, a cena natu-
ralmente se desdobrava de acôrdo com os hábitos e costu-
mes da população rural da invicta província arraiana. Pe-
gava-se um poldro selvagem e enqueria-se o manipanço no
lombo do animal, que largava aos pinchas até deitar fora
o estranho fardo. Era uma expressão pública e nitidamente
típica da zona, animada, a mais não poder, com a partici-
pação de guapos gaúchos escarranchados em pingaços vis-
tosamente encilhados.
Já nos seringais do Amazônas e seus numerosos aflu-
entes a coisa era feita, e ainda deve ser, em harmonia com
a vida primitiva de uma região fantástica.
O Judas ali, segundo Euclides da Cunha, era confeccio-
nado à imagem e semelhança do seringueiro, rez pensan-
te confinada entre as águas majestosas do caudal cicló-
pico e a floresta sem limites, misteriosa e traiçoeira da ba-
cia amazônica. Quer na disseção, quer no himeneu das águas
não há, naquêles êrmos, ambiente nem público para ex-
posição fixa do eterno justiçado da éra cristã. O palhaço ti-
nha os pés envoltos em estôpa, descalços, pois viajará por
água à luz do sol, das estrêlas ou sob aguaceiros diluvianos.
Vestiam-no da mesma forma como se vestiam seus bron-
cos fabricantes: calça de riscado e blusa de xadrez america-
no e, por ironia, socavam-lhe nos bolsos cigarros e fósforos.
Cobriam-no por fim com sombreiro de palha seguro por bar-
bicacho atado ao pescoço, à prova dos pampeiros andinos.
Com carvão maleável de paxiúba imitavam no ente extrava-
gante a barba emaranhada de seus criadores De antemão
a embarcação estava pronta a espera apenas do viajar so-
litário: jangada de madeira especial, rijamente atada, com
mastro no centro, em guisa de peloirinho, no qual enlinha-
vam, de braços pendentes, o eterno condenado à execração
dos séculos; e impulsionavam a balsa. Antes da corrente lí-
quida orientar o barco, rio abaixo, o seringeiro, do alto da
ribanceira, saúda o passageiro hílare com descarga gira-
tória de rifle. E lá vai rumo ao desconhecido a imagém ca-
ricatural do apóstolo do mal, do traidor que vendeu o Mes-
LENDAS E FATOS 49

tre por dinheiro de contado. De tôdas as barracas, de todos


os barracões marginais partem fuzilarias rolantes sôbre o
excursionista lendário, até que, surgindo de afluentes à di-
reita e à esquerda, outros condenados deslizam à flôr das
águas e se cruzam e amatulam na viagem singular e sem
destino. Já são três ou quatro ou mais, às vêzes, como que
de mãos dadas, tangidos ora de brisas suaves, ora de for-
tes ventos que mais e mais impelem os errantes jangadeiros.
Em dado momento, acrescenta o estilista insígne, já
citado, caem nas convulsões de um rebôjo imenso, num re-
manso circular de largas e profundas dimensões. Dá-se en-
tão uma autêntica parada sôbre a voragem e os Judas, em
macabra revista, espantam e atemorizam os grandes hi-
drosáurios e o próprio gênio das águas.
Na faixa rural do Piauí, como na interlândia das de-
mais unidades nordestinas, já agora com sensíveis modi-
ficações, o Judas ainda era no fim do Império e no comêço
da República o mesmo dos recuados tempos dos pioneiros e
desbravadores. Deixa por onde aparece um traço de amargura
e desgôsto, um pasquim que provoca intrigas e azedos co-
mentários no seio remansoso de uma sociedade falha de no-
vidades.
Em Floriano, há muitos anos já, para ressaltar um
único exemplo, um dêsses testamentos deu muita dôr de
cabeça. O testador só deixou à criatura de sua preferência
e agrado determinado semovente- lia azêmula, no momen-
to em lugar incerto e não sabido. A história gira em tôrno
dos sinais característicos da alimária fugitiva envolvendo,
assim, nestes, como era de praxe, os homens de prol do
lugar, os notáveis da terra. Felizmente a coisa não resvalou
para a ofensa soez ou para o insulto descabido, estancan-
do na pilhéria picante, na referência dúbia, na piada voe-
'
jante. Não assim o de que principalmente nos ocupamos -
abrolhoso, inquietante e funesto aparecido no sábado de Ale-
lúias de 1883 em Jeromenha.
O proprietário da farmácia, velho e doente, pediu e obte-
ve um prático em Caxias. Tratava-se de um jovem português,
4 - 24 542
50 ARTUR PASSOS

de boa aparência, de bons antecedentes, ativo e senhor real-


mente do ofício, conquistando por isso mesmo a confian-
ça do patrão e as simpatias dos habitantes da vila gur-
gueína, então florescente.
Chamava-se Oliveira, sem ninguém se preocupar com o
prenome, e êle mesmo, como bom minhoto, se dizia "OH-
beira", o que era uma graça para os matutas da ribeira.
Aos freguêses que reclamavam contra o preço de determina-
do medicamento atendia, se possível, com a invariável ex-
pressão, que se tornou corriqueira - "bá lá".
Ali viveu no balcão da botica -, o "Marinheiro da bo-
tica", como, por fim, o apelidaram -, pouco mais de dois
anos, mas de tal forma se aclimou e se integrou no ambi-
ente da comunidade, que chegou a conquistar as graças e
preferências de uma jovem prendada e de distinta famí-
lia, com a qual, a contento geral, ajustou casamento.
Mas no sábado da Semana Santa do ano já referido
apareceu no largo da igreja, em alta coluna, exposto à igno-
mínia pública, um Judas esmeradamente entrajado de fra-
que, camisa de pura bretanha, de colarinho e punhos pos-
tiços, colête de fustão branco, calças listradas e botinas de
verniz. Ostentava meia cartola no alto da cabeça de me-
lão de São Caetano e, pendente do colête, correntão de la-
tão, tendo na ponta uma cebôla branca fingindo relógio.
Era um mimo de Judas; além do mais um Judas perdulá-
rio nunca visto em terras do Gurguéia. No momento exato
do cacête da meninada abater tôda aquela prosápia, todo
o orgulho de tão faustosa indumentária encontraram-lhe nas
algibeiras volumoso testamento, em três vias. Foi uma con-
flagração. A política - , hárpia truculenta e insaciável - ,
andava, como sempre, preocupando os espíritos, intrigando
e dividindo as famílias , e o papelucho, entrando na dança,
cantava em prosa e versos, falhos , ainda por cima, de ele-
mentares regras de gramática, os vícios, as ações censurá-
veis, os defeitos velados e até os pequenos delitos dos che-
fes políticos, numa irreverência de arrepiar ~abêlos. Inves-
tigaram às pressas. Os nominalmente ofendidos, pessoas ti-
das como de valimento, de prestígio político e social, pro-
LENDAS E FATOS 51

curam as autoridades e rigoroso inquérito -, como costw


niam ser todos os inquéritos policiais -, foi desde logo ins-
taurado. Um ponto, julgado de suma importância, chamou
a atenção dos queixosos e da autoridade que presidia ao in-
quérito: o dono da botica e os parentes da noiva do Ma-
rinheiro, políticos militantes, passaram em branca nuvem
no libelo difamatório, recebendo dois dêles referências elo-
giosas. E o prático da farmácia passou a ser apontado como
o autor responsável do fatídico documento.
Dois dias depois Oliveira, sem atender intimação e sem
ser ouvido, desaparece, robustecendo as suspeitas e os indí-
cios que se acumularam contra êle.
A letra do acusado submet:da a estudo e confronto jul-
gados satisfatórios, e a exclusão no pamfleto das pessoas de
suas relações eram, sem dúvida, princípios evidentes de pro-
vas. ~stes pontos fôram reforçados, como se viu, com a fuga
de todo inesperada. Todavia, nêsse caso, como em muitos ou-
tros; as aparênc:as iludem. Não seria outro, em verdade, o
autor da crítica difamatória, atacando de frente, embora
nas dobras maculadas de um reles testamento de Judas, os
bons costumes e a moral de uma sociedade atingida em
muitos de seus mais categorizados representantes?
Aliás os pasquins estavam em voga, ao tempo, na his-
tórica Freguezia de Santo Antônio do Gurguéia. Os políti-
cos se dilapidavam ferozmente. O juiz, político hábil e te-
mido, teve então as portas e janelas de sua residência be-
suntadas de excremento. Um outro destacado prócer con-
servador foi desfeiteado em remoto trecho do caminho que o
levava a uma de suas fazendas e ainda um outro, dos mais
lídimos, quase que se não livra airosamente de um processo
de imaginário furto de gado.
·Que interêsse pessoal teria Oliveira, recém-chegado, mero
empregado de uma casa comercial, em remexer nas misé-
rias que corroiam as entranhas de meia dúzia de velhos ser-
tanejos, escravistas resmungões e intransigentes da última
década de uma dinastia agonizante?
Não era político, certamente. Não era brasileiro. Não
podia ter . parte direta naquêles raivosos xingamentos, tão
52 ARTUR PASSOS

raivosos que chegaram a envolver de rijo a empregada do


Padre, sempre carregada de jóias e gorda como cachorro
de magarefe.
Tímido, sem personalidade, não lhe teriam dado a co-
piar, talvez de caso pensado, a catilinária, como se aventou?
E o verdadeiro autor do documento incriminado, com pouca
astúcia e nenhuma habilidade - não teria, êle mesmo, omi-
tido seu nome, o de parentes e aderentes? Além do mais,
ôntem como hoje, não será de estranhar que na justiça dos
homens o pecado venial e primário seja às vêzes punido com
rigor enquanto a transgressão funda e reincidente, o pecado
mortal, por várias circunstâncias, seja dissimulado e esque-
cido, mas nunca perdoado, como é fé, no juizo final, na
justiça de Deus.
Que sabemos nós de positivo acêrca de um aconteci-
mento esvaecido ao longo de três quartos de século, sem re-
gistro, sem notas esclarecedoras, sem arquivo, senão o da
memória de gerações dispersas e desinteressadas?
Barrabás teria sido preferido mais uma vez?
Homiziou-se Oliveira no lugar Sarna, lado esquerdo do
rio Gurguéia, quase na confluência dêste com o rio Parnaiba,
residência de parentes próximos do proprietário da farmá-
cia de Jeromenha. Nervoso, visivelmente inquieto, não se sen-
tindo ali suficientemente acautelado, resolveu passar algum
tempo no rancho de roceiro amigo, num baixão perto do Sar-
na, baixão que em razão de evento posterior veio a perder
o nome primitivo para receber o de "Baixão do Oliveira",
que conserva.
Não falou. Não se defendeu. Não acusou. Guardou abso-
luto silêncio. Os amigos hospedeiros, apreensivos, de espon-
tânea iniciativa mandaram sindicar da marcha dos aconte-
cimentos. E o observador escolhido, relacionado e atento, re-
gressou desolado.
Sob a tristeza da saudade invoca o nome querido da
noiva e afrontando a omnipotência do destino deixa, Olivei-
ra, o refúgio, e por infreqüentados caminhos transpõe o Gur-
guéia, passa, à noite, superior a estação invernal, pela Fa-
LENDAS E FATOS 53

zenda Formoza e se recolhe, na manhã seguinte, à sombra


protetora do Administrador da Colônia de São Pedro de Al-
cântara.
No dia seguinte, cedo, rastreando-o, toma o portão prin-
cipal do Estabelecimento um preposto da autoridade, acom-
panhado de praças de linha, exibindo ordem escrita de pren-
der o acusado revel e levá-lo à sede do fôro, debaixo de vara.
Era o fim. Oliveira tranqüilo, afinal, toma conhecimento da
grave ocorrência e, como Aníbal na côrte de Prusias, ingere
o conteúdo de um pequeno vidro de veneno que trazia
consigo.
FANATISMO RELIGIOSO

(Alegações à margem de um processo,


em favor dos detentos João de Souza
Machado e Aurora Cardoso da Silva).

O delito pelo qual cumprem sentença punitiva de trin-


ta anos de reclusão na cadeia pública de Jeromenha, reen-
viados da Penitenciária da Capital, João de Souza lVIachado
e sua mulher Aurora Cardoso da Silva teve, ao tempo de
seu cometimento e divulgação, repercussão nacional. Jor-
nais e revistas da época, nos Estados e na Metrópole brasi-
leira, inseriram reportagens sensacionais, com fotografias
elucidativas dos tristes episódios que culminaram na revol-
tante, mas inconsciente chacina de cinco inocentes meno-
res, com a tortura candente de alguns adultos, a prisão da
fanática Cota, que faleceu antes da feitura do processo e
do conseqüente julgamento, e a detenção dos alucinados ge-
nitores das crianças imoladas à loucura de um demônio
de sáia.
;Não é êsse, sem dúvida, um caso para ser visto e apre-
ciado apenas à luz de inexpressivas provas acumuladas nos
autos e decorrentes de testemunhas tão incultas e abstraídas
quanto os pseudos criminosos, testemunhas que se louvaram
nos fatos materiais em si, nos efeitos imediatos da fatalidade,
sem a menor alusão à causa profundamente anormal que
os induziu.
Decorridos 14 anos podemos, em consciência, apreciar
o delituoso acontecimento sob o prisma que verdadeiramente
o detérminou: o fanatismo religioso, propulsor de alarmante
e clara anemia intelectual, que abateu até ao delíquio aque-
las pobres criaturas de Deus.
LENDAS E FATOS 55

A história pátria registra, infelizmente, vários crimes


individuais e coletivos oriundos da crendice do povo brasi-
leiro, que se deixa impressionar pelo primeiro débil mental
ou pelo primeiro impostor que lhe aparece pregando falsas
doutrinas condizentes com o seu intermitente desequilíbrio
ou com os seus propósitos contrários aos verdadeiros princí-
pios da religião e até da moral cristã.
Para só falar em eventos de conseqüências calamitosas,
Pedra Bonita, Canudos e Juazeiro são grandes exemplos que
assustaram e surpreenderam as autoridades públicas inci-
entes, parece, da extensão e profundidade do fanatismo que
infelicitava e infelicita as abandonadas populações do inte-
rior. E não se suponha que já estejamos livres da impiedosa
crueldade do baixo fanatismo, da superstição de tôda espé-
cie, com o conseqüente desvio do verdadeiro sentimento re-
ligioso; da adoração de meros objetos materiais, práticas que
absorvem e deturpam, em sua essência, os preceitos litúr-
gicos, a tranquilidade e o bem-estar espiritual das almas.
O crime, do qual nos ocupamos, extra-autos, é um colo-
rário imediato e evidente do que vimos de afirmar.

Relatemos os fatos.

Em janeiro ou fevereiro de 1936, aproximadamente, apa-


receu no lugar Coqueiro, no vale do rio Gurguéia, ao sul do
município de Jeromenha, uma estranha mulher que se di-
zia pernambucana. De altura fora do comum, quase loura,
de gestos e voz imperiosos, torax amplo e de olhos azuis, de-
monstrou desde logo singular poder de qomínio sôbre as pes-
soas das quais se fez cercar, propondo-se, sem cogitar de re-
muneração, a exercer o magistério primário particular e a
doutrinar os habitantes da região, pois sabia ler, escrever e
contar as quatro operações fundamentais, sendo mais ver-
sada ainda nos princípios elementares de .insttução religiosa,
por perguntas e respostas. Assim instalada, sem o méri6r
esfôrço captou a confiança, a admiração e o mais profundo
respeito dos moradores do lugar Coqueiro e dos das adjacên,..:
cias, zona montanhosa e, por isso mesmo, de difícil acesso
e comunicação.
56 ARTUR PASSOS

Em suas orações, constantes e ininterruptas, em casa d


João de Souza Machado, onde instalou aula a misterios
criatura -, que acudia pelos nomes de Maria do Coraçã
de Jesus e Maria Marinho, que devia ser o seu verdadeir
nome, gostando mais, todavia, dos que lhe chamavam "Sar
ta Cota" -, costumava exortar os que estavam à mão, mm
murando frases inintelegíveis, à prática de atas evidentE
mente contràrios à doutrina da igreja católica. Por isso, a
gumas pessoas menos absorvidas e dominadas se afastarar
cautelosamente, enquanto outras como, por exemplo, Joã
Machado ou João de Souza Machado e sua mulher Auror
Cardoso da Silva, já sob a ação imediata e direta da herétic~
mais se lhe achegaram e renderam
Surgiram, neste meio tempo, as alucinações. Indicav
aos ouvintes, de braço erguido, convicta, o luminoso caml
nho do céu, através da lua, que desceria de sua órbita sl
deral, dizia, para arrebanhá-los, a todos, pois só assim, el~
"Santa Cota", e seus adeptos, escapariam aos tremendo
flagelos do próximo fim do mundo
Na última fase de sua crescente loucura se dizia tocad:
do Espírito Santo, do qual teria concebido, por excepciona
milagre, desde que, no estranho caso, não se cogitava, sE
gundo seu tresvariante parecer, de concepção por fecundaçã,
seminal.
Nesta altura, de acôrdo com o testemunho de pessoa
moradoras no local e que se não deixaram fanatizar, esta
vam aquêles crentes broncos inteiramente enlouquecidos ,
dispostos à pràtica de todos os desatinos ordenados pel:
"Santa". E como para a escalada do céu necessitassem d
um lugar êrmo, João de Souza Machado guiou a visionári:
para a Serra das Canastras, onde fariam rigoroso retiro es
piritual.
Quinze pessoas ali passaram sete dias de vigílias e pe
nitência, ao relento, sem o menor contacto com o exterior
sem viveres, dos quais se abstiveram por completo. Enfra
quecidos, tropeçando no vazio e caindo de inanição, aos seu:
olhos e aos seus espíritos mais se amiudavam as visões, a:
aparições sobrenaturais: imagens pendentes do infinito cir
LENDAS E FATOS 57

cundadas de anjos, que abriam alas para a vitoriosa passa-


gem da "Santa" e seu séquito.
Na fria madrugada de 31 de julho de 1937, quando pros-
ternados em funda meditação, tiritantes e desnudos, viram
claramente a lua baixar sôbre êles na altura de dez metros,
tendo ao lado u'a nuvem para levá-los. E como a nuvem
os não tivesse envolvido e arrebatado a "Santa", ereta sô-
bre um rochedo, interrogou sua gente com o olhar desvai-
rado a que ninguém resistia, declarando que o milagre anun-
ciado não se concretizara pela evidente incredulidade de
alguns dos presentes. Daí a tragédia inominável, a ordem
imperiosa do sacrifício dos cinco filhos menores do casal
João de Souza Machado - Aurora Cardoso da Silva, e do
flagelo ou da purificação a fogo lento de várias outras
pessoas.
E assim se fez , pois havia ambiente para tal. Todos
ali na Serra das Canastras tinham perdido a razão e a per-
turbação dos sentidos era completa. Desapareceram entre
aquêles dementes a faculdade de compreensão e o senso
de responsabilidade. Os supostos criminosos que a justiça
social condenou inexoràvelmente deviam ter sido enviados
à ciência, antes de qualquer formalidade processual.
João de Souza Machado e Aurora Cardoso da Silva não
podiam nem podem ser responsáveis pelo desatino que fô-
ram compelidos a praticar privados, como estavam, ao tem-
po do delito, da vontade, da inteligência e da sensibilidade,
as três faculdades principais do homem.
FOLKLORE

É sabido, mas nunca é demais repetir, que a palavra


folk-lore , usada pela primeira vez em Londres, em agôsto
de 1846, por John Thomas, e, por isso, de origem inglesa,
compõe-se de dois vocábulos distintos: folk , povo, lore, co-
nhecimento, estudo.
Folklore é, pois, segundo Gennep, a ciência que se ocupa
preclpuamente do estudo do povo, de seus hábitos, costumes,
crenças e abusões.
Outro aspetco do maior interêsse ainda é o atinente
ao. folklore regional, se é que o folklore tem região, se o seu
local não é apenas uma configuração do vasto campo
mundial.
Por certo que deve haver e há, sem a menor dúvida,
alguma coisa de determinada região que a não encontrámos,
em seu inteiro conteúdo, em outras secções dentro em-
bora do mesmo país , concorrendo para isto fatôres vários.
Não · obstante no Brasil não haver dialetos, como em
vários países da Europa, porque afinal nós nos entende-
mos perfeitamente através de um território de oito milhões,
quinhentos e cinqüenta mil , oitocentos e dezoito qu ilôme-
tros quadrados, não deixa de haver, como é natural, nar,
expressões puramente populares, certa divergência. A nossá
unidade geográfica é verdadeiramente admirável, como o
é nosso ardor cívico. No fundo , a língua une ainda mais e
prende os brasileiros entre si pela comunhão dos mesmos
sentimentos, pela união na fé, que é a mesma desde o equí-
voco de 22 de abril de 1500 !
Todavia a língua falada pelo povo nordestino, por exem-
pio, difere de algum modo da usada, da articulada pelos
naturais da bacia amazônica.
LENDAS E FATOS 59

A diferença, neste particular, entre os habitantes do


norte e nordeste até à Bahia, e os do sul, do Distrito Federal
ao Rio Grande, é ainda mais acentuada, tanto no sotaque
pe.culiar à gente sulina quanto até, em parte, na própria
substantivação de muitas coisas, ou seja na designação de
um sêr, um objeto, etc., que os nordestinos não a podem
aceitar e exatamente compreender.
Um enrêdo de novela das fronteiras do sul versado
na algarávia popular ali em voga nunca chegará, no nor-
te do país, a ser, no todo, entendido, como a linguágem
dialogada do nordestino está longe de ser inteiramente per-
cebida pelo gaúcho da zona extrema.
Daí, dentro das fronteiras do Brasil, a desconformi-
dade no relato de usos, costumes, hábitos arraigados, cren-
ças dominantes, folguedos de criança, diversões de adultos,
contos, lendas e tradições de que se alimenta e vive e se
desenvolve a ciência folklórica, ativa e agradável ciência que
exige exploração metódica e direta, está claro que entre-
meada com o estudo da arte e da literatura.
É preciso destacar, outrosim, que a história da litera-
tura ocupa-se de obras concebidas e desenvolvidas por in-
divíduos identificados e largamente conhecidos, enquanto o
folklore, pelo consenso unânime de seus cultores, estuda
contos e lendas que não tenham autores individuais; que
andem de bôca em bôca e possam ser qualificados em con-
sonância com determinado número de categorias univei'-
sais; que nada tenham, na contextura literária, que possa
permitir dar-se-lhes autor individual ou particular, nem
época, nem origem, e muito menos ainda arbitrária classi-
ficação em outras categorias literárias, formando catego-
ria à parte. E se as narrativas de La Fontaine e as de ou-
tros fabulistas mais recuados, não obstante a conclusão mo-
.ral que tenham sob o "véu diáfano da fantazia", e cujos
personagens são irracionais que trocam idéias, contendem
entre si, exercem atividades sociais e brigam à base do amor;
ou se essas narrações de coisas imaginárias, como contos de
sereias e de encantamentos, são, em parte, aceitos como ma-
téria folklórica não é pelo conteúdo em si fantástico e pu-
ramente imaginário que contêm, Irias por conterem, na es-
60 ARTUR PASSOS

sência, algo mais que simples fantasias; por guardarem


como num relicário restos de crenças e costumes de outros
tempos, não passando animais que falam, príncipes encan-
tados e princesas mitológicas formosas como o despontar
da manhã, transformadas em aves, às vêzes em serpentes, e
até em coisas inanimadas, de evidente sobrevivência de an-
tigas divindades, objetos outrora de culto, que o cristianis-
mo levou para o campo da superstição e mais tarde para os
domínios da literatura sendo, ainda, um líame que deve ligar
e unir por fortes laços morais o homem da éra eletrônica
ao dos tempos fabulosos de Prestes João e da Rainha de Sabá.
Outras fontes têm, de ·certo tempo a esta parte, difun-
dido e enriquecido por tôdas as literaturas a ciência do es-
tudo dos povos, em incessante e nunca interrompida pere-
grinação iniciada na velha antiguidade.
Na Alemanha, por exemplo (país de lendas impressio-
nantes, oriundas sobretudo dos massiços montanhosos da
Bohêmia e do Harz), os irmãos Grimm, com os seus uni-
versalmente famosos Contos Populares da Alemanha; em
França, Paulo Sebillot, autor de longo trabalho normativo,
dividindo o estudo em quatro imensos setores - Céu e Ter-
ra, Mar e Aguas Doces, Fáuna e Flora, Povo e História; e
Arnold von Gennep com substancial acervo de estudos, al-
guns dos quais perfeitamente didáticos têm, de há muito,
na realidade, dado vida e soerguido os trabalhos teóricos e
práticos da matéria. E como Sebillot em sua divisão haja
incluído os espaços ilimitados em que se movem os corpos
celestes, nada mais justo que destacar aqui um autor velho
que anda um pouco por tôda a parte, o barão Munchhausen.
Diz êste criador de sugestões fantásticas que viu na lua, quan-
do por lá andou em viagem de observação e estudo, grandes
criaturas montadas em abutres, pois cada habitante da
lua tem três dêsses animais, tão grandes que de um a
outro extremo das asas medem quinze metros. Em vez de
montarem a cavalo como nós, os habitantes da terra, o
povo da lua monta aquela espécie de animais. E acrescenta:
tudo na lua é extraordinàriamente grande. Cada môsca, por
exemplo, é muito maior do que qualquer dos nossos carnei-
ros; que os lunáticos não têm arma de fogo. Usam cacetes
LENDAS E FATOS 61

para matar os inimigos. O melhor é que Munchhausen en-


controu ali, em excursão de vilegiatura, alguns habitantes
de Sírius, que têm cabeça de cão de fila e os olhos na pon-
ta do nariz. Não têm sobrancelhas. Quando querem dormir
cobrem os olhos com a língua. Quanto aos naturais da lua,
ajunta: êles não morrem. Quando em extrema velhice dissol-
vem-se no ar, evaporam-se em fumaça. Nunca têm sêde, pois
não estão sujeitos a nenhuma excreção. Só têm um dedo em
cada mão e andam quase sempre com a cabeça debaixo do bra-
ço direito, e quando em viagem deixam-na em casa. Os lunáti-
cos, segundo o barão Munchhausen, não possuem entranhas,
nem baço, nem fígado. Tiram e botam os olhos à vontade.
Não admira que um visionário da categoria de Mun-
chhasen, tenha escrito essas abstrações, pois em nossos
dias, em plena éra atômica, e por incrível que pareça, ins-
tituiu-se em Nova York a Interplanetary Development Cor-
poration, que está vendendo lotes de terrenos na lua, a um
dólar cada ... Ao mesmo tempo, um dos promotores daquela
cidade está estudando a legalidade do loteamento lunar.
São, como se vê , tiradas de pura fantasia, como o é
a ilha imaginária dos Amores nos Lusíadas.
No entanto o folklorista não inventa enredos, não pode
inventar contos, nem lhe é permitido mutilar ou dar fei-
ção diferente e individual a lendas e narrativas populares.
O trabalho de cata limita-se, penso, a restabelecer e pôr
em evidência eventos tradicionais perpetuados pela crônica.
oral de gerações que se sucedem, mantendo-se-lhes, tanto
quanto possível, a forma e o fundo.
, Nos países superpovoados da Europa,'por exemplo, de gen-
te alfabetizada e geralmente estável, e onde os camponeses
se eternizam no mesmo e resumido trato de terra, fazendo
sempre o que fizeram os seus ancestrais, usando o mesmo
traje característico da região, vivendo debaixo das mesmas
abusões; cantando idênticas solfas e guardando intáctas me-
dievais cerimônias religiosas, não importa se festivas ou fú-
nebres, nêsses países o investigador encontra por sem dú-
vida campo excelente, dando em resultado lia bibliogra-
fia relativamente numerosa sôbre o estudo do povo.
62 ARTUR PASSOS

Sob o Cruzeiro do Sul, tendo em vista a extensão do pais


e o volume da literatura nacional, poucos têm sido os cul-
tores da ciência folklórica, anotando-se um Sílvio Romero,
incansável investigador, autor de Estudos Sôbre a Poesia Po-
pular Brasileira, de Contos Populares e de Novas Contribui-
ções Para o Estudo do Folklore, incluídas estas no primeiro
tomo da História da Literatura Brasileira, onde se insere, en-
tre outras jóias da literatura popular, a magnífica xácara
de João Alves Flô1·, de tom, de gôsto e de estilo puramente
brasileiros; um Melo Morais Filho, com Festas e Tradições
Populares, Quadros e Crónicas e Os Ciganos no Brasil, pio-
neiros eminentes do assunto em terras de Santa Cruz, o pri-
meiro de Sergipe, como tôda gente sabe, e o último da Bahia,
do nordeste, ambos, portanto, de onde de tempo a tempo
aparece um estudioso da vida tormentosa do povo brasileiro.
Certamente fora de meu alcance deve haver e h á sem dúvida
vários outros obreiros no sul do país.
De fato, neste rumo citarei o magnífico exemplo de
J. Simões Lopes Neto, de Pelotas, com a esplêndida colÉ~­
ção de contos populares à sombra dos quais reuniu e deu
atraente forma literária a lendas e tradições regionais. Vale
destacar entre as lendas gaúchas a muito conheéida e de-
nominada O Negrinho do Pastoreio, "filigrana de emoção
que deveria estar em tôdas as antologias" , insinua, com au-
toridade, o Sr. Agripino Grieco.
Da pleiade ilustre que gravitou em tôrno da esfera de
influência do autor de Dom Casmurro, ainda devo anotar
Afonso Arinos, brilhante e irânico, autor de Lendas e Tra-
dições Brasileiras, e Euclides da Cunha, com o notável estu-
do Os Sertões, pondo em foco, de surpresa, a bravura mal
orientada e a miséria material da sociedade rural do seten-
trião brasileiro do fim do século passado.
Em São Paulo, no decorrer de 1953 realizou-se, com
muito êxit0, um congresso de Folklore, chegando ao Piauí
os títulos e os nomes dos autores das teses apresentadas,
discutidas e aprovadas no certame: A Festa do Divino e os
Caboclinhos em Diamantina, de Ayres da Mata Machado
Filho; Folklore no Rio Grande do Sul, de Dante Laytano ;
Estudos de Lexicografia e Semântica Cearense, de Florival
LENDAS E FATOS 63

Seraine; Vestígio do É Paragórico no Verso Popular Brasi-


leiro, de Guilherme Santos Neves; Notas Para a festa de São
Benedito - Congadas da Lapa, de José Lourenço Fernan-
des; Afinidades Entre o Folklore Italiano e o Folklore Bra-
sileiro, de Mariza Lira; O Folklore e o Ensino de Português
no Curso Secundário, do Coronel Ismaelino de Castro, Te-
nente-Coronel Cavalcante Proença e Capitão José Ramos
da Silva Neto; O Ensino e a Pesquisa Folklórica no Brasil,
de Roger Bastide e, finalmente, O Lobishomem - Uma Ve-
lha Assombração, de Walter piazza. Destacou-se no congres-
so. presidindo-o, o escritor baiano Renato Almeida, cujas ati-
vidades entre 1947 e 1953 fôram extraordinárias, iniciando e
fazendo irradiar em proveito da cultura popular brasileira se-
manais folklóricos, exposições, festivais, demonstrações, es-
tudos, pesquisas e várias publicações.
Outra inteligência criadora temo-la em Mário de An-
drade, personalidade exaltada não há muito pelo prof. Ros-
sini Tavares de Lima em conferência sob o título A Pai-
xão Folklórica de Mário de Andrade, o consagrado autor
de Macunaãima que deu ao seu criador o epíteto de "pai es-
piritual de tôda uma geração de cultores do folklore bra-
sileiro" .
Diz o Prof. Júlio Nogueira, organizador da coletânea -
Poesia Nossa - , editada pela Biblioteca do Exército, no ca-
pítulo dedicado ao folklore, que, antigamente menospreza-
da, relegada ao ambiente dos homens ignorantes, a produ-
ção literária popular ocupa hoje lugar preeminente em tô-
das as literaturas, talvez em resultado a êsse movimento oní-
, mado que prestigia as democracias. Foi somente em dias do
século passado que se reconheceu que muitas sentenças de
fundo altamente filosófico, muitos ditos sensatos provinham
do seio do povo, êsse grande autor anônimo, filósofo admi-
rável de ocasião, que anda, desde o comêço da vida em so-
ciedade, a espalhar a todos os ventos as centelhas de seu
engenho inesgotável.
O povo forneceu material para a literatura desde as
fábulas de Esopo, de Bábrio, de Fedro e de La Fontaine .
~le foi e continua a ser a fonte de onde manam os prover-
64 ARTUR PASSOS

bios, que encerram lições de verdadeira sabedoria. A Bíblia


já arrolava inúmeros, que atribuiu ao sábio rei Salomão.
Nêsse prodigioso laboratório se processam os enredos
de obras de ficção, quase sempre reflexo da vida real, que
os homens de letras aproveitam, muitas vêzes sem declarar
que batem moéda com um empréstimo de capitalista gene-
roso e complacente, que não cobra juros.
Acredito todavia que estão no polígono das sêcas de há
muito os mais eficientes trabalhadores do folklore no Brasil.
Vejamos. Já enumeramos alguns desbravadores da Bahia
e Sergipe.
Em Pernambuco, é verdade que um tanto à margem,
destaca-se ainda um outro arroteador do terreno folklórico,
o inteligente e operoso Francisco Augusto Pereira da Costa,
nascido em Recife em 1851 -,no mesmo ano em que nascia
em Sergipe o insígne Sílvio Romero -, e falecido na mesma
cidade em 1923.
Infatigável investigador. publicou Pereira da Costa nu-
merosos e interessantes trabalhos acêrca principalmente da
história de sua província e, em 1909, o seu Folklore Pernam-
bucano, obra que, a juizo de um de seus biógrafos, represen-
ta um verdadeiro monumento de paciência e de amor aos
estudos dêsse gênero. O Folklore Pernambucano de Pereira
da Costa recolhe, de fato, tôdas as manifestações de ori-
gem popular da terra gloriosa de Martins Júnior - lendas,
fábulas, cantigas, contos, xácaras, parlendas e brinquedos
infantís.
No Rio Grande do Norte, no apogeu de seu talento cria-
dor, temos Câmara Cascudo, o historiador da Cidade de Na-
tal, o folklorista envolvente de Vaqueiros e Cantadores e de
numerosos outros trabalhos dêsse gênero, ao lado do grupo
do Ceará, iniciado, talvez, no cíclo dos vaqueiros, por Juvenal
Galeno, que viveu 95 anos (1836-1931), autor de Lendas e
Canções Populares, Lira Cearense e Canções da Escola. De
um dêstes trabalhos, que os não tenho à mão para con-
ferir, destaca-se o poemeto - O Tapador, continuado o cí-
clo pelo paciente Barão de Studart, Gustavo Barroso e Leo-
nardo Mota, que se dedicou, especialmente em constantes
LENDAS E FATOS 65

caminhadas pelos sertões, á poesia popular, da qual seu


famoso livro Cantadores é um repositório admirável.
E a propósito do cíclo dos vaqueiros, pedestal da cha-
mada civilização do couro, devemos destacar, com mágua,
a ausência de ruído que vem pesando sôbre· a produção poé-
tica de nosso conterrâneo José Coriolano de Souza Lima,
revisto apenas, em 193~, pelo Dr. João Cabral em conferên-
cia realizada no Club Militar, no Rio, sob os auspícios da
Federação das Academias de Letras.
No livro dêsse inspirado trovador piauiense, Impressões
e Gemidos, todo dedicado ao Piauí, figura o poema Touro
Fusco. O Dr. João Cabral na conferência citada afirma ;que
o Touro Fusco é um poemeto que ainda não teve igual em
nenhuma literatura pela audácia de cantar em versos he-
róicos a história de um novilho famoso, que luta e morre
como as grandes figuras humanas ou semi-divinas de uma
epopéia homérica ou virgiliana. E lá · estão êsses versos im-
pressivos:

"Se o fusco fôsse gente, êle seria


Mais herói que êsse herói de Alexandria" .

Não obstante, neste Estado, nenhum dos nossos homens


de letras se tem continuadamente dedicado ao assunto.
Clodoaldo Freitas em 1908 fez circular o conto O Piauí,
realmente relacionado objetivamente com os hábitos e cos-
tumes da sociedade do interior piauiense.
A Joaquim Nogueira Paranaguá devemos, em primeira
mão, a lenda sôbre a lagôa de Parnaguá. É curta. Vamos
transcrevê-la: "Miridan (nome indígena que significa flôr)
deixou-se seduzir pelo mancêbo Jorge, que tanto atacava as
onças nas encostas da serra, como as antas e lontras nos po-
ços mais profundos do Paraim, afluente do Gurguéia.
Resolve Miridan, cheia de vergonha, dar sumiço ao fruto
de seus amores. Deita-o num tacho e lanç~-o ao rio. Deu-se
então o fenômeno: as águas se espelharam, por encanto, e
·cobrindo a imensa várzea circundante formou a lagoa -,
de 12 quilômetros de comprimento por 6 de largura -, e
de seu seio, em determinados instantes, .se ergue uma se-
reia com a criança nos braços bradando: maldita sejas, mãe
õ - 24 f>42
66 ARTUR PASSOS

cluél! que não ousaste afrontar todos os perigos por amor


de teu filho ! "
O mesmo assunto, em versão um tanto diferente, foi
posto em letra de fôrma por João Alfredo de Freitas, que de-
senvolveu ainda a lenda do Cabeça de Cuia, ligada ao rio
Parnaíba em todo o seu curso.
De passagem, sem objetivo determinado, outros e ou-
tros têm dito algo a respeito das narrativas fantásticas da
mãe-da-lua, da não-se-pode; e ainda da ligada ao nome do
rio Esfolado; e nada mais.
Postos entre os observadores inteligentes de nossos cos-
tumes, modo de vida e usanças, não ficarão aqui deslocados
o nome e a produção poética de Hermínio de Carvalho Cas-
telo Branco, que em singelos versos descreveu e exprimiu com
sentimento e alma, como nenhum outro de nossos conter-
ràneos, os anseios, as esperanças, as alegrias e as tristezas
da gente rural do Piauí.
Com efeito, as poesias de Hermínio Castelo Branco '-
Lira Sertaneja - pendem mais para a vida violeira das
fazendas de criar, ajuíza o Dr. João Cabral, em A Vis Poética
na Literatura Piauiense, sendo o Vaqueiro do Piauí uma das
mais formosas, posto que em linguagem incorreta, conser-
vando os solicismos da gente do interior nordestino. A in-
trodução é um primor de naturalidade e de inspiração pas-
toril; sobe de valor pintoresco ao dizer:
"Era no mês de mutuca
fins dágua vinham chegando,
quando o gado sai da mata
na carreira, escramuçando,
se deram estas façanhas
que eu, por aqui, vou contando".

E depois do convite aos vaqueiros da vizinhança:


"Tudo ficou prevenido
para um dia - terça-feira -
pois a segunda é das almas,
nunca foi de brincadeira ...
não se deve campiar
nem uma rês de bicheira".
LENDAS E FATOS 6'1

Descrevendo a ceia na véspera do dia da vaquejadà, no-


Saco da Braba:
"Cada qual, com sua faca,
de cócras junto à panela,
foi tirando com a cuia
que servia de tijela,
e despejando a farinha
na coalhada, dentro dela".
"Misturando a carne assada,
gorda, frescal e cheirosa,
todos ficaram contentes
com a ceia apetitosa:
nem no Céu nunca se viu
comida tão saborosa".

E encerrando a vaquejada, no curral do benefício:


"Mas, em versos mal rimados,
sem cadência, estropiados,
nos sertões onde nasci:
na viola temperad~,
cantei a glória passada
nos campos do Piauí".

* * *
A verdade é que o nosso povo, sobretudo o povo do sul
do Estado, e no sul do Estado o do médio e baixo Gurguéia,
pelo império das circunstâncias está sempre em movimento
migratório. Ora se desloca para o sul do país, ultimamente
nos chamados páus de arara; ora para o planalto goiano,
ora, de alguns anos a esta parte, para a planície diamantí-
fera de Gilbués, ora para uma qualquer outra zona onde
possa desenvolver atividade produtiva, pois ali tudo lhe falta
em assistência - estrada, escola, saúde.
Com isso muito se ressente o Estado, quer no desenvol-.
vimento dos núcleos sociais, fixando o homem à terra, quer, .
por isso mesmo, no campo econômico, quer ainda, na for-
mação histórica de sua maior área geográfica; · pois nenhum·
68 ARTUR PASSOS

conto ou nenhuma narrativa ou novela - , fundamento às


vêzes da história-, poderá reter, conservar e transmitir um
povo de analfabetos, que vagueia ao acaso, faminto e
doente.
Daí a insignificante densidade demográfica do vale do
Gurguéia, nas partes indicadas, altamente prejudicial à
qualquer tentativa de indagação folklórica direta.
Muito diferente são o norte e o centro piauienses, de
população muito mais cuidada dos poderes públicos, mais
ou menos alfabetizada e estável, oferecendo possibilidade de
excelente colheita a um pesquisador de olhos abertos e cul-
tura especializada.
Podemos anotar, no âmbito histórico e lendário, o que
devem representar a Pedra do Sal, em Parnaíba; as decan-
tadas Sete Cidades, em Piracuruca; o Gritador, em Pedro II,
e avançando mais, o conjunto ímpar, de pedra bruta, de-
nominado Castelo, que deu nome ao município, ou, em Alto-
-Longá, o Morro Selado, e um pouco mais para o Centro, em
Valença, o Morro do Ladino e o Nicho da Varge da Serra, as-
sinalados em crônicas do século XVIII.

* * *
Como quer que seja, amplo ou restrito, o campo a ser
pesquisado o pior, em meu caso, é que pouco tenho obtido,
em minúcias, na pequena área esquadrinhada, não sendo
mais possível voltar ao passado, que se dilui sem deixar de
si senão tristes reminiscências.
Além do mais, o sertão de meu tempo não é nem po-
derá ser mais o sertão de hoje.
A vida então era tranquila e boa no sul piauiense. Com
a lei aurea e com a proclamação da República, sobretudo
com a primeira, tudo se transformou, ali como algures. A
queda vertical e brusca da economia local, que tinha sua ra-
zão de ser nos currais e nos roçados, mantidos pelo braço
negro, tudo levou de roldão. E mais. Os contemplativos, con-
tadores de lérias, autoritários detentores das tradições ·e .dos
mistérios insondáveis da boa terra matuta, lá se fôram na
ond:;L que, com a organização municipal à base do regime
LENDAS E FATOS 69

federativo, sacudiu a sociedade rural da planície do Gur-


guéia.
Assim é que alguns dos componentes e aferrados gle-
bários da zona, de meu tempo, que resistiram e vivem ain-
da, velhos e descrentes, certamente já se não darão ao ócio
de recontar aquelas histórias que então, no fim do século
passado. e no despontar dêste, nos pareciam encantadoras:
contos deturpados, hábitos e usanças de outros tempos e de
outras gentes, reduzidos a lendas incríveis; velhas colchas
de retalhos pesponteadas sob todos os climas, alterados de
um lado e do outro de acôrdo com os costumes e as ten-
dências dos povos das vastas regiões vagueadas, sempre ex-
pressando, aspecto da vida popular; eventos fabulosos de mi-
lagres e encantamentos incrustados na vacilante sensibi-
lidade da sociedade sertaneja; incursões doidas de vaqueiros
encaborjados por noites cerradas, com luzentes focos nos
estribos e cheiro de chifre queimado, a vadearem rios e a
transporem montes; caçadores escarnecidos, sem rumo e en-
guiçados por travêssos duendes transformados em bravios
javardos em desabaladas correrias; em agressivos e invulne-
ráveis veados de coleira e de cavanhaque longo e áspero, ou
em emas eriçadas, de azas pendentes, bicando e escoiceando;
velhas divindades das chapadas e dos varjedos; almas pe-
nadas que inquietam casas e arraiais, cantando endeixas,
gemendo e soluçando alto nas profunduras de lagos e rios!
Foi por êsse tempo -, entre 1886 e 1905 -, que ouvi
muitas e muitas vêzes, com infinito encanto, o romance em
versos do rápto de uma Helena qualquer das ribas do São
Francisco, de onde nos vieram os desbravadores e o gado,
de cambulhada com o cristianismo e as lendas.
O raptor teria sido um simpático e destemido vaqueiro,
pouco adaptado ao meio, como se verá, que punha nas
cartas · à namorada: "nesta sala de firmeza, onde a delícia
mora", ou: "sou, senhora, um pobre amante que me dispuz
a te amar; ao pé desta responda se queres acompanhar-me",
e outras barbaridades, que iam e vinham, cozinhando a fuga,
por mão de uma proxeneta.
A raptada, por sedução, era da branquidade, filha úni-
ca de rico fazendeiro da zona. Na fuga, naturalmente à noi-
70 ARTUR PASSOS

te, teria o casal de passar o rio, mas as canoas, com ânsia


procuradas, haviam desaparecido como por encanto, ;sinal
evidente de ter sido o crime pressentido, estando a perse-
guição iminente e fatal. A cavalo, com a jovem à garupa,
hesita o raptor à beira do caudal marulhoso, mas a coni~
panheira, impaciente, brada: "siga, siga sem demora,
que Deus nos há de ajudar; antes morrermos nágua, do que
meu pai nos matar". Fala o galã: "Lancei o cavalo nágua e
·a Deus fiz Um pedido: que fizesse de nós três o que a êle
Jôsse servido. mas, porém, das duas almas fôsse um pai com-
padecido".
"Fomos indo muito bem, porém quando a fõrça deu o
cavalo estremeceu e dágua abaixo desceu". "Para mim aca~
bou-se o mundo, ·só meu valor não morreu". "Puxei por mi-
nha pistola, para com ela atirar: um monstruoso tiro fez
tôda a água ambalar- meu cavalo rijo, forte, era constante
a nadar". "Senti o cavalo em terra, em terra firme pisar, mas
Jnda tinha outro nado, que era muito arriscado, porém o
pior já o havíamos deixado - esporei o cavalo e alcancei
o outro lado". "Quando saímos em terra grande alegria U-
vemos, dos grandes prodígios obrados, que de Jesús rece~
bemos" .
Porém antes de prosseguirem na fuga mirabolante to-
param, de frente, com o irado fazendeiro, com um exército
de capangas, o qual, dominado talvez pelo destemor dos j~
vens, foi dizendo, com imprevista mansuetude: fiquei pas-
mado, amigo, de o ver passar, a cavalo, tal rio, sem ter mor-
rido afogado - "tendes fortes orações ou fôstes por Deus
guiado?". E o vaqueiro, já tranqüilizado: "Não tenho fortes
orações, só, sim, por Deus fui guiado".
Tudo, afinal, acabou à medida dos desejos do vaqueiro,
evidentemente improvisado, e da moçoila.
De que não é coisa nossa, o rimance debuxado, está se
vendo até pelo uso particular das expressões. O fazendeiro
fala na segunda pessoa do plural, como usavam os primiti~
vos colonos reinóis. Nada que diga ao aspecto moral de nossa
gente.
Nenhum têrmo nosso. Nenhum laivo de brasilidad~.
Nassa, bem nossa é a lenda cabocla do J aó e da Perdiz:
LENDAS E FATOS 71

"Vive o Jaó nos baixões, à margem dos rios e dos ria-


chos perenes. Pelo contrário, prefere a Perdiz os planaltos, ba-
tidos de sol.
Um dia as águas dos rios e dos riachos começam a
crescer. Crescem tanto que inundam os baixões ainda os
mais afastados dos rios e dos riachos.
O Jaó, logrado, sobe escarpas, alcançando as estranhas
terras dos planaltos.
Foi então que conheceu a Perdiz, pela qual se enamo-
rou perdidamente.
Pediu-a. Casou-se com ela.
Mal passava a lua de mel quando começaram a circu-
lar notícias alviçareiras da baixada das águas.
Mais algum tempo, e já as depressões dos terrenos var-
ridos pela inundação se apresentavam tal qual sempre ti-
nham sido.
Começa o Jaó a sentir saudade dos págos. Mostrou dese-
jos de descer das escarpas, ao lado da Perdiz. E assim foi.
Os terrenos úmidos da beira dos córregos não agrada-
ram à melindrosa das alturas.
Nem sempre via o sol. Não sentia a diuturnidade dos
ventos. Veio a nostalgia. Uma vontade doida de rever os
campos nativos. Mesmo contra a vontade do esposo, voltou
às planuras sem limites. Houve capricho de ambos os lados,
o maldito capricho que sempre separa os casais.
Nem a Perdiz tornou ao baixão, nem o Jaó subiu ao pla-
nalto. Estavam brigados. O esposo, cedendo um pouco, ainda
tentou e tenta, desde então, reconciliação impossível.
Desde essa época canta o Jaó, sob o arvoredo : "Vamos
fazer as pazes?". Ao que, do descampado, responde a Perdiz:
"Eu? Deus me livre!".
Era comum também a história do coiro de piolho, ex-
posto à curiosidade de poucos e à argúcia de certo príncipe,
que disputava a mão de encantadora e astuciosa princesa.
O príncipe viaja à côrte e descobre, de permeio, um co-
fre refarto de jóias e de moédas de oiro; por acaso encontra
e contrata para a jornada aventurosa dá. conquista da prin-
cesa e do reino, cinco indivíduos a calhar - o corredor, o as-
sopra, o casa nas costas, o arqueiro e o escuta. Com êstes e
72 ARTUR PASSOS

o tesouro vence tudo - as manhas do velho rei e os capri-


chos da jovem herdeira da corôa e do trono.
Há outra versão: o princípe obtem ainda cinco servido-
res- o homem-grande, o escuta, o homem-montanha, o ho-
mem mais frio do que o gêlo e o contemplador.
Não há coiro de piolho, nem cofre recheado de jóias,
mas na essência é a mesma fantasia, contos cheios de nicro-
mantes e de deidades encantadas à moda dos de Mil e Uma
Noites, transplantados pelos colonizadores para o coração
da ·América do Sul e adaptados ao meio.
Dêsse recuado tempo, cheio de coisas deliciosas, bem
pouco guardei de memória - folguedos de crianças, algumas
décimas já hoje de todo desusadas; adivinhações e trovas
típicas da região, que afinal, segundo acentua Júlio Nogueira,
não são privativas do folklore, mas constituem o mais es-
pontâneo e o mais freqüente meio de expressão da poesia po-
. pular; a pequena história de conhecida procedência, mas
evidentemente incompleta - O Poder de Deus - , contada
de várias formas; a versão da lenda da Filha de Picapáu;
outra do conto intitulado Toque, Sombra e Beijo, uma sá-
tira ao vício do jôgo, e que começa - "era um vez"; e pou-
co mais. São coisas que só se destacam entre as popula-
ções matutas, que sabem dar valor aos seus cantadores de
pé de viola, aos seus improvisadores ou repentistas; aos seus
contadores de histórias de faca-fora, de garrucha fumegante ,
ou de brigões de chapéu emplumado e de espada erguida,
à Cyrano de Bergerac, de Rostand; aos seus andejos tocado-
res. aos sambistas profissionais.

* * *
É pena que não tenhamos obtido se não dois fragmen-
tos de uma petição de queixa, em versos, endereçada a cer-
to juiz de paz da ribeira do Gurguéia.
O dono de ramalhuda pitombeira acusa um vizinho de
furtar-lhe as frutas - "lindas, carnudas e gostosas":
"Ilustríssimo Senhor
JUiz de paz da ribeira,
quero que dê providência
no meu pé de pitombeira".
LENDAS E FATOS 73

Faz, a seguir, o histórico do crime inominável; con-


cluindo :

((Já não falo nas que come,


nem nas que mete nalgibeira:
tem engordado êsse homem
no meu pé de pitombeira" .

Como se vê, de comêço, êstes versos, interessantes em-


bora, indicam origem popular, anônima, ou de autor rústico.
A riqueza de rima, ou a impecabilidade da medida; o
conjunto dos pés ou sílabas que constituem, em rigor, um
verso perfeito e acabado, só o constróem os poétas cultos, os
verdadeiros artistas do verso.
Para a continuação, fazemos nossos os seguintes dize-
res do Prof. Júlio Nogueira, já tantas vêzes aqui citado :
"Os versos, 1ue fielmente transcrevemos, e vamos con-
tinuar a transcrever, apresentam muitas imperfeições que
são, por assim dizer, o sêlo de sua autenticidade".
Há muitos anos já, numa reunião festiva na beira do
Prata, ribeirão feraz do município de Jeromenha, afamado
cantador de pé de viola, não tendo mais a quem louvar,
cantou o calçado, de vivas côres, de uma das filhas do an-
fitrião , e o fez com habilidade. Estava presente um pequeno
criador das imediações, de nome Virgolino, que usava in-
variàvelmente botas de montar, sempre velhas e esburacadas.
Ouvindo os versos louvaminheiros dirigidos aos pantu-
fas da gentil matuta chegou-se, de manso, e pediu ao me-
nestrel que dissesse algo de suas botas.
O homenzinho não se fez de rogado :
a-.As botas do Virgolino
feitas em ano bissexto,
figuram no inventário
do finado Dom João Sexto.
Para louvar tenho discurso,
para rimar tenho tino,
não vale o que o gato enterra
as botas do Virgolino !"
74 ARTUR PASSOS

' ' A propósito da sátira às famosas botas do não me-


nos famoso Virgolino, vamos abrir um parêntese. O brasi-
leiro do norte e, notadamente o do nordeste, descendente de
português, de negro e de índio, o mestiço destas raças, se
culto, de preferência xinga o govêrno pelos periódicos, sem
com êle nem de leve cooperar, ou escreve versos satirizando
Deus e o mundo, à Gregório de Matos; se inculto, de pele
escura ou mesmo clara, mas de cabelo fortemente Émcres-
pado, perambulando pelas vilas e povoadós do interior, de
.feira em feira, de samba em samba, bebendo cachaça, mas-
cando fumo de corda, de faca de ponta no quarto, ao aban-
dono, corroído de doença do mundo, sem a menor assistên-
cia material ou espiritual, sempre teve e tem êste brasileiro
infeliz a língua sôlta, e por qualquer dá cá aquela palha
é filho desta ... é filho daquela ... , a torto e a direito.
Conheço duas quadrinhas ferinas tracejadas não por
mão de sertanejo analfabeto, porém pela mão de um jovem
gaúcho, estudante em Coimbra, há muitos decênios já. Edu-
ardo, se não me engano, era o nome de batismo do moço bra-
sileiro, desgraçadamente desaparecido no verdor da exis-
tência. Nasceu poeta. A prosa, destituída de nobreza, não lhe
sabia bem. Versejava nas cartas para a família, parece que
residente em Pelotas; nos bilhetes as cach0pas do Mondego,
nos próprios documentos de dinheiro de empréstimo. O cor-
respondente em Lisbôa · atrasava-se sempre. Era displicente
como todo correspondente de favor. Eduardo por isso pedia
dinheiro com juros de avarento a certo judeu português re-
sidente na cidade universitária, como faziam outros aca-
dêmicos. E passava o vale em versos ! Certa vez o corres-
pondente tardou mais do que habitualmente o fazia. O ju-
deu, desconfiado como todo judeu, descontou o documento
com um outro unha de fome.
O jovem quando foi resgatar o vale soube da ignomínia.
E ali mesmo pediu uma garra de papel de embrulho e um
LENDAS E FATOS 75

lápis, deixando sôbre o seboso balcão as duas seguintes qua-


dras:

"Foste vender os meus versos,


eu não me admiro disto,
tu tens instintos perversos:
havias vendido Cristo !
E não vendeste teu pai,
coração de besta-fera,
Por que nunca tua mãe
soube dizer-te quem era".

De presente basta abrir o livro de crônicas - Nas Bar-


bas do Tedêsco - , de Elza Cansanção Medeiros, enfermeira
que acompanhou as fôrças que na Itália tinham sôbre os
ombros a tarefa de representar o povo brasileiro na luta pela
democracia. Lá está o atestado no capitulo - O Palavrão
Salvador - , à página 63. Vamos respigar o trecho. No dia
15 de fevereiro de 1945, os alemães haviam perdido mais uma
cartada para os brasileiros. Foi neste dia que o aspirante-avi-
ador Canário, fazia cantar a sua "ponto 50" sôbre os tedês-
cos, quando percebeu que o seu "jamboque" (nome que da-
vam os pilotos aos seus P-40) havia sido atingido por certeiro
impacto. Apesar de estar bastante próximo de nossas linhas,
os alemães procuraram impossibilitar a volta do avião à sua
base, pois para êles era muito mais interessante aprisionar
o pilôto. O aviador lutava tenazmente, procurando alcançar
as nossas linhas, porém o pássaro metálico perdia cada vez
mais altitude em volteios desorientadores, até que atingiu o
solo. Felizmente o aviador não estava ferido, embora com-
pletamente desorientado, não sabendo se estava ao lado dos
brasileiros ou ao lado dos alemães. Divisando ao longe uns
homens fardados de verde-oliva, ficou apavorado. A questão
da semelhança de nosso uniforme com ·o dos alemães trou-
xe, durante tôda a guerra, uma série de enormes compli-
cações, e foi justamente esta enorme semelhança de unifor-
me que apavorou o bravo aspirante Canário. Fazer tanta
76 ARTUR PASSOS

fôrça. lutar tanto para não ser pessoalmente atingido e de-


pois cair exatamente dentro das linhas do inimigo! Era o
cúmulo do azar. Mas êle estava disposto a vender caro a vida
Procurando defender a pele saíu em desabalada car-
reira campo a fora, enquanto os soldados que o haviam
avistado quando tocara o solo, gritavam-lhe e corriam em
sua direção, fazendo gestos sem que o aspirante entretanto
percebesse o que lhe diziam. Corria como um louco até que,
em certa posição, uma palavra mais forte fere-lhe os ouvidos.
Estacou surpreso, inacreditando em seus ouvidos, pois o que
êle acabara de ouvir só podia ter sido dito por brasileiro (grifo
é nosso).
Sua genitora acabara de ser ofendida seriamente. Esta-
cou, e só então se deu conta de estar fugindo de seus pró-
prios compatriótas. Deixou-se cair para descançar enquanto
dêle se aproximavam alguns soldados e um oficial.
Ainda arquejante, saiu-se com esta: "Puxa, velho, nun-
ca pensei que ouvir tamanha ofensa à minha mãe, me cau-
sasse tanta alegria".
Continuemos.
Contenda alternada entre Xique-Xique, da Bahia, e Rio
Preto, do Gurguéia, aonde se enfrentaram.

q baiano, em desafio:
"Quando vim lá da Bahia
trouxe vara e cavador
para tapar Rio Preto,
p'ra o deixar sem sangrador".

Rio Preto:
"Quem tapar o Rio Preto
faça parede segura,
qué vertente permanente
veio da maior grossura".
LENDAS E FATOS 77

Xique-Xique, em espécie de adivinha:


"La em casa tem um pau,
que se chama irapiraca,
no tronco tem um touro,
no meio tem ua vaca,
no alto tem dez bezerros
das orelhas de quibaca 1
num galho tem um SJ.Lrrão,
no outro tem ua maca,
no olho tem ua cobra
,•·'
que mama o leite da vaca".

Rio Preto, solucionando:


"Com o machado abato o touro,
com a faca sangro a vaca,
com a mesma assino os bezerros
das orelhas de quibaca;
num ombro boto o surrão,
no outro penduro a maca;
com o páu eu mato a cobra
que mama o leite da vaca;
tocando fogo no páu
acabo com o irapiraca".

Conheci um preto cantador - Manuel Madeira, que


usava cavanhaque. Ao seu áspero cavanhaque chamava êle
de suissa, que vem a ser uma porção de barba, que se deixa
crescer nas partes laterais da face. Porém Manuel Madeira
chamava de suissa, com c cedilhado, ao seu apê:Q.dice capi-
lar. E cantava:

"O preto Manuel Madeira


para cantar não tem preguiça,
passa banha no cabelo
e canta com pacholiça:
quando Mané faz a barba
no queixo deixa suiça".

1
Orelhas inteiras, sem sihal e éra.
78 ARTUR PASSOS

Também conheci um outro, do qual não me lembro mais


do físico - Benedito Porco-morto. Bebia muito, não tinha
voz, e quanto mais bebia mais rouco ficava. Sei. que morreu
tísico. Dêste guardei de memória, como dos outros enumera-
dos, uns versos, não precisamente populares, que êle apenas
ia repetindo, parecendo se referirem ao duro tempo da guer-
ra com o Paraguai, quando os voluntários eram colhidos
um tanto à valentona.
Os partidos políticos do Império - conservador e libe-
ral- tinham diferentes apelidos pelo Brasil afora. No sertão
de minha terra chamavam-nos de Socó e Carrapato, res-
pectivamente.

Rouquejava o Porco-morto neste fragmento:

"Nem socó, nem carrapato,


nada disso quero ser,
nem também quero comer
[nesse prato.

Virarei bicho do mato,


comerei raiz de páu,
mas nesse berimbáu
[João não dança".

Ou então êstes, que são autênticos em tudo e por tudo:

"No dia q'eu amanheço


c' os óios cocôrutado,
com o nariz fora do rumo
e os pés apapagaiado,
na minha porta não passa
cabra de chapéu virado;
se passar de manhãzinha
meidia está amarrado,
às quatro horas da tarde
jura bandeira: é soldado".
LENDAS E FATOS 79

Zé Rodrigues

Era um tipo singular de testeiro, quando o conheci na


minha meninice.
Nascido e criado na zona, onde aprendeu o ofício de
pedreiro, chegou a consubstanciar as virtudes privadas e
os defeitos de sua gente e de seu meio. Nenhuma festa nas
imediações da vila de Jeromenha, fôsse de casamento, bati-
zado ou resultante das constantes práticas de devoção, des-
pertava interêsse se não contasse com a cálida assistência
de Zé Rodrigues, que era o gênio da folia, sendo o espírito
da ordem, pois folgazão, não obstante, como era, não bebia
e não fumava. Por isso todos o acatavam. Sua equipe, como
se diz hoje, era disputada pelas morenas sacudidas e sam-
bistas, pois até então, pelo menos na festa tradicional de
Bom Jesús da Lapa, nos Côcos, a uma légua da sede da vila,
a que tenho em mente e a mais freqüentada de tôdas, não se
permitiam danças pegadas.
Era uma tradição, que todos respeitavam.
Dançava-se o samba, sob a vibração do baião rasgado, '
de dois pares, que se íam revesando, sempre separados, cru-
zando o terreiro delimitado, varrido e molhado, deslizando e
sapateando o cavalheiro ao redor da dama, ao som argên-
teo das viólas e dos batuques, surriados à mão, em harmo-
nia com as solfas em voga.
Zé Rodrigues sambeava e cantava noites a fio. Tinha
êle uma companheira tão viva e envolvente na dança como
no canto, que era um contentamento para os que formavam
o sereno- a Severa, mulata elegante como lia marrã de cam-
peira, bem carregada de côr, de dentes magníficos, de sor-
riso enredeante e voz sedutora.
Cantavam ao pé das viólas, batendo ambos, a compas-
so, nos batuques.
Os dois ver~os finais de certas canções, como a que
se seguirá, eram cantados em duêto, e enquanto êle erguia
a voz de tímbre sonoro, ela, negaceando, o acompanhava,
com voz grave, cheia e nítida, de contralto.
80 ARTUR PASSOS

Puxava êle e ela respondia:


"Muié, você não vá lá,
eu vou, eu vou;
Muié, você não vá lá,
eu vou, eu vou;
apois vai muié teimosa,
você vai só, eu não vou.

Depois, ela puxava e êle respondia:


"José, eu vou e não volto,
não vá, não vá;
José, eu vou e não volto,
não vá, não vá;
então mate os meus desejos '
se quer mesmo qu'eu não vá".

Ou então cantava êle só, dançando e agitando as cas-


tanholas de casca de cajá, à espanhola, como todos então
usavam:

" Zé Rodrigues quando canta


tem um pigarro no peito,
dá daqui, dá dacolá,
dá sempre de qualquer geito".

Tôda gente cantava no sertão do médio e baixo Gur-


guéia - Quando galinha criar dente:

"Hoje é domingo
de pé de cachimbo;
cachimbo de oiro,
que dá no besoiro;
besoiro de linha,
que dá na galinha;
galinha valente,
que dá no tenente,
tenente prudente,
que lhe quebra o dente".
LENDAS E FATOS 81

Pedro Mouco

O maior dedilhador de vióla no sul do Piauí, Pedro Mou-


co, teria fugido das páginas cintilantes de Henrique Mur-
ger, escritor francês que se imortalizou pintando e descre-
vendo a vida de um grupo de boêmios paradigma do Bairro
Latino, no apogeu da escola romântica.
O iluminado nômade sertanejo, por incrível que pareça,
tinha frases e juízos equivalentes, se é possível, aos dos pe-
ralvilhos fixados por Murger. Passava por gôsto as mesmas
privações pontilhadas de lá uma ou outra hora de fugitiva
prosperidade, quase sempre resultante de tournee empreen-
dida a convite de numerosos admiradores espalhados por
diferentes comunas.
Certa vez, moço ainda, chamado por uma família prós-
pera e de passagem pela cidade matriz do Gurguéia, pediu
abrissem de par em par as janelas da sala, onde se realiza-
ria o concerto, alegando que o "amor andava rondando".
Era noivo, então. E muitos anos depois, pouco antes de ex-
pirar, vítima de tísica galopante, pediu justamente o contrá-
rio: que fechassem as janelas do quarto dentro do qual ago-
nisava, explicando, com muito esfôrço, que "a morte anda-
va espreitando".
Virtuose magnífico, a vióla, em suas mãos privilegiadas,
era uma orquestra, e o povo, confuso, dizia, bemzendo-se -,
credo, São Bento! - , que o que tinha aquêle mago da har-
monia era pauta (pacto) com o diabo. A verdade é que exe-
cutava com maestria, quanto chegasse ao seu conhecimen-
to - valsas, polcas, chotes, quadrilha francêsa ou de lancei-
ros, que então eram os números obrigatórios nos bailaricos,
não importa se no sertão ou nas cidades. E cantava como um
uirapuru, reunindo tôda gente ao redor - modinhas e chu-
las, que decorava e musicava às dezenas. Era ainda repentis-
ta vivaz, improvisando e, como o célebre repentista baiano
Muniz Barreto, decorando seus constantes repentes.
Um exemplo apenas:
No lugar Oiteiro, no médio Gurguéia, em festa de casa-
mento, já pela manhã, um grupo de môças obteve certa
quantia em dinheiro em proveito do músico, do tocador, como
/
6 - 24 542
82 ARTUR PASSOS

chamam. Com um sorriso de mágua devolveu a esmola, que


lhe chegára num pires, por mão de uma criança. E levan-
tou a voz:

"Quando vim de nossa casa


não foi pra pedir esmola,
vim cantar môça bonita
nas cordas desta vióla

Evidentemente endereçada à determinada morena de sua


preferência e agrado, presente à reunião, e com a qual anda-
ra de casamento ajustado, cantou a seguinte quadra, quase
em soluços:

"Esta vióla, morena,


é feita de áis e dôr!
ela traduz em suspiros
as máguas de nosso amor!"

* * *
Transcrevendo os versos populares que aí ficam, sem lhes
tirar ou adicionar uma palavra sequer, fico convicto de con-
correr de qualquer forma, como muitos outros em várias
ocasiões o têm feito, para o desenvolvimento do espírito li-
terário da gente piauiense. Porque a verdade é que no lin-
guajar natural. "no balbuciar emoGional do povo encontra-
mos a legítima expressão do sentimento de um país em for-
mação, como o nosso, que teve e tem o desenvolvimento vi-
cejante de sua literatura nestas espontâneas manifestações
populares".
Sílvio Romero, o saudoso e eminente mestre da crítica
literária escreveu;- a êste respeito:
"A literatura começou a formar-se no Brasil no dia em ,
que os índios, os negros e os colonizadores entraram a viver
juntos, a trabalhar juntos, a sofrer juntos, a cantar juntos.
No dia em que o primeiro mestiço cantou a primeira qua-
drinha, nêsse dia começou a originar-se a literatura brasi-
leira".
LENDAS E FATOS 83

Advinhações

Eram .de uso nos serões familiares do interior as histórias


de trancoso, as recitações e as adivinhas, que começavam -
- "o que é, o que é". Guardei poucas das adivinhas. Vão aqui
apenas duas ou três que conservei de memória.
Era corrente a relacionada com a morte de Abel, provo-
cada por seu irmão Caim, primogênito de Adão, que foi feito
de barro, e de Eva, produto de uma das costelas do primeiro
homem.
Abel é tido como a primeira rês pensante. que inau-
gurou a primeira sepultura, no seio mesmo de sua avó, por
parte de pai - •a Terra:

"Hoje aqui morreu um homem,


o qual sem culpa morreu;
nasceu primeiro que o pai
e a mãe nunca nasceu;
a avó do homem foi virgem
até que o neto morreu".

A da espingarda de pedra:
"É de páu e é de pedra; é de ferro e é de aço;
fura e é furada- alcança a terra, o mar e o espaço."

A da viola:
"()a sepultura aberta
com dez mortos estendidos,
cinco vivos passeando
dando áis muito sentidos".

As de uso corrente - "Enche lia casa; não enche ,ua


mão". Rui Barbosa disse, produzindo fumo sem chama, que
os estadistas de certa categoria entravam para os ministé-
rios com as casas do palitá e saíam com as casas da índia!
Isto veio a propósito de casas de roupa e de botão, que
enche O.a casa, mas não enche ua mão.
A do pilão- "tem a bôca na cabeça e as mãos fora do
corpo".
84 AR'l'UR PASSOS

A do fumo de corda, a da canôa, a do machado e até


a da Esfinge: "qual é o animal que anda sôbre quatro pés de
manhã, sôbre dois ao meio dia e sôbre três à noite".

Folguedos de Criança

Entre os divertimentos de crianças de até cinco anos,


o mais popular, o mais conhecido e ainda praticado no in-
terior é o Dedo Mindinho. Pega-se da mão da criança, bem
espalmada, começando do auricular para o polegar - dedo
mindinho, seu vizinho, maior-de-todos, fura-bolo, cata-piolho.
Depois da palma da mão até debaixo do braço, fazendo có-
cegas:

"Cadê o toucinho que botei aqui?


O gato comeu (responde a criança)".

Ou então numa versão selvagem, certamente de taba e


senzala, já pouco usada, em ambas as mãos: "una, duna,
tena, catena, catená, rebaná, tem-tem, gurupi, gurupé, con-te-
-bem: são dez".

Galinha Gorda

Brinquedo nágua, no banho, em lago ou rio de alguma


profundidade, muito parecido, nos dizeres de comando, GOm
o de Esconder ou o chamado Bôca de Forno.
Um garoto pega de uma pedra, de antemão escolhida
e assinalada, e grita para a turma da vadiagem :

"Galinha gorda
Gorda (respondem em côro)
Onde eu mandar,
Vou.
Jacarandá

Melão-melão
Para quem a encontrar"
E todos, numa arrancada, mergulham.
LENDAS E FATOS 85

Veadinho

Um grupo de meninos de oito a doze anos, nas praças


dos vilarejos ou nos páteos das fazendas, de preferência em
noite de luar, de mãos dadas, constituem um pequeno cer-
cado humano em forma de anel, de início aberto de um lado
para, com lábias e engôdos, atrair o Veadinho, que fica · de
parte.
E vão perguntando, os da prisão anular: "De que gosta
o Veadinho - de flôr de Caraíba, de flôr de Puçá, de flôr
de Páu-dárco, de Pequí; de flôr de caroba, rôxa da côr da
agonia?
Gosta o Veadinho por ventura de flôr de Embira-assú,
branca da côr de leite? De que fruta? Da fruta da Cagaita,
da Mirindiba, da Massaranduba, do Marfim? Da fava do Páu-
-ferro- da fôlha do Pratudo? De uma carga de chumbo grosso?
Se o Veadinho aprecia o que se lhe oferece, dá dois
passos à frente, ou dois à retaguarda se não gosta como,
por exemplo , da folha do Pratudo, que amarga como fel,
ou da carga de chumbo, sempre fatal.
E assim vão, ageitando daqui, ageitando dacolá, até
metê-lo no cêrco, onde se debate, prêso. Então, tocando de
leve nos braços entrelaçados pergunta, por sua vez, o Vea-
dinho: "de que madeira esta cêrca é?" Resposta: "pau-de-
terra, de galhos de imbuzeiro, de maria-mole, de ôlho-de-boi",
para não interromper a praxe depreciativa. Aparece lá um
ou outro blasonador - "é; aqui é de candeia tirada em boa
lua; é de sucupira-branca, é de âmago de aroeira". O Vea-
dinho é traiçoeiro como êle mesmo. Pergunta para um lado,
mas o seu interêsse está no outro. De repente atira-se com
todo o pêso do corpo para o dos que se descuidaram, rom-
pendo, se pode, o cêrco. Se o consegue, passa a servir de Vea-
dinho aquê~ que por negligência deu fuga ao prisioneiro.

Poder de Deus

Há uma versão segundo a qual um mago procurava


para casar com sua pupila o ente mais poderoso do universo.
Nada mais poderoso do que o Sol, pensou. E o nicro-
mante suplica do sol aceitasse a mão de sua protegida. "Eu
86 ARTUR PASSOS

não sou o mais poderoso", respondeu o Sol. "Basta uma


nuvem para me cobrir, e velar a minha luz". "Ela é mais
forte e o seu poder é maior do que o meu". Acudiu o feiti-
ceiro a nuvem e esta - "há uma coisa mais forte do que
eu: o vento". Mas logo viu o encantador que a montanha
superava o vento. Todavia achava a montanha que o rato
era o mais forte e poderoso, pois contra a sua vontade fura-
ra-lhe o ventre e vivia no seu seio.
O poder aqui não é o de Deus, mas o do roedor.

Variante Sertaneja

Passava a formiga sôbre um lageado, quando teve o pé


prêso num pouco de cêra. Por mais que puxe e se esforce
não consegue libertá-lo. Enfatuada, interpela: "Você, cêra,
tão poderosa é que meu pé prende?" A cêra diz que não,
que não é poderos-a, tanto que basta uma réstea de sol na
manhã seguinte para libertar o pé da formiga.
Formiga - "ó soL pois tão poderoso você é, meu ve-
lho, - que derrete a cêra, a cêra que meu pé prende?"
Sol - "basta às vêzes uma nuvem para interceptar o
meu 'poder, que é a luz".
Formiga - "ó nuvem, pois tem você tanto poder que
tapa a luz do sol, luz que derrete a cêra, a cêra que meu
pé prende?".
Nuvem - "poderoso é o vento, que me afugenta e des-
trói" .
Formiga- "ó vento, pois você tão forte é que afugenta
e destrói a nuvem, a nuvem que tapa o sol, o sol que derrete
a cêra, a cêra que meu pé prende?"
Vento - "a floresta me dispersa e reduz".
Formiga - "ó floresta, pois é você, minha amiga, tão
poderosa assim que dispersa e reduz o vento, que destrói a
nuvem, a nuvem que tapa o sol, o sol que derrete a cêra, a
cêra que meu pé prende?"
Floresta - "Como? Poderosa, eu? Poderoso é o homem,
que dispõe do fogo, que me devasta e reduz a cinzas".
LENDAS E FATOS 87

Formiga - "ó homem, pois tão forte, máu e potente é


você que, dispondo do fogo, devasta e carboniza a flor~sta,
ela que reduz o vento, o vento que dispersa a nuvem, a nu-:-
vem que tapa o sol, o sol que derrete a cêra, a cêra que
meu pé prende?"
Homem - "poderoso é Deus, que me mata".
Formiga, irreverente - "ó Deus, pois é você tão pode-
roso que mata o homem, senhor do fogo, o fogo que devas-
ta e carboniza a floresta, a floresta que reduz o vento, o
vento que destrói a nuvem, a nuvem que tapa o sol, o sol
que derrete a cêra, a cêra que meu pé prende?"
Deus - "eu sou tão poderoso que mato a formiga, como
mato o homem, feito à minha imagem e semelhança".
A conclusão não é própria de um Deus, que deve ser
infinitamente bom. Mas infelizmente é um fato: mata a for-
miga como mata o homem.

Círculo Vicioso

Aí está, de Machado de Assis, ideado quando o mes-


tre deixava sorrateiramente os arraiais do romantismo e
jurava bandeira nas legiões parnasianas, o conhecido sone-
to - Círculo Vicioso: ·

"Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:


- "quem me dera que fôsse aquela loura estrêla,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrêla, fitando a lua, com ciúme:
"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
que, da grega coluna à gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- "Mísera! tivesse aquela enorme, aquela
claridade imortal, que tôda a luz resume!"
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
- "Pesa-me esta brilhante auréola de nume . ..
enfara-me esta azul e desmedida um bela . ..
por que não nasci eu um simples vagalume?"
88 ARTUR PASSOS

- O alfa e o ómega, o princípio e o fim da lenda -


a formiga irritada e o deus cruel, que mata a formiga como
mata o homem, poder-se-ía adaptar, se fosse permitido, ao
resultado encontrado no soneto transcrito, por que o que
seria justo e belo era que dissesse o deus da lenda, embora
quebrasse o verso, o que disse o sol no Círculo Vicioso:
-"Por que não nasci eu uma simples formiga?"

Lenda do Picapau

(Como é conhecida no vale do Gurguéia)


Ter fôlha de picapáu é o mesmo que possuir talismã,
aquilo que produz efeito súbito e maravilhoso. Quem a pos-
sui é feliz em tudo e por tudo. A dificuldade está tão somen-
te na obtenção do objeto miraculoso, porque a ave é, mais
que qualquer outra, cautelosa demais no resguardar o ni-
nho, retecido no ôco de alterosas árvores. Postos os ovos, só
ua, a fêmea, ali penetra, com mil cuidados, depois de ins-
peção demorada, de pausas e vigílias nunca relaxadas no
período da incubação e, maiores ainda, se é possível, na
criação da prole. Recebe ainda a dona do abrigo auxílio va-
lioso do companheiro, que se não aproxima muito do alado
refúgio, sem todavia o perder de vista, envolvendo a árvo-
re privilegiada numa rêde de infinitos cuidados. Ao menor
roído ou estranho movimento o sinal parte, um só e não mais,
em direção à companheira, e tudo ali se dissimula: o macho-
foge rufiando as asas, muito alto, fingindo um qualquer
viajar dos ares, e a responsável ,Principal pela ordem, pelo
sossêgo e multiplicação da espécie (de porte desenvolvido,
plumagem negra e capacête rubro) , queda-se silenciosa até
que o vigia dê, de longe, a princípio, e mais de perto, por
fim, o sinal de "nada de novo".
Atingir, pois, numa sexta-feira da Paixão, e nunca em
outro qualquer dia, o momento ensejado, o raro instante
em que o casal, à procura de alimento, esteja ausente; ma-
rinhar pela árvore acima; interceptar a entrada do ninho
com três folhas verdes, sobrepostas, de determinada plan-
ta, bem esticadas, prêsas às bordas do orifício com cêra ou
grude, requer muita paciência, habilidade e resistência física.
LENDAS E FATOS 89

Se o candidato ou pretendente a essa singular lâmpa-


da de Aladim assim o fizera, terá meio caminho andado.
Então, de volta, o casal de trepadores mal acredita no
que vê. Volita, em tôrno, esgaziado. De olhos inquietos, mos-
trando espanto e ira, enchem, ambos, os ares, de sons agu-
dos e ásperos, como se tivessem um espinho de mandacarú
cravado no peito. O mal está feito; é preciso enfrentá-lo.
Dá-se aí o inevitável, o que tanto deseja o furtivo caçador de
maravilhas, que às ocultas assiste ao desespêro dos pobres
que se batem ante a imprevista e maléfica intercepção.
Saltitando em tôrno do ponto que o instinto indica ser
a porta de entrada para o ninho, os pássaros ferem as fô-
lhas em cheio, no centro, a bicadas repetidas e penetra a fê-
mea, só ela, pelo orifício, no lar. Tudo quiéto; tudo em or-
dem. De repente a árvore é violentamente sacudida. Um
homem, ligeiro, galga o alto e retira as fôlhas picadas e den-
tre elas a do centro, que esta será a que lhe dará sorte, re-
colhendo-a imediatamente a uín patuá previamente confec-
cionado .
Certo de tudo obter, larga-se o felizardo desde então
pelo mundo à cata de aventuras, sem outra arma além de
seu talismã, como um bizarro cavaleiro andante do amor!

Toque, Sombra e Beijo

Era uma vez um rei que, tendo perdido vultosa quan-


tia para um fidalgo parente, baixou um decreto proibindo
qualquer espécie de jôgo de azar, em seus domínios, sob pena
de morte. E o vício nefasto foi reprimido. Sucedeu, porém,
que em certa localidade, nos confins do reino, havia uni pa-
dre viciado. No mais, justiça se lhe faça, era um sacerdote
perfeito, assíduo às cerimônias religiosas, pontual em tudo
o que se relacionasse com o ministério, zeloso pelo bem-estar
espiritual de suas ovelhas. Mas andava desolado com a lem-
brança infeliz do príncipe.
Queixando-se certo dia, muito à puridade, ao sargento
do destacamento, que o reverendo sabia de sobra amigo dos
naipes, ouviu dêste, com a maior reserva também, as mes-
mas amarga~ queixas. E acrescentou, um tanto confuso e
90 ARTUR PASSOS

olhando em tôrno: "não suportei por mais tempo e, peza-me


dizê-lo ~ ha vigência da maldita já arrisquei umas duas jo-
gadas, fora dos muros da vila, com um vaqueiro amigo".
O padre ficou matutando.
Pois então já estavam jogando de novo?
E a pena capital?
Na primeira oportunidade combinou com . o sargento
amigo um encontro e nêste pactuaram umas fêriazinhas na
própria sacristia, depois do sinal de silêncio.
E assim viveram felizes por algum tempo, matando o
vício à vontade, o padre, o vaqueiro e o sargento.
Mas o diabo sempre faz das suas. Uma noite em que o
vaqueiro, o mais esperto da trinca, engabelara os parcei-
,
ros, houve incontida altercação. As vozes, sempre brandas
como o rumor da aragem, se alteraram mais do que manda-
va a prudência, e por infelicidade dos violadores da lei, pas-
savam pelas proximidades do local, ouvido apurado, uns mi-
litares da ronda noturna. Estacaram. Avançaram pé ante pé
e, assombrados, tudo ouviram e compreenderam. Dêsde logo,
pela fala, identificaram os criminosos. Não tiveram mais dú-
vidas: forçaram a porta e prenderam em flagrante os três
delinquentes - o padre, o vaqueiro e o sargento -, apre-
endendo os elementos materiais do crime.
Antigamente o criminoso que, mesmo perseguido' por
representantes da autoridade ou pelo clamor público, con-
seguisse refúgio no recinto sagrado de uma igreja, só era
entregue à justiça depois de preenchidas complicadas for-
malidades.
No caso, a lenda apenas diz: a lei é dura, mas é a lei!
Formou-se o processo. O Juiz achou, todavia, de bom
aviso, pôr o soberano ao par do singular assunto, pedindo
instruções quanto à omissão da lei de repressão ao jôgo, que
não previa podesse ser apanhada em suas malhas meúdas
a figura particularmente privilegiada de um sacerdote.
Gostou o rei, intimamente, da lembrança do atilado jul-
gador (êle, o rei, já estava jogando também, nos fundos de
um gabinete privado, com outros fidalgos parentes), que
além de austéro e íntegro, era dado às Musas.
LENDAS E FATOS 91

A resposta não tardou e os paroquianos exultaram com


a ordem régia, dando ao Juiz ampla liberdade de ação no
julgamento, excluída desde logo a pena de morte do vigário
e, em sua honra, a dos outros reclusos.
Assim, na audiência imediata o assunto entrou em pau-
ta e o escrivão lavrou a escala: o padre em primeiro lugar.
o vaqueiro logo depois, o miliciano por último. Um de cada
vez, vedadas as comunicações.
Abrindo os trabalhos da cerimônia de julgamento, o
Juiz bateu nas tábuas da lei, com um pequeno martelo de
prata, impondo silêncio; e o oficial de justiça correu a cor-
tina que vedava a efígie de Têmis, com a balança simbólica.
O escrivão passou ao primeiro acusado um pequeno manus-
crito, com três palavras apenas, interrogativas tôdas três
- toque? sombra? beijo?
O Juiz disse alto: que se as definições saíssem a conten-
to, era possível que tudo acabasse bem, graças à munufi-
cência real. E o sacerdote, repetindo as palavras da pergun-
ta convencional, respondeu: - "toque de sino; sombra de
pálio; beijo de cálice".
O magistrado acenou, com a mão direita espalmada,
sinal de absolvição; e bateu com a martelo. O banco foi
ocupado pelo vaqueiro, que respondeu - "toque de choca-
lho; sombra de virente árvore; beijo de borracha dágua
fresca."
O militar, ereto, em posição de sentido - "toque de
corneta; sombra de sua real magestade; beijo ... de mu-
lher bani ta. "
O VALE DO GURGUÉIA

Retratando o curso do Parnaíba, o rio GurgÚéia apre-


senta urna forma de transição entre o tipo dos rios das bai-
xadas e o das chapadas, que é o seu característico na me-
tade do curso, sendo sem dúvida o mais importante em ex-
tensão e volume dágua dentro precisamente do território
piauiense. É um fato. O Parnaíba, rio interestadual, ao lon-
go de 1450 quilôrnetros só nos dá um lado, o direito. e o
Poti, com 660 quilôrnetros, é um rio de origem cearense. O
Piaui, com 400 quilôrnetros, o Canindé, com 340, e o Longá
lhe são evidentemente inferiores.
O professor Mario Batista em "Hidrografia e Orogra-
fia dêste Estado" afirma nascer o Gurguéia na serra da
Tabatinga, na parte onde recebe ela o nome de Galhão. Jai-
me Seguier registra: "Gurguéia, rio no Estado do Piauí; nas-
ce na serra do mesmo nome e deságua no Parnaíba com
739 quilôrnetros". Pereira da Costa anota: "O Gurguéia cor-
re por mais de cem léguas". Esta é a tradição - o rio Gur-
guéia tem um curso de cem léguas quilométricas, banhando
atualrnente os municípios de Gilbués, Monte Alegre, Crurna-
tá, Bom Jesus, Cristina Castro, Bertolínia, Jerornenha e Flo-
riano. Ficam à sua beira Bom Jesus, à esquerda, a um qui-
lôrnetro; Cristina Castro à direita, mais chegada ainda.
Quanto à Jerornenha, também à direita, a posição é esta:
200 metros para o pôrto da Esperança; 300 para o do Valado
e nunca mais de 500 para o da Passagem, um pouco acima da
cidade, por detraz do Barro Alto e não Bairro Alto, como se
tem dito e escrito, pois Barro Alto não era antigamente, corno
em rigor não o é hoje, um arrabalde, mas um lugar, morada
antiga dos Barbosa de Miranda. Embora não desenvolvida,
pois nunca nem ao menos se cogitou do problema máximo
LENDAS E FATOS 93

da região -, colonização e imigração adequadas, que tra-


riam saneamento, transporte, vias de comunicaÇão e o
mais-, embora não desenvolvida, a área político-econômica
delimitada pela bacia do Gurguéia, em extensão e recursos
naturais, é uma das mais importantes, senão a mais impor-
tante dêste Estado. Se o encararmos pelo lado histórico, en-
tão o vale suplanta todos os outros, pois êle foi de fato o ca-
minho do desbravamento e da civilização do território do Pi-
auí. Em razão da bacia do São Francisco, foi o Gurguéia -
"sinuoso e crêspo" - o ponto visado pelos senhores de Ta-
tuapara para o devassamento das terras ignotas do oéste.
E Pedro Calmon avisa, com tempo, realmente, que "a con-
quista do Piauí foi feita pelo vale do Gurguéia" . Aliás, era
o destino dos rios, acrescentando: o Paraguassú levou às cha-
padas; o rio das Contas ao sertão de Caetité; o Jacuripe ao
sertão do Morro do Chapéu; o Itapicurú à serra da Itiúba;
o Vasa-barris a Geremoabo; o Jequitinhonha às Minas Ge-
rais; o São Francisco ao Brasil Central. Tôdas as conquis-
tas fôram tentadas e realizadas através dos rios.
E entre um rio e outro rio as picadas primitivas, as tri-
lhas mal delinheadas, por onde irrompia o gado, com os
sertanistas, matando e morrendo.
As veredas coloniais, carinhosamente estudadas por Ca-
pistrano de Abreu em "Caminhos Antigos e Povoamento do
Brasil" representam papel incontrastável nessa grande ex-
pansão, porque as estradas de gado fôram afinal os cami-
nhos definitivos. Por êles rolou o povoamento, semeando fa-
zendas, que se constituíram povoados e vilas por todo o nor-
deste brasileiro. Todos levavam forçosamente aos vales e
os ligavam, pois os vales sempre fôram para os pioneiros os
escoadoiros preferidos, porque nas margens dos rios e ri-
beiros havia o de que necessitavam as entradas: frescura,
caça e peixe. E é com razão que se diz que o mapa dos ca-
minhos penetrantes do nordeste é, de um modo geral , a sua
hidrografia.
Mas muita coisa da conquista do Piauí está por se sa-
ber, sendo cabível a afirmativa de José Honório Rodrigues
no prefácio de "Capítulos de História Colonial", de Capis-
trano de Abreu, 4.a edição, interpretando, aliás, o sentir do
94 ARTUR PASSOS

eminente historiador - "que a questão mais importante da


história pátria é a decorrente do povoamento da zona entre
o São Francisco e o Parnaíba" .
A supremacia histórica do rio Gurguéia está justamen-
te no ter podido êle acolher à saciedade com frescura , caça
e peixe, os obreiros temerários das entradas. Não figuram
aqui, por meúdo, nem participam de nossas cogitações o es-
tudo do clima, o da organização estrutural da região, o dos
recursos naturais em profundidade, o da constituição da
sociedade que por lá vegeta, nem ainda o dos seus proble-
mas fundamentais, que se eternizam sem estudo e solução.
Um govêrno em função de economia teria ali muito o que
fazer, mas nunca um cronista que escreve por escrever, aflo-
rando inutilmente pontos vulneráveis - o analfabetismo, a
fatia absoluta de assistência médica, o pauperismo crônico
da gente rural da ribeira do Gurguéia, que por lá agoniza
e morre, aos poucos, ao abandono. Quanto ao desenvolvi-
mento e progresso, aquela região continua terra de ninguém.
Seus elementos econômicos de base - a criação e a lavoura,
por motivos vários, caíram em vertical. O cultivo do algo-
dão, que chegou a ser auspicioso, vindo até aos primórdios
da República, pràticamente desapareceu. Quanto à produ-
ção de cereais continuamos no mesmo ramerrão de há trezen-
tos anos: devastando o resto das já escassas reservas flores-
tais, queimando e desnudando a terra já pouco aproveitá-
vel. Por isto mesmo a lavoura canavieira de rapadura e
cachaça, antigamente de produção estável, com numerosos
engenhos de madeira no vão da Solidão e adjacências, está
reduzida à expressão mais simples, pois em razão de conse-
cutivos maus invernos as "terras-frêscas" esterilizaram-se, en-
torreadas, e as vertentes se extinguem lenta, mas progressiva-
mente. A água, outrora, interceptando o trânsito, fugiu para
as camadas interiores do subsolo, e por lá, pela zona, já não a
têm os moradores nem para as necessidades mais imperiosas.
O município de Jeromenha, o mais antigo do vale, ape-
nas dispõe de poucos babaçuais, circunscritos ao baixo Gur-
guéia, e a própria cêra de carnaúba, de algum tempo a esta
parte, o alicerce da riqueza pública e privada, não a temos
por lá com suficiência, como se verifica em vários outros mu-
LENDAS E FATOS 95

nicípios. Extraída de modo rotineiro, sujeita a combinações


quase sempre inescrupulosas, entre intermediários nacionais
e negocistas do exterior; pendente de oscilações, avanços e
recuos de preços resultantes dessas escusas combinações, não
se equipara a cêra de carnaúba, por isso mesmo e, sobretu-
do, pelo seu pequeno volume global, em firmeza e estabilida-
de, ao gado e á produção agrícola, que constituíram por mais
de dois séculos a fartura e o bem-estar do povo piauiense.
Daí. melhorando e ampliando, se possível, a indústria extra-
tiva, no apogeu, presentemente, a imperiosa necessidade de
voltar o Piauí ao passado, á sua posição essencialmente agrí-
cola - á roça e ao pastoreio, de modo racional e em bases
científicas. A êste respeito escrevi em 1953, tendo em vista
o município de Jeromenha, as seguintes palavras: "Não im-
porta que as terras das sesmarias de 1676 -, as primeiras
concedidas em território piauíense -, estejam excessivamen-
te cansadas e desnudas; que já se tenham de há muito ex-
gotado as reservas florestais, a exuberância das pastagens
nativas e o número incontável de mananciais. Sustar a de-
vastação de trezentos anos pelo machado e o fogo; reflo-
restar as encostas, baixadas e as margens dos rios e ri-
beiros, ensejando a retenção das águas pluviais indispen-
sáveis às reservas do subsolo, evitando, assim, em grande par-
te, os enormes prejuizos da erosão; aproveitar os rios e re-
gatos, ainda em forma, para a rega artificial das terras ri-
beirinhas; distribuir, em série, pequenos açudes de modo o
mais racional possível; criar pastagem artificial para um
novo método de criação à base de qualidade; substituir de
verdade, e quanto antes, a lavoura extensiva e empírica pela
cultura mecânica, intensiva e metódica, acumulandc o tra-
balho e o capital, harmonizados, afinal, em espaço relativa-
mente restrito; olhar a sério pela saúde, pelo ensino inte-
lectual e técnico do homem rural; abrir estradas sôbre es-
tradas à circulação da produção e vitalizar mais e mais mo-
ral e materialmente as comunas sertanejas, eis, em poucas
palavras, o programa a ser executado, não pelos municípios
ou mesmo pelos Estados, mas pela União Federal, em ação
continuada, excluidas as chamadas medidas de emergência
em época de calamidade pública como a que abate e extermi-
96 ARTUR PASSOS

na presentemente (1952/1953) o simulacro de economia que


retém por um fio a precária existência da sociedade serta-
neja".
* * *
"Uma das características mais interessantes do tempo
em que vivemos é o aproveitamento dos rios. Em verdade,
dos rios se tiram tôdas as possibilidades econômicas : ener-
gia, transporte, irrigação. Há a acrescentar o contrôle às
inundações e o fornecimento de água às indústrias. Daí, em
várias zonas do Brasil, tôda uma série impressionante de
grandes obras hidráulicas construídas, em construção, ou
simplesmente projetadas". O exemplo benéfico veio dos Es-
tados Unidos, em cujo território, neste particular, há uma
vasta série de obras notáveis, inclusive as realizadas no Te-
nessee, que transformaram uma zona pobre, como o nordeste
brasileiro, num dos trechos mais ricos e pitorescos do mun-
do. Creio tenha sido a forte sugestão daquela magnifica
realização, visitada pelo ex-presidente Gaspar Dutra, o im-
pulso primordial do aproveitamento da energia da Paulo
Afonso, ponto inicial de oportunas obras hidráulicas, que
já se desenvolvem por quase todo o histórico rio, de curso
aproximado de três mil quilômetros .
O projeto dessas iniciativas complementares consiste,
segundo um de seus técnicos, em fechar o rio São Francisco
acima de Pirapora, a juzante da barra do Borrachudo.
A barragem formará um lago artificial com 1500 quilô-
metros quadrados e um volume de armazenamento de . .. .
22 . 000 milhões de metros cúbicos. Instalar-se-á ali uma cen-
tral elétrica com o potencial de 88.000 C. V. (646.000 quilcr·
watts). A produção anual provável de energia será de 3.600
milhões de quilowatts-hora. A barragem aumentará sensivel-
mente a descarga do rio nas estiagens. A navegação melho-
rará, pois entre Pirapora e Juazeiro -, 1350 quilômetros -,
o tirante mínimo será superior a 1,50, m. Aumentará extra-
ordinàriamente o potencial da usina elétrica de Paulo Afon-
so, sendo possível irrigar grandes trechos do famoso rio.
É um sinal auspicioso: do São Francisco vieram os pioneiros
e o gado, como virá por certo a exploração dos rios.

* * *
LENDAS E FATOS 97

A saúde do povo é uma questão vital. Transformar os


homens do campo, fracos e doentes que são, num povo forte,
saudável e resistente, é lançar sem dúvida os fundamentos
de futura e segura base econômica.
No Piauí nenhuma fração de seu povo dêsses cuidados
necessita mais do que a que habita a zona do Gurguéia. To-
dos ali sofrem sem Esperança, que é a segunda das três vir-
tudes teologais.
Ignorante, e entregue a si mesmo, o homem do vale
do Gurguéia desconhece as mais elementares regras de higi-
ene pessoal ou coletiva. Por lá têm passado e ainda passam
certamente os obreiros incansáveis do teimoso trabalho da
higiene sanitária da malária, ultimamente reformado não sei
sob que orientação. No entanto, representa êsse trabalho
apenas um movimento brando do ar. Passa agradavelmen-
te, mas só retorna, se retorna, um ano depois, enquanto o
mal vive e revive em cada canto escuro, nos focos naturais e
abundantes, na pessoa mesma de cada morador, ontem como
hoje.
O problema sanitário continua insolúvel no sertão, pois
êle tem sua base principal na localização das fezes huma-
nas, .questão sutil e incompreensível para os nossos ser-
tanejos.
Os autores especializados recuam, neste particular, até
Moisés, chefe de um povo errante, sendo um dos primeiros
a escrever regulamentos sanitários para a acomodação dos
resíduos humanos. É verdade, pondera Haiser, que o guia
dos antigos judeus nada sabia de germes de moléstias, mas
aprendera por experiência própria que se não mantivesse
limpo o acampamento seu povo adoeceria. Quantas molés-
tias vêm da poluição do solo? Inúmeras. O autor citado,
grande sanitarista americano, enumera algumas: opilação,
desenteria, cólera, febre tifoide, etc. Ninguém se lembraria,
acrescenta, de atirar no quintal uma substância que soubesse
ser venenosa, nem a deixaria em casa, a descoberto; e no
entanto os detritos humanos são mais perigosos do que o ar-
sênio ou a estricnina, e mil vêzes mais fáceis de ser arrasta-
dos para os depósitos dágua potável. ou postos em contacto
com os alimentos do que qualquer veneno vegetal ou ani-
1 - 24 542
98 ARTUR PASSOS

mal. Daí, também, em razão da poluição dos terrenos, as inú-


meras pessoas nas zonas rurais, principalmente as crianças,
cheias de uncinária, isto é, cheias de lombrigas ou vermes
intestinais. Quem anda descalço, como o nosso homem do
campo, está sujeito a contrair a uncinaríase, porque pode
mais fàcilmente pisar em lugares contaminados de dejeções
humanas. Se tem anemia, é porque está cheio de vermes
intestinais. A moléstia é curável, afirma o eminente autor
que vou acompanhando, no que convém ao meu assunto. O
mais difícil é evitá-la, pois o povo do mato polui a terra com
os excretas, como os irracionais, e não acredita que isso seja
um mal sem medida e conta. Os doentes, não se sabe bem
por que, comem terra, talvez por conter ferro, a terra, sen-
do um dos melhores remédios da anemia.
Supõe-se ter sido a uncinária trazida para o Novo Mundo
com o tráfico dos escravos. Vivem os parasitas, as uncinárias,
muito bem e por muito tempo no intestino delgado, cau-
sando estragos terríveis; mas não podem se multiplicar lá
dentro. Morrem ao fim de seis ou sete anos, ficando o paci-
ente livre dêles, se não ocorrer nova infeção. Os vermes
põem ovos em quantidade extraordinária, chegando a dez
milhões de uma só vez. Se êsses ovos, ao serem expelidos com
as fezes, caem em terreno quente, úmido e escuro dentro de
um ou dois dias se transformam em embriões microscópi-
cos, que ràpidamente adquirem orgãos de digestão e vão de-
vorando o que encontram ao seu alcance- animal ou vegetal.
Depois de mudar de pele pela segunda vez, começam a se
agitar e podem então explorar o terreno, num raio de dez
centímetros, mais ou menos. Se não morrem de calor ou frio
podem subir por qualquer superfície vertical e se por ventura
encontram uma folha de capim, ficam alí, firmados sôbre a
cauda, como morcêgo, semanas e semanas esperando paci-
entemente o momento de se agarrar a um pé descalço. Por
aí sobem e se metem pele a dentro com rapidez assombrosa.
Vamos repetir a advertência: quem anda de pé nú ou
descalço está sujeito a contrair a uncinaríase, porque pode
mais fàcilmente pisar em lugares contaminados de dejeções
humanas.
LENDAS E FATOS :gg
Assim, o geito é fazer com que, nas vilas, ncis povoados,
nas fazendas , sítios e roças, cada casa, cada família · tenha
a sua latrina apropriada e só se sirvam dela, pois assim
acabariam não só com a opilação como também com a febre
tifóide, a desenteria e outras doenças intestinais.
A malária, entanto, é a doença suprêma entre tôdas as
doenças tropicais.
É a mais · persistente, a mais destruidora, a mais es-
palhada e a mais difícil de controlar. Ela prospera em uma
dilatada zona a ambos os lados do equador e assume vas-
tas proporções, que se manifestam em grandes perdas eco-
nômicas e alto tributo de vidas humanas. É um mal peculiar
aos vales, lagos e pântanos, que depaupera, abate e dizima
os habitantes dessas regiões, pois malária quer dizer
"mau-ar", assim denominada em 1753 pelo italiano Torti,
que a chamou de mal dos pântanos, veneno dos paúes, febre
palustre, febre da montanha, febre tropical, febre intermi-
tente, febre do campo, ou simplesmente - febre. Em época
remota chamaram-na ou classificaram-na como febre quo-
tidiana, terçã e quartã, diferenciação de tipos que ainda hoje
permanece: na forma quotidiana é o ataque diário, na terçã
ocorre de dois em dois dias, e na quartã · com três dias de
intervalo. Os calafrios. que duram uns quinze minutos, mais
ou menos, habitualmente são acompanhados de violentos
paroxismos, como já os tive, por duas vêzes - no sertão;
em criança, na cidade, no declinar da existência. É o está-
gio inicial seguido de febre ardente, que sobe até Um alto
ponto; depois vem profusa transpiração e o infeliz vai re-
tornando gradualmente à temperatura normal, que se man-
tém até ao ataque seguinte.
Depois de muitos anos de trabalho, afinal, em 1893, o
major Ronald Ross descobriu o mesmo tipo de células em
um mosquito anófele, de asas mosqueadas, que o francês
Laveran localizara na Algéria, em 1880, no sangue de um
doente · dé impaludismo, ou de malária, que vem a ser a
mesma . coisa, ·ficando constatado que somente o mosquitO
qué se alimenta do sangue de um malarioso pode transmitir
a moléstia.
100 ARTUR PASSOS

O assunto, que aí fica aflorado, muito me interessa, já


não tanto por mim, individualmente, pois tenho por venci-
do de há muito o estágio probatório da viagem definitiva,
mas por meus semelhantes, por meus numerosos amigos anô-
nimos das plagas amadas do Gurguéia, aos quais, dentre
os poncos que sabem ler e escrever, mandarei "estas mal tra-
çadas linhas", se um dia as puder organizar em forma de
livro.
Por êles é que estou trabalhando êste capítulo- O Vale
do Gurguéa -, que bem poderia ser o "Vale de Lágrimas, da
Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia!
A êles, que nada sabem de medicina preventiva, nem de
higiene, nem de medidas sanitárias, nem mesmo das mo-
léstias da zona, que as têm no corpo enfraquecido e no san-
gue aguado, envio esta mensagem da melhor cordialidade,
indefinível e real como uma consciência!

* * *
O arraial formou-se aos poucos entre 1710 e 1712. Uns
três homens brancos, veteranos das entradas; alguns pre-
tos remanescentes do império negro de Palmares, e uma
dúzia de índios chegados ao aprisco da religião, elementos
heterogênios que a terra e o clima unificaram. Era hábi-
to dos exploradores deixar núcleos aqui, ali, acolá para o
estudo dos terrenos dominados e abertura de roças. Consti-
tuía a garantia do regresso e ponto de repouso.
De fato, os pioneiros costumavam formar essas reuniões
de pessoas insuladas pelos sertões controlados no intuito
certamente de criar ambiência à implantação de currais, que
se transformariam mais tarde em povoados e vilas.
A Casa da Torre, desde 1676, havia adquirido grandes
tratos de terras nas margens do Gurguéia, porém só em
1716 cogitaram seus representantes de estabelecer fazendas
e colonizar a região de modo definitivo.
O arraial a que me refiro foi chamado de 1710 até 1740
"Arraial de Garcia d'Avila", tendo capela provisória e trô-
ços de índios mansos vindos do São Francisco. Em 1740 ini-
ciou-se a construção da igreja definitiva, que ainda lá está,
LENDAS E FATOS 101

sendo dêsde logo elevado o arraial à categoria .de freguesia,


com o nome de Freguesia de Santo Antônio do Gurguéia,
nome que perdeu em 1762, sendo a igreja sagrada, com a
primeira missa, em 1746. O local escolhido: - uma planí-
cie, com ligeiros acidentes, na confluência, no Gurguéia, de
dois riachos perenes. A região decorre de extenso planalto,
o da chapada dos Galheiros, que se prolonga e desce, em
plano inclinado, captando as águas de diversas baixas for-
madoras das nascentes dos ribeiros do Arroz e Santa Rosa,
ao norte; Parida e Canabrava, ao sul. O varjêdo, coberto de
panasco, se extende por alguns quilômetros, mais em com-
primento do que em largura, interrompido apenas por inú-
meros arrôios de cursos insignificantes, porém todos ou qua-
se todos exibindo olhos dágua magníficos, sendo os mais ri-
cos de fontes perenes os que ladeiam o antigo arraial dos
Avilas. A zona teria sido preferida naturalmente para fins
agrícolas: assentamento de currais e lavoura de manuten-
ção, pois a terra esflorada patenteia extensos arêais. Talvez
ainda por ser uma esplanada, menos exposta às emboscadas
dos selvagens, que então infestavam as margens do rio pon-
tilhadas, para o sul, de penedias abrutas, próprias às cila-
das dos donos naturais da terra. No entanto, a vegetação à
beira dágua, em qualquer quadra do ano, é alterosa e viren-
te, sendo de notar, pelos rebancos do Gurguéia, gigantêscos
gameleiros, contemporâneos alguns, talvez , dos desbravado-
res. Nas baixadas, ao pé dos morros, pelos capões, por todos
os pontos por onde predomina o panasco lá estão, aos gru-
pos ou dispersos, os utilíssimos cajueiros, que proliferam ao
léu e frutificam em abundância, sendo um acontecimento
local a safra de seus frutos, que se prolonga de agôsto a no-
vembro, anos mais, anos menos, de acôrdo com os bons ou
maus invernos.
Mesmo nas chapadas contornantes, marginando as ve-
rêdas, que as separam em alamêdas tracejadas a êsmo, ou
nos juremais que povoam as cumiadas dos planaltos, em
pleno agreste, abundam os chamados cajuís, minúsculos fru-
tos agradáveis à vista e ao paladar. Entre os arbustos são
dignos de registro as murtas de várias qualidades, · que C<>'-
brem as cabeceiras dos córregos e contornam os morros,
102 ARTUR PASSOS

$endo a raínha delas a chamada "Maria Preta", cujo fruto;


çiesenvolvido como o do murici da praia, é dôce como .o mel
silvestre. Com as primeiras chuvas, em setembro, elas se
cobrem de flores, como um veu de noiva, e como se situam
por acaso, ao nascente, à feição das brisas, aromatizam os
campos e a pequena cidade, por algum tempo, sobretudo à
noite.
Todos os arredores, mesmo os mais afastados do rio,
cujas margens, com pequenas interrupções, são guarnecidas
de bugi, entrelaçado, formando extensos renql.!es umbrosos
e cheios de mistérios, todos os arredores ostentam, pela pla~
nura amena, como ilhas de verdura, bastos moitêdos com-
postos de numerosas àrvores que, à distância, dão ~ paisa.
gem ambiente perspectiva graciosa e desalterante, particular-
mente na quadra mais quente do ano. E de parte a parte,
em geral, pelos declives fortes , pelas escarpas íngremes, pelo
sopé dos cômoros, rio acima, rio abaixo; pelas margens dos
ribeiros e pelos taboleiros amplos, verdejantes carnaubais, de
palmeiras esguias e alterosas, em grupos compactos, em
longas fiadas ou dispersos, de porte elegante, fronde herál-
dica e dominadora.
Na cidade, no perímetro urbano, há muitos anos culti-
va-se a palmeira conhecida no litoral sob o nome de "côco
da praia".
Não obstante o município situar-se afastado do Atlân-
tico cêrca de 800 quilômetros, a palmeira litorânea ali se
aclimou muito bem, destacando-se pelo viçoso porte e abun.::
dante produção. Observado do cimo das eminências circun-
dantes - do ·môrro do Pinga, do morro do Apaga-fogo, da
serra de São Camilo ou do alto da ladeira do Manopla -,
o palmeiral dos muros e quintais das duzentas casas da
cidadezinha, dourado de sol e batido de vento , constitui agra:.
dável panorama.

* * *
Em 1740 contava a freguesia com um território de du.;
zentas léguas de circunferência, 890 pessoas adultas e 63 fa•
zendas de gado vacum e cavalar. Vinte dois anos depois, em
1762, deram-lhe a categoria de vila e o nome de Jerumenha,
LENDAS E FATOS 103

que é assim que se chama o forte do tempo da moirama


plantado à beira do rio Guadiana, rio que nasce em Espa-
nha e corre por 207 quilômetros em território português, ser-
vindo de limite entre os dois paises peninsulares.
Instalou-a pessoalmente o primeiro Governador do Piauí,
João Pereira Caldas, que esteve à frente da Província de 20
de setembro de 1759 a 21 de novembro de 1772. Foi êste go-
vernador quem deu à então vila da Môcha o nome de Oeiras
do Piauí, "em homenagem ao primeiro ministro de Estado
Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, depois
marquês de Pombal", e à Província o de Capitania de São
José do Piauí, "para que no tempo futuro fique sendo inde-
level à .memória dos contínuos benefícios, com que a inata
piedade e paternal providência de el-rei nosso Senhor está
perenemente favorecendo esta Capitania, porque dêste modo
compreenderão mais fàcilmente os vindouros, que o redentor
dêste país, foi el-rei, D. José, o primeiro, nosso Senhor".
Recebeu o fôro de comarca em 1874, tendo o privilégio de
cidade em 1920.
Lembra o saudoso Dr. Sebastião Martins, no preâmbulo
de seu livro, "Dados Genealógicos da Família Rocha", que êste
imenso têrmo (o de Jeromenha) envolvia grande parte da
bacia do rio Parnaíba, notadamente grande parte da bacia
do Gurguéia, do Uruçui Preto (antigo rio Farinha), e do
Piauí; tôda a bacia do Itaueira, do Prata e do Esfolado.
Bertolínia, Manga, que teve sua sede transferida para Flo-
riano; Bom Jesus, São Raimundo Nonato (antiga freguesia
das Confusões), Caracol, ·canto do Buriti, Uruçuí, Ribeiro
Gonçalves, Guadalupe, Amarante, Regeneração e Itaueira
são municípios constituídos, parcial ou totalmente, de ter-
ritórios que pertenceram ao antigo têrmo de Jeromenha.

* * *
O destino estava traçado em relação a "um país novo
onde os gados se multiplicavam em liberdade, pastando a
herva, que atestava o vinco dos ribeiros em vastos traços
verdes, na planície dourada de sol".
A terra, ademais, não se prestava para a lavoura de
cana, que dominava Pernambuco e o Recôncavo da Bahia.
104 ARTUR PASSOS

Já se dizia, com inteiro conhecimento de causa, que o gado


vacum dispensava a proximidade da praia, pois como as ví-
timas dos bandeirantes a si próprio transportava das maiores
distâncias, e ainda com mais comodidade; dava-se bem nas
regiões impróprias àquela cultura, quer pela ingratidão do
solo, quer pela pobreza das matas, sem as quais as fornalhas
não poderiam laborar; pedia o gado pessoal diminuto, sem
traquejamento especial, consideração de alta valia num país
de população rala; quase abolia capitais, capital fixo e cir-
culante a um tempo, multiplicando-se sem interstício; forne-
cia alimentação constante, superior aos mariscos, aos pei-
xes e outros bichos da terra e água usados à beiramar; ainda
o sal era encontrado com suficiência nos numerosos barreiras
dos sertões, afirma cronista consciencioso.
Era a zona característica que liga o alto São Fran-
cisco ao alto Parnaíba, que por isto mesmo se transformou
em imensa fazenda de criar, dividida apenas por nomes par-
ticulares, marca, sinal, divisa e ribeira, o que se fez à propor-
ção que as necessidades de domínio e posse se impunham: o
estado caótico no comêço; depois-um arremedo de casa-gran-
de , com os vaqueiros e agregados à parte.
O gado vacum era assinalado em ambas as orelhas -
a esquerda para a éra, comum em cada ribeira; a direita
para o sinal particular de cada proprietário.
Na ribeira do Gurguéia, cuja característica sempre foi
um S tatuado a fogo na poupa ou parte traseira do animal,
a era do gado vacum, na orelha esquerda, continua a ser
observada da maneira segu:nte: úa mossa por baixo, 1; for-
quilha na ponta da orelha, 2; troncho, 3; duas mossas por
baixo, 4; duas mossas por cima, 5; orelha inteira, 6; canzil
por baixo, 7; levada por baixo, 8; palmatória (úa mossa por
cima e outra por baixo, na ponta da orelha), 9; brinco, 10.
A era do gado vacum, através da orelha esquerda, só
se refere a um decênio. Uma rês de 1910, por exemplo, che-
gando a 1920 está de éra encontrada, devendo ser vendida ou
abatida para o consumo. É a nossa matalotagem.
Em 1857, de acôrdo com a lei provincial n.o 493, tornou-
-se obrigatório o registro, em livro especial, de tôdas as
marcas usadas pelos fazendeiros piauienses para a ferra do
LENDAS E FATOS 105

gado, com a declaração da ribeira, morada e nome do criador.


As reses encontradas sem as divisas obrigatórias são tidas
e havidas como "bens do evento", e como tais vendidas pelo
fisco, em hasta pública.
Foi assim que se criou a civilização do couro, pois o
gado dominava de cima a baixo.
Todos os móveis e utensílios da gente rural eram de
couro: a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão
duro e, mais tarde, a cama para os partos; de couro tôdas as
cordas; as borrachas para carregar água, o alforge para
levar comida; os arreios, a maca para guardar roupa, a mo-
chila para milhar o cavalo, a pêia para retê-lo, quando em
viagem; a baínha da faca do quarto e da perneira; as broa-
cas e os surrões para depósito de cereais, a roupa de entrar
no mato, os banguês para cortume ou para apurar sal, tudo
era de couro . E mais : para a construção de açudes o ma-
terial de atêrro era e é ainda hoje, no sul do Estado, levado
em couros puxados por juntas de bois, que calcam a terra
com o seu pêso. Em couro ainda hoje é pisado o fumo para
o nariz, lembra, com acêrto, um cronista anônimo.
Era o ciclo do vaqueiro rude e andaz, do homem primi-
tivo endurecido no labor quotidiano do pastoreio. A êsse he-
rói cabi.a amansar os bizerros, curá-los das bicheiras, quei-
mar alternadamente os campos de agreste na estação apro-
priada, extinguir as onças, cobras e morcêgos, conhecer as
malhadas escondidas pelo gado para ruminar gregàriamente,
abrir cacimbas e bebedouros, examinando atentamente as
vacas que estavam próximas a ser mães, recolhendo-as ao
cercado da fazenda, evitando que algumas, como costumam.
escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram
de varejeiras.
O contrato entre o vaqueiro e o patrão estava na tradi-
ção - cinco anos. De quatro crias fêmeas cabia-lhe uma,
assim em relação aos machos, nunca vindo ao laço mistura-
dos os sexos, levando à partilha futura os excedentes. De
dez crias uma era do dízimo . Se a fazenda era pequena, le-
vando à partilha, de junho a junho, que é o ano do vaqueiro,
apenas trinta crias, o vaqueiro tinha direito a uma mata-
lotagem, sempre uma vaca de éra encontrada; se dava ses-
106 ARTUR PASSOS

senta crias, duas eram as matalotagens, e assim sucessiva-


mente, de trinta em trinta crias mais uma rês velha para a
manutenção do vaqueiro e sua família, pois nenhum seria
aceito ou admitido no estado de solteiro ou amancebado.
Receber a responsabilidade de uma fazenda montada, ou
o encargo de montar nova fazenda, era uma distinção, que
muito recomendava o escolhido, pois o vaqueiro só o era,
em verdade, por tendência e vocação. Era uma profissão ale-
gre, embora trabalhosa e cheia de perigos. A tarde, tôda
a família saía para o terreiro, logo que presentia o regresso
do homem, cantando à frente das manadas.
Tinha leite à vontade e qualhada para comer com fari-
nha, ao lado da espetada de carne "gorda, frescal e cheirosa".
E ainda podia pescar ou caçar à noite, de cachorro, ou de
dia, nos domingos e dias santos de guarda.
O filho de um vaqueiro, logo que tomava estado, bus-
cava uma fazenda para continuar a profissão de seus maio-
res, zelando o gado vacum como o cavalar, que se lhe confia-
va. ~ste era e é muito mais trabalhoso no trato do campo
ou do curral. Requer treino, sêja para os poldros ou poldras,
de sela, cabresto e pêia. Os poldros sobretudo, que serão os
quartaus, os futuros "fábricas" da fazenda.
Mas além das matalotagens enumeradas, o patrão zelo-
so e compreensivo fornecia mais uma ou duas por ano para
custeamento das vaquejadas, da limpeza do páteo, estradas
e vaquejadouros adjacentes, inclusive aceiramento dos cer-
cados na época das queimadas.
Todavia, os couros dessas rêses não poderiam ter outro
fim, além do a que se destinavam: o aparelhamento da fa-
zenda em cordas de laçar, <!abres tos e pêias.
Nem sempre, todavia, as coisas corriam suaves e ame-
nas entre patrão e empregado. Naturalmente havia maus
vaqueiros, sem senso de responsabilidade e, às vêzes, desones-
tos, o que era raro.
Patrões faltosos, sugadores do suor do pobre; faltosos,
conscientemente, no cumprimento de seus deveres até no
pagamento das partilhas anuais, havia de sobra, correndo
pelo sertão, a êsse respeito, lendas arrepiantes. Um exem-
LENDAS E FATOS 107

plo apenas. Certo criador, uzurário, dava-se ao vício de nun-


ca atender honestamente aos encargos de suas fazendas. Era
fama que, laçadas as crias à partilha destinadas, alegava
qualquer desculpa e ia ficando com tôdas. "Sujeito estradei-
ro", disse Hermínio Castelo Branco. Péssimo partilheiro, cha-
mavam os matutas de meu rincão. Mas certa vez o ano lhe
saíu bissexto, com a vinda de um homem estranho, do lado
maranhense, que se fêz acompanhar da mulher e de um
irmão. Era recomendado de um primo do criador como pes-
soa de confiança. Passaram-se os meses. Chegaram as chu-
vas benfazejas. O sertão transmutou-se. Vieram as vaqueja-
das, em junho. Separadas as crias, como de praxe, deu-se
início á partilha, à base do ajuste, aliás muito a contragôs-
to, pois o patrão era useiro e vezeiro no enganar os vaqueiros
de suas fazendas. tratadas e multiplicadas por escravos, que
se ·fôram nas asas da Lei Aurea. "Esta não", disse, de papel
e lápis em riste, acomodado num tamborete à porteira do
curral. Era o primeiro laço; a primeira sorte devida ao mara-
nhense. ~ste, com as orelhas quentes, troca um olhar de in-
teligência com o irmão, que o auxiliava, e os trabalhos con-
tinuaram. "Esta não"; "esta não"; "esta não"; "depois con-
versaremos" , ia dizendo o canalha, e as reses ferrava-as tô-
das para a fazenda. Compreendendo o vaqueiro haver caido
às ·unhas de Caco, fêz-se de Hércules. Diz qualquer coisa ao
irmão e salta, prestes, a cêrca do curral. Retira do fogo a
marca de sua propriedade, terrivelmente rubra, e assenta-a
vigorosamente às costas do "coronel", que se contorce num
uivo de dor.
E o criminoso, previamente preparado, foge com a mu-
lher e o irmão, deixando o trapaceiro indelevelmente tatuado
a fogo.
* * *
Uma das obrigações do homem encourado: "queimar os
campos".
Dizia-se que na zona do agreste, logo depois da água, o
fogo era o elemento mais poderoso na renovação dos pastos
nativos. Os que se batem, em teoria, no presente, contra as
queimadas, por meras conjeturas, ignoram por certo que só
pelo fogo, posto no campo em tempo oportuno, será pos-
108 ARTUR PASSOS

sivel, no agreste, a conservação da precária criação extensi-


va. É ponto incontroverso entre criadores e vaqueiros. Duas
vêzes por ano, de fato, podem ser feitas com evidente êxito:
em maio, no início do verão; em setembro ou outubro, depois
das primeiras chuvas. Procuram os sertanejos os pontos pro-
positadamente resguardados há alguns anos, contornam o
"crú", pelo lado do nascente, e batem o isqueiro. Uma peque-
na chama, uma centelha, vacilante a princípio, logo crepi-
tante, silvando doida e rijamente batida de vento, se alteia·
e alarga, ampliando o raio de ação. Momentos depois a cha-
pada se transforma numa imensa labareda rugidora. Gros- .
sos bulcões de fumo e cinzas se elevam toldando o azul do ·
firmamento, velando, num halo de tristeza, a face rutilante
do sol. E o incêndio cresce e estrondeia como a voz uníssona
de cem canhões, varrendo o campo, derrubando árvores, sa;.
cudindo a terra em vibrações prolongadas de minas em ex-
plosões.
Empolga e assombra o espetáculo das queimadas!
Já então os vaqueiros tomaram-lhe a vanguarda, mon-
tados e armados como generais que chefiassem grandes com-
bates campais. Separados, expectantes, rigorosamente encou-
rados, avançam céleres entre a fumarada tangida de fortes
rajadas, aguardando a passagem em fuga das caças ocultas
no capinzal em chamas. As emas e seriemas, de permeio,
atraídas, cruzam na colheita abundante de réptis, e no al~,
em constantes evoluções, dando a impressão de aviões a
observarem a marcha insidiosa de cruenta batalha, pairam
dezenas de gaviões fartos de miríades de animálculos, que
fogem espavoridos da fornalha desmedida. Desaparecem os
enxames daquêle ambiente irrespirável, e os pássaros, ton-
tos, abandonam os ninhos. imigrando para os traços verdes
e convidativos dos baixões distantes. A noite, refletindo, alto,
na abóbada do firmamento, o clarão da queimada pode ser
visto às vêzes de léguas e léguas, e nada mais atraente que
a extensa e ígnea coluna, comprida de quilômetros, a galgar
serras distantes, em escalada luminosa; avançando e paran-
do, rastejando ou se elevando até vencer os últimos obstácu-
los oferecidos por imaginário inimigo, que parece recuar,
combatendo.
LENDAS E FATOS 109

Nada escapa à ação destruidora da queimada, que só se


detém ao atingir algum refrescante ribeiro.
A primeira vista. no dia seguinte, a terra por onde
crepitou, apresenta quadro desolador: galhadas pendentes,
troncos que ardem silenciosamente, cinza a cobrir a vasti-
dão intérmina da extinta queimada. Mas se foi feita propi-
ciamente, um mês depois ou pouco mais, aquêles combustos
~ampos são um jardim em perspectiva. Um tapête verde-
-escuro cobre a terra; os arbustos bracejam alegremente; as
árvores, por encanto, se vestem de virente folhagem, e as
flores silvestres, em botão, pendem graciosas. O gado, vacum
e cavalar, movimentando e colorindo a paisagem, acorre das
mais afastadas malhadas, seduzido pelo cheiro característico
da queimada e pela pastagem renovada, assiduamente visi-
tada pelos vaqueiros das redondezas, que ali revêem, no pas-
so tardo dos "fábricas", os rebanhos reunidos e fartos. Os pás-
saros, de retôrno, esvoaçam, saltitantes, renovando os ninhos
e enchendo os ares de alacres harmonias. As abelhas, ocul-
tas nos cortiços, muitos dos quais destruídos, recomeçam a
dourada faina, enchendo o espaço do zumbido indistinto e
vago de suas asas multicores.
E aquêle largo trecho do sertão, que antes da queimada
era apenas esconderijo de caça e refúgio de cobra -, en-
tranqueirado, intransponível e morto - , reencontrou-se,
transbordante de vida; movimentou-se de luz; cobriu-se de
flores.
* * *
Na elevação da freguesia de Santo Antônio do Gur-
guéia à categoria de Vila, com o nome de Jeromenha, man-
dou el-rei que se desse uma sesmaria de uma légua de terra
em quadro, "correndo pelos quatro lados da igreja, para admi-
nistrarem a dita data os oficiais da Câmara, e para do seu
rendimento fazerem as despesas e obras do Conselho, aforan-
do aquelas partes da mesma terra que lhes parecer conveni-
ente, contanto que observem o que a Ordenação do Reino
dispõe a respeito dêstes aforamentos".
Esta dádiva tinha sua razão fundada na pobreza eviden-
te das vilas criadas pela carta régia de 19 de junho de 1761.
como se verá.
110 ARTUR PASSOS

" O aforamento se dará", acrescentava, "quando coexis-


tirem a conveniência de radicar-se o foreiro ao solo e a de
manter-se o vínculo da propriedade pública".
A História da Propriedade Territorial do Brasil pode
ser dividida em quatro períodos característicos: 1) das ses-
marias; 2) das posses; 3) da lei de terras de 1850; 4) e re-
publicano, podendo-se já agora acrescentar o resultante do
Decreto n. 0 28.840, de 8 de novembro de 1950, o qual inte-
gra ao território nacional a chamada Plataforma Submarina,
reconhecendo que ela, na parte correspondente ao territó-
rio continental e insular do Brasil, se acha integrada nêsse
mesmo território, sob jurisdição e domínio exclusivo da
União Federal. O Coronel Lira Tavares, autor do livro "Terri-
tório Nacional - soberania e domínio do Estado" - desen-
volve o tema, que é dos mais interessantes, dêsde o sistema
adotado por D. João III para a colonização do Brasil, que foi,
como se sabe, o do regime feudal das doações. Efetivamente,
o território brasileiro foi dividido, arbitrariàmente, em 12
capitanias, que não eram mais que 12 feudos perpétuos, doa-
dos pelo rei a vassalos ilustres, a fidalgos da casa real por-
tuguesa, aos quais se assegurava a prerrogativa de conceder,
de sesmaria, as terras maninhas das capitanias, "sem fôro,
nem direito algum, a não ser o dízimo de Deus ou ao mes-
trado da Ordem de Cristo" .
O regime das sesmarias, iniciado em 1530 e encerrado
em 1822, tumultuou a política das doações, que tinha o obje-
tivo declarado de evitar o que na prática realizou à larga-
o latifúndio.
Outra sendo marcadamente a finalidade dêste Capitulo,
apenas acrescentaremos a razão da dávida de uma sesmaria
às Câmaras, a prescrição de um dos numerosos alvarás sô-
bre terras da colônia americana e a maneira interessante de
as demarcar, segundo dados colhidos no valioso trabalho do
Sr. Coronel Lira Tavares. "Como constasse ao príncipe re-
gente que algumas Câmaras do Brasil eram tão baldas de re-
cursos que não tinham rendas para suprir as suas despe-
sas, estabelecia que, na distância de cinco léguas compreen-
didas no contôrno das cidades e vilas se desse a cada Câma-
ra pobre um dado de quatro léguas em quadro, para que
LENDAS E FATOS 111

os respectivos oficiais as administrassem e, com o rendimen-


to, fizessem as despesas de obras do Conselho".
Atendiam as demarcações a três regras principais - 1)
"As demarcações serão feitas seguidamente, começando umas
nas ·quadras das outras, sem se deixar terrenos intermediá-
rios ou devolutos, salvo somente as estradas, serventias ge-
rais, as fontes públicas, inteirando sempre a quantidade de
terras concedidas ainda que, pela conformação e situação,
não possa haver quadro perfeito e regular; 2) para cada
meia légua se contarão 1. 500 braças. No ato da medição se
especificarão, além das marcas, as balizas perduráveis que
se encontrarem no terreno, como também as vertentes, os
rios, os morros e semelhantes, e se fará declaração das cam-
pinas, serras e matas virgens e de tôdas as qualidades notá-
veis que ao juiz parecer que podem assinalar a sesmaria;
3) finda a divisão e demarcação, fará o piloto uma planta
do terreno, a qual será guardada na Secretaria da Mesa do
Desembargo do Paço, para, em todo tempo, por meio dela se
poderem decidir as dúvidas que surjam". Convém lembrar
que êste sistema foi adotado pelo alvará de 25 de janeiro
de 1809, pois a medição anterior, das sesmarias, era feita por
meio de ampulheta (relógio de areia), no qual se regulava
a extensão pelo tempo decorrido no percurso, o que acarre-
tava o inconveniente de ampliar o~ reduzir a légua de ses-
maria.
A carta régia de 3 de fevereiro de 1810 mandou adotar
o sistema de medida por meio de "corda e rumo de agulha" .
O valor da légua de sesmaria nunca foi, porém, objeto
de definição legal.
Sustentam uns que a légua correspondia a 4 milhas,
com base em dados extraídos nas Ordenações (Livro I , Tí-
tulo 91 e Livro III, Título 55 - § 6) .
Pimentel e Correia Teles, no Di gesto Português (cita-
dos por Lira Tavares) consideram a légua de sesmaria com
a extensão de três mil braças. O artigo 5.o, do alvará de 26
de janeiro de 1809, ao qual já nos referimos, estabeleceu
que, para cada meia légua, devem ser contadas 1 . 500 braças,
o que passou a ter valor oficial, muito embora isso só se des-
112 ARTUR PASSOS

se no período final do regime das sesmarias. Antes disso, a


légua tinha o valor que se lhe atribuía, de acôrdo com a épo-
ca e o uso, em cada capitania.

* * *

"Nada se sabe sôbre a presença de Francisco Dias de


Avilano Piauí", afirma à página 35, o autor ilustre do "Ro-
teiro do Piauí", livro de inestimável valor histórico, merecen-
do por isso mesmo sinceras manifestações de simpatia den-
tro e fora dêste Estado. Todavia, com o único intuito de co-
laboração, se torna necessário uma pequena digressão em
tôrno da Casa da Torre e de alguns de seus senhores, inclu-
sive os Franciscos, que por aqui perlustraram e deixaram
tradição ainda bem viva. A êsse respeito, o que sabemos, em
primeiro lugar, é que a Casa da Torre contou, pelo menos. na
fase do devassamento, com três pioneiros daquêle nome.
O seu fundador -, vamos apenas relembrar -, Garcia
de Avila, chegou à Bahia com Tomé de Souza em 1549;
exerceu as funções do cargo de almoxarife, de comêço, ini-
ciando, um ano depois, ou seja em 1550, sua atividade de
pecuarista, como se diz hoje, com apenas duas vacas im-
portadas do Cabo Verde, e adquiridas por quatro mil réis.
Desta semente fecunda haveria de nascer e prosperar a fa-
mosa torre plantada no cimo de Tatuapara, no litoral, a
umas doze léguas ao norte de Salvador, com duas faces -
uma virada para o mar, vigiando piratas, ou orientando o
poder público, mais tarde, nas repetidas incursões dos ho-
landêses, ou ainda acolhendo e revigorando os exércitos que
se batiam contra os batávos, como fêz, em 1637, com o
conde de Bagnuolo; a outra, para o desconhecido, para o
sertão infreqüentado, ignoto e temeroso. 1!:ste Avila pioneiro
faleceu em 1609, aos noventa anos de idade. E como o re-
gime era então o do morgadio, só alterado em 1835, em
razão da lei liberal das heranças equitativas, golpeando de
morte os latifúndios seculares, tôda a fortuna, a falta de
filho varão, foi deixada a um neto - Francisco Dias de
Avila, o primeiro dêste nome, filho de Diogo Dias, que era
LENDAS E FATOS 113

neto por sua vez do famoso Diogo Alvares Correia, o Ca-


ramurú, e de sua mulher Catarina Paraguassú, o mais ve-
lho casal do país, afirma Pedro Calmon em "História da
Casa da Torre", da qual me estou servindo para êstes opor-
tunos esclarecimentos.
Morto Francisco Dias de A vila, segundo senhor de Ta-
tua para, deixa a seu filho Garcia de Avila todos os have-
res, já vultosos, que soubera não só conservar, mas de mui-
to ampliá-los. ~ste segundo Garcia de A vila, por sua vez,
ao desaparecer, transmite o imenso patrimônio da família
ao seu filho Francisco Dias de Avila, chamado o "segundo",
nascido em 1646, precoce caráter de lutador em corpo fa-
nado e sêco: quase um anão, no retrato esboçado por um
zangado e natural oponente da Casa da Torre e de seus di-
tadores - o padre Martin de Nantes. Mais tarde poderia
alguém alegar que o quarto senhor da Torre "era muito
nas entradas dos sertões do Piagohy, por onde acompanhou
seu pai, o Mestre de Campo Garcia de Avila, quando foi êste
bater em guerra justa os bárbaros, porque pelo roteiro que
tinha era conhecedor dos confins do Maranhão, até onde
naquela jornada chegou o dito seu pai".
Resumindo fortemente as páginas do eminente histo-
riador baiano, daremos mais alguns esclarecimentos "sôbre
a presença de Francisco Dias de Avila no Piauí". Diz o au-
tor citado em nota sob número 70, que a viagem ao Piauí,
de Garcia de Avila, -, o segundo dêste nome, está visto,
antes do oficial descobrimento da nova capitania, ou do ter-
ritório que a constituiria, foi talvez em 1672 ou 1673. Martin
de Nantes confundiu os dois Avilas: a morte de Francisco
Dias de Avila narrada na Relation era a versão que se dava
naquêle tempo à morte de Garcia de Avila, o segundo do
nome, como já acentuei. O capuchinho chegou ao São Fran-
cisco em 1671. :t;:ste Francisco Dias de Avila, cuja espada
caia-lhe de rastro do boldrié de couro, enorme, calçado de
sólidas botas, couraçado de algodão, "anão armado de con-
quistador" foi o que concebeu o plano da conquista defini-
tiva do Piauí, tendo a Casa da Torre iniciado o povoamen-
to de seu território entre 1679 e 1680, vindo o desbravador
certa vez pela "estrada velha", que então comunicava o
8 - 24 1>42
114 ARTUR PASSOS

Piauí, com a Bahia, começando perto do lugarejo de nome


Sobrado (certamente a primeira e principal fazenda de Do-
mingos Afonso Sertão, a 40 léguas acima de Joazeiro, à mar-
gem esquerda do rio São Francisco) , e seguindo o curso do
rio Piauí, que atingia, conforme suas diversas direções, 0ra
em sua nascente, ora mais abaixo, como assevera o botân:co
alemão Martius em Através da Bahia, revisto por Calmon.
Para o norte estava o sertão plano, quase homogêneo,
a perder-se de vista o vinco dos ribeiros em vastos traça-
dos verdes, na planície dourada de sol. Antes, em primeiro
plano, partindo do Salitre, visita as várzeas de Parnaguá, que
se abriam numa moldura de vertentes azuis; e o rio Gur-
guéia escorrendo por entre sombras de montes, sinuoso e
crespo. Os conquistadores avançaram recompensados da
imensa aventura pela novidade dos panoramas. Assim con-
seguiu Francisco Dias de Avila alcançar de um lado o rio
Parnaíba, por taboleiros e arêais, do outro os caatingais
do Canindé, e, pelo Maranhão a dentro, o Mearim, quase até
a baixada, onde os aluviões prenunciavam o mar. Daí a ra-
zão por certo da obtenção e posse, com o parente Bernardo
Pereira Gago, de vinte léguas de terras de sesmarias em
quadra nas margens do Gurguéia, tomando outra entre o
Paraim e aquêle rio, avançando ainda pelo vale do Tran-
queira e ao comprido do Parnaíba, posses confirmadas de-
pois em seu favor e no de parentes e sócios - Domingos
Afonso, Bernardo Pereira e Julião Afonso.
Nos últimos anos do século 17 desaparece o pigmeu
terrível, calculando o citado padre Nantes ter deixado Ta-
tuapara com um rendimento de cinqüenta mil libras por ano.
Assim um novo senhor toma conta da Torre -, desta
vez um Pereira: Francisco de A vila Pereira -, e a vida
continuou.
Mas ainda a respeito do "nada se sabe sôbre a presen-
ça de Francisco Dias de Avila no Piauí", podemos aduzir o
seguinte, sempre a título de colaboração: o território do
Piauí já era conhecido em 1764, tanto assim que se mandava
fazer uma entrada às aldeias dos Gurguáes, Gurgús ou Gur-
guéa, hoje Gurguéia; que essa estrada foi aberta em cará-
ter oficial, pois a nomeação de Capitão-mar do empreen-
LENDAS E FATOS 115

dimento, como é geralmente sabido, recaiu na pessoa de


Francisco Dias de Avila (Pereira da Costa, pág. 8, da Crono-
logia, citado, aliás, pelo operoso autor de "Roteiro do Piauí").
E mais adiante, na pág. 45: "Jeromenha foi em sua origem
um arraial de índios domésticos trazidos da Bahia por Fran-
cisco Dias de Avila, um dos primeiros exploradores das ter-
ras do Piauí".
Ademais, o nome Avila constituiu uma das enraiza-
das tradições do Vale do Gurguéia, pois o primeiro núcleo
humano ali implantado chamou-se "Arraial dos Avilas", e
há mesmo, desde as comemorações do primeiro centenário
do Grito do Ipirança, em 1922, ua praça da vetusta cidade
com os expressivos dizeres - Praça Dias d'Avila.

* * *
Vivendo do gado e para o gado, o povo do Vale do
Gurguéia até 1888 passava aparentemente com relativa far-
tura, pois a criação expressava, então, quase que exclusiva,
a base econômica da região. Escravos, libertos e agregados
gravitavam à sombra do fazendeiro, que era, no vale, um
arremêdo do senhor de engenho na faixa aristocrática do
açúcar. Ainda nos últimos decênios do império o fazendei-
ro se impunha como um patriarca: homem branco ou apa-
rentemente branco, de respeito, à frente do latifúndio, com
numerosa descendência, aderentes e partidários, a todos em
geral facilitando teto e meios de subexistência. No entanto,
êsse tipo tradicional do bom-senhor, acolhedor e paternal se
transformava às vêzes num demônio crudelíssimo no im-
pôr aquilo que êle chamava a "ordem" no seio mesmo da de-
sordem resultante de problemas locais impostos pela rude
sociedade composta de elementos dissemelhantes - mesti-
ços aventureiros, pretos vilipendiados e índios submissos, mas
por índole retraídos e desconfiados.
Por isto mesmo nada se projetava ou realizava sem o
indispensável acôrdo do patrão, em assuntos de lavoura, ven-
da de gado ou de terra, ou mesmo de mercadorias, como
ainda a respeito de casamentos, batisados, festejos religiosos,
pois tudo dependia da casa grande, onde o padre, hóspede
anual e de categoria, era recebido e homenageado. Até os
116 ARTUR PASSOS

comerciantes ambulantes, vindo todos dos rebancos do São


Francisco, só iniciavam suas atividades depois de ouvir o
fazendeiro, a quem cabia indicar as pessoas dignas, de cré-
dito e pelas quais tàcitamente se responsabilizava. As mer-
cadorias além do mais eram expostas na varanda da casa
da fazenda, à vista do patrão, que indagava dos preços, re-
gateando, defendendo os interêsses de sua gente.
Os pagamentos nunca se faziam à vista. A praxe era ven-
der com o praso de 12 meses. O pagamento tanto podia ser
em dinheiro de contado como em gado de corte, que o ne-
gociante deixava "erando" ou levava logo de torna-viagem.
Houve época em que êsses ambulantes baianos àomina-
vam por completo o comércio de tecidos e miudezas no sul
da província. Nêsse intercâmbio de decênios e decênios mui-
tos constituíram família e ficaram no Piauí.
Com um dêsses "fura-mundo", como eram chamados,
na hora exata da partida, no encilhar da montada e no ajou-
jar das cargas, e o hospedeiro da ocasião, registrou-se a se-
guinte conversação:
- Fêz bom negócio desta vez, meu amigo, pergunta,
amável, o fazendeiro, que assistia aos preparativos da
viagem.
- Regular, senhor Coronel, responde, atarefado.
Recebeu por ventura tôdas as contas do ano pas-
sado?
Falta uma, apenas, e pequena; a dessa velha de côr
que ai está na cadeira de pano.
- Bem. Essa quem paga sou eu mesmo; esta velha
de côr é a senhora minha mãe, disse o fazendeiro, em cujas
veias corria abundante o sangue africano.
A Mãe - Preta, ouvindo o diálogo, chorava de conten-
tamento.

* * *
Sendo assim, como se disse, ninguém poderia ter qual-
quer iniciativa, desde que o trabalho em comum tinha uma
única orientação expressa na ação vigilante do feitor, lugar-
-tenente do latifundiário.
LENDAS E FATOS 117

Até aquela data, na última década do império, nada ha-


via que lembrasse autonomia, impulso original para lutar
e viver por si, individualmente, sem apôio estranho, e sem
tutela .
Depois da abolição por isso mesmo tudo desapareceu,
para mais tarde, serenados os ânimos, a vida retornar a seu
lugar na tranqüilidade vazia do vale.
O patriarca, ainda trêmulo, reunia os destroços e son-
dava a enormidade da catástrofe.
Já não tinha por certo o aprumo da ociosidade, que é
a mãe de todos os vícios, nem o do senhor de senzala, que
gritava e batia, irritado; ou sorria e afagava nas intermi-
tentes amenidades do espírito.
Verificou-se, logo mais, pelo lado material, que a embria-
guês de liberdade a todo transe foi, até certo ponto, pre-
judicial não só ao senhor, como à economia do país, e ainda
aos próprios ex-escravos, que se viram ao léu, sem orienta-
ção e destino. Tinha desaparecido de momento o que, bem
ou mal, mandava e desmandava.
Os pretos debandaram, tontos, incrédulos ainda. Alguns
ficaram apodrecendo, dias e dias, no quarto fatídico do
tronco. Outros, os encarregados do gado, abandonaram os
cavalos selados, amarrados à porta das fazendas. Os dos ro-
çados carregaram com os ferros - enxadas, foices, macha-
dos, etc., e mal tiveram tempo de procurar as mulheres e os
filhos para um banho de sol demorado e confortador.
Construíram os pretos um império, entre o malho e a
bigorna, laminados sem dó nem piedade.
Os pretos realizaram o trabalho material e os esforços
precisos para criar e construir o Brasil, afirma Calógeras.
O que existia até 1888 no vasto território do Brasil foi le-
vantado por êles, e Joaquim Nabuco acrescenta: por trezen-
tos anos (escrevia êle em 1883) o africano foi o principal
instrumento da ocupação e da manutenção do nosso terri-
tório pelo europeu. Seus descendentes se misturaram com o
nosso povo. Onde êle não chegou, o pais apresenta o as-
pecto com que o surpreendeu os seus primeiros descobrido-
res. Tudo que significa luta do homem contra a natureza,
118 ARTUR PASSOS

conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e


edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala
dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégra-
fos e caminhos de ferro, academias e hospitais; tudo, abso-
lutamente tudo, que existe no país, como resultado do tra-
balho manual, como emprêgo de capital, como acumula-
ção de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça
que trabalha à que faz trabalhar. Por êsses sacrifícios sem
número, por êsses sofrimentos, cuja terrível concatenação
com o progresso lento do país faz da história do Brasil um
dos mais tristes episódios do povoamento da América, a raça
negra fundou, para outros, uma pátria, que ela pode, com
muito mais direito, chamar sua. E continua: Suprima-se
mentalmente essa raça e o seu trabalho - e o Brasil não
será, na sua maior parte, senão um território deserto, quan-
do muito um segundo Paraguai, guarani e jesuítico.
O senhor de escravo nada via. O negro era um muar,
lia azêmula, lia besta de carga que andava ereta para render
mais e melhor, e para com mais facilidade do verdugo ser
surrada, vendida e posta fora como carniça.
As negras, muitas e muitas vêzes, acompanhavam os
comboios, tangiam os animais de carga, e enquanto o fa-
ziam, fiavam, andando, balaio de algodão à cabeça e o fuso
rodando, rodando sempre. Os negros enquanto descança-
vam, carregavam pedras para um novo curral, para uma
nova casa, para tirar o material de um lugar e pôr noutro.
Acompanhavam os senhores em viagens festivas, e se a se-
nhora ía também, tinham de correr a bom correr, a par dos
cavaleiros, com um tamborete sobraçado, para a branca
apear-se mais à vontade. Daí a média da vida dos escravos
no Brasil: 25 anos !
Um escravo, no vale do Gurguéia, servia de ponte, como
está em um outro capítulo dêste livro.
Mas o tipo clássico do mau senhor, cruel e covarde, te-
mo-lo em Harriet Stowe. A foto-psicológica foi apanhada no
decorrer de um leilão de escravos, em Nova Orleans: "A ca-
misa, que trazia desabotoada, deixava-lhe o peito descober-
to. Vestia calças côr de rapé, muito enlameadas. Baixo, apa-
rentemente hérculeo, tinha a cabeça redonda, olhos pardos,
LENDAS E FATOS 119

muito grandes, sombreados de espessas sombracelhas ama-


reladas, e cabelos espetados e direitos como cerdas de porco-
-espinho. Mascava um rôlo de tabaco, cujo suco expelia de
quando em quando, com fôrça, pela bôca rasgada e imensa.
As mãos eram grossas, peludas, sardentas, sujas e guarne-
cidas de unhas compridas e mal cuidadas - mais pareciam
martelos de ferreiros".
Era Simão Lagree, dono de uma plantação de algodão
no rio Vermelho.
Dizia o monstro, caminhando de um lado para outro,
entre numerosa assistência e uma centena de infelizes ex-
postos à venda: "Não quero em minha casa negros que de-
clamem, que cantem e que rezem. O seu Deus sou eu. En-
tendem? Estão vendo êstes punhos? São duros como o ferro
e estão aqui para dar cabo da raça negra. Ainda não vi um
que eu não fosse capaz de derrubar de um murro.
Vejam! Apalpem-me os pulsos e vejam êstes músculos.
Tenho a carne dura como pedra. Tudo isto é devido ao mui-
to exercício que faço castigando negros !"
Lagree era um fenômeno. Era realmente o tipo clás-
sico do mau senhor, onde quer que a escravidão desonrasse
a espécie humana.
Todavia, nenhuma página define melhor o sofrimento
do negro, na mineração, na região açucareira ou nas fa-
zendas de criar do que a que se segue, escrita com alma,
com sangue, com sentimento e revolta:
"As instituições sociais eram a reprodução grosseira e
viciada das instituições da península: os feudos, represen-
tados por fazendas e domínios mineiros; a servidão, na es-
cravaria ignara, aviltada pelo tronco e o calabrote. A re-
ligião é o fetichismo, a superstição bronca; a família é um
pedaço de tribo. semi-patriarcal, degradada pela ociosida-
de sôbre o trabalho negro, pervertido pelo espetáculo perma-
nente dos bárbaros tratamentos e castigos infligidos ao es-
cravo. Em tôda a fazenda havia um quarto, uma prisão,
aparelhado com dois ou três troncos, gargalheiras, cêpos, cor-
rentes. Ali apodreciam, invariàvelmente, um ou dois negros.
Pela manhã, ao tempo em que se marcavam as tarefas aos
120 ARTUR PASSOS

outros escravos, êsses que no quarto do tronco espiavam


o crime de haver fugido ao trabalho devorador, êsses rece-
biam a refeição quotidiana, de bolos e açoites, quatro ou cin-
co dúzias, aplicadas com todo o requinte sôbre as carnes
doloridas, inflamadas, sensíveis como uma chaga muitas vê·
zes magoada e renovada.
Levantava-se o desgraçado, bambas as pernas pela
abstinência, trôpegas, adormentadas da posição contrafeita
e dolorosa no tronco, pisados os músculos, emaciado o rosto,
apagados os olhos pelo sofrer acumulado; as mãos, inchadas,
não se fecham, turgidas, luzentes; a sânie transula por en-
tre os dedos abertos; a pele rachou desde os primeiros dias;
as unhas já caíram; as costas estão em carne viva ... O mi-
serável, num desvário de bruto, estende a mão ao executor.
Cai o primeiro bolo, sôa um grito, uivo ou lamento, gemido
violento de tôdas as dores que acordam. E os golpes se re-
petem: é um Ai ! . . . Ai . . . contínuo, como uma vida que
se esfrangalha, uma alma que se esgota. O lamento deses-
perado passa travando os corações, num acento de misé-
ria que traspassa os ânimos; emonera, alucina. Um espírito
justo ao ouvir aquêle grito cinco minutos enlouqueceria. Cai
o madeiro bruto sôbre aquela mão que não suportaria sem
dores intraduzíveis nem mesmo o contato brando e meticulo-
so dos dedos amigos que o quizessem pensar; sôa o bolo, rea-
brem-se tôdas as carnes rachadas, espirra o sangue negro
das pontas dos dedos, centenas de salpicas vão engrossar a
camada nauseabunda, que forma, na parede, uma barra con-
tínua em tôrno de todo o quarto; uma faixa de sangue que
tem espirrado das mãos que, diàriamente, há um século, tal-
vez, recebem ali, àquela hora, a sua refeição de bôlos".
"Calcule-se o efeito de tais costumes sôbre a moralida-
de dessas famílias, que se formam e se desenvolvem ao con-
tato de tais misérias ! ; a qualidade dos sentimentos das gen-
tes que nasceram e se criaram ouvindo todo o dia, à hora
certa, o grito lacinante arrancado pela palmatória, a moer
as carnes já moídas, inflamadas, doloridas. Finalmente, já
se não sabe que é que resta de humano em tais seres. Em
matéria de abjeção e crueza nada lhes é desconhecido. Não
raro a sinha-moça, criada a roçar os molecotes, entrega-se a
LENDAS E FATOS 121

êles, quando os nervos degenerados acordam em desejos ir-


reprimíveis; então intervém a moral paterna: castra-se, com
uma faca mal afiada, o negro ou o mulato, salga-se a ferida,
e enterram-no vivo depois".
"A rapariga, com um dote reforçado, casa com um
primo pobre".
* * *
Era preciso que alguém, preocupado com documentos
l).umanos, e retendo impressões espontâneas da vida no vale
do Gurguéia registrasse algo do que por ali tem ocorrido,
pois nenhum povo pode ter a consciência do seu destino e
a certeza do seu valor, se ignora o seu passado ou, o que
é pior ainda, se não o entende, insinua Pedro Calmon.
O nosso mais antigo historiador observou que os serta-
nejos andam como andavam os índios - uns atraz dos ou-
tros, por um carreiro, como formigas; fumam, frequente-
mente, o mesmo pito -, o cachimbo da amizade -, sobretu-
do nos serões de farinhada. O seu alimento nas viagens lon-
gas ou nas caçadas em grupos, ainda é hoje a mesma "fa-
rinha de guerra" (frito de alforge) dos aborígines. A canôa,
com que passam os rios, é igual à canôa tupi, de uso uni-
versal no Brasil. É a nossa conhecida canôa-côxo, sem ca-
verna, sem quilha, cavada no madeiro bruto, a fogo.
O Dr. Iglesias, em "Caatingas e Chapadões", confessa
ter viajado, Parnaíba abaixo, em uma dessas embarcações,
de maneira singular. Três eram as pessoas: lia remava, ou-
tra esgotava, rezava a última!
Da crença religiosa exagerada e mal compreendida
nasceu, cresceu e prosperou a superstição, oriunda do pa-
ganismo e aceita mais ou menos nas comunidades cristãs, en-
tre povos menos esclarecidos. Daí o ser o sertanejo um ente
crendeiro, que tem mêdo, que se inquieta com a idéia de um
perigo imaginário - o canto de um pássaro, o emborcar
de um calçado, o dizer coisas desagradáveis ao pino do dia.
A mulher sertaneja não passa jamais por cima de um ca-
bresto nem mostra o filho pequenino no sétimo, no décimo-
quinto e no trigésimo dia do nascimento, temendo encontro
fortuito com pessoa de mau-olhar. Por isto mesmo os me-
122 ARTUR PASSOS

zinheiros e feiticeiros gozam de grande influência, sendo a


terapêutica sertaneja a mesma dos índios, embrulhada com
a dos africanos: a sucção das feridas e das mordeduras de
cobras; "rezas - fortes" contra dor de dente e de cabeça;
para levantar espinhela, para curar o ramo, no estupor,
para expulsar o demônio do espírito· dos enfeudados e, so-
bretudo, para facilitar parto, correndo o feiticeiro, com um
ramo de arruda na mão, derredor da casa, pronunciando pa-
lavras cabalísticas; e ainda para curar bicheiras do gado e
até para capar novilhos arred:os. Para ferimento de faca
ou de arma de fogo o primeiro remédio é o caldo, quente
ainda, de um pinto vivo pisado no pilão. Para falta de sono:
travesseiro de farinha frêsca. Do índio guarda o homem
do mato a natural imprevidência, a resignação, a incapaci-
dade de poupança. Não lhe interessa o amanhã, que a Deus
pertence. Conserva do caboclo a atitude habitual de descan-
so, de cócoras; a maneira de trazerem as mães os filhos às
costas ou escanchados no quarto; o geito de àbrirem as pi-
cadas, vergando o mato na direção seguida.
"Comem na cuia; guardam as reservas no jiráu; defu-
mam os legumes - milho e feijão -, como os tupis o fa-
ziam no século I; e a modo dêstes, não bebem quando fazem
as refeições".
A resignação fatalista do matuto, que sem queixa, sem
murmúrio de revolta, sem reação, se submete a uma fôrça
superior, prescrita pelo destino, está consubstanciada no trá-
gico episódio que aí fica: certa família, composta de sete
pessoas- marido, mulher e cinco filhos pequenos, dispunha
das relações da família vizinha mais próxima, distante meia
légua. Visitavam-se vez por outra. A estrada, apenas uma
trilha beirando a serra, oferecia perigos: sôbre a serra a
caatinga infestada de feras . Uma das crianças, de cinco
anos, aproveitando lamentável descuido materno, empreen-
de a viagem. A beira da serra, por desgraça, foi assaltada
por uma onça.
Entremente, notando a falta, agasalha os outros filhos
num quarto da palhoça, cuja porta amarra por fora, e cor-
re a pobre mãe estrada a fora, sôbre as pegadas recentes do
filho. Numa curva do carreiro solitário, alucinada, supôz
LENDAS E FATOS 123

ver a fera arrastando o corpo estraçoado da criança . Retor-


na, adoidada. Seriam cinco horas da tarde. O marido, au-
sente, na roça, regressava calmamente, quando notou altas
labaredas em direção da casa. Corre, e ambos, marido e mu-
lher, chegando ao mesmo tempo, deparam com a casa em
chamas, e os filhos carbonizados no quarto, do qual não
poderam fugir.
E ali ficaram, no terreiro da morte, um em frente do
outro, sem uma frase, sem uma lágrima, esmagados sob
o pêso brutal de tamanha fatalidade.

• • •
No entanto, sob diversos aspectos, a vida matuta é for-
te e saudável. Efetivamente, no campo quem há que se
não sinta bem, entre o mugir saudoso do gado e o germinar
promissor das sementes, ao sobrevirem as chuvas bem-ama-
das, que fertilizam a terra e alegram os cor~.ções? Por tôda
a parte a vida desabrocha estuante, vigorosa, ridente. As
chapadas perdem o tom pardacento e triste. característico
dos estios prolongados. As manhãs então são radiantes, e as
tardes deixam indizível saudade, sensação indefinida, um
vago desejo que se não traduz. Da terra húmida se eleva in-
tenso, cálido, estonteante odor. E a gente sente, sem esfôr-
ço, a renovação de tudo, a gestação imensa em que se de-
licia a mãe comum e amorosa, a prometer fartura a mãos-
cheias a bípedes e quadrúpedes.
No início do verão o céu se arqueia sôbre nossas cabe-
ças num azul lavado, e o sol, em pleno solestício de junho,
perde a intensidade de sempre. Branda, agradável aragem
varre o sertão, levando a todos os recantos o aroma ine-
briante das flores silvestres. O paudárco rôxo ajardina os
vales; o amarelo e a caraíba encantam os montes e as ve-
rêdas com o dourado forte de sua singular floração; os pe-
quiseiros cobrem-se de grandes flocos alvinitentes, atraindo
um mundo de insetos, veículos inconscientes da fecundação
das flôres. Despovoam-se as colmeias, e as raínhas desfe-
rem o vôo triunfal do himineu!
A caçada é, então, nessa deliciosa quadra do ano, a
preocupação maior do sertanejo, que pernoita de galho em
124 ARTUR PASSOS

galho, de espera em espera, solitário e feliz, a ouvir o can-


to merencório do jacurutu e o gargalhar estrangulado da
mãe-da-lua, sob a placidez prateada do luar ou sob as cin-
tilações maravilhosas do Cruzeiro do Sul. A vida do vaquei-
ro, os encargos da roça, o exercício continuado da c~a e da
pesca desenvolvem o físico, criando atletas, excepcionalmen-
te, é verdade. O cidadão rural, que a êsse tempo já tem por
seguro o labro agrícola e salva a parição do gado, percorre,
com cuidados infinitos, o campo conhecido e amigo no pre-
paro do cenário das próximas atividades venatórias. Chega
fogo aos campos não queimados em anos anteriores; revê
os bebedoiros, visitando uma a uma as árvores cuja floração
constitui um tesouro de emoções para os amadores da divina
arte cinegética. E volve ao lar satisfeito, prelibando um ve-
rão encantador. Adquire, com amor, a preciosa munição
indispensável à escopeta ou à lazarina legítima de Braga, se
não tiver obtido boa e moderna espingarda de cartucho.
Num belo dia, previamente escolhido, em turmas, apro-
veitando sempre as fases do cheio da lua, lá se vão a trocar
idéias a respeito das excelentes esperas marcadas para aquê-
le dia, ou melhor, para aquela noite. Procuram um rancho
mais à mão, de abundante pasto para os animais de monta-
da e de ampla sombra para resguardo dos arreios e das
cabacinhas e borrachas da preciosa linfa, colhida na melhor
vertente do caminho percorrido.
Localizados, o preparo é rápido: ligeira refeição de frito
ou de carne assada, coroada de magnífica sobremesa de ra-
padura e farta palangana de café.
Cada qual, de rêde ao ombro, cabacinha dágua á cinta
e arma sobraçada, toma o rumo do ponto preferido, longe,
bem longe, uns dos outros. O observador, nesse caso, tem a
certeza certa de que a caçada, quer de espera, quer de côrso,
é, realmente, a imagem da guerra: o mesmo negacear, os
mesmos avanços e recuos, os mesmos lances imprevistos,
idêntico objetivo - matar. Pé ante pé, leve, torcicoloso, gol-
pe de vista rápido em todos os sentidos, aproxima-se da es-
pera, alcançada contra o vento, na possibilidade não rara, da
caça ali chegar antes do caçador. Num instante êi-lo guinda-
do aos mais cômodos galhos do pequiseiro em flor, rêde às
LENDAS E FATOS 125

pressas firmemente atada. Colocadas as coisas ao "doce al-


cance da mão", começa a vigília. Antes, atento, revista em
tôrno os acidentes do terreno adjacente: observa os cupins
alterosos e as pequenas moitas contornantes, e os tufos aver-
melhados de capim agreste, familiarizando-se com tudo que
à noite, no delíquio emocional da aproximação do veado, pos-
sa enganar o vigilante alado. Satisfeito, e melhor acomodado
na rêde, volve o olhar, por último, do mirante florido, para
a limpidez do firmamento. O sol banha ainda com os últi-
mos raios as frondes mais elevadas. Os pássaros pi pilam,
ternos, aos pares, em tôrno dos ninhos, e o inambú, do mais
basto do juremal próximo, piando, anuncia a noite que cai,
de chofre, sem crepúsculo. As primeiras estrelas tremeluzem,
e a lua, redonda e rubra, surge no largo horizonte, sob o piar
friorento do caboré.
Tranquilidade imensa domina a natureza, fazendo che-
gar ao solitário, multiplicados, os menores ruídos dos no-
turnos habitantes das chapadas. E o esperador, todo à es-
cuta, espera até que, alta noite, um tiro ecoando rasgue o pe-
sado silêncio das noites misteriosas de lua cheia, povoadas de
caça e de duendes. Os companheiros, que o ouvem, abrem
mais os olhos e apuram mais as ouças na vigília, que conti-
nua. Outros e outros estampidos se sucedem até que a ema,
em possantes gemidos, e algum tresmalhado toiro, gaitean-
do, muito ao longe, saudem a loira madrugada, pondo termo
a solidão dos dispersos caçadores, que se reunem de novo,
cada qual a exibir o seu cruel troféu, fingindo os felizardos
não darem pelo desapontamento mal sopitado dos que er-
raram os tiros ou não lograram experimentar a emoção de
sentir a aproximação, sutil e cautelosa, do desejado ca-
tingueiro.

* * *
Mas nem sempre as coisas correm assim, mimosas e tê-
nues, ao alcance dos desejos objetivos do caçador lírico.
Nos taboleiros, nos planaltos, nos amplos chapadões do bai-
xo Gurguéia assim é, quase sempre. No médio, entre ser-
ras e caatingas, a coisa muda de figura . A onça pintada ali
se impõe, zombando muita vez da astúcia e do poder agres-
126 ARTUR PASSOS

sivo de que dispõe o seu capital inimigo, do qual tem mais


mêdo do grito que da figura- o homem.
Quantos não têm sido vitimas dêsse felino indomável!
No vale do Gurguéia, viveiro de onças pintadas e pretas, vi-
vem elas onde há o que comer: nas caatingas, nos planaltos
das serras marginais e, às vêzes, nos baixões e comportas que
acompanham o rio longitudinalmente. Um exemplo do po-
der sugestivo da onça pintada, altamente prejudicial à cria-
ção e aos criadores. Certa vez dizimavam elas parte do pe-
queno rebanho de gado vacum de Juvenal Duarte, no lugar
Lavandeira. O fazendeiro e seu filho Manuel Duarte, de
18 anos, procuraram meios de cessar o prejuízo, afastando ou
destruindo a causa. Caçavam de cães adestrados, sem re-
sultado. Esperavam nas carniças da rêses sacrificadas, tam-
bém sem êxito. Resolveram então pôr em prática uma cila-
da muito usada, mas sempre proveitosa. Retiveram todo
o gado restante da malhada que estava sendo destruída.
Quinze dias depois abriram as porteiras do cercado e ambos,
pai e filho, se deram ao incômodo continuado de vigiar o re-
banho. Assim, famintas, as onças abateram, no segundo dia
de vigília, uma novilha de três anos, quase à vista dos cri-
adores, deixando-a intacta, sinal evidente de que voltariam
por ela. A esperada se impunha, imediatamente, naquêle dia,
à noite. O rapaz se ofereceu para a incumbência, que aliás
não apresentava perigo, pois haveria de ser do cimo de uma
árvore próxima, ali a calhar. O velho Juvenal resistiu, de
comêço, mas acabou por ceder às instâncias do filho. Aco-
modou-o, escanchado numa pequena rêde a oito metros do
solo, armado de rifle calibre 44, e foi pernoitar em casa ami-
ga, uma légua distante. As seis horas da tarde, mais ou me-
nos, o esperador vislumbrou, na direção da serra, entre o
mato rasteiro, circundaiie, üa mancha escura em tardo
movimento. Do alto da àrvore, logo depois, com inexplicável
sensação de frio, distingiu o animal, que se aproximava de
uma grande pedra, a uns cinqüenta metros. Era fêmea, e
se fazia acompanhar dos filhotes, já taludas. Deitou-se ao
pé da pedra, realmente a tiro. Era um belo exemplar: gran-
de, fora do comum. O dia morria, aos poucos. Mas não era
noite ainda. O crepúsculo vespertino deixa ver algo ao der-
LENDAS E FATOS 127

redor. A onça pintada adulta, de modo geral, chega a me-


dir até dois metros de comprimento por oitenta a noventa
centímetros de altura. É o maior e o mais temido dos fe-
linos da América tropical. É naturalmente carniceiro e
feroz.
Ainda com bastante visibilidade, avançou para o repas-
to. Era o momento psicológico. No entanto, enervado, o ca-
çador bisonho quedou-se inativo, ofegante, de mãos trêmu-
las e frias. Rosnando. alto, que mais parecia um trovão
longínquo, salta sôbre o cadáver da novilha, iniciando o
jantar, em família. Um tiro ecoou; um tiro perdido! Um
recúo de alguns metros, acompanhado de rugidos medonhos,
fazendo estremecer o chão e as árvores, acabou de desorien-
tar o jovem, que abandona a rêde à procura dos mais ele-
vados galhos, expondo-se a perigo mortal e iminente, pois a
onça, descobrindo-o, de um salto atinge a árvore e o alcan-
çaria por certo, se um disparo, à tôa ainda, e um grito esfar-
rapado de completo assombramento não a tivessem assusta-
do, voltando prestes ao chão, e desaparecido com os filhotes
nas trevas já cerradas da noite.

• * *
Em um outro ponto, à direita do Gurguéia, o quadro
difere. Temos uma lombada de terra firme de alguns qui-
lômetros, entre o leito do rio e uma comporta funda, inva-
dida às vêzes pelas enchentes. Terreno de aluvião. Ao lado
da comporta, as escarpas da serra; no alto, a caatinga. Na
lombada de terra firme, uma fazenda de gado vacum, prós-
pera então: casa de vaqueiro, currais e cercado.
Na comporta, excelente roçado - cultura de milho, ar-
roz, feijão e mandioca.
Caça abundante; peixe à vontade.
O vaqueiro, casado em segundas núpcias, tinha um fi-
lho de oito anos do primeiro matrimônio. Para os labores
da fazenda tomou um "empregado de varanda", jovem de
vinte anos, bom, assim para o campo, como para a roça.
Quatro pessoas insuladas entre mil perigos.
128 ARTUR PASSOS

Trabalhavam um dia na abertura de nova roça, na bai-


xada, entre a casa e o sopé da serra. Seriam uns quinhentos
metros entre a broca e o páteo da fazenda, ligados por re-
cente varadeiro rasgado a foice entre o matagal traiçoei-
ro adjacente. Quatro eram os trabalhadores: o vaqueiro, o
pequeno de oito anos, o empregado e um velho exibindo
imensa e cancerosa ferida na perna esquerda, amarrada com
um tampo de couro. Onze horas. Enquanto os outros ter-
minavam a tarefa da manhã, resolveu o vaqueiro ir em casa
à busca do almoço, que seria servido ali mesmo no eito. O
pequeno o acompanhou até à cêrca do roçado, no cimo da
qual entendeu de aguardar o regresso do pai. De repente
um grito angustioso de socorro: Corram! Um bicho pegou
o papai!
Com efeito, uma onça, um macharrão desmedido, de
tocaia no matagal do varadeiro, assalta o descuidado cami-
nhante, desarticulando-lhe o pescoço . E ali ficou, chispan-
te, lambendo o sangue que escorria dos ferimentos. Na
cêrca, horrorisados com o terrível espetáculo, já eram três.
Todos desarmados. O velho e a criança não poderiam en-
trar em linha de conta para uma reação imediata de tal
natureza. Sem uma palavra, o empregado, de machado na
mão, salta a caiçara e enfrenta o felino, que já então, sô-
bre a vítima, o acompanha com os olhos chamejantes. Avan-
ça, de machado erguido, eriçado, involuntário, superior sem
dúvida à própria vontade. Agacha-se a fera; concentra-se
para o pulo final, sem atemorizar o bravo, que se não apres-
sa na caminhada inexorável traçada pelo destino: passo a
passo, olhos fitos nos olhos do monstro.
Um belo salto, acompanhado de rugido atroador, e um
ferro acutilante, que fende de meio a meio a cabeça do ma-
charrão, encerram esta página de homenagem a um herói
digno das lendas mitológicas da antiguidade.

• • •
Dois meses eram passados, quando o destemido casa-se
com a viúva de seu antigo patrão. . . e a vida continuou.

• • •
LENDAS E FATOS 129

Pereira de Alencastre, citado na Cronologia de Pereira


da Costa, faz mensão de antigos documentos relacionados
objetivamente com atividades criminosas ocorridas no vale
do Gurguéia, destacando duas - a ocorrida em 1774, a cha-
cina em massa dos índios acoroazes, e a do espingardea-
mento, na mesma ribeira, de duas centenas de presos polí-
tos, nas últimas contorções da insurreição maranhense
de 1839.
Dirigia a Missão de São Gonçalo, à beira do rio Mulato,
com 1.237 caboclos, o conhecido João do Rego Castelo Branco.
Batidos de fome, nús, espaldeirados cruelmente, e "não
sendo mais possível suportar que os guardas, diretores e
soldados da Missão lhes tirassem, cada vez que quizessem,
suas mulheres para usar delas como comuns", resolveram de-
mandar a sua antiga morada, pois só assim se poderiam li-
vrar de tamanha vexação. Juntos e postos a caminho bus-
cavam a sua antiga morada; porém sendo seguidos pron-
tamente, fôram presos uns e postos em pedaços outros, tra-
zendo-se as orelhas dêstes que se pregaram nos lugares pú-
blicos da aldeia, para terror dos que não fizeram movimento
algum naquela ocasião.
Porém os maltratas recrudeceram.
Queixa-se o maioral dêles, Bruemk, ao presidente Gon-
çalo Lourenço Botelho, em Oeiras. Não sendo atendido, re-
tira-se sumàmente picado da desfeita, e vendo que lhe não
restava outro remédio, caminha trinta léguas em menos de
vinte e quatro horas, e na mesma noite em que chega ao
acampamento de São Gonçalo, com todos os principais paren-
tes, que se achavam na Missão, deixa com êles o rancho, e
marchando em muitos e espalhados magotes para o mato,
demandam a sua antiga morada, nas cabeceiras do rio Par-
naíba. dum e doutro lado.
"Avisa João do Rego dêste acontecimento ao presiden-
te da Provincia, que, para o remediar, faz seguir os foragidos
por diversas partidas, que expede a tôda a diligência; e o
dito João do Rego fica na aldeia sustentando o resto que
tinha ficado daquela nação - acaroazes -, e manda seu
filho Felix do Rego e um impâvido Teodósio, que se inti-
9 - 24 542
130 ARTUR PASSOS

tulava ajudante das entradas, acompanhados de alguns au-


xiliares e de índios da nação gueguês, seguindo o alcance dos
foragidos, e ao caminho se lhes agregaram alguns socorros
expedidos da capital, com que engrossaram suas tropas, e
alcançando sucessivamente as malocas dos tapuias, os vão
passando todos a ferro, segundo a sua inclinação e ordens
de seu pai, o já citado João do Rego Castelo Branco, e não
seguindo as que lhe dirigiu o presidente na carta de instru-
ção, que determinava o contrário. Duas façanhosas proezas,
ou famigeradas ações se viram executadas nesta ocasião pe-
los grandes Teodósio e Felix do Rego: a primeira, muitas
vêzes repetida, consistiu na grande piedade que alcançaram
as donzelas e meninas, que se iam encontrando em um e ou-
tro magote dos fugidos, porque vendo êstes matar a sangue
frio a seus pais, irmãos e parentes, que não resistiam, nem
levavam armas de qualidade alguma para o fazer, se humi-
lhavam batendo as palmas das mãos, que entre êles é o
modo mais expressivo de misericórdia, para comoverem à
ternura; mas nesta mesma ação de humildade, digna da
maior compaixão, se lhes trespassam os peitos até darem o
último suspiro, sem lhes valer a fraqueza do sexo e o tenro
da idade, a falta de resistência e a carência de culpa. e o
pedirem humilde e incessantemente misericórdia". "Sem lhes
valer o serem inocentes nessa inculpabilidade de fugirem,
seguindo a seus parentes que as levavam, e a quem tinham
obrigação de obedecer, sendo igualmente êstes imputáveis
na sã fuga que fizeram, posto se lhe desse o nome de levan-
te e rebelião, para se proceder com aleivosia na forma do
estilo, que assim costumam praticar as maiores crueldades;
porque não houve hostilidade alguma não só na aldeia de
que saíram, mas nem ainda pelas fazendas e caminhos por
onde passavam". "Segue-se o rasto dos que ainda falta-
vam, e ultimamente se vêm render uns dezoito voluntários,
pedindo os conduzissem para a companhia de seus paren-
tes, com os quais prometiam viver quietos; seguram-se logo,
amarrando-se bem, com o pretexto de não tornarem a fu-
gir; mas depois de manietados se passam todos a espada,
deixando os corpos no campo para o pasto das feras".
LENDAS E .F ATOS 13i

Resultado do aldeiamento e pacificação a cargo de João


do Rego Castelo Branco: fôram passadas pelas armas mais.
de oitocentas criaturas.
A escolta regressou incólume.

* * *
O segundo massacre, já no Império, nos últimos ins-
tantes da Regência, tem sido comentado, de público, por
várias vêzes.
Tomando o govêrno provincial por norma o principio
condenado de que os fins justificam os meios, não trepida
um só instante, na repressão dos crimes cometidos pelos ba-
laios na invasão do Piaui, no emprêgo dos meios mais violen-
tos, bárbaros e mesmo criminosos.
Certa ocasião, e dentro daquêle princípio, mais de du-
zentos prisioneiros foram espingardeados, no vale do Gur-
guéia, chegando a tradição oral e escrita dessa perversidade
até os nossos dias.
"Ninguém pode contestar que grandes barbaridades se
perpetraram contra os rebeldes, do Piauí", diz Pereira de
Alencastre.
"Horrores sôbre horrores nesta luta !raticida se encon-
tram a cada passo.
Ordens reservadas mandavam que se fizessem espin-
gardeamentos em massa, sob o pretexto de não haverem
prisões para tantos prisioneiros".
As ordens eram cumpridas à risca.

* * *
No último quinqüênio da república velha registra-se no
vale o chamado "crime dos ciganos", friamente executado por
um homem fardado, um agente do poder público.
Segundo a opinião, pouco conhecida, de Manoel Antônio
de Almeida, autor de "Memórias de um Sargento de MilÍ-
cias''. os ciganos entraram no Brasil com os emigrados de
1808, ao tempo da investida de Junot contra Portugal. "Com .
132 ARTUR PASSOS

os emigrados de Portugal veio também para o :arasil a pra-


ga dos ciganos", assegura o folhetinista do "Correio Mer-
cantil, em 1853, acrescentando - "gente ociosa e de poucos
escrúpulos, ganhavam êles aqui reputação bem merecida
dos mais refinados velhacos. Ninguém que tivesse juizo se
metia com êles em negócios, porque tinha certeza de levar
carola. A poesia de seus costumes e de suas crenças, de que
muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; ·para
cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria". Por
êste tempo, no Rio, moravam ordinàriamente um pouco ar-
redados das ruas populares e viviam em plena liberdade. As
mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres;
usavam de rendas e fitas; davam preferência a tudo quanto
era ·encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um
çordão de ouro ao pescoço; os homens não tinham outra dis-
tinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares
gue os faziam conhecidos. Raça nômade por excelência en-
volve, ao comprido da história, singular problema etno-
gráfico.
Que se quer afinal de um cigano?
Que seja esperto, ganhador da vida, com queda para
barganhas. Um cigano assim é um cigano autêntico, bom à
boca cheia. Mas por pouco que tenham contribuído para o
conjunto da intuição intelectual das classes mais baixas de
nosso povo, ainda assim representa um certo interêsse o es-
tudo dessa raça, sempre constituíu um dos problemas
mais intrincados da etnografia, no pensar de sociólogo emi-
nente. t:les têm sido objeto de uma literatura inteira em
tôrno de sua língua, de seus costumes, crenças, festas, dan-
ças e músicas. O ponto mais obscuro é o de sua origem e fi-
liação etnográfica, de suas migrações primitivas no além-
mar.
. Destacou-se no estudo da gente cigana o Dr. Melo Mo- _
raes Filho em o "Cancioneiro dos Ciganos" e "Os Ciganos no
Brasil", defendendo a tese segundo a qual no corpo da poe-
sia, contos, lendas e tradições populares do Brasil não deve-
mos contar, como fêz Sílvio Romero, sàmente com os por-
tuguêses, africanos, índios e mestiços destas três raças. Que-
ria · o escritor baiano que à poesia popular e às lendas em
LENDAS E FATOS 133

voga se juntasse o fator cigano, geralmente esquecido e nun-


ca relacionado, acentuando que o caboclo bravo, sem a me-
nor idéia de Deus, como atestam os cronistas primevos, e o
negro idólatra no período mais atrasado da escala dos cultos,
protestam contra um ideal definido no regime espiritual.
sendo certo que o negro e o índio contribuíram apenas para a
nossa mitologia popular do caapora, da mãe-dágua etc., não
havendo dúvida de que ao português tocam o Lobishomem,
a Mula-sem-cabeça, os enguiços e os pesadelos.
Todos nós sertanejos conhecemos por demais os "ban-
dos" que por decênios e decênios percorreram o interior nor-
destino, com o seu pomposo capitão à frente; a cigana-velha
lendo a sina ou a buena-dicha nas linhas da mão, sob um
ritual complicado de exorcismo. Os homens, tirados à raça
árabe na tez e na vida de eterno movimento, caldeireiros de
profissão e de hábito, consertando tachos, panelas ou qual-
quer utensílio de metal; trocando, vendendo e comprando
animal de montada ou de carga, barganhando sem fim, ilu-
dindo os matutos de todo geito e modo. Um capitão de ci-
gano, no entanto, era geralmente uma pessoa atenciosa,
mesureira, a mais não poder, parecendo até ser isto condi-
ção indispensável ao ofício. Não entrava num vilarejo sem
permissão das autoridades, nunca se insurgindo contra or·-
dens e imposições às vêzes desnecessárias e até irritantes.
Quando se encontravam dois bandos na mesma feira,
o que era raro, festejavam o acontecimento,. porque os ci-
ganos são !esteiros. Faziam-se proclamações e várias outras
manifestações de regozijo, dividindo todavia a zona a ser
percorrida e trabalhada.
É muito conhecida no vale do Gurguéia, sempre visi-
tado por ciganos oriundos do São Francisco, zona mestra do
cangaceirismo e da trampolinice ainda há uns cinqüenta
anos a esta parte, a lenda tecida em tôrno da venda de um
cavalo pardacento, negócio topado entre dois oficiais do mes-
mo ofício, isto é, entre dois vagabundos de "bandos" dife-
rentes, reunidos por acaso numa feira domingueira.
Nunca cheguei a compreender por que figura no peque-
no conto, como testemunha da trapaça, em sertão êrmo, um
autêntico inglês, de cachimbo pensativo como o cigarro do
134 ARTUR PASSOS

Zé Fernandes na "Cidades e Serras" do grande Eça. O caso


é que, assentado na calçada da única casa do povoado que
a tinha, viu o inglês um cigano com um lindo cavalo parda-
cento pelo cabresto. Notou desde logo: o animal mahcava
da mão esquerda. É pena, pensou. Um outro cigano, do bando
oposto, aproxima-se - "é para negócio", pergunta. "Sim; é
pra negócio" . Pega do cabresto. Corre a mão amestrada pelo
lombo luzidio do animal; examina com evidente cuidado a ex-
tremidade doente, e indaga do preço. Uma exorbitância - du-
zentos mil reis! Nem uma palavra, como era de esperar; nada
de pedir por menos - puxa da carteira, volumosa e atesta- .
da, e paga. O inglês atento, pergunta ao vendedor: bom ne-
gócio? "ótimo. O cavalo está para sempre inutilizado".
O súdito de Sua Magestade Britânica, curioso, procura
o comprador: "olhe, desculpe, mas o senhor fêz mau negó-
cio; o pardacento está para sempre inutilizado". "É engano.
Aquilo é apenas um prego no sabugo da mão; eu lhe toquei
na cabeça". "Em menos de um mês tê-lo-ei em condições de
negócio". O curioso volta ao vendedor - "o senhor saiu lo-
grado; é apenas um prego". "Fui eu quem lá o botou". Volta
ao comprador, mas o homem não deu trégua e foi dizen-
do, de sosláio - "afinal fiz bom negócio : a cédula de du-
zentos mil réis é falsa" !
Dizia eu que no último quinqüênio da república velha
registrou-se no vale do Gurguéia o chamado "crime dos ci-
ganos" , friamente executado por um homem fardado , um
agente do poder público. E assim foi.
De súcia com o tenente Rubem, da Polícia Militar do
Maranhão, e atraído pelo saque em perspectiva, vinha An-
tônio Dentista na pista do "bando" desde Pôrto Seguro, en-
tão povoado do muicipio de Jeromehha. Dirigia pequeno gru-
po de assalariados à vanguarda da fôrça do miliciano ma-
ranhense, que marchava bem à retarguarda, naturalmente
com credenciais para penetrar no território do Piauí, onde
matou e saqueou impunemente. Antônio Dentista alcança os
ciganos, de rancharia assentada, no lugar Estreito, à mar-
gem direita do rio Gurguéia. O "bando", dirigido e orientado,
pelo capitão Goiabeira, muito conhecido na região, ti.l]ft in.t::
teressante de patriarca sem poiso, alto, forte, de longas...bar-
LENDAS E FATOS 135

bas esbranquiçadas pelos janeiros, nada tinha de temivel,


nem se lhe imputava crime que justificasse aquela corrida
de javardos em fúria, contra 18 pessoas -, oito homens,
inclusive o capitão, maior de setenta anos; seis mulheres e
quatro crianças, figurando entre estas um rapazote de doze
anos, que fugindo à chacina perdeu-se para sempre na ca-
atinga próxima.
Agride a vanguarda. Caso estranho: cai o agressor An-
tônio Dentista ... com um tiro ·pelas costas.
Dois eram demais para a presa à vista ! Detalhemos,
tendo em vista informações valiosas . Os bufarinheiros tri-
turados pelo tenente Zeca Rubem, tinham hábito de visitar o
Piauí e o Maranhão. Chefiava-os há muitos anos o velho
Guilhermino Goiabeira.
Estacionados em Nova York, souberam que políticos in-
fluentes e comerciantes haviam denunciado dêles ao govêr-
no de São Luis. Atravessaram então o Parnaíba, permane-
cendo todo o conjunto cêrca de quinze dias em Pôrto Se-
guro, de onde viajaram para o povoado Jacaré; dêste para a
fazenda Estreito, propriedade do coronel José Raimundo Pe-
reira. Dêste ponto, alguns dias depois, chegaram a iniciar
a viagem para Caracol. Ali foram alcançados pelo tenente
Rubem, isto já na fazenda Vasante, de Odilon Parente, per-
tencente atualmente ao município de Cristina Castro.
Deixando a maioria dos homens armados que o acom-
panhavam no lugar Estreito, seguiu o tenente pela cha-
pada, fazendo um corte, para atingir a estrada de Caracol,
e fingindo de lá vir, à paisana, saíu na mencionada fazen-
da Vasante, onde se encontravam os ciganos. Pediu hospe-
dagem como um qualquer viajante. Palestrou longa e cor-
dialmente com Guilhermino Goiabeira. Mostrou-se interessa-
do no caso da denúncia infundada contra êle e seu "bando",
manifestando-se contra "a perseguição dirigida pelo tenente
Rubem, que devia estar estacionado por ali próximo, em
qualquer ponto do Gurguéia". Mais. Acrescentou, camara-
descamente, batendo no ombro do velho cigano, que vinha
de Caracol, de passagem para Teresina, devendo possivelmente
.lco..,t.rar-se com o oficial que, com forte destacamento per-
seguia-os; que êles poucos como eram, e acompanhados de
136 ARTUR PASSOS

mulheres e crianças, sair-se-iam mal, por fôrça; que confias•


sem nêle; que lhe entregassem as armas, pois só assim teria
autoridade para fazer o tenente retroceder, deixando-os, afi-
nal, em paz.
Cairam todos na ratoeira, entregando ao embusteiro
os poucos rifles e revólveres de que dispunham. Logo que
os viu desarmados, fêz um sinal, certamente convencionado,
e trinta homens (soldados da polícia do Maranhão e canga-
ceiros) caíram como um tufão sôbre os desgraçados, boquia-
bertos; amarraram um a um ao tronco de árvores à porta
da pousada, a Fazenda Vasante, matando i.. todos a tiros de
fuzil, menos um que, protestando contra famanha vilania,
foi apunhalado cruel e repetidas vêzes. O último foi o ca-
pitão, o confidente de poucas horas antes. Arrastaram-no
pelas barbas, urinado e obrado de mêdo !
De rôjo, jogaram os oito corpos dentro de uma gruta,
cujas ribanceiras fôram quebradas sôbre os cadáveres.
Veio de logo o saque, o grande objetivo. Tôdas as bruacas,
todos os coxins de sela, todos. os suadouros de cangalhas fô-
ram revolvidos, polegada por polegada.
As mulheres, endoidecidas, fôram desancadas e despidas
á cata de jóias que por ventura guardassem sob as vestes,
não se lhes respeitando as partes mais íntimas. Uma delas,
nova ainda, enloqueceu . Era a mãe infeliz da criança desa~
parecida no decorrer da tragédia.
O tenente Rubem, além das armas, do ouro e da prata,
carregou, êle só, com todos os animais, arrêios e dinheiro
dos ciganos trucidados.
O fato passou em junho de 1925.
De volta da empreitada andou por diversas cidades do
Piauí, gastando à larga em bródios e patuscadas como um
bargante que era. Em Floriano, por exemplo, em banca de
jôgo, "arrancou do bôlso enorme maço de cédulas no im- ,
porte de oito contos de réis", que em 1925 representavam ua
pequena fortuna.
Em dezembro do mesmo ano, informa um conterrâneo
ilustre, "quando deixei Floriano com mêdo dos revoltosos de
Prestes e Juarez, êle (Rubem) viajou comigo no vapor "San-
ta Cruz". Em fevereiro do ano seguinte, depois da retirada
LENDAS E FATOS 137

dos rebeldes dêste Estado, chegou Rubem em Almecegas


no Maranhão, onde me encontrava, fazendo parte então de
um batalhão do Exército sob o comando do Capitão João
Mendes, que andava em perseguição da Coluna Prestes, dali
seguindo para o nordeste e, depois, para o Rio, onde foi viti-
ma de um acidente".
Três crimes inomináveis: o primeiro em 1774, por con-
ta e risco de João do Rego Castelo Branco; o segundo em
1840, executado por prepostos do presidente da província
do Piauí, e o último em 1925, à conta do tenente Rubem. da
polícia militar do Maranhão.
Quanto ao primeiro, os cronistas chegados dos aconte-
cimentos falam num "rigoroso inquérito", que teria desapa-
recido da Secretaria por onde corriam as sindicâncias. E
não se falou mais no morticínio dos oitocentos índios.
Do espingardeamento dos duzentos presos de guerra
nem se falou, nem se escreveu algo em caráter oficial. No
sentimento do povo cristalou-se uma palavra simbólica -
"estopor", que vale por uma sentença punitiva, nas páginas
da história.
Do terceiro -, o crime dos ciganos -, a Justiça dos ho-
mens nem ouviu falar.
É verdade que ela nasceu privada do sentido da vista,
segundo a lenda; ficou surda com a poeira dos séculos, sen-
do de feitio cautelosa e paciente.
É diferente a Justiça de Deus: com ferro fere a quem
com ferro feriu.
Dezesseis dias depois da matança, o cabo de esquadra
que abateu seis dos oito ciganos; que arrancou a sôco e pu-
xavantes as barbas do inditoso Goiabeira; que se mostrou
de uma perversidade incrível com o mulherio em deliquio,
deixava de existir, vitima de um tiro casual.
O chefe, o sádico tenente Rubem, logo depois era es-
magado sob as rodas de uma composição da Central do
Brasil, no Rio, onde usufruía os proventos colhidos na mi-
rifica excursão do Vale do Gurguéia.

• • •
COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DO SERVIÇO
GRAFICO DO I .B.G.E., EM
L U C A S , D .F., B R A SI L
tNDICE

Prefácio 11
Ofertório 15
Destroços de um falso valentão . ...... . ........ .... ......... . . 18
última festa do fidalgo ..... . ..... . ........ ... .... ... ....... . 25
Os Aquinos ............... ......... ........................... . 32
Mestre Valentím .. ..................... .. .... .. . ... .. ... .. ... . 40

Testamento Fatídico ..... . .... .. .... . .... .................... . 47


Fanatismo Religioso . ..... .... .. . ............... ........... .. . 54

Folklore ... .. ... ......................... · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · 58


Zé Rodrigues .................... . .............. . .... . .... . 79
Pedro Mouco 81
Advlnhações 83
Folguedos de Criança . ............... ... .... ... . ... . ..... . 84
Galinha Gorda . .... . ................... . .. ......... .. ... . . 84
Vead.inho ..... ..... ............................. .. . .... .. . 85
Poder de Deus ...... . ................ . ... ... . ............ . 85
Variante Sertaneja .. . ......... ... .. . ... . ...... .... ... .. . . . 86
Círculo Vicioso .... ... . ............. . .......... .... ...... . . 87
Lenda do Picapau ... ....... . ............... . . .. ....... . .. . 88
Toque, Sombra e Beijo ................. . . .. .. .. . .. .. .... . 89
o Vale do Gurguéia .................... ... ...... ............ . 92

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