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LENDAS E FATOS
(Crônicas do rio Gurguéia)
1958
SERVIÇO GRÁFICO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATfSTICA
RIO DE JANEIRO
Recebendo a incumbência de ler e opinar sôbre · o tra- ·
balho literário, anexo, de Artur Passos, sem outros detalhes
capazes de orientar-me quanto ao objetivo a atingir, ou
prisma a observá-lo, fico meio indeciso em dar correto de-
sempenho à tarefa, visto exercer atividade em repartição
de caráter e finalidades absolutamente técnicas- nos ramos
da geografia e da estatística.
Não resta dúvida de que o Instituto tende, mais cedo
ou mais tarde, a tornar-se, sem fal~ :·n as suas atribuições
normais, no maior recipiendiário de informes municipais, es-
pelhando-os e retratando-os sob todos os seus ângulos de
atividade, desde a literária à administrativa, no mais remo-
to rincão territorial brasileiro. Espécie de enciclopédia da
dinâmica nacional nos seus mais variegados aspectos.
Dêsse modo e sendo o livro um repositório de episódios e
ocorrências da "geografia humana e social do vale do Rio
Gurgéia" no Piauí, passarei a apreciá-lo sôbre o triplo as-
pecto: AUTOR: descrição, conhecimento da região, proprie-
dade da linguagem, clareza e objetividade - O LIVRO: con-
teúdo informativo, hábitos e fatos da vida rural- FOLKLO-
RE, ASPECTOS GEOGRAFICOS DO RI.P GURGUÉIA e por
fim CONCLUSõES.
I
..
8 ARTUR PASSOS
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Recobrando as fôrças de meu destino, vislumbro em tôr-
no de mim, 6 minha terra! o espírito de tuas coisas aben-
çoadas - os místicos encantos da igreja já velhinha, tôda
de pedra e de recordações; os lindos novenários da Senhora
de Lourdes, geradores de sonho e . . . de realidades ; a maciez
de manhãs doiradas e o rubro pôr-de- sol de tardes sem iguais;
os longos e abrasados dias de verão calmoso, e o encanto de
noites estranhamente iluminadas; o perfume agreste, mas
envolvente, das flores e das ninfas; o ambiente bucólico de
paz e amor em que desabrocharam os da minha geração,
ainda sob os bons auspícios de sua majestade imperial o Se-
nhor D. Pedro Segundo - tôdas essas coisas tecidas de re-
cordações e de luz, que formam teus característicos incon-
fundíveis no conjunto histórico e geográfico do Piauí têm, na
branda aragem de teus campos ilimitados, seu brilhante e
sublime cantor.
16 ARTUR PASSOS
• • •
A tradicional bondade de tua gente; às transparentes
águas de teus casquinantes ribeiros ; ao zumbido das aladas
colmêias e ao traço cintilante das raínhas no vôo triunfal do
himineu; à energia destruidora das queimadas, de galhadas
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DESTROÇOS DE UM VALENTAO
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Relatemos os fatos.
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A verdade é que o nosso povo, sobretudo o povo do sul
do Estado, e no sul do Estado o do médio e baixo Gurguéia,
pelo império das circunstâncias está sempre em movimento
migratório. Ora se desloca para o sul do país, ultimamente
nos chamados páus de arara; ora para o planalto goiano,
ora, de alguns anos a esta parte, para a planície diamantí-
fera de Gilbués, ora para uma qualquer outra zona onde
possa desenvolver atividade produtiva, pois ali tudo lhe falta
em assistência - estrada, escola, saúde.
Com isso muito se ressente o Estado, quer no desenvol-.
vimento dos núcleos sociais, fixando o homem à terra, quer, .
por isso mesmo, no campo econômico, quer ainda, na for-
mação histórica de sua maior área geográfica; · pois nenhum·
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Como quer que seja, amplo ou restrito, o campo a ser
pesquisado o pior, em meu caso, é que pouco tenho obtido,
em minúcias, na pequena área esquadrinhada, não sendo
mais possível voltar ao passado, que se dilui sem deixar de
si senão tristes reminiscências.
Além do mais, o sertão de meu tempo não é nem po-
derá ser mais o sertão de hoje.
A vida então era tranquila e boa no sul piauiense. Com
a lei aurea e com a proclamação da República, sobretudo
com a primeira, tudo se transformou, ali como algures. A
queda vertical e brusca da economia local, que tinha sua ra-
zão de ser nos currais e nos roçados, mantidos pelo braço
negro, tudo levou de roldão. E mais. Os contemplativos, con-
tadores de lérias, autoritários detentores das tradições ·e .dos
mistérios insondáveis da boa terra matuta, lá se fôram na
ond:;L que, com a organização municipal à base do regime
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É pena que não tenhamos obtido se não dois fragmen-
tos de uma petição de queixa, em versos, endereçada a cer-
to juiz de paz da ribeira do Gurguéia.
O dono de ramalhuda pitombeira acusa um vizinho de
furtar-lhe as frutas - "lindas, carnudas e gostosas":
"Ilustríssimo Senhor
JUiz de paz da ribeira,
quero que dê providência
no meu pé de pitombeira".
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q baiano, em desafio:
"Quando vim lá da Bahia
trouxe vara e cavador
para tapar Rio Preto,
p'ra o deixar sem sangrador".
Rio Preto:
"Quem tapar o Rio Preto
faça parede segura,
qué vertente permanente
veio da maior grossura".
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Orelhas inteiras, sem sihal e éra.
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Zé Rodrigues
"Hoje é domingo
de pé de cachimbo;
cachimbo de oiro,
que dá no besoiro;
besoiro de linha,
que dá na galinha;
galinha valente,
que dá no tenente,
tenente prudente,
que lhe quebra o dente".
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Pedro Mouco
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Transcrevendo os versos populares que aí ficam, sem lhes
tirar ou adicionar uma palavra sequer, fico convicto de con-
correr de qualquer forma, como muitos outros em várias
ocasiões o têm feito, para o desenvolvimento do espírito li-
terário da gente piauiense. Porque a verdade é que no lin-
guajar natural. "no balbuciar emoGional do povo encontra-
mos a legítima expressão do sentimento de um país em for-
mação, como o nosso, que teve e tem o desenvolvimento vi-
cejante de sua literatura nestas espontâneas manifestações
populares".
Sílvio Romero, o saudoso e eminente mestre da crítica
literária escreveu;- a êste respeito:
"A literatura começou a formar-se no Brasil no dia em ,
que os índios, os negros e os colonizadores entraram a viver
juntos, a trabalhar juntos, a sofrer juntos, a cantar juntos.
No dia em que o primeiro mestiço cantou a primeira qua-
drinha, nêsse dia começou a originar-se a literatura brasi-
leira".
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Advinhações
A da espingarda de pedra:
"É de páu e é de pedra; é de ferro e é de aço;
fura e é furada- alcança a terra, o mar e o espaço."
A da viola:
"()a sepultura aberta
com dez mortos estendidos,
cinco vivos passeando
dando áis muito sentidos".
Folguedos de Criança
Galinha Gorda
"Galinha gorda
Gorda (respondem em côro)
Onde eu mandar,
Vou.
Jacarandá
Dá
Melão-melão
Para quem a encontrar"
E todos, numa arrancada, mergulham.
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Veadinho
Poder de Deus
Variante Sertaneja
Círculo Vicioso
Lenda do Picapau
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O arraial formou-se aos poucos entre 1710 e 1712. Uns
três homens brancos, veteranos das entradas; alguns pre-
tos remanescentes do império negro de Palmares, e uma
dúzia de índios chegados ao aprisco da religião, elementos
heterogênios que a terra e o clima unificaram. Era hábi-
to dos exploradores deixar núcleos aqui, ali, acolá para o
estudo dos terrenos dominados e abertura de roças. Consti-
tuía a garantia do regresso e ponto de repouso.
De fato, os pioneiros costumavam formar essas reuniões
de pessoas insuladas pelos sertões controlados no intuito
certamente de criar ambiência à implantação de currais, que
se transformariam mais tarde em povoados e vilas.
A Casa da Torre, desde 1676, havia adquirido grandes
tratos de terras nas margens do Gurguéia, porém só em
1716 cogitaram seus representantes de estabelecer fazendas
e colonizar a região de modo definitivo.
O arraial a que me refiro foi chamado de 1710 até 1740
"Arraial de Garcia d'Avila", tendo capela provisória e trô-
ços de índios mansos vindos do São Francisco. Em 1740 ini-
ciou-se a construção da igreja definitiva, que ainda lá está,
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Em 1740 contava a freguesia com um território de du.;
zentas léguas de circunferência, 890 pessoas adultas e 63 fa•
zendas de gado vacum e cavalar. Vinte dois anos depois, em
1762, deram-lhe a categoria de vila e o nome de Jerumenha,
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O destino estava traçado em relação a "um país novo
onde os gados se multiplicavam em liberdade, pastando a
herva, que atestava o vinco dos ribeiros em vastos traços
verdes, na planície dourada de sol".
A terra, ademais, não se prestava para a lavoura de
cana, que dominava Pernambuco e o Recôncavo da Bahia.
104 ARTUR PASSOS
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Vivendo do gado e para o gado, o povo do Vale do
Gurguéia até 1888 passava aparentemente com relativa far-
tura, pois a criação expressava, então, quase que exclusiva,
a base econômica da região. Escravos, libertos e agregados
gravitavam à sombra do fazendeiro, que era, no vale, um
arremêdo do senhor de engenho na faixa aristocrática do
açúcar. Ainda nos últimos decênios do império o fazendei-
ro se impunha como um patriarca: homem branco ou apa-
rentemente branco, de respeito, à frente do latifúndio, com
numerosa descendência, aderentes e partidários, a todos em
geral facilitando teto e meios de subexistência. No entanto,
êsse tipo tradicional do bom-senhor, acolhedor e paternal se
transformava às vêzes num demônio crudelíssimo no im-
pôr aquilo que êle chamava a "ordem" no seio mesmo da de-
sordem resultante de problemas locais impostos pela rude
sociedade composta de elementos dissemelhantes - mesti-
ços aventureiros, pretos vilipendiados e índios submissos, mas
por índole retraídos e desconfiados.
Por isto mesmo nada se projetava ou realizava sem o
indispensável acôrdo do patrão, em assuntos de lavoura, ven-
da de gado ou de terra, ou mesmo de mercadorias, como
ainda a respeito de casamentos, batisados, festejos religiosos,
pois tudo dependia da casa grande, onde o padre, hóspede
anual e de categoria, era recebido e homenageado. Até os
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Sendo assim, como se disse, ninguém poderia ter qual-
quer iniciativa, desde que o trabalho em comum tinha uma
única orientação expressa na ação vigilante do feitor, lugar-
-tenente do latifundiário.
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No entanto, sob diversos aspectos, a vida matuta é for-
te e saudável. Efetivamente, no campo quem há que se
não sinta bem, entre o mugir saudoso do gado e o germinar
promissor das sementes, ao sobrevirem as chuvas bem-ama-
das, que fertilizam a terra e alegram os cor~.ções? Por tôda
a parte a vida desabrocha estuante, vigorosa, ridente. As
chapadas perdem o tom pardacento e triste. característico
dos estios prolongados. As manhãs então são radiantes, e as
tardes deixam indizível saudade, sensação indefinida, um
vago desejo que se não traduz. Da terra húmida se eleva in-
tenso, cálido, estonteante odor. E a gente sente, sem esfôr-
ço, a renovação de tudo, a gestação imensa em que se de-
licia a mãe comum e amorosa, a prometer fartura a mãos-
cheias a bípedes e quadrúpedes.
No início do verão o céu se arqueia sôbre nossas cabe-
ças num azul lavado, e o sol, em pleno solestício de junho,
perde a intensidade de sempre. Branda, agradável aragem
varre o sertão, levando a todos os recantos o aroma ine-
briante das flores silvestres. O paudárco rôxo ajardina os
vales; o amarelo e a caraíba encantam os montes e as ve-
rêdas com o dourado forte de sua singular floração; os pe-
quiseiros cobrem-se de grandes flocos alvinitentes, atraindo
um mundo de insetos, veículos inconscientes da fecundação
das flôres. Despovoam-se as colmeias, e as raínhas desfe-
rem o vôo triunfal do himineu!
A caçada é, então, nessa deliciosa quadra do ano, a
preocupação maior do sertanejo, que pernoita de galho em
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Mas nem sempre as coisas correm assim, mimosas e tê-
nues, ao alcance dos desejos objetivos do caçador lírico.
Nos taboleiros, nos planaltos, nos amplos chapadões do bai-
xo Gurguéia assim é, quase sempre. No médio, entre ser-
ras e caatingas, a coisa muda de figura . A onça pintada ali
se impõe, zombando muita vez da astúcia e do poder agres-
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Em um outro ponto, à direita do Gurguéia, o quadro
difere. Temos uma lombada de terra firme de alguns qui-
lômetros, entre o leito do rio e uma comporta funda, inva-
dida às vêzes pelas enchentes. Terreno de aluvião. Ao lado
da comporta, as escarpas da serra; no alto, a caatinga. Na
lombada de terra firme, uma fazenda de gado vacum, prós-
pera então: casa de vaqueiro, currais e cercado.
Na comporta, excelente roçado - cultura de milho, ar-
roz, feijão e mandioca.
Caça abundante; peixe à vontade.
O vaqueiro, casado em segundas núpcias, tinha um fi-
lho de oito anos do primeiro matrimônio. Para os labores
da fazenda tomou um "empregado de varanda", jovem de
vinte anos, bom, assim para o campo, como para a roça.
Quatro pessoas insuladas entre mil perigos.
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Dois meses eram passados, quando o destemido casa-se
com a viúva de seu antigo patrão. . . e a vida continuou.
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O segundo massacre, já no Império, nos últimos ins-
tantes da Regência, tem sido comentado, de público, por
várias vêzes.
Tomando o govêrno provincial por norma o principio
condenado de que os fins justificam os meios, não trepida
um só instante, na repressão dos crimes cometidos pelos ba-
laios na invasão do Piaui, no emprêgo dos meios mais violen-
tos, bárbaros e mesmo criminosos.
Certa ocasião, e dentro daquêle princípio, mais de du-
zentos prisioneiros foram espingardeados, no vale do Gur-
guéia, chegando a tradição oral e escrita dessa perversidade
até os nossos dias.
"Ninguém pode contestar que grandes barbaridades se
perpetraram contra os rebeldes, do Piauí", diz Pereira de
Alencastre.
"Horrores sôbre horrores nesta luta !raticida se encon-
tram a cada passo.
Ordens reservadas mandavam que se fizessem espin-
gardeamentos em massa, sob o pretexto de não haverem
prisões para tantos prisioneiros".
As ordens eram cumpridas à risca.
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No último quinqüênio da república velha registra-se no
vale o chamado "crime dos ciganos", friamente executado por
um homem fardado, um agente do poder público.
Segundo a opinião, pouco conhecida, de Manoel Antônio
de Almeida, autor de "Memórias de um Sargento de MilÍ-
cias''. os ciganos entraram no Brasil com os emigrados de
1808, ao tempo da investida de Junot contra Portugal. "Com .
132 ARTUR PASSOS
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COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DO SERVIÇO
GRAFICO DO I .B.G.E., EM
L U C A S , D .F., B R A SI L
tNDICE
Prefácio 11
Ofertório 15
Destroços de um falso valentão . ...... . ........ .... ......... . . 18
última festa do fidalgo ..... . ..... . ........ ... .... ... ....... . 25
Os Aquinos ............... ......... ........................... . 32
Mestre Valentím .. ..................... .. .... .. . ... .. ... .. ... . 40