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O impacte social das ciéncias da educacdo Rui Canario Universidade de Lisboa O titulo desta conferéncia, que me foi proposto pelos organizadores deste congresso', sugere-me duas consideragdes prévias Em primeito lugar, esta formulagao pode induzir uma ideia de exterioridade da actividade cientifica relativamente 20 social. Essa ideia seria enganadora, na medida em que a actividadé cientifica é ela propria uma actividade social que-nio pode ser plenaiente compreendida a partir de critéios internos ao conhecimento cientifico de cada campo disciplinar. A relago entre o ci social é marcada, em todas as circunstincias, pela complexidade, mas é possivel estabelece natural ¢ aquelas que tratam do mundo social As primeizas nao influenciam © comportamento dos respectivos objectos de estudo, isto &, 0 nosso conhecimento sobre o sisterna solar nfo altera a érbita dos varios planetas. O mesmo no acontece com as cigncias sociais, nas quais se inscrevem as ciéncias.da educagdo: neste segundo caso, o conhecimento do social é constitutivo da propria realidade ¢ contribul para a modifica: Esse piocesso de modificago, como toda a acgo social, pode ser perversa, ou seja, traduzir-se por resultados nilo esperados ¢ ou nao desejados B nesta perspectiva que tentarei situat 0 meu contributo pata responder questo que me foi colocada: Qual o impacte social das ciéncias da educagiio? ~Esta ititerrogagio que-pode ser, ¢ € ditigida com-frequéncia a qualquer-ciéneia; em particular as ciéncias sociais, é traduzivel numa linguagem mais commum por: Para que servem as ciéncias da educagio? Qual a sua utilidade? Produzem elas um conhecimento fiavel? Estamos perante uma interrogago que, no caso das ciéncias da educagao, ganba uim significado paticular, dado 0 seu carécter epistemol6gico ser, seconhesidamente, " Este texto &2 versio escrita de ums conferéacia proferida no VII Congresso da Sociedade Pornuguesa de ‘Cigncias da Educacéo, realizado na Universidade de Evora, em 5,6 ¢ 7 de Junho de 2003, subordinado ao tema: “Ciéncias da Educagio © Estado da arte” fidgil, A tentativa de construit um esbogo de resposta a estas questdes remete, do meu ponto de vista, para o esclarecimento de trés dimensdes do problema que irei, sucessiva e sinteticamente, abordar, referenciando-as as ciéncias da educacdo: a questo das Gronteiras, a questao da idenndade ¢ a questo da pertinéncia Ciéncias da educacio: que fronteitas? Uma tentativa de clarificar esta questo apela a uma nilise, ainda que necessatiamente breve, a ttés niveis: 0 nivel da fionteia que separa a ciéncia de outras formas de conhecimento, o nivel da fionteira entre as ciéncias da natureza e as ciéncies do social e, finalmente, o nivel das fronteiras que diferenciam as varias ciéncias sociais. A especificidade do conhecimento cientifico O conhecimento cientffico constitui uma forma especifica de conhecer 0 mundo que se situa num conjunto muito alargado de outras modalidades de conhecimento Quando se coloca o problema de saber se determinada actividade pode, ou ndo, ser qualificada de cientifica (hoje as ciéncias da educagtio, ontem a histéria), 0 problema que se nos coloca 60 identificar 0 que é especifico da ciéncia que permite distingui-la da nfo ciéncia. Duas caracteristicas essenciais permitem distinguir 0 conhecimento cientifico de outras formas de conhecimento: a primeira caracteristica consiste no_primado da teotia e a segunda na exist€ncia de um método consciente, explicitado ¢ permanentemente sujeito a revisto critica So estas duas caracteristicas que tomam possivel afirmar que em ciéncia nada € “dado”, tudo € “construido” o que confere ao saber produzido um cardcter conjectural e provisério, susceptivel de ser refutado (Popper, 1989) Como sublinhou Gaston Bachelard (1984), na auséncia de interrogagdo nfo pode haver conhecimento cientifico, pelo que “a matca do verdadeiro espitito cientifico” reside na capacidade de colocar problemas e de construir respostas provisérias a partir de uma recolha sistemética e-conttolade de informagao empirica Se 0 conhecimento cientffico aparece, assim, como 0 resultado de uma dupla mediagio, sensorial e tebrica, forgoso & reconhecer a primazia da teotia (Silva e Pinto, 1986), na medida em que os problemas nfo se colocam por si proprios ¢ € a especificidade da interrogagao que orienta a necessiria selecgo de informacio, tida como pertinente Além do primado da teoria, 0 que, fundamentalmente, distingue 0 conhecimento cientifico de outras modalidades de conhecimento é 0 facto de ele se apoiar num método que permite & actividade cientifica pensar-se e explicar-se de forma permanente Como escreveu Bronowski, (1983) este método é, em simulténeo, consciente e compartithago, © que implica que a ciéncia seja comunicavel ¢ sistematica. E no sentido de garantir estas caracteristicas que os resultados, mas sobretudo os procedimentos da investigagio cientifica, s40 sujeitos a criteriosa anlise ¢ debate no seid da comunidade cientifica Esse eserutinio supSe uma permanente ¢ rigorosa explicitagio, por parte dos investigadores, do que fazem e porque o fazem ‘A existéncia de um conjunto de procedimentos formalizados e admitidos como Iegitimos pelo consenso colectivo de uma dada comunidade de investigadores € que confere cardcter cientifico elahoragao teérica sobre um campo de fenémenos, 0 que conduz 4 conclusio de que ndo hd um critério nico de cientificidade, Cada dominio disciplinar elabora os seus préprios critérios de cientificidade A aceitagio deste principio tem consequéncias decisivas para o debate que tem atravessado, quer a emergéneia das ci€ncias sociais, quer, mais recentemente, 2 emergéncia ¢ institucionalizagio das cigncies da educagio. Esta inexisténcia de um etitério tinico de cientificidade verifica-se, no s6 quando comparamos diferentes dominios disciplinares, mas também quando olhamos a ciéncia de um ponto de vista diacrénico, como o comprova a investigaciio sobre a histérla das ciéncias e, nomeadamente, a obra cléssica _de Kuln (1983) sobre 0 provesso das “revoluedes cjentificas””e as conflitos entre distintos paradigmas. Em sintese, a cigncia apresenta-se como uma varigvel histérica ¢ as ciéneias da educagto nfo fogem a esta regra E possivel reconstituir 0 processo histérico que deu origem a uma comunidade cientifica das ciéneias da edueagdo, com os seus mecanismnos de regulagio interna em tudo idénticos as restantes comunidades cientificas Esta verificagao ¢ este debate so, naiuialmente, distintos da questio de avaliar 0 métito intrinseco do saber produzido Mas, também aqui, nfo estamos perante uma espécificidade das ciéncias da educagdo Ciéncias da educagdo a fronteira entre 0 natural e o social Sea aciividade cientifica, em geral, enquanto actividade social, se define pelo seu devir histético, poderd afirmat-se, como o faz Franco Ferraroti (1986, p. 23), que “uma cigncia 0 que tem sido” Esta historicidade, que é comum a todas as vatiantes da actividade cientifica, assume particular evidéncia no caso das ciéncias que se ocupam do social, As ciéncias sociais sio uma criagao historica recente que surgiram € se afirmaram mum contexto histérice especifico e constituem, portanto, “um continente intelectual heterogéneo, fiacturado, cuja configuragdo global é o resultado conjuntural Ge uma histéria que continua” (Silva ¢ Pinto, 1986, p 13) A construgao da ciéncia modema, que remonta 20 periodo da Renascenga e alimentou 0 “cientismo” do séoulo XIX, tem como referenciai a fisica Newtoniana, cuja busca das leis universais que regem a Natureze se baseia na anélise de fenémenos reversiveis em aque passado e futuro se apiesentam como simétricos. Por outro lado, esta visto moderna Ga ciéncia tem como base a existéncia de uma dicotomia entre o mundo da natureza e 0 mundo do humano. Nesta perspectiva, a ciéneia ¢ coincidente com ciénoias da natureza. ‘A actividade cientifica, baseada na exterioridade © neutralidade do observador, na medida quantificade, na abordagem analitica de 1aiz cartesian, e no modelo hipotético- dedutivo merece 0 qualificativo de “exacta” E esta concepgdo positivista da ciéncia, referida ao modelo de Newton, que, durante o século XIX, vai servir de referéncia aos fundadores das ciéncias sociais, nomeadamente, no caso da sociologia, encarada por Augusto Compte, ¢ mais tarde por Durkheim, como uma “fisica social”. Esta tradigfo, que alimentou a corrente positivista, dominante nas cigncias soviais até hoje, coexistiu com uma outra tradiggo inspirada na tradigto alema das ciéncias humanas, com repercussées nos estudos histéricos e, mais tarde, retomada pela corrente weberiana e 2 escola de Chicago (Finger, 1989) A hegemonia do paradigma positivista teve como consequéncia, relativamente 4s ciéncias sociais, 2 interiorizagdo de um sentimento de inferioridade que conduz a avaliar a situag4o global es citnoias sociais, a partir de uma leitura que tem como ponto de partida 0 “atiaso” ideia deste “atraso” que as catacterizaria, relativamente as cigncias “exactas”. A Japicarmente afirmada nas primeiras linhas da introduigdo a obra, para nds “histérica”, de Sedas Nunes “Questdes preliminares sobre as ciéncias sociais”: “A Ciéncia Social, ou talvez melhor. a Ciéncia do Homem, sé existe por ora em estado fragmentirio, sob a forma de uma colecgao de disciplines dispares e desconexas Uma tal situacdo convasta abertamente com as que se verificam noutros dominios da pratica cientifica” (1984 p 15) E o mesmo autor acrescenta, a pagina 22 da mesma obra: “comparadas com as Ciéncias Exactas e Natutais, as Ciéncias Sociais sugem-nos, no seu conjunto, em nitido estado de subdesenvolvimento cientfico”. Esta distinglo entre disciptinas cientficas mais “airasadas” ou mais “evangadas” (sempre por referencia 20 experimentalismo positivista) foi teansposta para o interior das proprias ciéncias do Homem ¢ tem servido debates e comparagdes estéreis entte a histéria e a sociologia ou entre a psicologia e as ciéncias da educagfio, A pertingncia de manter como padrao de cientificidade 0 modelo positivista entou em declinio itreversivel, a partir da propria evolugto da fisica no séoulo XX, com a formulagdo des teorias da telatividade e mais tarde com a fisica quintica que vieram pdr cm causa alguns dos mais sélidas alicerces do modelo de Newton ‘A.caltica 20 positivismo, que nasce e se desenvolve a partir do interior das ciéncias da natureza, intensifica-se no interior das ciéncias sociais, nomeadamente, a partir das perspectivas criticas de Habermas, ¢ confluem, hoje, numa era marcada pelo “fim das certezas” (Prygogine, 1996), no que alguns qualificam como um paradigma emergente, alternativo 20 positivismo, que, entre outres caracteristicas, p&e fim & dissociagao entre conhecimento natural ¢ conkecimento social (Santos, 1987; 1989). Se situarmos a questio neste ponto, as discussdes, quer sobre a cientificidade das cigncias sociais, quer sobre o estatuto epistemolégico das ciéncias da educago, no interiof Gas citncias sociais, deixam de fazer seitidd 8¢ conduziddé tendo como pressuposto a supetioridade do modelo positivista, a existéncia de um critério tnico de cientificidade, a hierarquizagio das varias disciplinas cientificas em fungfo do seu hipotético “atraso”. Nao € pertinente reproduzir, no interior do campo das ciéacias sociais, um debate, hoje anacténico, que, no passado, serviu para opor as ciéncias sociais as ciénoias da natureza : Liéncias da edusapin. diforexctagio das.cidacias sacigis Segundo o relatério da equipa presidida por Wallenstein (Comissiio Gulbenkian, 1996), © reconhecimento de uma area de conhecimento designada por ciéncias socisis, integrando um certo ntimero de disciplinas distintas, ocorren entire 1850 ¢ 1945 Esse reconhecimento produziu-se a partir da sua institucionalizacdo universitiria, atrevés da criagdo de catedras, de departamentos ¢ de cursos (no que respeita a0 ensino), ¢ na ctiagdo de revistas ¢ associagdes especializadas, bem como formas de catalogago dos documentos (ito que diz respeito a investigagao). Esta institucionalizagdo foi concomitante com um proceso de diferenciagéo que conduzia cada uma das areas disciplinares a estabelecer- distingdes ¢, portanto, fronteiras, com as restantes Uma perspectiva histérica sobre 0 processo de nascimento, institucionalizagio e diferenciagto das ciéncias sociais permite-nos compreender esse proceso como largamente contingente, isto 6, dependente de factores aleatérios, correspondendo em certa medida a ume divisdo de trabalho na abordagom do social e, ainda, por razdes também de circunstancialismo histérico (Sedas Nunes, 1984), como um proceso de formagdo ¢ desenvolvimento das diferentes disciplinas, em que prevalecen “o recurso a determinados métodos e téoriicas de pesquisa, com exclusto ou relogagdo para segundo plano de outros métodos e téenicas que igualmente poderiam ser nela utilizados” (p27) Esta verificagdo limita drasticamente o interesse das sucessivas recomentes querelas sobre a definigo de fronteiras que sto, por definigdo, méveis e, em larga medida, convencionais, A pevtingncia e a fecundidade de tragar fronteiras entre as vétias ciéncias sociais & precisamente posta em causa pelo proprio Sedas Nunes que explicita 0 pressuposto desta operagao: “"PresiupGe, incorectamente, que os objectos das diferentes Ciéncias preexistem, enguanto objectos propriamente cientificas, és disciplinas que sobre eles exercem o seu trabatho tedrico e empirico, e que, por conseguinte, fixar os contornos das vérias @_um certo niimero de Ciéneias consiste muito _simplesmente em _atribuir compartimentos do saber e da pesquisa, expressamente constituidos para esse fim, Gudvas tantas categorias de objectos (fendmenos) estabelecidas em fungéo ;das cardcteristicas que estes iiitimos aparentam” (p 17/18) Nao é a partir deste tipo de pressupostos que poderemos vir a contribuir para esclarecet a ambiguidade epistemolégica que alravessa as ciéncias da educagio. Mais do que 0 estabelecimento de fonteiras, ou a tentativa da sua justificagao @ posteriori, importard compreender como é que 0 conhecimento fecundo de ums realidade social wa apela 2 uma diversidade de abordagens, ou seia, de pontos de vista, na qual as cigneias da educaeao participa ee Sabemos. desde a contribuigo de Marcel Mauss que os fenémenos saciais so torais. A realidade social € una, porém, susceptivel de uma pluralidade de abordagens diferentes, Reside neste facto a origem da tensto intema as ciéncias sociais que Se traduz na sua conflitualidade, nomeadamente no que respeita 20 estabelecimento de fronteiras. Elucidar esta tensfo interna supée a compreensio, por um lado, dos fenémenos sociais como totalidades e, por outro lado, a aceitagdo de que as cincias nc ociais nfo estudam a realidade em si, ou fiagmentos dela, mas sim objectos cientificos, construidos pela pidpria actividade investigativa constrasdos pela propre seve Deste ponto de vista, niio havendo fendmenos exclusivamente sociolégicos, econdmicos » Tio havendo fenomenos excluswamente sore cco ou demogrificos e dependendo o estatuto ¢ a divisto de trabalho entre as disciplinas cientificas de circunstancialismos ligados a cada lugs © momento histéticos, a conclusto, aparentemente paradoxal, é a de que “a economia é no fundo, 0 que os economistas fazem, a geografia o que fazem os gedgrafos, e por af fora”. (Silva e Pinto, 1986, p.16). A unidade do real ¢ 0 catécter total dos fendmenos sociais tem como consequéncia que nao é pertinente atribuir a cada ciéneia social um segmento da realidade que, na expresso de Ferraroti (1986), coresponderia 2 uma espécie de “reserva de caga” A distingo entre as vérias ciéncias sociais existentes sé pode, de forma pertinente, ser estabelecida a pattit dos diferentes modos de abordagem da mesma realidade © modo mais claro ¢ simples de apresentar este problema encontrémo-lo num texto de Femand Braudel (1972), representante de uma corrente historiogrifica (os “Annales”) que, a partit de 1945, desempenharia um papel fulcral no repensar epistemolégico das. ciéneias sociais, contribuindo para a sua aproximagdo e fecundago mitua, em ruptura com as querelas de natureza “imperialista” suscitadas entre disciplines que se apresentam, cada uma, como “uma pétria e uma linguagem diferente”. Braudel propde 2 seguinte iniagem: t “Suponhamos, entdo, para sermos breves, que todas as ciéncias se interessam por wma paisagem tintca e comur, a das acgdes passadas, presentes e futwras do homem Suponhamos que esta paisagem é, além disso, coerente, 0 que teriamos, evidentemente, de demonstrar Perante este panorama, as ciéntias humanas suporiam outros tantos observatérias, cada um com as suas visdes particulares, os seus croquis diferentes, as suas cores eas suas crénieas Os fragmentos da paisagem que cada uma delas recorta néo sdo infelismente ajustdvers ndo se reclamam wns aos outros, tal como as pecas de wm quebra caberas infamil que evigem wna imagen de conjunto e 36 so vilidas em {fungdo dessa imagem pré estabelecida, De wn observaiério para outro @ homem parece diferenie” (p 243/244) Da anilise da plualidade das ciéncizs sociais e da sua conflitualidade interna, ¢ possivel conciuit pelo cardcter histérica, contingente ¢ sempre provisdrio das fronteiras existentes entre as varias ciéncias sociais Elas exprimem, em cada momento, formas de divisto de trabalho condicionadas por cireunsténcias histSricas e sociais Por outro lado, essas fronteiras s80 potosas e nexhuma disciplina tem hoje 0 monopélio de conceitos, de assuntos, ou de métodos ¢ técnicas de recolha ¢ tratamento da informagao empirica Cada vez com mais’ frequéncia assistimos & produgo de trabalhos de investigago que, combinando contribuigdes de campos disciplinares diversos, aparecem como inclassificaveis n0 quadro de ume ciéncia social Nesta perspective, 0 problema do estabelecimento de fronteiras entre as disciplinas passa a ser'um problema menor relativamente a um outto problema, esse sim decisivo: quaiquer_abordagem da realidade social, na medida em que a exaustividade est exclude, obrige 4 realizagdo de “cortes” que podem ser mais ou menos pertinentes, “als ou HENOE Tecindos © que ganhariio em se: feitos mais por referéncia ao problema eae ee er a @ estudat © menos por Tespelta as fionteiras estabelecidas. Mais do que justificar as Se —— Fronteiras disciplinares no quadro das quais se pretende inscrever uma determinada investigagdo, seré mais fecundo concentrar esforgos na construgdo de objectos cientificos e metodologias, proprios ¢ singulares para cada investigagto, fazendo apelo a0 patriménio teérico € conceptual que tende a set comum as vacias cigncias sociais € promovendo a consciente ¢ deliberada transgressio das fronteitas disciplinares que dolimitam as “reservas de caga” de investigadores e de departamentos Ciénctas da educagio e recomposigéo das cténcias soctais Se, no periodo anterior 2 1945, se verificou uma fedueo do miimero de termos e de campos comrespondentes aos dominios de produgdo de conhecimento sobre 0 social, a época do pés segunda guerra mundial é fértil na proliferagao de novos campos de @ estudo, de novas divisSes de trabalho ¢ de novos tipos de designagao Esta situagto nova exprime um movimento de recomposig2o geral das ciéncias socials que se traduz por uma sistemética e deliberada pritica de infracc&o das fronteiras que, até meados do século XX, haviam sido laboriosamente construidas ¢ preservadas Aquiilo que alguns autores designaram por uma crise de crescimento traduziu-se, na segunda metade do século XX, por uma evolugao das cincias sociais caracterizada por processos de contaminagio, sobreposiggo e intromissio reciproca entre as Areas Gisciplinares cléssicas que tomaram ainda mais caducas as fronteiras rigidamente estabelecidas a partir do esforgo, inglétio, de cada disciplina para estabelecet a singularidade do seu objecto ¢ do sew método Na sua obra mais recente, Raymond Boudon, reconhecendo explicitamente « artificialidade contida no estabelecimento de fronteiras entre as varias ciéncias sociais mostra como esse artificialidade se manifesta nas contradigGes internas & obra de um dos principais fundadores da sociologia Na sua interpretago sobre as diferentes taxas de suicidio entre catdlicos © prostestantes, Durkheim invoca factores de natureza psicolégica (maior angistia ¢ incerteza dos prostestantes, deconente de um acréscimo de liberdade na interpretardo dos textos sagrados) 0 que esti em contradiglo flagrante com as suas recomendagdes sobre as regras do método sociolégico que deveria separar de forma estrita a subjectividade individual da explicagio dos fenémenos de cardcter social e, portanto, separar a psicologia da sociologia (Boudon, 2003, p. 107) © processo de “intromissio recfproce” foi em primeiso lugar incentivada pelo desenvolvimento, no perfodo do pés guerra, das “area studies”, trabalhos colectivos de investigago conduzidos por equipes multidisciplinares de cientistas sociais, incidindo sobre freas geogrificas a que corresponderia uma hipotética unidade cultural, Este tipo de estudos, que o-Relatério da Comissio Gulbenkian considera como- mais importante inovagdo académica do periodo posterior a 1945, permitiu que a “intromissio reciproca” se transformasse em “fertilizagdo reciproca”, através da atracgo para o interior de ume estrutura tinica de investigadores de filizgdes disciplinares muito diversas: “Todas estas pessoas elaboraram curriculos em conjunto, participaram nos jiris de doutoramento dos alunos uns dos outros, assistiram aos congressos organizados pelos especialistas de cada drea, leram os livros uns dos outros e publicarant artigos nas revisias transdisciplinares de cada especialidade” (p 61) ‘A. expansio da investigago em ciéncias sociais, a especializaglo crescente, acompanhadas de processos de interacgio mais fiequentes ¢ complexos entre diferentes reas disciplinares, tiveram varias consequéncias Por um lado, a diversidade ¢ diferenciagdo global do campo institucional das cigneias sociais, traduzidas por novas cesignagdes institucionais, noves departamentos, novos tipos de associagSes cientificas, novos tipos de publicagdes ¢ novas categorias pata o tatamento da informagio bibliogréfica. Por outro lado, verificou-se um acréscimo da diveisidade ¢ heterogeneidade internas a cada discipline, o que levou a que se questionasse, no so a sua coeréneia interna, como também “ a legitimidade das premissas intelectuais de que cada uma delas havia langado méo na defesa do seu direito a uma existéncfa auténoma” (. 72) Tomou-se, assim, cada vex mais dificil justificar diferenciagdes nitidas entre as disciplinas “quer no respeitante ao seu objecto concreto de estudo, quer no que conceme &s modalidades de tratamento dos dados” (p 72) Este proceso evolutivo apresenta como um dos resultados a proliferagio de designagdes que pretendem dar conta de novos tipos de “arranjos” de natureza interdisciplinar que corespondem ao facto de as abordagens cientificas tenderem a debrugar-se sobre questes temiticas que nfo respeitam os quadros definidos pelas tradicionais fionteiras disciplinares. Emergem, assim, programas de investigagio ¢ “noves” éreas disciplinares que se caracterizam por fazer convergir a acy de investigadores com formag6es académicas originais muito diversas £ a progressiva tomada de consciéncia desta situagio que conduz a fazer emergir como anacrdnica uma estratégia beseada na “defesa” das fionteiras disciplinares classicas, ou na mera tedefinicdo dessas fronteiras, quando aquilo que esti em causa € precisamente repensar a estruturagio global das eitncias sociais, & fur de uma perspectiva de superagdo das compartimentaydes estrilas de teritérios ¢ ‘disciplinares,-sem que isso implique apager ou desprecar a diversidae de “olnares’ ” sobre o social que coustitui o patriménio comum das ciéncias socizis nesta perspectiva que tem de ser compreendida a emergéncia de grupos de investigagiio unidos por areas tematicas, ou pelo nivel de andlise que entendem privifegiar E no surgimento deste novo tipo de reconfiguragoes das eiéncias sociais que se toma possivel entender 0 surgimento e institucionalizagio recentes de Areas como: ciéncias da satide; ciéneias da comunicagfo; ciéncias do ambiente ou... ciéncias da educagao As ambiguidades de natureza epistemolégica que eventualmente possamos 10 apontar a cada uma destas noves areas no é de natureza diferente das ambiguidades epistemolégicas que atravessam cada uma das disciplinas “cléssicas” Cada uma delas sé vé confiontada com a necessidade de cruzar varios “olhares” ¢ varios niveis de andlise, ou seja, de fazer apelo a uma multiplicidade de teferéncias que nao € compativel com a fidelidade estrita a um campo disciplinar constituido # na medida em que se coloca de um ponto de vista similar deste que Raymond Boudon (2003, p.135) pode apresentar como uma condigtio necessaria para o progresso do corhecimenta do social uma formago dos investigadores no conjunto das ciéncias sociais - ideia que é convergente com a defesa da possibilidade de eliminar fionteitas ¢ “reagrupar os elementos da galéxia das ciéncias sociais numa ciéacia social”. Nesta perspectiva, é nos pontos de juno das antigas disciplinas que podem ser procurados os elementos de inovagao nas ciéncias sociais Neste contexto, pretender negar a cientificidade de dreas como as ciéncias da educacio com base em argumentos de fronteitas representa colocar um problema to anacrénico como aquele que consiste em pretender legitimar estas novas areas com. base_na definigto de um objesto, de um método ¢ de um tenitério préprios O problema das fionteiras das cigncias sociais nfo constitui, hoje, uma forma fecunda de equacionar 0 problema nao resolvido e que é constitutivo deste campo desde as suas origens, ou seja_, lade do social face & diversidade das suas abordagens. A questao a tens%o entre au que hoje se coloca é a de saber como guardar ¢ aproveitar a tiqueza da diversidade de “olhares” possfveis sobre 0 social, sem que essa diversidade soja construida com base numa abordagem analitica que concebe a realidade social como divisivel em fatias Mais do que resolver “conflitos fronteitigos” esté, hoje, em causa reconceptualizar & abordagem do social multiplicando a possibilidade de olhares multireferenciais, A emergéncia de frcas“de trabalho" investigativo que superem a légica das tadicionats fronteiras (como é 0 caso das ciéncias da educagao) pode ser encarada como um paso neste sentido A identidade das ciéneias da educagio Como acontece com todos os dominios cienifficos, a emergéncia das ciéncias da educagZo obedece a uma dinamica de carécter histérico que, no seu caso, & concomitante com o desenvolvimento, durante os séculos XIX e XX, dos sistemas il educativos no ambito dos estados-nagio O processo de institucionalizagio de um dominio especifico de produce de conhecimento sobre 0s factos educativos processa-se em articulagio estreita com a emergéncia de campos profissionais comespondentes ¢ institucionalizagzo 20 nivel universitério amplia-se ¢ consolida-se com a “explostio escolar” que caracterizou a década de 60 ‘A constituigdo das cigncias da educagao como uma étea cientifica propria é o resultado, por um lado, da referéneia a um conjunto de saberes e de préticas profissionais e, por outro lao, da contribuigto de disefplinas cientfficas j& anteriormente estabelecides (sociologia, psicologia, ete ) E na medida em que o campo cientifico surge na esteira de um campo profissional que the preexiste que Hofstetter e Schneuwly (2001, pp 17/18) Gesignam este proceso como um processo de “tisciplinerizaco secundaria” ¢ optam pela expresso “campo disciplina:” pare designar as ciéncias da educagdo (em vez da cexpressto “disciplina”) com a finalidade de sublinhar trés aspectos: em primeito lugar, 6 cardeter hesitate e inerto da autonomizagio deste campo; em segundo lugar, 0 facto “IEW Ciencias da educagio federarem dominios que tendem a apresentar-se como disciplinas; em tere8iFo Tugar, 0 facto de elas terem um carécter interdisciplinar ¢ ‘“aparecerem estrcitamente imbricadas com saberes ¢ terrenos profissionais, emergindo como resposta a processos precisos de procura social. © campo disciplinar das ciéncias | da educagio pode, entio, ser definido come situando-se na “interface de imperativos de cordem profissional ¢ de ordem cientifica”., Ure Se tivermos em conta a singularidade deste processo de disciplinarizagio, nfo é dificfl entender como as ciéncias da educagio sobressaem como parte integrante de um conjunto de éreas cientificas recentes consideradas como “epistemologicamente frageis, Pee bibridas, ou mesmo duvidosas” (Charlot, 1995, p 20). Este fragilidade decore, em Gaver Ee dificuldades, por parte das ciéacias éa educagio, em se afirmarem pela sue capacidade de produzir um conhecimento cumulativo e cientificamente reconhecido. Se este campo disciplinar & forte em termos da sua presenga nos debates, nas decisdes e nas pritices directamente relacionadas gom 0 campo social de educagi, essa forga no tem peso equivalente do ponto de vista de uma actividade de investigagdo susceptivel de fandar a sua plena legitimidade universitéria (Charlot, 2001). Trata-se de uma fagilidade que ndo & gpanigio das creas da educapio, mas que € comum 4 outas citneies sociais, ou seja, para utilizar a distingdo estabelecida por Guy Berger (1992, p 23), 0 trabalho de investigaco encarado como um trabalho ctitico de “problematizacao 122." das priticas sociais” sobrepde-se a uma segunda dimensio em que o trabalho de investigago coresponde a um processo de “produgo de verdades", 0 mesmo tipo de tensio atravessa hoje 2 produedo cientifica da sociologia em que, segundo Boudon (2003, p.127) predominam objectivos de tipo camaralista (acco de “expertise”), expressive (produzir emogdes a partir da descrigio do social) ou critico ( denunciar os males sociais), por contraposigio aos objectives de tipo cognitive (orientados para a produgdo de respostas cientificas a enigmas) Como qualquer outto dominio cientifico, a emergéncia do que hoje se chama “ciéncias da educago” corresponde ¢ uma realidade inquestiondvel no que se refere & existencia de uma comunidade com os seus instrumentos e rituals préprios (associagées, revistas, congressos), de uma ptesenga sighificativa em termos de ensino superior (politéenico universitério) © um conjunto assinalével (@ documentivel) de actividades de investigagio A. questio dos critérios de validade cientifica coloca-se no caso das cigncias da educagdo de forma idéntica & de todos os outtos dominios, ou seje, a de se saber se “produzem ou nfo um saber, em ruptura com a intuigo quotidiana ¢ o senso comum © respeitando formas de rigor contoliveis por uma comunidade de investigagzo” (Charlot, 1995, p. 20). Como assinala 0 mesmo autor, a discussio ceattada em tomo da qualificagdo nominal de “‘ciéncia” constitui em larga medida um debate falseado, na medida em que a designaco remete, simultancamente, para uma descrigdo ¢ para uma fungdo de legitimagio As especificidades das ciéncias da educacao A defesa desta tese, a de que as ciéncias da educagao sto um campo disciptinar que pode satisfazer todos os eritérios de cientificidade, nao significa, ao contrario, que néo apresente (relativamente as disciplinas “cléssicas”) algumas especificidades que, parcialmente, pastilha com outros campos ouja génese 6 idéntica (ciéncias da saiide, cigncias agrérias, ciéncies do ambiente, ete ). Séo essas especificidades que, de forma muito sintetizada, procuraremos enunciar A primeira especificidade diz respeito ao facto de 0 campo disciplinar das ciénoias da educagio néo set definido por um “temitirio” de factos sociais, mas sim pelo modo de articular como “olha” ¢ se posiciona face a esse “territério”. Reside aqui a pertinéncia da distingao estabelecida por Guy Berger (1992) entre @ investigagdo sobre educagao Bb (ceria 0 caso, por exemplo de Bourdieu) ¢ a mvestigagdo em educagao (realizada pelos especialistas em ciéncias da educagio). Esta segunda modalidade apresenta como trago distintivo 0 facto de ser feita, nfo a partir de um saber constituido do exterior, mas a partir do interior, porque os investigadores “pertencem a este universo que & simultaneamente 0 seu objecto, 0 seu sistema de pertenga, ao mesmo tempo que se constitui como o sistema de finalidades a que se ligam” (p 29). Trata-se, em sintese, de superar uma relago de distanciamento ¢ de exterioridade entre 0 observador e 0 objecto cbservado, tido como essencial na perspectiva do referencial positivista, substituindo uma epistemologia do “olhar” por uma epistemologia da “escuta” Em segundo lugar, ao contrario do que é 2 rogra na investigagio sobre educagio, na investigagdo em educagio, 0 teferente disciplinar ¢ muitiplo o que significa que as ciéncias da educagio para Ié do seu caricter plural, que the € constitutivo, se inscrevem naquilo que Ardoino e Berger (1994) designam por “abordagem multireferencial”. A pertingncia desta abordagem decome da necessidade de produzis inteligibilidade sobre factos educativos complexos 0 que faz apelo 2 uma pluralidade de perspectivas ¢ mesmo de linguagens distintas. £ em contraposigao com a “pureza” das disciplinas “cldssicas”, marcadas pela “transparéncia e pela simplificagao analitica” que as ciéncias ca educagZo aparecem como “impuras” e “bastardas” B neste sentido que Bemard Charlot (1995) péde assinaler, com notével sentido de humor, que as ciéncias da ‘educagdo sho “a diseiplina universitaria que mais colabora com os sous detractores” (p 23) ‘Uma outta dimenséo deste cardcler “bastardo” ou desta “mostiagem”, utilizando agora a terminologia de Guy Berger (1992), esté associada & impossibilidade de dissociar a investigacdo em educagio das praticas que constituem o seu objecto. Toma-se muito dificil - e esta é uma terceira especificidade da investigago om educagiio =-sepaiat-a ptodugdo de conhecimentos do processo de tomada de decisbes o que se traduz pela facilidade com que podem confundir-se, ou sobrepor-se, os papéis de investigador, de petito ou de consultor, Esta especificidade das ciéncias da educago resvala com facilidade para a tentagio normativa, autiscando-se, entéio, a investigagdo em educagio “a transformar-se numa praxeologia” (p: 30) ‘Uma quarta espesificidade, gstreitamente relacionada com a anterior, reside no facto de a investigagZo em educagto pretender produzir conhecimentos sobre um campo de a mesmo tempo, um campo atravessado pelo debate filosdfico priticas que 14 politico Quer isto dizer que “se produzem saberes que submetem as finalidades & prove dos factos ¢ que so imediatamente reinvestidos como recursos em préticas quotidianas” (Chatlot, 1995, p35). Deste ponto de vista, e segundo 0 mesmo autor, as ciéncias da educagdo seriam marcadas por uma cultura ou racionalidade especifica, definida pela “circulagdo das questdes entze o pélo dos saberes, o das préticas ¢ 0 das finalidades” pela possibilidade de “interrogar cada um destes pélos do ponto de vista dos dois outros” (Charlot, 2001, p.64) ‘Uma quinta especificidade reside no modo como as ciéncias da educagao constrdem os seus objectos de investigago o que resulta, em primeiro lugar, do modo especifico como questionam a realidade do campo de praticas que estudam E através deste questionamento (¢ nao de um abjecto ou de um método) que as cféncias da educaclo podem estabelecer mecanismos de distin¢2o com base naquilo que, numa formula feliz, Charlot (2001) designa por “horizonte problemético” ¢ que, no caso em andlise, apresenta da seguinte forma: “gs ciéncias da educagao estudam a questo do homem do triplo ponto de vista da sua hominizagdo (0 tornar-se ser humano), da socializaeao (0 tornar-se membro de wma cidade, ¢ mesmo de varias) o da sua personalizagao (0 tornar-se um ser singuiar). Esta ‘em causa um tinico e mesmo proceso, indissocidvel no seu desenvolvimento E possivel construir objectos de investigagdo a partir de uma sd dimensdo () podem, também, construir-se objectos de investigagdo que integram estas trés dimensdes” (p 165) Sendo certo que no existe um critério unico de cientificidade, parece ser possivel concluir pele possibitidade de, no interior de um campo de investigaglo como o das cincias da educagao, ser possivel a produce de um saber ao mesmo tempo rigoroso, specifica ¢ pertinente A marca que, do ponto de vista epistemoldgico, mais parece fagilizar as cigneias da educagto € o facto de serem postos em jogo, ao mesmo tempo, saberes, finelidades e praticas o que € um traco comum a outros campos disciplinares ecentes ¢ cuje emergéncia pode ser interpretada como um processo de 1ecomposigao do campo global das ciéncias e, em particular, das ciéncias sociais. ¥ deste ponto de vista que podem fazer sentido as interrogagies formuladas polos autores que, neste ponto, seguimos de mais perto ¢ que, de certo modo, invertem 0 modo habitual de colocar a questio ‘Afirma Charlot: “Pode perguntar-se se, longe de softer de uma fraqueze epistemolégica congenital, estas disciplinas nao estardo na vanguarda de uma transformago do estatuto as do saber nas nossas sociedades” (1995, p. 36). Por sua vez, Ardoino e Berger (1994) interrogam-se sobie as formas de cientificidade préprias das ciéncias da educagio, admitindo que clas venham a constituir no futuro “analisadores pertinentes de outras cigncias” (p 51) Ciéneias da edueagao, pertinéncia e procura social Construgdo de problemas ¢ reflexividade social Como qualquer outra actividade cientifica, as ciéneias da educagio retiram a sua pertinéneia do modo como se inscrevem e se relacionam com um meio ambiente social ‘em que esto inseridas. Neste sentido, todo o trabalho de investigaco representa uma resposta, ditecta ou indirecta, a uma “procura” social. Esta procura no significa, de modo algum, circunscrever 0 trabalho dos investigadores @ uma fungo instrumental relativamente @ encomendas do poder Significa que os cientistas da educag3a constroerh 0s seus objectos cientificos a partir de interrogacdes que tém como ponto de partida interrogagSes mais gerais do ponto de vista social. Na perspectiva apresentada por Castel (2002), existem questdes que, porque sto percebidas como perturbadoras de vida social, apelam & atengiio das pessoas comuns ¢ constituem-se como “configuragdes probleméticas” para as quais os cientistas sociais, através do seu trabalho especifico, procuram construir uma resposta ‘A construgiio de respostas pertinentes obriga a que o ponto de partida no corresponds a0 modo imediato como essas quest6es slo formuladas no terreno social As respostas séo mediadas por um trabalho que incide sobre interrogacdes de pesquisa que resultam da transformagio dos objectos” sociais env objectos cientificos F justamente esta capacidade de interrogar ctiticamente e reformular as questies de que se alimenta 2 procuta social do trabalho cientifico que toma possivel que a comunidade cientifica possa edificar a sua autonomia Esta independéncia intelectual inscreve-se num quadio social ¢ institucional de dependéncia dos organismos, em regra estatais, que financiam ¢, portanto, tentam definir ¢ condicionar as politicas e priticas de investigacdo Pode, assim, afirmarse que as cigncias da educago (como as ciénoias sociais, em geral), na medida em que dio resposta 4 “procura social” que thes ¢ ditigida, formalizam processos de reflexividade social que permitem & sociedade pensar-se a si 16 propria, cxaminando ¢ modificando, de modo permanente, as préticas sociais, em fungio da informago adquitida sobre elas (Giddens, 1998, p27) Este proceso de reflexividade tem como eixo central um processo de “desconstrupao” dos problemas sociais que est no cerne da sua transformacao em problemas cientificos Esté em causa © exercicio de uma actividade critica que permite questionar, no apenas a existéncia, a definigao e a interpretago do problema, mas também as consequéncias que derivam de problematizar a realidade social a partir de um determinado angulo de andlise Estamos, pois, perante uma fungio de “produgao” de problemas que implica nfio apenas redefinir @ maneira como eles so espontaneamene equacionados pelos actores soviais, mas também demolir os problemas “falsos” ou “mal colocados” (a fungio mais vtil), ou ainda “estar atento a todos os problemas que nfo acedem A formulagio” (Bourdieu, 1997, p. 74) Conhecimento cientifico e conkecimento comum Independentemente do facto de 0 conhecimento cicntifico sobre 6 social ser um conhecimento de segundo grau, ele esté destinado, mais tarde ou mais cedo, de forma directa ou indixecta, a ser abjecto de uma devolugo aos actores soviais, sob a forma de uma reciclagem em senso comum Deste ponto de vista, como refere Giddens, “todas as formas de vida social so parcialmente constituidas pelo conhecimento que os actores tém delas”, emabora, por essa mesma 14780, a relagio entre o conhecimento produzido ¢ a acgio social seja de natureza circular ¢ nio linear, 0 que obsta a que 0 conhecimento do social se traduza de uma forma cumulativa. #, pois, em termos de uma “dupla hermentutica” que Giddens (1998) prope a compreensio da relagZo que une a investigagto cientifica do social ao seu objecto, a acgo social £ a luz da referida “dupla hermentutica” que se toma compreenstvel que a cientificidade de uma teotie nfo possa ser exclusivamente sustentada por critérios intemnos ao campo cientifico, mas possa set comunicada ¢ aceite pela comunidade nao cientifica, na medide em que esta préxima € nfo aparece como totalmente estranha 4 experiéncia dos actores ( Singly, 2002), £ a verificagdo deste facto que conduz alguns autores a matizar o radicalismo‘epistemoldgico da ruptara com 0 senso comum que deixa de aparecer como o “acto epistemolégico fundador” para s¢ transformar numa atitude de “vigilancia critica” intrinseca ao método cientifico (Madureita Pinto, 1994) uw ou mesmo a defender @ “dupla ruptura” que inclui 2 ruptura com a ruptura com senso comum” (Santos, 1989). Esta operago implica estabelece: outras formas de colocar em relagio 0 conhecimento cientifico ¢ 0 conkecimento vulgar, procedendo a uma dialectizacio cujo ponto de partida o reconhecimento da existéncia de lagos de parentesco entre 0 conhecimento cientifico e © conhecimento dos actores (Corcuff, 2002) Se reconhecemos que o conhecimento cientifico esté “condenado”, por um lado, a alimentar-se do conhecimento comum e, por outro Iado, a set nele reciclado, entéo 0 problema central passa a ser 6 que fazer para estabelecer lagos fecundos entre conhecimento cientifico ¢ 0 cohecimento dos actores que passe por um proceso aproptiativo e de recontextualizagao, nfo sendo encarado como uma “aplicagao” marcada por um simplismo linear ¢ automético Estamos em presenga de uma questio crucial pata as cigncias da educago que, ou encontram modalidades pertinentes & otiginais para 0 eslabelecimento desses lagos, ou estario condenadas a set meros. prolongamentos das matrizes disciplinares que lhes preexistiram A “eficdcia” das ciéncias da educagéo ‘As ciéncias da educacao partitham de uma fingio comum as ciéncias sociais, sintetizada numa férmula célebre de Norbert Elias, como a de “cagar mitos” F o principal mito que as ciéneias sociais tém a missio de esclarecer € 0 facto de a sociedade nao ser “natural” A contribuigdo primeira das ciéncias da educagio consiste, portanto e do meu ponto de vista, em contribuir para produzir uma visio “desnaturalizada” do campo dos fenémenos educativos. Simultaneamente e ainda que de forma menos espectacular do que alguns desejariam, as ci€ncias da educagao tém-se revelado capazes de produzir respostas para alguns “cnigmas” ¢ de evidenciar alguma cumulatividade. Hoje estamos em condigies de identificar que razSes explicam 0 fracasso das grandes reformas educativas, por todo o mundo, nas tltimas décadas. Também temos um patriménio de investigago empirica que nos permite saber como emergiu, como se manifesta, porqué ¢ quais 2s consequéncias de um fendmeno como o insucesso escolar Sabemos hoje, ¢ isso representa um passo importante, que no é possivel demonstrar @ superioridade absoluta de um método pedagégico e somos capazes de explicar porqué 18 Também comecamos a ter uma massa critica de investigapio sobre 0 ponto de vista dos alunos relativamente a escola, o mode como constroem a sua relagdo com 0 saber ¢ as nuances da sua relago estratégica com a situago escolar. Este conhecimento ilumina zonas de funcionamento da escola que, durante muito tempo, permaneceram opacas Conhecemos, hoje, razoavelmente 0 modo como so produzidas, em contexto, as praticas profissionais dos eduicadores ¢ isso permite-nos ter uma visto menos ingéaua das virtualidades da formagao inicial. Sabemos que as escolas tém funcionamentos muito diversos, umas funciona a “cores” e outras a “preto e branco” e temos explicagées para isso. Também produzimos conhecimento sobre a educagio nio escolar: a educagZo néo formal, a construgio de competéncias em contexto real, os modos de aprendizagem dos adultos, o papel qualificante das organizagdes soviais E este conhecimento pemmite-nos resolver os problemas da educado? Coloquemos 0 problema de outta forma: a persisténcia ou o agravamento dos problemas da educagdo um indicador da ineficdcia das ciéncias da educagio? Se accitissemos um tal taciocinio ele teria logicamente de ser alargado as outras ciéncias sociais. Mas esse raciocinio padece de dois ébices. O primeiro porque se fundamenta numa ideia de ciéncia que, no limite da sua perfeigo possivel, permitiria conhecer o futuro ¢ determiné-lo..O segundo porque encara a sociedade como algo que, em vez de ser contingente ¢ incerto, poderia sex comandado, niio pela politica (a escolha ¢ o conflito), mas pelo saber dos cientistas ¢ dos técnicos, a maneira de um “admirével mundo novo” A eficécia das ciéncias da educagdo costuma ser mais fortemente questionada por referéncia as priticas profissionais dos professores e educadores, se bem que, estranhamente, este questionamento apenas incida, em regra, sobre os profissionais que se inscrevem no sistema escolar Sobre isto parece-me importante sublinhar 0 Sbvio: entre a investigagio cientifica ¢ a pritica profissional (no temeno da educagio) nfo ¢ possivel (nem seria desejavel) uma relagto de trensferéncia simples ou de “aplicagao” Estamos em presenga de esferas de acgdo distintas em que vigoram distintas jade profissional, a racionalidade racionalidades (a racionalidade cientifica, a racional da decisio politica) O n&o reconhecimento da distingZo entre esses campos © essas distintas racionalidades est4 na origem dos és pecados capitais da pratica das ciéncias de educagio: > O primeizo € 0 da tentagHo nonmativa e prescritiva, como se do saber cientifico fosse possivel deduzir um saber profissional; 19. > O segundo é a tendencial subordinagdo funcional da investigagao cientifica a0 poder politico (e financiador); > © terceiro a tentagZo de manter sob tutela os profissionais do. temeno, desvalorizando os seus saberes ¢ revelando incapacidade para aprender com eles A superagio destes “pecados” s6 & possivel 2 partir de uma concepgao das ciéncias da educagio em que estas permitem interrogar prdticas, mas nao permite ditar préticas Nesta perspectiva, podemos concluir respondendo a pergunta inicial: 0 papel das cigncias da educagio o de conttibuir para um acréscimo de lucidez, por parte de todos ‘08 actores sociais envolvides no campo da educacio. Renunciando & produgio de um discurso fiandado, quer na previséo, quer na prescrigao, compete aos investigadores em cincias da educagio produzir um conhecimento que permite ajudar os actores sociais a, utilizando os termos de Friedberg (1993, p 292), “estruturar de outro modo as suas interacgdes, jogendo de modo diferente — e se possivel melhor - 0 jogo da sua Y cooperagao conflitual A credibilidade das ciéncias da educagéo A identidade das ciéncias da educagio e a natureza epistemoldgica do saber que potencialmente podem produzir constituem questées teoricamente dissociveis do valor efectivo ¢ da pertinéncia social do trabelho de investigagtio que € desenvolvido Ea partir desta dissociago que é possivel equacionar o problema da credibilidade social das ciéneias da educagao Esta credibilidade social coloca-se a pattir dos juizos de valor que extermamente comunidade cientifica das ciéncias da educapdo S20" formulados’ sobre 0 trabalho de investigagtio que desenvolvemos Amtiscar-me-ia a dizer que a solugo deste problema no apresenta dificuldades de maior, por duas razbes A primeira a de que a qualidade do trabalho de investigagio depende principalmente dos investigadores, das equipas em gue se integram ¢ das instituigdes que acothem estas equipas. O financiamento é importante, mas nio constitui uma raz3o necessétia, nem suficiente, para que o trabalho de investigasdo seja bom. O seu valor depende de nés A segunda razio é 2 de que os juizos externos s6 poderao causar-nos dificuldades se nés no formos os critics mais 20 rigorosos do nosso proprio trabalho Para isso dispomos de todos os mecanismos institucionais necessarios Uma segunda grande dimensio que pode afectar 2 credibilidade das ciéneias da educagio diz respeito ao modo fértil, ou no, como a investigario se relaciona com as préticas profissionais. Também aqui me arriscaria a ser optimista Os investigadores em ciéncias da educagio so, também, em regra, professores ¢ educadores. O “bom uso” do conheoimento cientifico deve ser visivel, em primeira instancia, nes suas priticas ¢ nos seus estabelecimentos de ensino, ou seja, no moda como eles préprios articulem 0 seu saber cientifico com o seu saber profissional. A natureza da actividade, explicitada e findamentada, das escolas e departamentos de ciéncias da educagdo sera, sem divida, 0 melhor antidoto para o cepticismo renitente 0 discurso jé vai longo e julgo que sera oportuno concluir com as palavras de Bernard Charlot (2001, p: 147): “Seremos bons ou maus, néo ein fungao dos nossos discursos sobre as ciéncias da educacdo, mas em referéncia & investigacdo que conduzimos e aos resultados que produzimos Deixemos de fazer a epistemologia dos fantasmas das ciéncias da educapao e analisemos o que elas tém sido e fizeram, 0 que sho hoje, ¢ 0 que estiio em condigGes de fazer no futuro” essa a tarefa deste congiesso Referéncias bibliograficas ARDOINO, J e BERGER, G (1994). 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