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clandestina

uma revista de literatura, psicanálise


& outras artes

vol. 3, nº 01, 2021


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cartas ao futuro

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Clandestina
uma revista de literatura, psicanálise
& outras artes

cartas ao futuro

vol. 3, nº 01, 2021


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clandestina
uma revista de literatura, psicanálise e outras artes
vol. 3, nº 1, 2021
ISSN: 2764-2852

edição: Ayanne Sobral


organização & revisão: Clécia Pereira, Heloísa Bandeira,
Emanuela Monteiro e Marina Luna
revisão final: Ayanne Sobral
projeto gráfico & diagramação: Embuá Oficina de Design
ilustrações: Emanuela Monteiro

contatos:
https://www.umarevistaclandestina.com/a-revista
@umarevistaclandestina
umarevistaclandestina@gmail.com
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editorial 10 na beira d’água 46 minha amiga 82 desejos 113
carolinne taveira cintya de abreu vieira renata rodrigues
da janela não se vê 48
não cole cartas 12 caio fonteneles gritos 87 do desejo 115
carolinne taveira rubem viana
se não vamos, eu vou 52 uma resposta 88
raízes 16 emanuella lins clandestina rio 116
priscila budaes rebeca menezes
duo 53
texto perdido 18 gabriela carrer ao futuro da palavra 89 construções 119
tatianne santos dantas germinada
instantes 57 andressa souza querido arthur 120
para minha mãe, meu pai 22 joão rocha
e o maior amor que tive sede de vida 90
joanne nascimento querido tempo 58 letícia quirino para você, ana cristina 130
marina luna cesar, sereia de papel
para maria 26 um dos eus 92 amanda m.
ayanne sobral escrever sobre a morte 62 matheus azevedo
para falar de amor sobre o futuro, agora: 134
palavras de ontem para 29 erilânia mendes voomitos cotidianos 96 imagem, desastre e tempo
o amanhã ou ode à vovó railson duarte cláudia itaborahy
clécia pereira carta à entropia, uma 66
narrativa de morte poema de um 98 vazios cheios 142
carta ao pai 30 alyson monteiro desconhecido ivan nicolau corrêa
manu monteiro severino neto
espelhos 70 elena ferrante e a 150
fotografia 33 maria kiló cartas para o que eu 99 modulação do sofrimento
jéssica gualberto chamo de futuro por meio da escrita
o olho enxerga, não vê 72 victor xavier isabelle bessa
o futuro é ancestral 35 maria verônica
gabrielle chaves desejos 103 esta carta nunca chegará 156
fardo-me 74 ao destinatário
ana helena de um lugar ainda 104 silvano barbosa
circulações 43 incerto
prezado amigo futuro 76 sabrina ximenes
nicinha
poema 44 modos de dar à luz mas 108
bartolomeu pereira lucena futuro 78 não recebê-la de volta
quézia menezes adriane leite
passagens apenas 45
passagens ainda menino 80 verde musgo-esperança 110
dave santos matheus gama erivaldo júnior

8 9
editorial

Começo pelo sonho. entre os escombros não pode ser outra coisa senão testemu-
nhar um milagre.
Há algumas semanas eu sonhei escrevendo. Quando acor-
dei, havia no bloco de notas do meu celular duas frases escritas. Hoje, nós somos muitas, muitos. Hoje a revista é formada
Na minha memória, nenhum registro. Precisei de um tempo, por um grupo lindo de mulheres nordestinas. Nós não apenas
e de uma sessão de análise, para me dar conta de que aquelas organizamos juntas a clandestina, nós a sonhamos. Juntas.
palavras eram minhas, que haviam saído dos meus dedos e dos Pensamos em cada detalhe, lemos cada um dos textos e traba-
meus sonhos e agora fariam um caminho no mundo – o de lhos que chegaram até nós, nos emocionamos e vibramos, sim,
dentro e o de fora de mim. juntas. Além disso, neste terceiro ano de revista, neste ano de
2021, nos encontramos com autores e artistas de tantos e dife-
Quando era criança eu também sonhava escrevendo. Mais rentes lugares do Brasil que, para nós, é como se as fronteiras
acordada do que dormindo, eu sonhava escrevendo, mas não já não existissem. De repente, a minha rua na cidade de Caru-
só – mas não sozinha: eu queria que as pessoas ao meu redor aru, interior de Pernambuco, se avizinha a uma rua em Belém
escrevessem também. Criei o “jornalzinho da rua”. Meus ami- do Pará, ou em Palmas, no Tocantins. De repente, da Bahia a
gos, os repórteres, escreviam as matérias e traziam para mim, Minas Gerais, de São Paulo ao Rio Grande do Norte, da Pa-
que as organizava e transcrevia nas folhas de um caderno do raíba a Sergipe, a gente pode ir caminhando juntos enquanto
colégio e entregava ao meu pai para fazer cópias no centro da conversamos aleatoriedades. De repente, somos todos amigos
cidade. Depois desse processo, com os jornais em mãos, nós os colocando cartas nas caixinhas de correspondências dos nos-
colocávamos, um a um, nos carteiros das casas dos nossos vi- sos vizinhos.
zinhos, esperando que eles lessem. (Talvez esse também tenha
sido sempre um sonho meu: que as pessoas lessem.) Uma carta – a despeito do risco iminente de se perder, de
amassar, de voar – sempre chega a seu destino. E pensar que
O jornalzinho se pretendia anônimo e, portanto, clandes- uma carta, como cada uma das que compõem este volume da
tino, mas a minha letra infantil e imatura estava ali, naquela clandestina, é capaz de romper fronteiras e tempos, feito a flor
espécie de carta que os nossos vizinhos encontravam entre as que fura o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio. Pensar que estas car-
contas de água e luz, denunciando remetentes e urgências. Ha- tas chegarão ao futuro, porque é este o seu destino, no mesmo
via, por exemplo, uma vizinha que não nos deixava brincar na momento em que o imaginam com bravura.
sua calçada, a melhor da rua, a mais plana, e que virou reporta-
gem no jornalzinho sim, claro. Éramos crianças, tínhamos voz E aí, eu penso: isto só pode ser um sonho. Mas não, é real.
e estávamos ali, que os adultos soubessem. A clandestina está aqui. Nós estamos aqui. Tem tudo aqui: re-
sistência, denúncia, diversidade, luta, amor, ancestralidade,
Hoje, muitos anos depois, os sonhos se atualizam, meta- magia, medo, coragem, desejo, amor de novo, liberdade, lite-
morfoseiam, mas são, no fundo, no fundo, os mesmos. ratura, psicanálise, arte, amor e sonho, muitos sonhos.

Começo pelo sonho porque a clandestina nasce daí: de um A terceira edição da clandestina está aqui e, agora, vai fazer
sonho meu, mas não só. Mas não sozinha. Desde o nosso pri- o seu caminho no mundo, como uma carta obstinada ou uma
meiro volume, lá em 2019, inúmeras pessoas têm se aproxi- flor delicada entre os escombros.
mado para fazer deste um movimento real. Para mim, um so-
nho se tornando realidade tem muito o jeito e a força de um Ayanne Sobral
milagre, como a flor de Drummond: uma flor que, em tempos Dez, 2021
maus, fura o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio. Ver uma flor nascer

10 11
poema visual

artista visual
Carolinne Taveira

12 13
poema visual

Regressar à linguagem e deses-


tabilizá-la. Enxergar no erro uma
possibilidade de criação ou um des-
compasso de um fazer contínuo. In-
verter lugares, rearranjá-los dentro
do que os constitui. Criar, com mãos
passíveis de apagamento, invaria-
velmente destinadas ao apagamen-
to, o paradoxo do sentimento como
marca indelével, presente em um
corpo que cessa. Sentimento esse
que persiste como sendo incapaz de
ser destruído, mas capaz de ser rein-
ventado. Seja no corpo, seja nos cor-
pos, seja na linguagem.

Como em “Ruína”, de Manoel de


Barros e seu monge descabelado, é
preciso “construir uma ruína para
a palavra amor”. Da desconstrução,
dos rearranjos dos espaços, da lin-
guagem, dos corpos, do sentido, do
sentir, fazer emergir gente dentro da
palavra.

artista visual
Carolinne Taveira

14 15
correspondências

raízes

16
texto perdido paralisar uma filha. uma tia choran- fias, uma série de movimentos do
tatianne santos dantas do de maneira aberta, a boca, os passado, viveu agora a experiência
olhos, os braços, as mãos em aberto da abolição do tempo. Consigo olhar
__________ existem pessoas que sem o suporte humano. Percebo que
“Com quem você gostaria de es- dido e não pude. Se há um vestígio abrem o corpo quando choram, era não se trata de voltar no tempo, mas
crever?” da história, ela foi contada na noite, assim com a tia. uma amiga da avó trazer para cá a menina que recolhia
guarda a impossibilidade de colocar que passa, pega o queixo da criança a dor na folha. Quanta dor se produz
Ouço, na manhã, antes do nas- acontecimentos um depois do outro, com a ponta dos dedos e depois de nesse tempo, quantas netas estão
cer completo do sol, o murmúrio da um depois do outro. olhar bem nos olhos dela: você está tentando colocar os estilhaços da
folha de cajueiro que plana no copo muito sentida. um tio escondendo o avó em folhas __________?
d’água. Há uma outra folha de ca- Há um ponto de partida, estou rosto porque na experiência daquele
jueiro entre as páginas partidas de num quarto escuro escrevendo. O tempo um homem não pode chorar O último gesto infantil da criança
um caderno antigo, folha que arran- ponto de partida não se dá sozinho, e eram eles que traziam o fechado foi escrever a carta para a avó e jogar
quei e sequei na primeira saída que tenho primos e primas ao redor. Te- do corpo. mesmo diante do corpo da no caixão. Para que ela lesse quando
pude fazer depois de passar dias e nho a lembrança da experiência no mãe, era preciso trancar o rosto com chegasse no céu. Depois disso, ela
dias em casa, em exílio. Era também corpo de que eles falam muito e eu as mãos) cresceu tanto, tanto que, na memó-
uma manhã antes do nascer comple- tento capturar toda a conversa na ria comum, quando lembra do en-
to do sol. escrita. Às vezes imagino que a car- “Percebe, como tudo sempre terro, não sabe mais como era ima-
ta foi uma colheita de palavras que acontece através das mãos?” ginar que a avó estaria no céu lendo
“Você foge da pergunta, chaman- foram caindo ali das bocas; a única a carta. Foi guardando os textos.
do as irmãs que nunca morrem em coisa que fiz foi deixar as mãos em Fiz sumir toda a dor quando es- Guarda, guarda, como quem escuta
seu socorro, mas eu ainda estou ver- posição de receber a oferta e colocar crevi. Depois da carta, comecei a ler, uma cantiga de ninar, até
de e não parei de murmurar: com cada uma no papel. ler muito, tudo que encontrava pela
quem você quer escrever?” frente, eu li. Tentei colocar uma or- Inacabada
Toda a dor. dem nos pensamentos, seguir uma
A chamada é para uma carta. E ordem, quando pude voltar a escre- “Você quer então escrever com
quando ouço falar em carta, só con- (uma mãe pegando a filha pe- ver, depois de tanta leitura, senti o essa carta, com o Texto Perdido, com
sigo lembrar daquela que foi enter- los ombros, levando até o caixão e peso de escrever ordenadamente. a dor que o papel suportou. Escrever
rada junto do corpo da mulher que mostrando o rosto da avó, tentando Uma palavra depois da outra até per- com a dor para poder transformar
tanto amei. Escrevi à noite no dia da transmitir através das mãos algo, ceber que na carta eu havia colocado em outra coisa?”
sua morte, joguei no lugar que guar- para que ela não esqueça. até hoje os a dor e experimentado a abolição
dou seu corpo e nunca mais vi. Ao ombros da filha são tensos do peso do tempo. Recolhi essa expressão
longo dos anos tentei escrever uma das mãos da mãe, a coluna costuma no diário Finita de Maria Gabriela
história a partir desse Texto Per- emperrar. ser o sustento da mãe pode Llansol, quando ela olhava fotogra-

18 19
Se a minha história tem o Teu sentido,
dá-me a mais sensualidade do conceito,
para que eu reconheça
o desconhecido que me olha
que sou eu,
e eu, viva,
termine o Teu inacabado efeito.

Maria Gabriela LIansol

Tatianne Santos Dantas,


psicanalista e pesquisadora em
Literatura atualmente vinculada à
UFS. Partilha a casa e os dias com
as gatas Savana e Cartago e gosta
muito de ler e escrever.

Aracajú, SE

20 21
para minha mãe, meu pai to e que, quando por um pouco de existi.
tempo tiveram, logo perderam. Mas
e o maior amor que tive não o amor. E não o futuro. Isso vo- Com vocês, nasço todos os dias.
joanne nascimento cês nunca perderam e pelas razões Para nós só é possível haver futuro.
todas do mundo, vocês me deram.
dança é o nosso ritmo. Ele é vivo e, Pelo maior amor que tive, quis al-
Salvador, Bahia, frente ao mar
como todo vivo, está em risco. Por Raridade. É tão bonito viver um cançar o eterno. Alcancei. Junto ao
Primavera, 2021
isso, então, a conversa sobre perda sonho, não é? E é tão mais bonito eterno, o imenso, o incondicional, o
no início – perder o futuro dá medo, viver o sonho de alguém, ao lado de desejo de vida, a festa, a certeza de
Parte de mim já não tem medo de
porque nele, nós também. alguém. Mas é raro, mais e mais em que não posso acabar. É sempre pre-
perder, mas alguma coisa, alguma
falta. Quando se encontra o raro, é ciso amar mais, ter mais um tempo
parte paralisa frente ao possível de
Esse futuro, que todos os dias ten- possível perceber que ele brilha – viva. Duplo infinito – talvez seja esse
certas perdas – as que mexem com
tam fazer parecer que não nos per- pequenas luzinhas mostrando que o tamanho do futuro, sendo que,
todos os sentidos e mostram que: eu
tence, sobrevive. Por causa de nós. E o mágico ainda existe e vale a pena com certeza, é o tamanho do amor.
também.
eu sei, com a certeza que tenho em parar e olhar. Vocês, mainha e pai- Somente através do amor é que se
poucas coisas na vida, que podemos nho, não economizaram em me criar alcança uma coisa que seja tão gran-
Perdas são sempre perdas de
chegar lá. Os tempos assustam, mas como raridade. Viveram o meu so- de a ponto de ter o tamanho do in-
compreensão, de encaixe. E são sem-
ainda não nos venceram. Quero di- nho, mesmo quando eu não sabia finito vezes dois. Amando e sendo
pre sonoras, visuais, olfativas, táteis,
zer: ainda podemos fazer a nossa qual era (especialmente quando eu amada eu encontrei o futuro.
gustativas. Perder a minha avó teve
festa. não sei qual é). Mostraram o tama-
cheiro de alecrim; perder o meu avô
nho do mundo, como posso esquecer Por isso, sei que não nos vence-
teve gosto e textura de chocolate de
Sei disso porque ganhei mui- o peso e flutuar, deram os primeiros ram. Tem sido difícil viver no Bra-
ovo de páscoa; perder o maior amor
to mais do que perdi. Ganhei você, abraços, colocaram um livro nas mi- sil, ainda mais nesse contexto de
que conheci, teve tudo o que ainda
mainha, você, painho. Ser filha de nhas mãos pela primeira vez. Leram tantas dores e perdas. No entanto,
não sei, porque só se sabe da perda
vocês é chegar através de pessoas na minha frente, muitas e muitas ve- todos aqueles que matam tanto e ti-
quando se coloca do tamanho dela.
que começaram a trabalhar cedo zes, todos os dias, há mais de duas ram tanto de nós, não conseguiram
Eu também. E isso tudo tem a maior
demais e perderam muito com as décadas. Há alguma coisa de mágica e nunca conseguirão retirar a nos-
importância.
etapas pelas quais passaram preco- em mim, insisto em não negar. Há sa capacidade de amar. É, também,
cemente. Nasci sabendo que a vida alguma raridade comigo. É culpa de por ela, que sonhamos com um fu-
Mas essa não é uma carta de per-
poderia ser mais difícil para gen- vocês: colocaram, em mim, tudo em turo e que continuamos. Precisamos
das, embora não deixe de ser sobre
te como nós, com o nosso sotaque, potência máxima. estar aqui amanhã, queremos estar
elas. É uma carta de amor. De so-
nosso pouco dinheiro e a nossa, não aqui amanhã, porque será uma nova
nhos. É, portanto, uma carta de fu-
outra, geografia. Cresci sabendo que chance de ver, abraçar, beijar as pes-
turo. Há um futuro que ainda não
para vocês quase sempre faltou mui- Vocês me amaram. E, então, eu soas e coisas que amamos. Será uma
conseguiram tirar de nós. Nele, uma

22 23
nova chance de estender nossa mão
para aquelas e aqueles que precisam
de nós. Será uma nova chance de
precisar das pessoas, ligar-se a elas,
abraçá-las. De encontrar o mais abs-
trato e mais concreto do amor e do
futuro, que acontece agora mesmo e
daqui a pouco e logo depois.

Enquanto formos capazes de


amar (e sempre seremos), uma
parte importante de nós vai querer
continuar aqui. Vamos com medo
mesmo, mas vamos. Porque o futuro
é um direito nosso, o futuro é todo
nosso e não há projeto nenhum que
cumpra totalmente o seu intento de
tirá-lo de nós. Venham. Com alegria.
Nossa hora é agora e sempre que
quisermos.

A vida tem cheiro, gosto, som e


toque de tudo. A vida chama o vivo.
Vem.
Joanne Nascimento,
mestranda em Literatura e Cultu-
Vamos não morrer como desafio? ra pelo PPGLitCult (Programa de
Pós-Graduação em Literatura e
Não vou morrer, ouviu, Deus? Cultura) da Universidade Federal
(...) porque é uma infâmia nascer da Bahia. Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado da
para morrer não Bahia (FAPESB). Pesquisadora do
grupo de pesquisa Aláfia (CNPq).
se sabe quando nem onde.
Pesquisadora de Teoria e Crítica
Vou ficar muito alegre, ouviu? Literária Contemporâneas. Tem
interesse por estudos na área de
Como resposta, como insulto. Literatura Brasileira Contempo-
rânea, com ênfase em literatura
produzida por mulheres.
Clarice Lispector, em Água viva
Salvador, BA/Irecê, BA

24 25
para maria do te escrevo esta carta, esta carta Acontece, vó, que essa menina ti-
que você nunca vai ler, estou na es- nha um medo, o medo de ser olha-
ayanne sobral
trada, e estou sozinha. Eu sempre da, de ser notada pelos homens que
soube que queria tatear o mundo, cruzassem o seu caminho. Ela só
Foi no dia seguinte ao enterro, vó, onde moramos, para ir cuidar de sua
vó. Aprendi muito cedo a forjar ca- tinha 15 anos, vó. Clarice conta que
o primeiro sem que você estivesse filha que havia acabado de parir em
minhos em direção à coragem. Eu ela subia no ônibus “séria como uma
no mundo como eu o conhecia. O outro estado, isso há mais de qua-
sempre soube que precisaria me ver, missionária por causa dos operários
mundo, você sabe melhor do que eu, renta anos. Você nunca aprendeu
ainda que miúda, corajosa. O que que ‘poderiam lhe dizer alguma coi-
segue implacável, mesmo diante das a ler, vó. Por que nunca ninguém
eu nunca soube até o dia seguinte sa’. Aqueles homens que não eram
maiores tristezas. Não importa que te ensinou? E por que eu não sabia
ao enterro é que... você também. Na mais rapazes. Mas também de rapa-
você tenha acabado de deixar o cor- que você foi uma mulher que viajou
verdade, eu sei muito pouco sobre zes [ela] tinha medo, medo também
po de alguém no cemitério, os carros sozinha muitas e muitas vezes? Eu
você e saber pouco sobre você, vó, é de meninos. Medo que lhe ‘disses-
vão continuar cruzando as avenidas não sabia, vó. Penso no meu corpo
saber muito pouco sobre mim. sem alguma coisa’, que a olhassem
e pessoas seguirão levando os ca- sendo moldado a partir do seu cor-
muito. Na gravidade da boca fecha-
chorros para passear e outras vol- po, penso nos traços que carrego e
Existe um conto de Clarice Lis- da havia a grande súplica: respeitas-
tarão para casa buscando distração que são seus, tracejado de um mapa
pector, aquela escritora de quem eu sem-na.” Esse medo me parece tão
nas janelas do ônibus. Não há pau- cujas fronteiras inexistem. Tudo é
sei que você já ouviu falar, embo- familiar, vó, e agora me pergunto
sas e nisso vida e morte revelam sua travessia. Você não tinha medo de ir
ra nunca a tenha lido – você nunca se alguma vez você o sentiu, se nas
mesma e exata fragilidade. sozinha. Eu também não tenho, vó.
aprendeu a ler, vó, por que nunca viagens que fazia sozinha, você tam-
ninguém te ensinou? Existe um con- bém desistia de sorrir para que o teu
No dia seguinte ao enterro, vó, Quando fiz dez anos, meus pais
to de Clarice chamado Preciosidade, sorriso não fosse confundido, ou se
nós estávamos jantando, painho, compraram um computador, aquele
ele é sobre uma menina de 15 anos sentar ao lado de uma mulher, de
mainha e eu, falávamos sobre o mis- objeto excêntrico, e eu resolvi fazer
que todos os dias pegava um ônibus “uma asseguradora mulher”, era,
tério, e meio sem querer eu deixei um curso de informática. O curso fi-
e um bonde para chegar na escola, e para você também, uma sorte e uma
escapar que havia sido tomada por cava em um lugar do outro lado da
por isso ela tinha que levantar quase trégua.
uma vontade imensa de viajar. Des- cidade que, naquela época, parecia
de madrugada, se vestir correndo,
cansar um pouco, eu disse. Me sentir imensa para mim, e hoje eu lembrei
sair com as luzes da noite ainda ace- No conto de Clarice, um dia a me-
viva, pensei. Nesse momento, o meu das tantas, tantas vezes que fui para
sas na rua. Eu sempre gostei muito nina se surpreendeu com dois rapa-
pai, vó, seu filho, contou que você as aulas sozinha, de ônibus, com a
desse conto e outro dia, relendo-o, zes vindo em sua direção numa rua
havia viajado muitas e muitas vezes, autonomia possível para uma me-
me chamou atenção esse trajeto que vazia, seu coração se espantou. O
sozinha, de ônibus, e sem saber ler. nina de dez anos de idade. Eu lem-
a menina faz todos os dias, sozinha, medo que ela sentiu, vó. “Ela os ou-
E ela nem sabia ler, ele disse. Como brei, vó, porque essa é uma imagem
devaneando e sorrindo, “como se via e surpreendia-se com a própria
na vez em que você saiu de Caruaru, que tem se repetido muitas vezes ao
sorrir fosse em si um objetivo”. coragem em continuar. Mas não era
interior do estado de Pernambuco, longo da minha vida, porque quan-
coragem. Era o dom. E a grande vo-

26 27
cação para um destino”, sua autora Eu tenho me feito a muitas mãos, as
palavras de ontem para o
diz. Em uma fração de segundo, ela mãos de todas as mulheres que me
foi tocada por quatro mãos numa procederam e principalmente das amanhã ou ode à vovó
rua tranquila. Eles a tocaram, vó, e que me sobreviverão, e por isso, vó,
clécia pereira
ela permaneceu em silêncio, de pé, eu continuo. Prometo continuar.
enquanto eles, assustados, fugiam.
os dias não serão patéticos
minha filha
“Estou sozinha no mundo!”, ela
não tem credo ou ave maria
grita diante do grande silêncio dos
que dê conta dos dias em mal súbito
ladrilhos já no banheiro do colégio.

tenha fé, tenha fome


Este não é um conto didático, vó.
ponha os olhos no altar
Clarice não quer nos ensinar nada
caminho de si mesma
com ele, nem mesmo apontar saídas
e não esqueça o umbigo que te liga às tripas
para questões tão absolutamente sé-
rias e importantes. Se te falo sobre
faz do coração chave
ele agora é porque fico pensando
e para os tempos imperialistas
nesse medo com o qual todas nós,
três voltas e resista
em algum momento da vida, tivemos
que nos deparar. E pensar sobre esse
e por fim, não esqueça
medo, vó, em um mundo onde você
de regar palavras:
já não existe, me impulsiona para a
plantas do submundo
coragem. A sua coragem, a coragem
onde o teu, o meu presente nó
de minha mãe, a coragem da mãe de
se fazem versos
minha mãe e, também, da sua mãe,
a coragem da filha que ainda não
tive e da minha sobrinha que hoje é
só um bebê.

Essa coragem é, na verdade, dom. Ayanne Sobral, psicanalista e Clécia Pereira, poeta, professo-
professora. Mestra em psicologia ra e pesquisadora. Integrante do
O dom de continuar. clínica (Unicap), doutoranda em Grupo de Pesquisas Transdisci-
literatura e cultura (UFBA). Ela plinares sobre Estética, Educação
gosta de fazer de conta que é uma e Cultura - O Imaginário (UFPE/
Estou aqui na estrada, vó, sozi- mulher azul. CNPq).
nha, mas não me sinto só. E sorrio. Caruaru, PE Caruaru, PE

28 29
carta ao pai mas, eu, finalmente encontrei este bém. O lápis escolhido é tão macio,
manu monteiro aqui: 300g/m, algodão. Mesmo sa- e, quando se junta aos dedos, parece
bendo que talvez essa folha estivesse que ambos têm vida própria. Existe
certa, optei por guardar o bloco em vida própria em nosso sentir? Meus
Querido pai,
um lugar pouquíssimo frequentado dedos dizem que sim. Meu peito ja-
na casa. Algum tempo depois, res- mais acreditaria nisso.
espero que essas linhas um dia comprado com a pura finalidade de
guardava trocando de lugar. Quan-
possam te encontrar ainda em vida. te escrever. Foram alguns blocos,
do lembrava do esconderijo, tentava Foi cansativo fugir de você, meu
Que nosso reencontro nunca se con- mas estou quase certa de que este
não lembrar que ela foi comprada pai. Também é complicado escon-
cretize, e que a saudade, que infeliz- irá servir. Primeiro, tentei uma folha
para te escrever. der o papel do lápis, o rabisco da fo-
mente ainda persiste, desapareça. simples que não denunciasse muito
lha, e esquecer as folhas em lugares
Usarei esse pouco tempo que temos zelo, nem carinho. Depois, optei por
Uma escrita direcionada a você, da casa que eu fingia não conhecer.
para algo que, de fato, não sei bem o algumas folhas de caderno, um ca-
pai. Que tem vergonha de mim ao me Exausta! Fui derrotada pelo cansaço
propósito. Eu, que relutei tanto em derno até antigo, que, a propósito,
ver na rua. Passei noites imaginando e pelas lembranças existentes e ima-
dar um pouco do meu tempo a esta eu gostava muito e não tive coragem
o quanto, por causa do seu olhar, eu ginárias, confundidas entre o real e a
carta, tentarei não gastar muito do de jogar fora, existiam poucas folhas
poderia te dizer alguns palavrões. vontade do que nunca conseguimos
seu tempo também. Aliás, tempo é sem escrita.
A borracha é incrível, mesmo colo- ser. Gostaria muito de te encher de
algo que não deveríamos gastar com
cando o papel contra a lâmpada, não culpa por essa distância, de esfregar
quem não oferece o seu de volta. Assim que comecei, cada letra
mostra. Às vezes uso a força para as crueldades e palavras em momen-
parecia muito exposta, dava para
apagar e descubro que não é neces- tos tão frágeis, relembrar o quanto
Diante dos rabiscos e letras ras- ver do outro lado, mesmo quando
sária tanta dureza, mesmo com le- eu não ligo por você ter me esquecido
gadas, engolidas, violadas, e mortas tentava escrever com uma certa le-
veza ela serve ao seu propósito, só tão facilmente. Será que você de fato
entre poucas que ainda não nasce- veza ou ainda segurar o lápis sem
demora mais tempo. Mas, apaga. me esqueceu? Agora já não importa.
ram, esta se concretiza. Nascida e pressa nem demora. A invenção da
Sei que nesse jogo de papel e lápis, Ainda lembro do seu bigode, caindo
forjada na minha não vontade de escrita não demonstra correria des-
eu consegui não te escrever por mui- aos poucos ao saber que amo outra,
sua existência, ela vive. Ela tem voz. propositada. Ou muita demora nas
tos anos. Sou boa em jogos, sabia? outras e tantas mulheres. Das tapas,
E fez questão de escolher por conta vogais. Quando terminei, as linhas
Os anos se passaram. Vieram tantas pontapés e dos dedos firmes apon-
própria suas ferramentas. Escrita pareciam forjar uma delicadeza tão
mortes, pessoas sendo queimadas tando para a porta. Saída sem volta.
com o melhor lápis, e uma borracha extinta entre o meu peito, as conso-
vivas, ossos para matar a fome, um Lembro da liberdade e do medo que
ainda virgem. Acabei de usar. A bor- antes e minhas mãos. Depois da se-
monte de conhecidos exaltando um senti em continuar, em deixar ser...
racha é muito boa, não deixa marcas gunda, terceira e quem vai saber? Na
falastrão. Eu não morri de covid, E toda culpa que me fez sentir quan-
nem denuncia o que já existia antes, décima tentativa e quase desistindo
cheguei a desejar morrer. Inúmeras do insistia em ficar. Passou um filme
perfeita. Acabei me demorando na dos formatos coloridos, amarelos,
vezes. E me senti horrível por esse na minha cabeça agora, e eu não sin-
escolha do papel, que também foi papel de pão, amanteigado, 80 gra-
desejo, e por continuar viva, tam- to mais raiva de você, pai.

30 31
Talvez, nem saudade.
fotografia
jéssica gualberto
Da sua filha que já se perdoou.
Dia desses telefonei para casa e te passa na frente dos seus olhos
PS: Diga à mamãe que mandei minha mãe contou que você está apertados de tanto sorrir da mesma
lembranças também. Espero que olhando fotografias antigas diaria- fotografia, vista diariamente.
ela esteja bem e se recuperando da mente, chega do trabalho, pega ál-
cirurgia. Caso um de vocês parta buns antigos e observa um por um. Você, que sempre teve a leitura
dessa vida, prometo realizar o úni- Achei curioso esse seu movimento, escassa devido ao trabalho que co-
co desejo que para mim parece ser logo você, que sempre gostou de, meçou cedo, lê, agora, através da
possível, infelizmente não enquanto após o trabalho, assistir jogo na tele- fotografia, a história da sua vida, da
estiverem vivos. Não comparecerei visão, mesmo sendo uma “reprise”. família que construiu, dos netos que
aos seus funerais, não se preocu- chegaram e dos bisnetos que estão a
pem. Espero que façam o mesmo Sentado no sofá, despretensiosa- caminho, de tudo que lhe causa or-
por mim. Contudo, mandarei flores mente, com o seu olhar doce e gentil, gulho e contentamento.
sem remetente. convida vovó a estar ao seu lado para
relembrar os bons e velhos tempos Veja, não é fácil para mim ver
Fiquem bem. da juventude, do quanto era bonito você envelhecer tão nitidamente na
e jovem, contando infinitas histórias minha frente, os cabelos cada vez
dos galanteios no forró. mais branquinhos, o passo claudi-
cante, a memória se esvaindo, me-
— Maria, você não vem?! nos quando se trata de negócios fi-
— Depois, José, estou ocupada fa- nanceiros, para isso está lúcido até
zendo o jantar. demais. Sem contar que dormes em
qualquer lugar, seja na sala de jantar
Sem se contentar com a resposta ou no sofá. Prefere se alegrar com
de sempre, levanta-se ao encontro qualquer besteira a contar as dificul-
dela com os álbuns embaixo do bra- dades com asneira, e fala constante-
ço, de modo a compartilhar as lem- mente que sente saudade.
Manu Monteiro, preta, sapatão,
cis, escritora e poeta caruaruense.
branças do que sente cada vez que
Militante da marcha Mundial das mexe nas fotos preto e branco, ou Nesses anos todos que convivo
Mulheres. Segundo ela, escrever é
sangrar entre as linhas, onde sua nas coloridas, que são as mais recen- contigo, nunca o vi assim, saudoso
voz e seus anseios se masturbam. tes. Talvez faça isso, frequentemen- que só vendo, e achou um jeito de
Caruaru, PE te, para frear o tempo que velozmen- sofrer menos com a idade avançada,

32 33
dando um significado para as foto-
o futuro é ancestral
grafias, pedindo para imprimir as gabrielle chaves
mais recentes e acrescentar aos qua-
dros em branco na parede. A isso,
chamo amor. Acordei de supetão, respiração vel de saúde e mais tanto tempo na
ofegante, olhos dançantes rastrean- preparação de sua cirurgia que não
Tenho evitado me despedir, com do o espaço na tentativa de me lo- hesitamos quando tudo foi aprova-
medo que você parta mais rápido, e calizar. é familiar, mas não é meu do, mesmo estando apavoradas sem
quarto, o que é estranho pois há saber como teríamos ajuda de nossa
eu, com isso, perca o brilho dos teus
muitos meses a palavra de ordem – comunidade para criar nossa crian-
olhos quando me vês chegar, por
sensata – é: fique em casa. me viro ça, mesmo com tudo acontecendo
isso, assim como tu, uso as fotogra-
e lá está ela, deitada de conchinha de uma vez, mesmo com essa infin-
fias para enxergar o que antes não
numa calmaria uterina incomum, é dável pandemia, mesmo com a falta
via, o amor, a tristeza e a alegria, e
a casa dela, compreendo num sus- d’água e de luz cada vez mais fre-
na melhor das hipóteses, eternizar
piro de alívio e raiva remontando a quentes, devido aos crimes ambien-
você na memória, como uma foto-
cena da noite passada misturada ao tais contínuos, mesmo com a necro-
grafia em que aproveitei o melhor
sonho vivido há pouco, pela terceira política desgovernando o mundo,
que tinha no dia, a tua companhia.
noite sonhada uma carta cigana me não hesitamos e dissemos sim, so-
aparece e não sou capaz de ver qual mos sobreviventes, sobreviveremos
é, que raiva receber continuamen- semeando.
te a mensagem criptografada e não
saber decifrar, sinto meu estômago O cheiro de café tomou a casa,
embrulhar, os enjoos matinais es- lembrava da carta ao passar lenta-
tão bem mais esparsos nessa décima mente a água pelo coador, o ven-
Jéssica Gualberto, psicóloga e
psicanalista, associada ao Corpo
oitava semana, contar em semanas to trazia o cheiro de lima da pérsia
Freudiano de Barra Mansa - RJ, é mais uma das tantas mudanças do sabonete dela, ela já conseguia
com especialização em Interven-
ções Clínicas na abordagem Psi- que têm me tonteado, meus seios tomar banho e se vestir sozinha,
canalítica pela Fafire. Sempre que incham enquanto os dela gradativa- grande feito do último mês, tivemos
pode, escreve poesia, coisas da
vida, fotografa pessoas e lugares, mente cicatrizam, não esperávamos um susto na terceira semana de sua
como uma maneira muito sin-
gular de lidar com o cotidiano, a
que o plano de saúde autorizasse recuperação com um princípio de
realidade dura e crua que é viver. minha inseminação logo um mês inflamação na mama direita, o que
A escrita sangra por seus dedos,
e deles nascem textos publicáveis antes da mamoplastia dela, foi uma sua cirurgiã competente e cuidadosa
e outros apenas para esvaziar os eternidade até que conseguíssemos logo observou e tratou, quanta dife-
pensamentos após longos dias de
trabalho. garantir meu direito como parceira rença uma equipe negra para huma-
Jaboatão dos Guararapes, PE
reconhecido por esse sistema vendá- nizar e dignificar nossa saúde, a car-

34 35
ta tinha algo dourado e vermelho, locomover, as estradas abandonadas cídio imposto a nossa população, o ar nos chamando do pequeno bar-
mas qual era, perguntava para ciga- há anos pelos governos sem petróleo pai dela definitivamente começou a co solar de nossa comunidade, pre-
na em voz alta, nenhuma resposta, eram cenários de puro caos, carros me aceitar como companheira assim cisávamos ser rápidos, a memória
na noite passada ela mais uma vez capotados, às vezes em chamas, ma- que entendeu que seria realmente esvaeceu como um sopro disper-
gritou que era difícil confiar, sei que tagal alto, pessoas em bandos atra- possível uma inseminação com es- sando fumaça, merda, minha barri-
tem muito medo envolto nesse gri- vessando a pé de nenhum lugar para permatozoides gerados das células ga deu pontadas, a criança já reagia
to mas quase não acreditei que ela lugar algum, famintas e sedentas em tronco da medula óssea de sua filha, com fortes emoções, a acariciei com
pudesse ainda dirigir isso para mim, busca de uma migalha qualquer de os genes dele seguiriam para o ser as duas mãos, ela também veio me
minha pele parda às vezes endos- futuro, o perigo da morte estava em que eu estava gerando, uma frus- abraçar, gesto raro na frente de seu
sava seu temor, ela se aproximou toda parte no ar, inclusive pelo ví- tração visível do tal macho prove- pai, sorrimos com o novo ritmo se
me abraçando por trás, como era rus, ou pelos ricos sociopatas majo- dor estampado em seu rosto assim estabelecendo, a bahia nos é esse
de costume mesmo antes da barri- ritariamente brancos que atiravam como vi por vídeo no rosto de meus chão restaurador de vitalidade, saí-
ga crescer, senti de novo a raiva de de seus drones por puro prazer em tios piauienses quando comunica- mos da estação pelo portal higieni-
ontem, mas tive medo de ser brus- matar, as leis cabiam em seus bolsos mos a efetividade do procedimen- zador de segurança biológica direto
ca e machucá-la, ela sussurrou no como há muito, já estávamos com to, tento imaginar recepções mais para o barco estacionado momenta-
meu ouvido pedindo desculpas, es- cinco horas de viagem, os trens aé- calorosas de minhas avós com essa neamente em frente a uma das sa-
tava muito estressada com a vinda reos eram mais lentos que os aviões evolução científica mas no fundo sei ídas marítimas, quem veio foi meu
dos pais para, enfim, embarcarmos, superlotados mas muito mais segu- que são projeções possíveis por elas mano mais novo com seu bigodinho
o irmão e as tias já haviam encon- ros por conta das variantes extre- não estarem mais aqui, em vida as ralo, há três anos ele tinha iniciado a
trado meus pais e irmãos na bahia, mamente contagiosas, viajávamos lentes preconceituosas delas nos hormonização de transição, quando
seria uma longa travessia, o proce- em cápsulas por núcleo familiar de enquadravam violentamente em vi- aos quinze se reconheceu como pes-
dimento de segurança biológica foi no máximo quatro pessoas, as clas- sões distorcidas, desembarcamos no soa trans não binária, meus pais es-
acionado na porta, eles tinham che- ses mais abastardas fretavam seus fim de tarde com a baía de todos os tavam certos de que era uma fase, a
gado, como estavam envelhecidos, próprios aviões, apesar de privile- santos deslumbrantemente pintada velha cegueira preconceituosa, ape-
pensem também em meus pais, logo giadas, estávamos longe dessa rea- de rosa grená-laranja-vermelho em sar de apoiá-lo essa cegueira tam-
estaríamos em comunidade, não via lidade, em duas horas chegaríamos seu extenso litoral, no rosto da mãe bém me habitou no começo, desde
a hora de encontrar nossas amiza- na estação de itaparica, desde que dela escorriam duas lágrimas, ela fa- a conclusão de seus estudos univer-
des, nosso povo, tantos lockdowns e atravessamos a fronteira da bahia o lou como se pensasse em voz alta: - sitários ele tem assumido o desejo
procedimentos de higiene não dimi- cenário embaixo de nós era um tan- quem diria que eu sobreviveria para pelos hormônios, navegamos por
nuíram o poder de um abraço calo- to mais humano, em 22 a república ver isso acontecer. vinte minutos, e caminhamos por
roso, já estávamos com as passagens nordestina – antigo norte e nordeste mais dez, quando chegamos na co-
em mãos quando o trem aéreo abriu – se emancipou do brasil e a bahia A sensação de dejavú me arre- munidade o céu já estava escuro, en-
a cabine, erámos privilegiadas sem em especial tem governadoras ne- batou, fui levada para as três noites tramos por uma porta especial para
dúvidas, muitos irmãos e irmãs não gras por doze anos seguidos mudan- sonhadas, a carta cigana apareceu quem vinha de longas distâncias,
tinham como comer, morar, quiçá se do sensivelmente a direção do geno- viva, o grito de meu irmão cortou o trocamos de roupa e depois da tra-

36 37
va de segurança biológica dona nete velha yayá rainha de nossa cozinha, rosos ao refeitório avarandado da genialidade com tecnologia e cálcu-
mezinheira nos aguardava sozinha junto com minha sobrinha coman- cozinha comunitária a vizinhança já los meteorológicos; - essa garota faz
com suas ervas e cinco velas acesas dam a tropa na feitura das refeições estava em peso, como era sexta-fei- das tripas coração, diziam os mais
na saleta, ela deu sua beberagem no grande fogão agroecológico, avis- ra a maioria de nós estava de branco velhos quando a viam trabalhar,
para todos menos pra mim, rezou tamos no chão do terraço da agroin- mas não havia unanimidade religio- queimadas são muito preocupantes
com suas ervas em nossos corpos, e dústria o irmão dela na esteira ao sa na comunidade, com tantas famí- devido às secas prolongadas e ao es-
me ofereceu 3 frutinhas vermelhas lado de suas três tias nas cadeiras, lias e suas histórias singulares de fé casso abastecimento d’água, eu es-
redondas, comi e um flash da carta extraiam a fibra do cânhamo, ali o que tínhamos de prática comum tava completamente exausta apesar
me veio à mente, como se lesse meus onde são também fabricados doces, era cuidado, compromisso, confian- do teor de vida-e-morte da discus-
pensamentos dona nete me disse em geleias, licores, óleos essenciais e ça, responsabilidade, conhecimento são, estávamos de mãos dadas e ela
sussurro: - descanse e a mensagem mel para dentro e fora de nossa co- e respeito, era uma vida guiada por logo percebeu as piscadelas alonga-
chegará, minha filha. munidade, eles vieram três semanas uma ética amorosa, enfrentávamos das, - vamos, disse, me levantando,
antes de nós pois ainda precisáva- um punhado de problemas de convi- - não vamos conseguir contribuir
Saímos para o grande terreiro a mos da liberação da cirurgiã para vência mesmo assim, abraçávamos com nada agora, achei graça a inver-
céu aberto, o céu estava repleto de viajar, o turno de trabalho já estava a ética amorosa utilizando todas as são de papéis, era sempre ela quem
estrelas, com os anos de apagões terminando, logo mais teríamos o dimensões do amor para estruturar pegava no sono pelos cantos dentro
temos usado a luz elétrica apenas jantar e depois a reunião comunitá- nossa organização democrática e ou fora de casa e eu a conduzia para
para o essencial, as luzes das cida- ria de balanço diário, onde partilhá- conduzir a resolução dos conflitos, cama, uma agitação me tomou a
des já não escondem as estrelas em vamos os processos vividos no dia e hoje era dia do famoso caldo de pei- despeito da exaustão, mesmo deita-
noites claras de lua nova como esta, prospectávamos as ações do ama- xe de yayá, aproveitamento típico da o coração palpitava forte me im-
vejo um meteoro riscar o céu, espero nhã, da saúde à segurança, do plan- do almoço de sexta, procedente da pedindo de apagar por completo, ela
para ver mais um, mas meu pai que tio à alfabetização, dos sistemas de pescaria dos netos do falecido mun- já suspirava profundamente ao meu
estava com os gêmeos finalizando a água-luz-mantimentos à desenten- dinho e dos filhos de dona octavia na lado quando começou a chover, pin-
colheita da mandioca e do inhame dimentos e acontecimentos familia- costa da ilha, uma grande queimada gos grossos batiam contra o telhado
vem nos recepcionar: - sejam bem res, entre tantas outras atividades, o se aproxima de nossos muros pela e escorriam por sua inclinação pro-
vindos, família! vocês devem estar mar retumbava ao longe, era um tra- ba-001, incêndios são recorrentes pícia para captação
famintos, nos acolhe em um abraço balho infindável viver em comuni- há muitos anos vindos dessa região,
caloroso com as mãos amarronzadas dade tal qual o incansável trabalho lambendo cada vez mais hectares de A natureza definitivamente não
de terra, ele que se gabava de ser o das ondas, minha mãe e meu irmão mata atlântica remanescente e re- cabe em cálculos, sempre nos sur-
único irmão na família sem cabelos mais velho já haviam saído da ma- florestada; - está mais grave e mais preende, essa chuva certamente nos
brancos, ficou com as laterais da ca- nutenção das cisternas e do círculo próximo dessa vez, disse na reunião daria mais tempo e mais água, ador-
beça nevada nestes últimos meses de bananeiras para nos encontrar a jovem responsável pelo monitora- meci, dona nete me apareceu com
com a morte do griô mundinho, la- no terraço, estávamos em festa com mento de catástrofes de nossa co- suas ervas e frutinhas vermelhas;
crimejei de saudade, os gêmeos tam- abraços trocados, aquela falação e munidade, ela tem a idade de meu - siga o tambor, sua voz retumbou
bém nos abraçaram, eram filhos da risadaria, quando chegamos chei- irmão mais novo e uma descomunal dentro de meu corpo, escutei o toque

38 39
ijexá vindo ao longe pela esquerda
enquanto me encaminhava acom-
panhando o som, árvores cercavam
a estrada, eram goiabeiras aroeiras
e gameleiras, barulho de chispas de
fogo e gritos ecoaram do outro lado;
- siga o tambor, repeti para me con-
centrar, embaixo de uma goiabeira
havia uma senhora negra passando
em círculos um maracujá aberto na
careca de uma moça, a moça era eu,
reconheci num susto, mas o tambor
seguia ressoando seu ijexá, respirei
fundo e segui me dirigindo ao som,
avistei no alto de um morro próximo
um rapaz moreno com calça de linho
branco sem camisa batendo ataba-
que ao lado uma dançarina de longo
vestido dourado e vermelho grandes
cabelos encaracolados esvoaçantes:
a cigana!, os alcancei, do baralho ela
me entregou a carta, espie:

Gabrielle Chaves é natural de


Teresina-Piauí, e em seus 30 anos
morou por São Luís e Imperatriz,
no Maranhão; Salvador e Itabuna,
na Bahia; Niterói e Rio de Janeiro,
no Rio de Janeiro; atualmente
está de volta às terras soteropoli-
tanas. Atualmente está imersa nos
mergulhos com os estudos e práti-
cas ancestrais. É psicóloga - escu-
tadeira de histórias e curandeira
de saúde integrativa, exerce uma
produção de saúde mental com o
corpo e o espírito integrados; atra-
vés das palavras, da poética, das
ervas medicinais, brinca na clínica
o ser-estar no mundo.

Salvador, BA

40 41
correspondências

circulações
poema passagens apenas passagens
bartolomeu pereira lucena dave santos

para reinventar o mundo Passagens apenas passagens


é preciso Interesses de lasciva e composição
estar à margem, Dores que corroem o sentido
recusar, Aspectos que denominam o outro
parar Percepções incolores de si
como quem deixa Modos estranhos à possibilidade
pela metade. Sendo apenas na bula a indicação
é preciso Do teto para cima aquilo que apenas desce
reconquistar o corpo, Sutil, amoroso, cinzento
inventar a roda, Claro como rio e espesso como chuva
repensar a luta, Temperamento aquecido pela fervura
desarrumar. Passagens apenas passagens
vencer o velho e o novo, Se há um futuro, que chegue logo
desbloquear Que na sua presença algo se transforme
as vias, Mesmo que meramente em superficialidade
as veias das ruas.
indefinidamente
amar
o que ainda
nem é,
e por isso
basta. Bartolomeu Pereira Lucena é
de Malta/PB. Cursou Filosofia na
UEPB, é mestre em Filosofia pela
UFRN e professor da rede esta-
dual de ensino do Rio Grande do
Norte. Publicou entre 2013 e 2014
os livros “Ruas de Sal e outros
poemas” (FUNES) e “Caderno de Dave Santos
planos e voos“ (IDEIA). Publicou é graduado em Filosofia e Letras.
em diversas revistas. Fez dos livros seu ofício.

Lagoa Nova, RN Caruaru, PE

44 45
na beira d’água E depois? Pergunto.

carolinne taveira Depois, ensaia o voo, mas abule os


territórios da terra. É preciso antes
se ater a superfícies. Depois disso,
serás grande. Mas para ser grande,
A água da nascente tarda a descer é preciso, antes, silenciar-se na bei-
Os meus pés gorjeiam pela terra ra d’água e ser campo de passagem
O canto do amanhã para amanhecer.
E espreitam ritmicamente uma par- Escuto:
tida. Repara na água da nascente.
Eu descanso meu pe(n)sar no ombro E enquanto o silêncio do som cresce
da morte nos meus pés,
Ela me pega pela mão e diz: Escrevo na beira do rio a cor de uma
Eu vim aqui para te fazer lembrar vida que se parte.
que tudo nessa vida é para ir-se Mas escrevo.
E me faz ensaiar passos curtos de
sua dança.
A água já desce da nascente. Nunca
é tarde, ela me diz, nunca há de ser
tarde.
E me conduz inteiriça e me refaz
criança brincando de ser minha pró-
pria mãe, dizendo-me: cuidado, o
sentir carece, vez em quando. Carolinne Taveira é doutoran-
da no Programa de Pós-Gradua-
Muito. ção em Literatura e Intercultura-
lidade (PPGLI) da Universidade
Ensina-me a ser grande, eu peço. Estadual da Paraíba (UEPB).
Ela me sorri em dança Mestra em Literatura e Intercul-
turalidade (UEPB) e graduada
Com penduricalhos cristalinos em Letras - Língua Portuguesa
(UEPB). Atualmente desenvolve
E verte palavra anunciada: pesquisa na área de Literatura
Brasileira Contemporânea, Artes
É preciso, antes, silenciar na beira Plásticas e Estudos de Gênero
d’água. e Sexualidades. Escreve para se
salvar e amanhecer.
...
Fagundes, PB

46 47
da janela não se vê cozinhando, limpando - mais demorado e carinhoso –

caio fonteneles e servindo, veste as roupas simples e se sen-


e principalmente, [ouvindo]. ta à pequena mesa da cozinha.
Não eram “empregado e patrão” Pela janela, um mar de outras
Mas, sim, [“entidade e janelas
Às 4 da manhã ela [levanta]; Ônibus, invocador”]. que parecem estrelas
já nem precisa de alarmes, [ônibus], O nome dela era dito e, incrustadas no morro.
[a necessidade é o suficiente]. um outro ônibus prontamente,
O corpo [meio morno] entra e uma rápida e intensa Sua forma [deveria estar ali][?]. “Ah, sr. Enésio,
em contato com a água [fria] caminhada. [o mundo acorda tão cedo
- o breve momento em que, [Ela sobe] a escadaria do No final do dia, ela se despe e dorme tão tarde].
como [num susto, o corpo condomínio, do uniforme, Você não tem ideia.
expulsa o ar e o puxa de volta] –, já sentindo o metal frio da velha despede-se de todos, Eu conheço o mundo
o sabão dá razão ao banho [bandeja de prata em suas mãos] mas somente o sr. Enésio e também o submundo,
e, novamente, água fria. onde serve as bebidas e os ali- responde. sou [a parte emergente],
Sentada na cozinha, tomando mentos [Sai rapidamente], parte [do fundo
o [seu café] e comendo do [pão para aqueles que chamam [Desce] as escadas do que flutua à tona],
comprado na tarde anterior], ela de patrão. condomínio. parte [da pobreza
ainda boceja, mas agora menos, [Entra rapidamente] pela sala, Uma rápida e intensa que emerge em meio à pompa],
[o corpo] já sabendo O relógio marcando sete caminhada, mas [só por algumas horas].
que [logo] da manhã. Ônibus, Eu [luto quando deveria
[sairia para sustentar o mundo]. A família [se levanta], [ônibus], trabalhar]
Beija cada um dos três filhos, o idoso sr. Enésio, já sentado um outro ônibus E [trabalho quando deveria
e se demora na filha mais velha, [à janela] da cozinha, e uma escalada no morro, lutar].
onde [silenciosamente] “gosto de ver [o mundo] o descanso da sua singela Os [meus sonhos]
ela [chora ao ver] como cresce acordar”, diz ele. casa no topo. A cada ano
e [não consegue acompanhar]. Uma pena que aquele não Chega às nove e meia, as Se tornam [o ouro mais puro]:
era o mundo [de verdade]. crianças brincando no quarto; Mais [caros,
Ela desce o morro o sorriso da filha mais velha difíceis
pelas ruas e vielas [Ela] não [era] uma pessoa. - a única a recebê-la. e raros].
desejando [que o dia amanheça Era uma espécie de [espírito] Nem [sempre subimos,
o mais rápido possível]. que se movia pela casa Toma um novo banho Mas sempre descemos].

48 49
E eu [subo e desço],
do pobre ao rico,
do rico ao pobre,
e sofro ao ver que [no final estou
sempre embaixo].
[O mundo não está na moldura
da janela], sr. Enésio.
[A moldura esconde a verdade]
dos seus antigos olhos.
Da janela [você não vê].
Me desculpe,
mas [o mundo ainda não
é o ‘mundo’
que] o senhor [imagina].”

Seus [olhos se fecham] às


dez e meia,
sabendo que até às quatro
[seus sonhos] não [viriam];
[a necessidade sempre era
mais veloz].

Caio Fonteneles é cantor,


compositor, multi-instrumen-
tista, produtor musical com um
notebook prestes a pegar fogo.
Um artista que escreve demais às
vezes. Mas, na verdade, nunca é
demais.

Rio de Janeiro, RJ

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se não vamos, eu vou duo
emanuella lins gabriela carrer

Agarrada na vida e tentando não sufocar,


Eu olhei para a porta e me vi entrar Mas depois aconteceu de novo
desejando e temendo as ruas,
Passei por mim quase como se e eu já não era quem costumo
querendo abraçar.
tivesse algo a falar conhecer
Sinto que aqui estou presa e a escrita
Eu olhei, vi e quase entendi, Existe um gelo no qual meu outro
me liberta,
mesmo sem abrir a boca eu está envolto
sinto que sinto muito por todos, sinto
Eu sei que tinha algo a contar, Ela não parece expressar
que esse é um momento escuro.
mas também a ouvir nenhuma emoção
Mesmo calada, meu corpo grita.
Eu estava diferente, não surpresa Às vezes é como se não me
Aparecem manchas, alergias,
Havia uma fenda e laços amarrados enxergasse
mapa-múndi de falta de encontros
Consegui ver quando cheguei e Tenho me perguntado quem
com os que amo.
passei por mim está fora do lugar
Meu corpo se pinta de ronchas e brotoejas.
Enxerguei a mim própria parada Por vezes acredito ser eu e não ela
Busco o sol para me aquecer.
em estado de transe e decepção Eu, que pertenço a este mundo, sou
Que esses dias passem e a gente possa sair,
Mas se me vi, então eu não no fim a intrusa
sem pensar muito para onde, sem planejar
era mais eu Eu estou frequentemente me
demais com quem.
Eu me vi visitando e não consigo entender
Vamos sair apenas. Vamos viver.
Existe algo errado porque me vi Não sei se ela está no passado,
Vamos, por favor, vamos?
Me vi, mas não foi no espelho futuro ou outra realidade
Vamos, ou vou eu.
Me reconheci passando por Tenho reparado e muitas vezes
Vou, e não quero saber.
mim dentro de casa não existo, só tomo forma
Primeiro soou como se eu quando me encontro
Emanuella Lins (os que ama, a
chamam de Manu) escreve porque tivesse corrido um pouco mais Porque toda vez que converso c
precisa e durante a pandemia
escreveu demais. É apaixonada E na correria do dia a dia, om as pessoas, elas não sabem
pela psicanálise e pela literatura tivesse ido dormir no mesmo do que estou falando
e pelo encontro das duas, ama o
fato de que, juntas, elas a per- tempo em que acordei Eu olho para trás e enxergo
mitem descobrir o que está para
além do que define como seu. Me esbarrando então nesse uma brecha através do tempo

Campina Grande, PB
momento

52 53
do qual me perdi
Observo as tão distantes
décadas, elas me soam recentes
Então experimento um leve voltar,
mas é só sentimento
Eu estou presa aqui agora
Parece que para estar perdido
basta se encontrar
Tenho atravessado véus, ido
parar em vários lugares e em
todos pareço bem
É quando percebo que não sou
daqui e nem estou aqui.

Gabriela Carrer tem 26 anos, é


apaixonada pelas artes e todas as
suas formas de expressão.

São Paulo, SP

54 55
correspondências

instantes

56
querido tempo Já trabalhei muito aos sábados, na urgên-

marina luna cia de que não poderia te perder, tempo. Às


vezes, no domingo também. Daí fui me dan-
do conta de que a vida adulta vai fazendo a
Santa Bárbara, Minas Gerais, Brasil gente basear tudo em você. O rigor de seguir
Setembro de dois mil e vinte e um uma rotina e a ordem cronológica das coisas
vai assustando. Eu mesma fui ficando meio
Querido tempo, como uma inimiga sua. Te ver passar pare-
Não sei como te escrever. Tento materializá- cia assustador. Isso vai tomando mais de um
-lo, mas na verdade essa carta deve ser para sentido. Me refiro à rotina, mas também,
mim mesma. Para o meu agora, para o meu claro, à vida. Não lembro exatamente quan-
passado e para o meu futuro. Mas, bem, di- do passei a te contar rápido demais. Alguns
gamos que seja para você, tempo. Digamos chamam essa pressa de ansiedade. Excesso
que você é alguém que recebe cartas casual- de futuro. Os novos nomes para as novas di-
mente em sua casa. Digamos que você recebe ficuldades.
mensagens de pessoas tristes e felizes, que
têm muitas pessoas a quem escrever, mas Agora faz silêncio aqui dentro. Escuto al-
decidem falar com você. E eu preciso falar guns passarinhos, vou no balanço da rede de
com você. ou talvez comigo. um fim de semana de setembro. Você passa
e agora minha pressa vai sendo combatida.
Veja, são dezesseis horas e trinta e sete mi- Parece até uma guerra interna. Mas aí eu
nutos. Entra uma fresta de luz pela janela. É vi que você, tempo, passa mais lentamente
sábado. Tomei meu café forte e amargo logo quanto mais apressado a gente esteja. Perce-
cedo pela manhã. Fumei meu cigarro. Orga- bi que você tira as coisas do nosso controle
nizei a casa, que estava uma bagunça, colo- e passa a colocar no teu, e que tudo isso não
quei água nas plantas e, agora, estou balan- tem nada a ver com cronologia. Isso assusta
çando na rede. Fiz tudo isso bem lentamente, e me coloca em passo de não saber o que fa-
algumas coisas até ficaram inacabadas. Tal- zer com a minha pressa.
vez amanhã eu faça. Agora vou balançando a
rede, lentamente. É certo que desde a adolescência passei a ter
muita sede de viver. Achei que oportunida-
des não deveriam ser perdidas. Que só temos

58 59
uma vida. E todas essas frases foram base- Escureceu e a preguiça me impede de levan-
ando minhas escolhas, meus impulsos e mi- tar. Mas, talvez, no escuro seja possível es-
nhas corridas. Acontece que nisso a gente vai crever uma carta a você, tempo. Ou para mim
querendo te dominar, tempo, vai querendo mesma. Parece que só no escuro há futuro.
que as coisas sejam para já. Bobagem. Porque o passo precisa ser lento e a desco-
berta do que está a nossa frente, também.
Amanhã chegarão notícias de outro tempo.

Mas só amanhã.

Por hoje, não posso mais nada do


que esperar.

Taí uma palavra difícil: espera. Me dei conta


esses dias. Esperar e esperançar. É sempre
futuro. O futuro é incerto. A gente pode acre-
ditar muito, inclusive fazer coisas que nos
levem até ele, ao futuro, mas tem algo do fu-
turo que sempre escapará das nossas mãos.
Talvez só os loucos possam ter amanhã. É
preciso uma dose de loucura para ter espe-
rança. É preciso menos seriedade. É preciso
passos lentos, sem pressa, sem amarras, mas
amarás?

Silêncio. Faz silêncio aqui dentro. Está es-


curo. Ouço o pulsar do coração e a respira-
ção percorrendo os detalhes desse corpo que Marina Luna é psicóloga e
psicanalista. Mestra em psicologia
me mantém viva. Tudo acontece aos poucos. clínica, doutoranda em psicologia
do desenvolvimento, clínica e
Processos. Não tenho como saber o que será. saúde. Dá aulas. Escreve, às vezes.
O próximo instante é vago. É das letras, daquilo que tem vida,
das andanças e do mar aberto.

Santa Bárbara, MG

60 61
escrever sobre a morte para ventei, então, que sabia ler. Eu poderia in-

falar de amor ventar que sabia escrever? Me atrevi. Mas

erilânia mendes antes, li, eu já tinha inventado mesmo. Li.


Li as notícias do jornal, cifrei os números
Os tempos pandêmicos me convocaram a de mortos, li o caos e a poeira também. Em ²BARROS, M.
Menino do
uma escrita. O que poderia eu escrever? Eu? dois espaços, sertão e cidade. Enquanto via a mato. Rio de
morte escancarada, teria meu primeiro tex- Janeiro:
Escrever? Escrever para quem? Quem res- Alfaguara, 2015.
tou? O papel em branco me restou. Escrevi to base para ler: “Observações sobre o amor
³FREUD, S. Ob-
coisas, palavras e sons, tais como o amor, de transferência²” . O que eu queria com o servações sobre
o amor de trans-
que para Guimarães Rosa, cresce primeiro, amor, ali onde só tinha morte? Leitura vai, ferência (1915).
leitura vem. Assim como eu, indo e vindo, do In: FREUD, S.
brota é depois . Um tema bonito: A clínica Observações
psicanalítica durante a pandemia: o divã sertão para a cidade. De um sertão meu. Meu psicanalíticas
sobre um caso
vazio e a presença dos aparelhos tecnológi- por natureza. Nisso, fui parar em “Grandes de paranoia
relatado em
cos. Como poderia eu viver esse momento e Sertões: Veredas”. Estava em uma busca in- autobiogra-
fia (O caso
pesquisar sobre ele? Inventar? Me atrever? cessante pelo amor. Estava misturado, doí-
Schreber),
Quando menina, fui nomeada de atrevida do. Doído ver amor na morte. artigos sobre
a técnica e
por uma língua mais atrevida ainda, a da mi- Falar de quê? Do amor de transferência³. outros textos.
Vol X. São Paulo:
nha mãe. Amor de transferência em tempos pandêmi- Companhia das
letras, 2010.
cos. Falar de troços e destroços. Ou melhor,
Ia vivendo, me atre(vivendo), perturban- ¹ROSA, J. G. o troço do amor e os destroços da pandemia. ⁴Música de origi-
nal de Belchior,
Grandes Ser-
do o sentido normal das ideias, como diz Ma- tões: Veredas.
Duas coisas, como se fossem dentro e fora, disponível em:
https://www.
São Paulo: o que estava pulsando e o que já não pulsa,
noel de Barros¹ . Pensei que pesquisa fosse Companhia das
youtube.com/
watch?v=aUjne-
coisa de gente grande, mas descobri que só Letras, 2019. mas insiste. Precisaria abrir para o sertão de 9Bb9KI
poderia fazer isso menina. O que é escrever minha solidão, como canta Belchior⁴ . É do-
sobre um tema? Eu me perguntava por onde ído. Escrever na página é doído. Escrever na
começar, mas sabia que, sobretudo, eu que- vida é doido e doído. Mas Guimarães Rosa
ria, queria deslizar as palavras, fazer daqui estava lá no meu ouvido: “Carece ter cora-
outra coisa e outra e mais outra. Queria es- gem… carece de ter muita coragem”.
crever, no papel e na vida.
Eu achava assim, que ser atrevida era ser
Quando eu era uma menina dessas que atrevida e pronto. Era ou não era. Descobri
ainda não sabia ler, eu só sabia inventar. In- que para se atrever tem que ter coragem.

62 63
Tem que ser mulher⁵. Maria Bethânia quan- tava escrevendo sobre a pandemia e os apa-
do foi homenageada com o prêmio da música relhos tecnológicos? Eu estava insistindo,
brasileira, disse ao final, “50 anos, tem que mais uma vez, no amor. Seja o de transferên-
ser mulher. ” Mas eu, Maria...Maria, eu tô cia, seja qualquer pedacinho de amor que me
por aqui na casa dos 20, aprendendo, ain- desse um descanso na loucura e um pouqui-
da, o que é uma mulher, mas já clamando nho de saúde em meio ao caos dos tempos
por ela. Ao clamar por uma mulher, me vejo sombrios brasileiros.
menina… do mato, quem sabe, mas menina.
Ensaiando o feminino, inaugurando minha Tive que submeter minha escrita, minha,
escrita. E recorro, como Freud nos orientou, tão minha, que senti como se tivesse extrain-
aos poetas. Mas precisamente às “puetas”, do um pedaço meu que me deu sustento. Não
com “u”, que é como cresci escutando. Ca- basta ler para entender o que eu queria sus-
rece de ter coragem para ser atrevida, para tentar sobre o amor. O que eu escrevi preci-
bordear uma escrita, não é? Percebi. Precisa sava ser lido na minha letra… percorrido no
ter mais coragem ainda para atrever-se a ver ⁵ 2 6° Prêmio da caminho da minha fala. Em 20 de abril de
música brasilei-
amor na morte. ra| Maria Bethâ-
2021, eu sustentei, pela via do amor, a mor-
nia, disponível te. Faltavam poucos minutos para eu dar um
em https://www.
Fui ler e viver a pandemia. O que eu lia youtube.com/ pedaço de minha voz e sustentar o que havia
watch?v=9qSH-
era morte, mas insistia em falar de amor. O jXMFmp4 escrito. O celular toca, o justo aparelho tec-
amor na clínica psicanalítica. Li “O banque- ⁶LACAN, J.
nológico que nos dá a ideia de distância pró-
te”: “No começo da experiência psicanalítica (1960-1961). xima. A notícia era de morte. Morte perto. E
O seminá-
foi o amor⁶” . Lacan, através d’O banquete, rio, livro 8: a ao pé da letra, eu falei de amor para inscre-
transferência.
no “Seminário 08: A transferência”, traz o Rio de Janeiro: ver, em mim, a morte.
Jorge Zahar
amor em ato, bordeia o que não se pode dizer Editor, 2010.
sobre o amor. E era isso o que queria para A carta ao futuro escrevo aos pedaços.
minha escrita: o ato. Mas onde queres o ato, Junto os cacos. Cheiro a flor. Sigo e insisto
sou espírito… espírito que gritava, espírito no amor. Vibro por um feliz acaso.
que rasgava minha vontade de viver, de não Erilânia Mendes é estudante
de psicologia, pesquisadora no
falar sobre a morte. Insistir no amor. LAPSO (Laboratório de Psicaná-
lise de Orientação Lacaniana).
Sertaneja. Escreve para dar conta
de carregar água na peneira.
Escrevendo e vivendo a pandemia, tinha
que falar sobre minha pesquisa. O que eu es-
Campina Grande, PB

64 65
carta à entropia, Você, sim, é solitária. Vai cendo um tricô, uma peça mortu-

uma narrativa de morte acender algum cigarro vagabun- ária para cobrir nosso corpo frio,

alyson monteiro do e olhar o fim de tudo. E de- depois da morte. Ser velho é ter
pois? O que você vai fazer? poeira na alma.
Querida Entropia. É uma porra de uma mensa-
gem na garrafa. Quero colocar O que acontece depois do fim Dizem que o olhar não enve-
Querida não, você não deve aqui toda angústia e miséria hu- do mundo? Vai comprar flores lhece, Deus tem os mesmos olhos
ser tão querida assim. Faz frio mana. Os gritos dos excluídos ar- para a humanidade? Só você vai do menino do Gênesis. O espíri-
no final de tudo? O vazio exis- ranhando cada letrinha. Todas as participar do nosso velório. Que- to é um garotão de dezoito anos,
tencial é gelado? Foi por isso que lágrimas de todas as pessoas, do ro tulipas. preso no corpo. Deveria era criar
Deus criou o sol? Como foi o fim começo dos tempos até os últi- forças e sair pelas narinas dos
de tudo? Desceram anjinhos sal- mos dias – todas juntas – criare- Desejei a morte, é verdade. velhos. Fuja, espírito! Corra para
titantes do céu, com espadinhas mos um oceano, maior que esse Queria deitar com a desgraçada, as montanhas, deite nas cachoei-
flamejantes? que será destruído. Mais traba- passar as minhas mãos enruga- ras, destrua essa carne com chei-
lho para você. das no seu corpo gelado. Meu ro de naftalina. Vá para longe.
Você não vai responder esta Só me responda uma coisa: corpo desgastado e quente junto Saia através de um espirro. Es-
carta, não vai mesmo. Você tem qual a música toca no fim? Pos- do seu corpo frio. Será mesmo corra como catarro dos narizes,
mais o que fazer, ou não tem so sugerir? Que tal a sonata 14 que a morte tem um corpo? Sei seja um espírito melecado, mas
nada o que fazer. É como gri- de Beethoven, enquanto a últi- que tem batom vermelho em seus feliz. Espírito de porco. Queria
tar para uma caverna e esperar ma dança dos astros, da vida e lábios, eu vi nos meus sonhos. saber quem foi que viu o olhar
ouvir a própria voz e não ouvir da morte dançam ao seu ritmo? de Deus! Um velho, essa é minha
nada. Acabaram com tudo mes- Toca um Sidney Magal. O tempo é um maldito, pior certeza. Um velho e você, Entro-
mo? Até com as coxinhas? As que a morte, pior que você. Te pia. Você viu ele, não é?
peças de Shakespeare? Deixava O que sou para você? Um pe- livra da velhice que acaba com
pelo menos Rei Lear vagando no daço de carne escrevendo uma tuas costas, tinge teus cabelos, Gostaria de saber se Ele tem
vácuo da não existência. carta? Um cadáver que respira? cega teus olhos, quebra teus os- rugas. Pediria para desligar o
Poderia mandar essa carta sos, vomita rugas no teu rosto tempo. Mesmo que tudo parali-
para Deus, para os deuses do Um pedaço de solidão em far- e joga-te um balaio de doenças. sasse, como uma fotografia. Sor-
fim dos tempos – mas estão to- rapos? Aqui tem uma fagulha de Tudo isso sutilmente. Vai traba- riria. Ficaria eternamente sor-
dos envelhecidos: surdos, cegos vida. Como diria Ortega y Gas- lhando como uma idosa, fazendo rindo, só em saber que Ele matou
e sem dentes. set: eu e minhas circunstâncias um enorme tricô. É isso que és, o tempo. Eu mesmo esquarteja-
estamos aqui. tempo: uma velha encardida te- ria o tempo, pisaria nas horas,

66 67
subtrairia os séculos e prenderia Queria levar alguns objetos dos de uma pele fina e me joga- nidade. Mas quer saber?! Tanto
os segundos em garrafas pet. para o céu. Levaria um guarda- ram nesse asilo, cheio de velhos faz, estou mais perto de Deus, já
-chuva e um radinho de pilhas, como eu. Pegaram minha alma sinto o cheiro de flores. É a morte
Eu sei que estou à beira da para escutar os jogos do Santa tediosa e me jogaram neste pla- a última amante de todo homem.
morte. A dificuldade de locomo- Cruz. Levaria um cigarro, mas netinha azul. Aqui só tem velhos, Vai chegar em um vestido preto,
ver-me mostra que estou indo em tem o risco de não deixarem en- expressões tristes em cada rosto. lábios carnudos e avermelhados,
direção ao túmulo. A dificuldade trar. Fumaria nas portas do pa- O tempo depravou com todos. dançaremos um tango de Gardel,
de respirar diz para mim que es- raíso, jogaria a fumaça na cara tomaremos um gole de tequila e
tou perto da terra. Voltarei a ser de São Pedro, estufaria os peitos Deveríamos fazer um exérci- verei o último pôr do sol de mãos
pó. Deitarei no chão, esperarei e transpassaria as portas do céu. to, marcharíamos lentamente, dadas com ela.
ser pisado e vou passear no tênis Levaria minha vitrola. Levaria curvados e solitários, em bus-
sujo de um desconhecido. Adu- minha dentadura, só para garan- ca do tempo. Encontraríamos Eu e a tua filha, Entropia. Eu e
barei um pé de manga, mas não tir. e prenderíamos no mais fundo tua filhinha. Gostaria que daí do
poderei comer da fruta e não será calabouço e exigiríamos como li- futuro tu pudesse ver meu sorri-
por falta de dentadura, e sim de Velho fala demais. A língua bertação nossa juventude. Nos so banguela para você. Meu rosto
boca, de estômago, de vísceras, não perde sua juventude, as cor- chamaríamos Os Filhos de Do- velho e sem dentes é o rosto da
de coração, de sentimentos e de das vogais enrouquecem, o fôle- rian Gray, o que você acha? Nos- humanidade e essa lágrima que
desejos. go evapora e as palavras fogem so estandarte seria a capa do ro- escorre da minha face é um mi-
da cabeça, mas a língua continua mance de Proust: Em Busca do núsculo oceano. Que você vai ter
Eu ainda rezo para os santos lubrificada. Seria maldade se, Tempo Perdido. Uma marcha fú- que destruir. Pode acabar com
que meu pai rezava. Estão des- além de cego, surdo e broxa, de- nebre, uma multidão de anciões, tudo, estamos todos loucos.
gastados, há uma rachadura na cepassem nossa língua. Eu preci- empunhando espadas e escudos.
boca de São Francisco, parece so dela para sentir os sabores. E Quem visse, pensaria que estarí- Eu te amo, mas vá se foder! Não
que está sorrindo de mim. Debo- vou precisar dela para lamber a amos rumando para o cemitério esqueça das minhas coxinhas.
chando. Não rezo para ele. Não terra quando partir. Falo muito, mais próximo. A vida é isso mes-
se brinca em serviço. Rezo para velho gosta do silêncio e odeia mo, uma caminhada até o cam- Ass: A humanidade envelheci-
São Jorge, todo imponente em o barulho, mas precisa se ouvir po santo, com breves paradas, é da em um manicômio
cima do seu cavalo. Guerreiro. para saber que está vivo. Quando verdade.
Matou dragão e poderia usar sua o mundo se cala, parece que des-
Alyson Monteiro é formado em
lança para matar o tempo. Que- cemos à sepultura. Resolvi escrever para não es- Administração pela UFPE, escri-
brar em mil pedacinhos. quecer da minha existência, para tor, editor da @arreliqueeditora e
amante de coxinhas.
Pegaram meus ossos revesti- você se compadecer da huma-
Caruaru, PE

68 69
espelhos força de uma memória ancestral
maria kiló ferrera que incide sobre o mais deterio-
rado dos seres, os raros que ain-
da obedecem o abstrato múscu-
Certa noite, um cão preto me contive meu andar apressado, lo pulsante, aquele que nos tira
espreitava na ladeira enquan- deixei a angústia me atravessar e dá a vida, o negro soprar não
to eu ensaiava calar meu pas- a garganta imaginando que o profano vindo do coração, que
so apressado, sozinha. Nunca o bicho fosse apenas mais um ser outrora pertenceu a outro, e, as-
havia visto antes, e o medo me humano que, em sua ignorância sim, perpetuará.
tomou. Meu corpo pesava, uma divina, decide me espreitar por
lágrima caiu e minha visão en- curiosidade, exótica. Para meu
turvou. Poucos metros atrás, alívio, o cão me olhou nos olhos
era perseguida por um homem, abrindo caminho. O homem, que
também preto, e esse com toda antes me assombrava com to-
certeza eu não conhecia, mas sa- das as suas cicatrizes, chicotes
bia que talvez dele não pudesse e aquele gosto de vingança que
escapar, pois no cão havia o es- também experimento antes de
tranhamento do primeiro encon- dormir, fugiu daquele caminho
tro, mas no homem, em soma, escuro e gélido que reluzia em
existiam o medo, a dor e o ódio, seus olhos, parecendo dar mais
ingredientes suficientes para uma chance ao fardo que o levou
me transformar em um possível até ali, enxergando talvez a mor-
Maria Kiló é fotógrafa, caruaruense,
descuido, ou, quem sabe, suge- te em vida que avassalaria nos- poeta e produtora cultural, 27 anos.
Organizadora do Balaiô Caruaru, Slam
rir para ele o heroísmo. Não sei, sos corpos, pretos, levados ao Caruaru e Slam das Minas Caruaru. Em
afinal, eu, até então presa para ócio sangrento do subsistir. 2018, foi ganhadora da segunda edição
do Slam Caruaru, também da segunda
ambos, parecia estar particular- edição do Slam Capibaribe. Em 2019,
participou da noite da poesia marginal
mente apetitosa e sem defesas. Acredito enfim nos milagres, no Polo do Repente no São João de
De certo no fim daríamos muito mas naqueles em que os huma- Caruaru e também do projeto “Poe-
sia Sobe o Monte” na Semana Santa
lucro ao criador. nos tomam para si suas culpas e promovida pela Prefeitura de Caruaru.
Em 2020, lançou seu primeiro livro de
não culpam deuses ou o destino poesias, de nome "Inflama", e em 2021
lançará seu segundo livro intitulado
Sabendo que o cão é um ser pelo próprio fracasso ou esco- "Risco".
irracional e de fácil dominação, lha de alguém. Confio, enfim, na
Caruaru, PE

70 71
o olho enxerga, não vê e CPI, as pessoas vão. O ônibus
maria verônica chega, uma hora de viagem pela
frente. Enquanto isso, a miséria
ao lado, deitando e rolando, sol-
Dois mil e vinte + um, agosto, No ponto do ônibus, cinco mi- ta. Caminhantes olham, passam
aniversário de minha avó, oiten- nutos de espera, tempo suficien- como se não vissem. Estamos no
ta e oito anos, um dia comum, te para ver o quão errada está a tempo de ver, a luz invadiu todos
chuva, céu nublado. vida. Avenida principal da cida- os buracos de nossos olhos, e não
de, pessoas sem máscaras com lemos a cena principal.
Notícias, as de sempre: os po- faces descaradas, enquanto ou-
dres poderes no centro da CPI. tros ainda morrem ou lutam nas Olhares desatentos, dia nubla-
Olhos vidrados nas telas acom- UTIs. Homens e mulheres pas- do, céu chorando em gotas a dor
panhando reuniões e olimpíadas, sando, indo e vindo, sem perce- do mundo.
redes virtuais só falam disso. berem o abismo do outro lado.
Fico matutando: depois de tan-
tas mortes, há o que comemorar? Na parada, levo cinco minu-
tos para pousar o olhar na cena
Andando para o trabalho, mais chocante, uma pedra no sa-
atravesso o sinal, um corpo ren- pato que vou carregar ao longo
te ao chão, pobre pássaro redu- do dia. Onde era uma padaria,
zido a uma imagem, quase uma com pães e croissant, agora uma
impressão na pista fria. Fininho, fachada, sem faixas. Abrigo de
corpo marrom, um pouco úmido. desconhecidos. Outros oito cor-
Ainda vejo seus olhos inquisido- pos. Mortificados em parte pelas
res, sei que não vejo, mas é como regras desiguais do jogo da vida,
se visse, cobrando sua morte por sobrevivendo. Corpos dormindo,
minha urbanidade, roubei seu acomodados em colchões velhos
habitat e ainda o atropelei, vi e papelões, sonhando com pão. Maria Verônica é uma estudan-
te, psicóloga e supervisora clínica,
seus olhos gritando isso, mesmo que ama psicanálise e literatura.
Que carrega uma dor para a vida
que não visse. Os olhos seguem desatentos inteira e tenta aliviar o peso que
pressiona seu peito com o amor,
para lá e para cá. De olhos co-
trabalho e escrita.
lados na tela vendo olimpíadas
Caruaru, PE

72 73
fardo-me dar com o eterno irresolvido
ana helena dentro dela. Apenas eu tenho
tempo para terminar esse texto,
e, talvez, me conhecer um pouco
Quando eu começar a escre- Assim, entre a eu que serei e antes que ele chegue até seu pon-
ver, eu me conhecerei melhor. É a eu que fui, vive a eu presen- to final.
isso que eu tenho me dito nos úl- te. Com as minhas frustrações e
timos três anos, desde que decidi fome e roupas costuradas porca-
ser escritora. Ainda assim, não mente. A mim, resta a meia feli-
escrevi muito, e me entendo me- cidade, a meia realização, a meia
nos ainda, prefiro delegar isso à meia que ainda não terminei de
minha eu do futuro. tricotar.

Minha eu do futuro não sofre Deus me livre da ira da minha


por antecedência, não tem an- eu futura se ela me alcançar. Ela,
siedade e muito menos insegu- que é agente dos meus desejos e
rança. Melhor do que isso, ain- vítima dos meus vícios. Ela, que é
da, é o fato de que ela não pode menos minha do que eu sou dela,
reclamar comigo. Afinal, quando sendo sempre arrastada pelos
delego a tarefa a ela, o meu eu seus passos para frente, a única
delegador não existe mais e a mi- prova de nossa união, a corrente
nha eu do futuro ainda não veio a que se estende do agora à certeza
existir. (Imagino que o SAC dos enevoada do futuro.
meus egos seja uma eterna mú-
sica de elevador, interrompida Devo a mim mesma meu aban-
apenas por uma voz robótica di- dono. Ninguém merece arrastar-
Ana Helena tem 19 anos, estuda
zendo Nenhum dos eus que você -se rumo ao destino, nem mesmo Escrita Criativa na PUCRS e ainda
não esgotou o questionamento: é
tentou alcançar está disponível a eu que será. Ou a eu que fui.
escritora só quando está escreven-
no momento. Tente novamente do ou isso se trata de um estado
de espírito? Enquanto não chega
mais tarde ou aguarde na linha Devo abandonar-me porque a um veredito, escreve e existe na
ausência de título, apenas como
para mais informações.) apenas a eu do presente tem a um ser humano que sente.
efemeridade necessária para li-
São Paulo, SP

74 75
prezado amigo futuro
nicinha

Prezado amigo futuro,


Estou escrevendo para dar notícias mi-
nhas, e lhe dizer quanta esperança tenho em
você. De onde escrevo é chegado um vírus,
uma pandemia. Um verdadeiro inimigo, que
me fez perder muitos amigos.

A situação é difícil, mas minha fé e cora-


gem de vencer são grandes, assim como a
vontade de poder lhe ver.

Quero para meus descendentes o brilho de


uma vida melhor, com muita saúde, trabalho
e farturas. Uma vida com pé de rosas, com
flores muito perfumadas, rios limpos com
muitos peixes, uma floresta grande, verde e
orvalhada e uma fauna bem protegida.

Amigo futuro, assim me despeço, agrade-


cendo por me escutar, pois não posso só re-
clamar. Lhe agradeço se essa você ler e tam-
bém puder me escrever para boas notícias
me dar.
Cleonice Otília - Nicinha é
Um grande abraço de sua amiga Nicinha, artesã ceramista em Caruaru.
Trabalha com e pelo grupo de
filha do barro, aquela da esperança que con- mulheres artesãs Flor do barro.
Concorre atualmente ao título de
tinua sendo a mesma criança Patrimônio Vivo de Caruaru.

Caruaru, PE

76 77
futuro Do Futuro espero amores
quézia menezes possíveis,
Diversidade,
Mais amor.
Juazeiro-Ba, 06 de outubro de 2021. Reencontros felizes, Amor novamente.
Respiros, E amor, mais ainda.
Futuro, Suspiros, De você, Futuro, espero intensi-
de você não espero nada. dade de vida.
Espero lutas intensas, porém
Gostaria que essa frase não mais leves. As do presente me Sim, eu espero! E eu sei, eu
tivesse sido escrita “da boca pra parecem pesadas demais para sei, eu sei que não se deve espe-
fora”, mas foi. O que escrevi é mim. rar nada de ninguém, mas penso
mentira! É uma grande mentira que do Futuro é o único tempo
que dizem por aí, e eu achei que Espero o brilho nos olhos, de onde nós humanos podemos
acreditava nela até começar a Lágrimas de felicidade, esperar alguma coisa, porque é
escrever esta carta para você. É, O abraço apertado, somente assim que encontramos
Futuro, parece que meu desejo Do Futuro espero um ódio possí- alguma razão para continuar
de enganar-me não se sobrepõe vel de ser simbolizado, dando sentido à existência.
ao da expectativa que eu coloco Uma fúria dialetizável,
em você. Respeito às diferenças, Futuro, de você, sim, sigo na
Menos armas... alegre esperança de esperar.
Minha insignificante verdade Doces emoções,
é: de você eu espero. Desejos decididos.

Li, certa vez, que esperar tem Do Futuro tenho a esperança


a mesma origem da palavra es- da potência da palavra escrita,
perança, é isso que trago aqui, é cada vez mais.
uma posição ativa também. Por Arte,
isso do Futuro espero: Música,
Quézia Menezes é psicóloga,
E livros. psicanalista, mestranda em Psi-
cologia Clínica - UniCaP, e uma
mulher que escreve.

Juazeiro, BA

78 79
ainda menino
matheus gama

cuida o menino
que um dia já foi tu

preserva o sorriso
mesmo quando
se forem os dentes
mesmo quando
brancos forem
apenas os fios
mesmo quando
a fala for arrastada
mesmo quando
arrastarem-se os pés
o sorriso preserva

quem tu foi e ainda é


se cuida menino

Matheus Gama, depois de anos


escrevendo fanfics, foi direcionado
por uma oficina de escrita criativa
ao universo das poesias e desde
então tem escrito e postado textos
no instagram (@poettheus), se en-
contrando cada vez mais tanto no
que escreve, quanto no que lê.

Santos, SP

80 81
minha amiga turo. Como definir onde começa Você deve imaginar que meu
cintya de abreu vieira um e termina outro? Os restos... texto está cheio de grifos, mas
deixo essas duas citações. Amiga,
Agamben diz que ser contem- Agamben falando sobre receber
Palmas, 3 de outubro de 2021. na live de natal, em dezembro do porâneo é ter coragem de manter o facho de trevas que provém do
ano passado: "Feliz 2001!” o olhar fixo no seu tempo, poden- seu tempo no rosto lembrou-me
Minha amiga, do perceber o escuro e não as lu- aquela frase de Clarice Lispector
Brincadeiras à parte. Quero te zes. Como é mais fácil ficarmos em “Hora da Estrela”, quando ela
Como estão as coisas por aí? contar sobre algumas coisas que fascinados pelas luzes do próprio diz que a vida é um soco no es-
Por aqui, te escrevo com minha tenho lido e pensado. Outro dia, tempo e recuar da escuridão, você tômago. Haja coragem para não
mente fervilhando, tenho mui- a professora do mestrado reco- não acha? recuar dessas ambivalências da
tas coisas para te falar. Essa se- mendou um texto. Curto, mas de vida.
mana me peguei pensando sobre uma grandiosidade que não cabe Quero compartilhar com você
esse nosso hábito de trocar cartas em palavras. O texto ao qual me alguns recortes de frases dele que É, minha amiga, parece que
em pleno século XXI. Não troco refiro é de Giorgio Agamben, “O me impactaram: psicanálise e literatura têm um
essa inquietante e doce espera de que é o contemporâneo?”. Serí- “Q” de pessimismo. Ou seria esse
suas palavras por uma mensagem amos contemporâneas nutrindo “Contemporâneo é, justamen- o nome para esses discursos que
imediata de whatsapp. Essa nos- esse hábito há anos de enviar car- te, aquele que sabe ver a obscu- incluem o real? Que admitem as
sa mania é tão importante para tas uma para outra? Ou seríamos ridade, que é capaz de escrever ambivalências? Que acolhem o
mim, você sabe. retrógradas saudosistas que não mergulhando a pena nas trevas desconforto, o sem-sentido, o in-
conseguem avançar e se apro- do presente”. familiar das experiências?
Como a gente pode ser tão jo- priar dos hábitos de sua época? Já é Outubro, nós estamos can-
vem (30 anos ainda é jovem, não “O contemporâneo é aquele sadas à beça dessa pandemia. Ali-
é?) e conservar coisas tão anti- Ah, minha amiga! Para Agam- que percebe o escuro de seu tem- ás, realidade essa que mais uma
gas? Lembra que te falei que estou ben, o contemporâneo não se res- po como algo que lhe concerne vez nos fez repensar a questão do
com a cabeça fervilhando? Então, tringe ao que é exclusivo do nosso e não cessa de interpelá-lo, algo tempo. Haverá futuro? O futuro
de certa forma, tem a ver com tempo, enquanto tempo cronoló- que, mais do que toda luz, dirige- não existe. Ele só existe na condi-
isso. Tenho pensando muito nes- gico. Aliás, ele me fez pensar na -se direta e singularmente a ele. ção de uma invenção.
sa questão do tempo, ou melhor, noção de tempo em psicanálise, Contemporâneo é aquele que re-
dos tempos. Acho que a culpa é tempo não como algo estático, cebe em pleno rosto o facho de E já caminhando para me des-
daquela poética provocativa meio mas fluido e dinâmico. O passado trevas que provém do seu tempo”. pedir de você, lembrei da carta
premonitória de Caetano Veloso, pode ser tão presente quanto fu- que Freud troca com Einstein so-

82 83
bre as Guerras. Na despedida da hace camino al andar..." (Antonio
carta, Freud diz “que tudo que Machado).
estimula o desenvolvimento cul-
tural também trabalha contra a Com carinho, de sua amiga de
guerra”. todos os tempos e de nenhum de-
les.
Eu e você não sabemos o que
é viver numa guerra, mas sabe- Aguardo sua carta!
mos o que é viver uma pandemia,
em um país tão caótico, em um
desgoverno. E aqui, preservando
algo do passado, tecendo o pre-
sente e apostando na reinvenção
do futuro, nós insistimos em tro-
car cartas, compartilhar ideias,
multiplicar leituras e construir
laços.

Amiga, obrigada por segurar


a minha mão, mesmo estando a
quilômetros de distância, dando
a cara para perceber e receber as
trevas do nosso tempo, sem re-
cuar daquilo que está posto, mas
podendo indagar: Haverá futuro?

Nós o estamos construindo!


Lembra aquele poema que man- Cintya de Abreu Vieira é
graduada em psicologia, mestran-
dei bordar para nós duas? Estou da em estudos literários (UFT),
atravessada pela psicanálise e pela
olhando para ele agora na estante literatura. Gosta de brincar de
de livros, ao lado da nossa foto: tecer com as palavras enquanto
faz caminho.
"Caminante no hay camino, se
Palmas, TO

84 85
correspondências

gritos
uma resposta clandestina ao futuro da palavra germinada
priscila budaes (esses versos que, por não serem brancos,
são de uma cor rosa vermelha)
andressa souza

Querido futuro, Te invento, palavra, em cada fragmento


Lhe escrevo de um presente tão ausente, De vida
Sentindo as perdas de muita gente, É, por inteira, ficção
Depois de uma guerra biológica muito incoerente. Composição
Contando os destroços, eu lhe pergunto: Artesã, te realizo
O que posso esperar daqui pra frente? Te deixo escapar
Vejo pessoas a andar para lá e para cá, E me assusto se toma ares de verdade
Com as mentes muito confusas, Atônita, me apaixono
Sem sonhos por realizar. Entre artes e manhas
Por favor, querido futuro, Te faço com manigâncias
Nesta carta eu lhe peço Absoluta, de artimanhas
Não tarde a chegar. Te desacredito
Traga contigo a Gentileza e a Esperança Busco não confundir verdade e ficção
Ou mesmo uma resposta Clandestina E me questiono:
Para aplacar a dor e alegrar essa gente tão sofrida - Não seria, desde sempre, a realidade inventada?
Que já não pode mais a vida aguentar. Te faço de rasura
E bebo de suas ausências com a atenção de uma vida
Te assisto ficar assim
Semente
Priscila Budaes tem 41 anos, Insaciável, te preservo Andressa Souza é psicóloga,
é paulistana. Artesã desde os 9 mestranda em Psicologia pela
anos, tendo aprendido com a mãe, Antes a fome Universidade Federal da Bahia.
hoje é multiplicadora de saberes Trabalha com a psicanálise e/ou
ancestrais. Começou a escrever Que o hábito de te fazer cotidiana. com isso que chamamos de práti-
contos e poesias aos 12 anos. Tra- cas da letra. Amante das palavras,
balha como assessora cultural do resolve apostar na escuta-escrita
grupo de mulheres artesãs Flor do como um percurso de vida e de
Barro no Alto do Moura. trabalho.

Caruaru, PE Santo Antônio de Jesus, BA

88 89
sede de vida Ou essa pandemia acaba
letícia quirino Ou acabará com a gente!

******

Assim como uma mãe espera por E o sistema a desmoronar


A natureza hoje mostra
um filho no momento de nascer A situação é delicada
Todo seu esplendor
Assim como o sertão na seca É triste e decadente
Animais em seu hábitat
Faz preces para chover Ou essa pandemia acaba
Assim como fez o Criador
Estamos com sede de vida Ou acabará com a gente!
A raça humana enfurnada em um
De nos encontrar novamente
cubículo deprimente
Ou essa pandemia acaba ******
Ou essa pandemia acaba
Ou acabará com a gente!
Ou acabará com a gente!
Profissionais de saúde
****** Trabalham sem descansar
******
Pondo em risco sua vida
Até quando um abraço Para muitas vidas salvar
A ânsia pelo amanhã
Não poderá ser sentido? Merecem salários dignos e bem
Tornou-se tão cobiçada
Até quando um sorriso pagos
Atribuímos tanto valor ao dinheiro
Por máscaras será escondido? Além de uma gratidão eminente
Mas a vida não foi comprada
Essa situação me abala Ou essa pandemia acaba
Isso nos mostra que a existência
E me deixa inconsciente Ou acabará com a gente!
É ávida, por mais que tente
Ou essa pandemia acaba Letícia Quirino tem 21 anos, é
Ou essa pandemia acaba natural da zona rural do municí-
Ou acabará com a gente! ******
pio de Sairé, no Agreste Pernam-
Ou acabará com a gente! bucano. Filha de agricultores,
acadêmica de enfermagem pela
****** Quantos avós hoje estão Universidade Federal de Pernam-
buco no Centro Acadêmico de Vi-
Em seus casulos confinados o afeto ain- tória de Santo Antão - UFPE-CAV,
e nas horas vagas uma aprendiz
Muitas famílias sofrem da permanece poetisa, que luta pelo empodera-
mento feminino e pela valorização
Sem ter do que se alimentar Embora deixe o coração apertado de nossa arte e cultura.

A classe trabalhadora em casa A solidão ataca deixando a alma doente Sairé, PE

90 91
um dos eus
matheus fernando

Meu sangue corre rápido nas minhas veias agora


Meus olhos trêmulos piscam involuntariamente
É a ansiedade, não belle époque
É ruindade dessa minha alma traiçoeira em madru-
gada de tensão
Soa frio essa tensão, soa com gosto de lágrima
Com gosto de nada e ao mesmo tempo de tudo
De tudo que não vivo e espero viver por causa dessa
palpitação chata em meu peito esquerdo
Sopra como tosse seca, crônica, mas falida, que um
dia se vai
Sopra como esse oxigênio que entra e sai diferente
Diferente, eu diria indiferente,
Obra de Matheus Fernando
Embora não seja tão diferente
Eu acabei dizendo que diria, mas não diria nada
Ficaria calado
Ficaria sereno
Matheus Fernando é
Ficaria triste, talvez feliz Mathenovê, um artista de 18
anos que nasceu no interior de
Mas minha bipolaridade tem dia e hora Pernambuco. Desde criança via
na arte uma forma de expressão e,
E isso não é arte também, de função social, o que
o move na arte é a crítica e o espí-
É dor. rito que ela consegue transmitir.
Aos 16 anos, em 2019, começou
o projeto Escrito & Descrito, que
acompanha um blog e uma página
no instagram onde expõe suas
obras ilustrativas e seus poemas, e
até hoje é a resiliência que o move
enquanto Matheus e move ainda
mais enquanto Mathenovê.

Caruaru, PE

92 93
94 95

Obra de Matheus Fernando


voomitos cotidianos Entra fácil e nada sai
railson duarte Chega falso e se desvai
Mesmo assim ainda o uso
Me sentindo meio iluso
Mas gozando de verdade
I II
Quando faço minha arte
Quando atiro à tira gosto
Como é ser vivendo? O que me atravessa
Quando tiro do meu bolso
Como poderia ser O verso atrai
Sem ter que me devastar
Existindo no viver Em versos do inverso
Minhas asas para voar
Não nos outros Inverto meu vértice
Que não estão presentes Invento uma verdade
Que não são o agora Invisto no visto
Como é que se ignora E pago pra ver
Como é que se explora Depois me apavora
Aqui dentro, não lá fora Não vejo a hora
Sai a bosta De enfim senescer
E logo aflora Em letras me apago
Continuo a engolir Em letras me afago
Continuo a ebulir Nas letras posso ler
Aleijando o passado Não sei se entender
Debruçado no futuro Pois logo desentendo
Travesseiro muito duro Do que estou a ser
Railson Duarte tem 27 anos, é
Alojado em um lugar natural de Petrolina-PE e atual-
III mente mora em João Pessoa-PB.
Na cantina acolá Formado em agronomia, traba-
Só pensando em gozar lhou um tempo em projetos de
recuperação ambiental e agroeco-
Cedo ou tarde isso vem O gozo que tá lá fora logia. Há um ano começou a fazer
análise e desde então passou a
Não vem Parecia que era o meu expressar o que há para ser dito.
O formato depende de como o que
Porque se vem Assim, usava toda hora há se manifesta, podendo ser em
um escrito, uma pintura ou em
Não é agora Engodo superficial uma fotografia.
A flecha atinge na mesma hora Muito pouco substancial
João Pessoa, PB

96 97
poema de um desconhecido cartas para o que eu chamo de futuro
severino neto victor xavier

Quem escutará o barulho das letras? Regando o hoje para florescer

Quem ouvirá o som das palavras? como flores na primavera


como pequenos brotos
Quem lerá as rimas que não fazem rimas?
que nascem aleatoriamente
Quem parará seus olhos nos versos?
de forma mais singela
Quem olhará para as vírgulas enxeridas? no pouco de terra.
Quem entenderá as confusas lógicas?

Quem se atentará para a escrita suposta? Regando o hoje,


regando meu amor,
Quem poderá contemplar a poesia anônima?
regando minhas relações,
Quem se debruçará sobre um poema sem nome?
regando minha essência
Quem ligará para um autor desconhecido? para florescer no futuro.

Severino Neto é pernambucano


e estudante de Psicologia pela
UFPB. Fascinado pela psicanálise
e pela literatura, é um leitor em Victor Xavier tem 16 anos e é
formação e um escritor iniciante. amante dos livros e da literatura.

Timbaúba, PE Caruaru, PE

98 99
Flores do agreste

Dayse Barbosa, mulher, negra,


pedagoga e pernambucana. Espe-
cialista em Educação a Distância
e está sempre com um pezinho
entre as artes e as tecnologias.
Ama leitura e fotografia.

Recife, PE

100 101

foto: Dayse Barbosa


correspondências

desejos
de algum lugar ainda incerto, era preciso dia luminoso, solar.

24 de setembro de…
sabrina ximenes É domingo e isso não mudou. Te vi linda em

diferentes momentos da vida, te vi desistindo,


Ainda não era certo meu tempo de chegada, ainda que houvesse brilho,
mas o dia havia de ser momento de desen- sempre o brilho..
contro. Você que sempre preferiu números

ímpares, ao me encontrar, tinha de viver a Eu sei, isso tudo é ridículo, uma baboseira para
irregularidade de um dia par impossível de enrolar momento de exatidão. É preciso deixar
ser apagado. você vir a mim, eu sei que me quer e sente falta.

Não era esperado e por um tempo achei im- Tua risada era minha música favorita.
possível me aproximar. Quando essa carta chegar e seus olhos revira-

rem ao pensar “É equívoco! Eu não seria tão


Você sobrevivia de um sarcasmo que durava ridícula assim”
dias, só eu via ao longe, ao entardecer, que

desmoronava personagem. No mesmo instante você lembra, chora e canta

“todas as cartas de amor são ridículas [...]”


Não, não vacilei momento algum depois de Te encontro, enfim
ouvir primeiro chamado e ainda que tenha e sinto falta
levado tempo, fiz morada, guarita, do meu nome nos teus lábios,
nesse lapso,

firmei chão. Todo seu,

Amor.
Havia de ser seu dia favorito, domingo. E,

por mais que tempo de chuva te fizesse feliz,

104 105
“quando o carteiro chegou e o
meu nome gritou”

Sabrina Ximenes é psicanalis-


ta, interessada em literatura, cine-
ma e fotografia. É nesse encontro
entre as artes e a psicanálise que
trabalha há alguns anos. Faz parte
do Coletivo Litorais. É formada
em Psicologia (Unifor) e mestre
em Comunicação (UFC).

Fortaleza, CE

106 107
foto: Sabrina Ximenes
modos de dar à luz mas não recebê-la o mesmo tempo que ainda

de volta não te sopra no rosto o passado


adriane leite que te protege em meio aos apelidos
que os outros inventam
tal qual um povo que aprende
vens
uma nova língua
e alguém vai te mostrar o mundo
o idioma dos deuses que acreditam
eles vão te levar com os passos pequenos
em gente
dos que também ainda não o conhecem
quando o silêncio
vais crescer em meio à força arrebatadora
coloca as incertezas na cara dos dias
que move tudo
teus traços
quando disseram que virias
vão ganhar as formas geométricas
não avisaram quem serias
que vão fazer crescer tua linguagem
ou o que despertaria tuas paixões
colocar em ti uma voz que não sabemos
de gente que não existe
se acordará o mundo
assim como eu
ou deixará ele mais calado
que também ainda espero
aprender a andar para fora
parece que não é simples
nascer no pensamento
eu estava lá parada como alguém
de alguém Adriane Leite nasceu em Came-
que esquece de atentar para nascimentos
tá, no Pará, mas passou toda sua
quando os pequenos papéis coloridos vida em Belém, de onde retira boa
parte do material de sua escrita.
rodaram pela luz difusa da sala É Terapeuta Ocupacional pela
Universidade do Estado do Pará
passando pelos cílios imóveis de tua avó e especialista em Saúde Mental
pelo Hospital das Clínicas Gaspar
que só voltaram a se mover Vianna. Também se dedica ao
estudo da interface literatura e
depois que a força do tempo psicanálise. Publicou seu primeiro
poema em 2019, pela antologia
nos redimiu da ausência de futuro Trama das Águas.

Belém, PA

108 109
verde musgo-esperança “E daí? O que tem a ver isso com tris- lembra?”
erivaldo júnior teza?” “Não vou demorar, cê pode ir pe-
“Verde é a cor da esperança, gar ele pra mim?”
Thiago... E tem coisa mais triste “Senta aí, ele tá no quarto, vou
do que ter esperança?” buscar”
Depois que a gente terminou, ela dei pra você”. Gostei do título e
me mandou buscar as coisas que a convenci de ir comigo. Teatro Pensei no vinho que tinha deixa-
Ele continuava rindo e eu lá,
eu tinha deixado em sua casa. Eu pequeno, poucas pessoas, mas do lá, e se daria tempo de pegá-lo
inerte com o que ele acabara de
sempre esquecia para ter um pre- muito conteúdo, muito no que se na volta. Mas antes, tinha de me
dizer. Olhei um pouco de lado e
texto de ir até lá, jogar conversa pensar. (...) No segundo ato, fo- certificar:
a vi rindo também. Eu pensava
fora e acabar deixando tudo lá de mos convidados a subir no palco
comigo mesmo que ela não en-
“Ei, tá lembrada daquela peça
novo. Mas ela já tinha me sacado com os atores. Fizemos pequenos
tendera o que o ator realmente que fomos no teatro do SESC?
e não ia mais cair naquela. Des- grupos, cada um orientado por
quis dizer. Ou eu rezava pra ela Aquela do pessoal de Recife?”
sas coisas, só me interessava o um ator. Nos fizeram pensar em
entender do mesmo jeito que eu. “Lembro sim, por quê?” – ela
violão. Então eu fui. músicas, em trechos de livros,
E eu indo pra casa dela, igual gritou do quarto.
em um monte de coisa. Na me- “Lembra da parte em que subi-
um idiota de camisa verde, todo
É importante, além de ser um tade do ato, um dos atores passa mos no palco? Eu morrendo de
esperançoso. Ela riria de mim?
bom anfitrião, ser um bom con- na nossa frente e cai deitado aos vergonha, e você super disposta
Toquei a campainha do 304, o
vidado. Por isso, levei vinho. Pus nossos pés, gargalhando. a participar?”
portão abriu e eu subi. Durante
minha camisa verde - aquela que “Lembro, quase não subimos por
as escadas, pensei em voltar, em
ela tinha me presenteado - e fui. “Thiago, lembra daquele sapo causa da sua timidez. Menino
trocar de camisa, pensei em não
dos Muppets? Caco, né isso?” bobo!”
Já que o caminho era grande,
ser Caco. Joguei o vinho numa
“Sim, e o que é que tem ele?” “E o ator que caiu na nossa fren-
dava tempo de pensar em como
lata de lixo. Foda-se ser bom con- te, cê lembra?”
“Sabia que ele é o personagem
as coisas eram. Mas uma me cha-
mais triste que tem?” – continua vidado. Lembro das falas exata- “Ah, o dos Muppets? Hilário, ele.
mou mais atenção: lembrei da
gargalhando. mente como se fosse ontem: Ele é amigo de uma amiga mi-
peça de teatro em que fomos, nha, sabia?”
“E como é que você sabe disso?”
quando ainda estávamos jun- “Não, você não comentou. Tava
“É porque ele é verde” “Meu violão tá aí?”
tos. “Aquele amor que eu guar- “Foi por isso que te chamei aqui, lembrando esses dias sobre ele
ter dito a questão da esperança,

110 111
da cor verde...”
desejos
“Bem impactante, né?” renata rodrigues
“É, nunca mais parei de pensar
nisso.”

o que queres que eu seja?


Ela olhou pra minha camisa, deu
constante
um sorriso de canto de boca e me
sem erro
entregou o violão. Vi que ela ti-
fácil
nha reparado na camisa e logo
sorriso
fui me justificando, dizendo que
sóbria
lembrei mais disso no caminho
certeza
até sua casa. Ela disse que riu
do ontem, do hoje
do meu rosto de timidez, mas eu
e do que virá
não acreditei.
seu sonho reencarnado

“Você não é Caco, mas se esforça


o que quero que tu vejas?
muito pra ser”
força
capricho
Desci as escadas, esqueci o vi-
talvez abrigo
nho, reverberei a última frase
coragem
dela durante todo o caminho de
Erivaldo Júnior é formado em
poesia-menina
volta. Cheguei em casa, deixei o psicologia há 7 anos, mas desde o
ensino médio flerta com as letras e
argumento-mulher
violão na cama, tirei a camisa e com a música. Entrou em contato
com a escrita aos 14 anos, quando
o que sou-sendo
a joguei no chão do quarto; me por influência de um amigo, criou
um blog que confundisse vida
e o que quero ser
deitei no sofá da sala. Tem coisa pessoal com a ficção. Desde então,
escreve.
camaleoa
mais triste do que ter esperança?
Caruaru, PE
o que eu sou?
Eu tento responder a essa per-
infinita
gunta desde que rompemos.

112 113
aposta
do desejo
aqui rubem viana
agora
Aqui estou em pedaços,
futuro-não-sei
em um processo que o mundo me impôs.
espero
Em um processo que eu me impus?
desejos
Que aceitei, rejeitei, não controlei.
de mim mesma
Controlei?
e também teus Em pedaços o processo me fez.

O que fazer com os pedaços que me constituem?


Colar todos com supercola? Que cola daria conta disso?
Ainda assim, restariam as marcas porque mesmo o inteiro
é imperfeito. Isso seria um problema?
Seria! Para quem? Para mim?
Para você, seria?

Talvez os pedaços sejam a oportunidade não de


me refazer como antes, o que seria impossível.
Talvez os pedaços sejam a oportunidade de me
fazer de novo, diferente. Ainda assim,
restariam as marcas. Junto delas, um novo eu,
imperfeito, mas inteiro, colado com a cola do desejo.
Renata Rodrigues, nascida
e criada na cidade de Campina
Grande, no interior da Paraíba, é
estudante do curso de Psicologia
na Universidade Federal de Cam-
pina Grande. Escreve desde os Rubem Viana é mestrando em educação pela
17 anos, mas apenas nos últimos Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/
anos passou a divulgar algumas CAA). Psicólogo pelo Centro Acadêmico do Vale do
produções no seu perfil do insta- Ipojuca (Unifavip/DeVry). Pedagogo pela Universi-
gram. Vem experimentando as in- dade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA). Estuda
terlocuções entre a arte, a política as seguintes temáticas: Educação, Teorias de Gêne-
e a psicanálise e a delícia-dolorosa ro e Sexualidades, Movimentos Sociais e discussões
de não saber o que está por vir. sobre subjetividades.

Campina Grande, PB Caruaru, PE

114 115
rio vezes é preciso abrir mão da fa-
rebeca menezes cilidade dos olhos para deixar a
pele, ou os ouvidos, enxergarem
também...
Sempre amei a natureza dos de um manancial infinito.
rios. Esse agora da terra enquan- Eu botei primeiro um pé, que
Talvez pelo esforço do nado,
to flui. Força cadenciada de um fez leves círculos tentando se
já não sentia o frio. Tampouco
movimento que quase não se vê: acostumar à temperatura. Na
a cegueira. Em meio ao breu era
águas que contemplam enquan- margem assim, em dias de sol,
como se tudo se desenhasse com
to seguem para o encontro sem o Rio também ensaia queimar a
tamanha nitidez que nenhum de-
hora marcada. pele e a vista. Reluzem transpa-
talhe escapava. E a solidão que
rentes e mornas as águas rasas.
costuma assustar aqueles mer-
Esses dias amanheci com um
gulhados na escuridão, se fazia
presente que chegou pelo what- O calor molhado contrasta-
impossível diante das multidões
sapp. Chuva sonora de memória va com o corpo que se arrepiou
de seres e sensações que ali des-
ancestral encharcada de afeto. à mercê da brisa. E em busca de
filavam capturadas pelos senti-
Banho oferecido. Um oásis ma- submergir por inteira naquele
dos que outrora, à presença da
tinal. Águas que me pareceram cobertor líquido, apertei de vez a
luz, acabavam autorizados a des-
doces, mesmo com a mistura de mão que me fora estendida.
cansar.
terra, folhas e peixe.
Mas os Rios são muitos, den-
Sigo molhada. Os dedos ale-
Era possível ver o rastro das tro de um só. E não tardou a
gremente enrugados, quase ro-
serpentes e cores da vida outo- chegar o gélido hálito de outras
xos, seguem ora remando, ora
nal navegando a correnteza des- águas. A caminhada deu lugar
se deixando levar. Como um Rio
pretensiosa do caminhar de um ao remo de braços e pernas, e os
que, curioso, passeia entre as
gigante. movimentos visíveis cederam à
margens por onde segue brotan-
liberdade cega e tanto mais fria Rebeca Menezes é assistente
do, regando, arrastando. Social, ativista dos movimentos
O Rio chegou como convite, quanto profunda. indígena e feminista, escritora e
difusora de literatura indígena.
exalou frescor e desafio. Um cha- Kariri nascida no litoral. Cearense
O Rio não conhece a diferença
vivendo na Paraíba. Amante de
mado que escondia na delicadeza Já não havia luz lá embaixo, e
entre chegar e continuar. livros, discos e águas.
de espelho da aurora o potencial descobri que não precisava. Às
Campina Grande, PB

116 117
correspondências

construções

119
querido arthur Em 2019, uma adolescente sueca, Greta
joão rocha Thunberg, atravessou o Atlântico em um bar-
co à vela e mostrou a possibilidade de fazer
grandes viagens utilizando energia limpa.
Querido Arthur,
Sua travessia tinha também o objetivo de fa-
lar para sessenta países na Cúpula de Ações
imagino que o mundo, hoje, esteja bem dife-
Climáticas da ONU. Seu recado foi claro: por
rente daquele que conheceu. Para começar, ra-
dinheiro estamos matando o planeta e, con-
ramente nos comunicamos por cartas. Muitos
sequentemente, o futuro de suas crianças e
preferem a velocidade dos e-mails e das redes
adolescentes. Greta, como você, sacudiu o
sociais à sensualidade do papel, seu cheiro, sua
mundo. Posso ouvir em suas vozes a mesma
textura, seu toque, além do erotismo do corpo
urgência: precisamos entrar no mundo para
impresso das letras. Eu ainda fico com as car-
mudá-lo.
tas.

Em suas Cartas, você afirma que não po-


Movido por um desejo de aproximação, tra- ⁷ RIMBAUD.
Cartas visio- deria mais have lugar para os que se diziam
duzi, sob o título Cartas visionárias⁷ , suas car- nárias. 2020.
Todos os termos
poetas, mas não passavam de funcionários
tas ao mundo. E o que elas encontram um século em itálico são e atuavam no campo da imitação. Um poeta
citações desse
e meio depois de serem escritas? Um mundo em texto de Rim- deveria ser um visionário e para isso é ne-
baud (exceto
colapso: mudamos o clima do planeta e os níveis alguns termos cessário um longo, imenso e racional desre-
dos mares, pavimentamos a terra, desmatamos em língua es-
trangeira). gramento de todos os sentidos para alcançar
nossas florestas, transformamos os oceanos em
o desconhecido, pois o poeta é verdadeira-
imensos lixões, poluímos as águas dos rios e o
mente um ladrão de fogo. Ele é carregado de
ar, a cada dia, fica mais irrespirável. Algumas
humanidade, dos animais mesmo
espécies de animais e plantas que você conhe-
ceu já não existem mais e as abelhas, grandes
O poeta, além de humanidade, é carrega-
responsáveis por carregar a vida na Terra, es-
do de paisagem e, assim, reconhece o fato de
tão sendo substituídas, devido às grandes trans-
que todas as formas que habitam a terra fa-
formações que impomos aos ecossistemas pelas
zem parte da sua história. Ele é quem aponta
moscas e outros insetos que se proliferam quan- ⁸PRECIADO. O
o porvir ao afirmar que o humano deve “mas- feminismo não é
do sentem o cheiro da morte. um humanismo.
carar-se novamente do saber das abelhas⁸”

120 121
. Abastecido de paisagem, a máxima de He- basta ao poema nem coroa ninguém como
ráclito de que não nos banhamos jamais em poeta enquanto a infinita servidão da mulher
um mesmo rio⁹, não o convence mais e ele não for quebrada e ela não tiver o mesmo di-
pode dizer: “eu brotei de sua água, da mesma reito à poesia e à voz. A mulher, desde seu
água nasceu o mundo. Banhamo-nos sem- aparecimento, adquiriu muitos direitos, mas
pre nesse mesmo rio” . Assim, o poeta sabe ainda é necessário furar o muro no qual se
que as águas são as mesmas, nós não. EU é imprimiram em letras garrafais o machismo.
um outro – você escrevera. Na metamorfose No imaginário social, infelizmente, ela ainda
em que se estrutura o humano, a missão do está atada àquela servidão infinita. Isso pode
poeta é encontrar uma língua que traduza o ser demonstrado, no país onde vivo, pelo
olhar da besta-fera de seu tempo, que faça enorme número de feminicídios ocorridos
dele um multiplicador do novo, pois sua obra simplesmente porque mulheres resolveram
faz brotar feridas no tempo que incidem na tomar as rédeas do seu caminho.
ordem social.
No entanto, quando leio em suas Cartas
⁹SERRES. Bio-
“Não te voltes. A tinta poderia escorrer da gée. 2013, p. 29. que é preciso que a mulher liberte-se de sua
tua vagina, o precioso lugar da leitura¹⁰” , ¹⁰LLANSOL.
prisão para encontrar (e nos fazer com elas
escreveu Llansol. A esse lugar precioso, de- Onde vais, experimentar) novas coisas estranhas, in-
Drama-Poesia.
senhado pelo vazio do sexo de uma mulher, 2000, p. 37. sondáveis, repugnantes, deliciosas sobre as
a escritora chamou de sexo de ler, pois a lei- quais aprenderemos, leio que isso deve ser-
tura é uma maneira distante de fazer amor: vir também para outros corpos que não ne-
faz-se pelos olhos, pelas palavras e pelo tem- cessariamente são marcados biologicamente
po. Para ela, a leitura também é um chama- pelo sexo feminino. Falo da entrada no mun-
do ao combate. Nesse caminho, trago outro do de outros mundos, de outros discursos
fragmento de suas Cartas: os poetas serão! que foram e ainda são silenciados e trazem
Quando for quebrada a infinita servidão da consigo suas cargas culturais, singularidades
mulher. e diversas formas de vida e de organização
comunitária.
De fato, Arthur, não basta pousar no des- Hoje, Arthur, leio suas palavras com meu
conhecido, mergulhar nas suas águas e tra- sexo de ler e amplio o que chamou de “mu-
zer de lá um amontoado de palavras. Isso não lher” para “feminino”. O que me levou a isso

122 123
foi o encontro com a psicanálise. Segundo ra de um homem implacável que esconde um
ela, o feminino não é completamente inscrito rastro de cadáveres – esta é a metáfora do
no campo simbólico e, por natureza, resiste à discurso autoritário ao qual sempre coube ao
aridez da razão. Ele não tem a ver com o sexo poeta fazer resistência. A aniquilação do ou-
biológico, mas com aquilo que se encontra tro é para onde aponta sua mira. Segundo ela,
no litoral do pensamento, à beira de um sustentar a margem, ser um ou uma outsider
abismo e põe o saber em xeque. O feminino no seio da sociedade, parece ser uma estra-
faz resistência a toda e qualquer tentativa de tégia de resistência, um modo de defender o
normatização e apaziguamento que o campo direito ao atrito (e como Antígona, trazer a
do simbólico pode tentar imprimir ao que es- desmedida para o centro da pólis, cravar no
capa ao sentido. Inscreve-se na esteira do in- centro da cidade dos homens um vazio e fa-
dizível e do impalpável, causando atrito¹² e zê-lo ressoar). Diante disso, que outro dis-
resistência ao discurso dominante do poder. curso poderia fazer frente a esse que mira a
O feminino é a passagem das vozes que re- aniquilação do outro? Talvez este: feminino
sistem a todo discurso autoritário, mas que de ninguém¹³ .
¹¹BELLI. Greve. ¹³BAETA;
também fazem nascer o silêncio “para que BRANCO;
¹²LOPES. Lite- PAULA. 2019.
possamos ouvir os passos do tirano que se ratura, defesa do
Arthur, esse discurso carrega o germe do Feminino de
vai¹¹” . O feminino é a passagem dos corpos atrito. 2003, p. combate conclamado pela leitura: dar voz Ninguém: breves
189. ensaios de psica-
que até bem pouco tempo se implodiam às àqueles tantos que foram silenciados ao nálise literária.

margens da sociedade por não encontrarem longo de nossa História. Qual seria, então,
um lugar, um pouso, um abrigo que os aco- a função do poeta, hoje? Dar forma a esse
lhesse. feminino de ninguém. Um discurso que abri-
ga inúmeras vozes: mulheres e homens gays,
Arthur, o que estou tentando dizer é que, cis e trans; binários e não binários; loucos
ainda hoje, não se trata de dar liberdade so- e loucas ou os que flertam com a loucura;
mente à mulher, limitando-a a quem perten- crianças, adolescentes e jovens pobres; po-
ce ao sexo biológico feminino, e sim a toda vos das florestas e o povo preto; imigrantes,
sorte de discurso que faça resistência àquele estrangeiros, artistas… Feminino, por subli-
que sempre negou a diferença e o amor como nhar uma posição não toda inscrita no cam-
formas de saber e de partilha. Virginia Woolf po simbólico, marcado pelo discurso impla-
traduziu esse discurso opressor como a figu- cável do poder; de ninguém, porque excede

124 125
toda e qualquer forma de possessão e a mul- com os sentidos, cria-se novos corpos, novas
tiplicidade é o seu fio condutor. O “femini- paisagens para que o mundo resista à cres-
no de ninguém” é, assim, um discurso que cente ameaça de sua extinção, pois escrever
aposta na aporia como forma de construção, é o que dá consistência ao mundo.
desconstrução e transmissão de saberes. Por
isto feminino de ninguém: porque ninguém Repare, Arthur, chamei a todos que ci-
pode domar o amor e o não sentido. tei aqui de poetas, pois acredito, hoje, que
todo ser que produza ou tenha já produzido
Arthur, o amor tem seu próprio ritmo. Ele discursos que apostem em toda e qualquer
é subterrâneo, uma única água, sobre a qual forma de garantir a vida possa carregar esse
deslizou, em 2019, o barco à vela de Greta, nome. Em meio ao discurso da morte que
trazendo o grito de que é preciso, na emer- hoje impera no mundo, o poeta é o único re-
gência do presente, salvar o futuro (oferecer belde¹⁵ . Ele não cabe mais em um só corpo,
e reivindicar o direito ao futuro não é uma em um só espírito, em uma só linguagem. O
das formas mais radicais do amor? Não é poeta é um outro. Sempre. E é esta sua tare-
¹⁴LACAN. O se- ¹⁵EMADI. El
isso literalmente dar o que não se tem?¹⁴). minário, livro 8: fa hoje: escrever para que o mundo resista à poema / Poesia é
a transferência. o único rebelde.
E agora, em 2021, deslizam pelas mesmas 2010, p. 158.
morte. Escrever para que mesmo em meio ao 2019.
águas meu corpo misturado ao seu e a de ou- asfalto árido e empretecido pela fumaça nau-
¹⁵EMADI. El ¹⁶ANDRADE. “A
tros poetas os quais citei direta ou indireta- poema / Poesia é seante dos automóveis, alguém possa ainda flor e a náusea”.
o único rebelde. 1987, p. 17.
mente ao longo desta carta e tantos corpos 2019. ver “uma flor feia a furar o asfalto, o tédio, o
mais que vieram antes de você e os que ain- ¹⁶ANDRADE. “A nojo e o ódio¹⁶” para nos lembrar da fragi-
flor e a náusea”.
da virão depois de nós, porque são os corpos 1987, p. 17. lidade e da beleza que carrega a vida. Escre-
dos poetas, com suas memórias de paisagem, ver, escrever, escrever – para que o céu não
que garantem alguma passagem, imprimem desabe sobre nós.
algum signo da mudança e traduzem o que
se vê além da devastação. O corpo do poe- Bonjour de coeur,
ta é o que ele escreve, traduz e transpõe da
paisagem para o livro. Seu corpo (corpus) é João Rocha
a sua obra. Sua pele é por onde se traduz o João Rocha é professor de
Literatura e Tradutor. Doutor em
mundo. Cada vez que se cria uma metáfora, Estudos Literários pela UFMG.

que se joga com as palavras, que se brinca Belo Horizonte, MG

126 127
Referências

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rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1987.

BAETA, Vania; BRANCO, Lucia Castello; PAULA, Janaina


de. Feminino de Ninguém: breves ensaios de psicanálise
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conda-belli/>. Acesso em: 06 out. 2021.

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Trad. Cinara de Araújo. Coletivo OurIsso: Belo Horizonte,
2019.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência.


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Lisboa: Relógio D’água, 2000.

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Lisboa: Vendaval, 2003.

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ocamillopenna.files.wordpress.com/2018/03/preciado-fe-
minismo-nacc83o-ecc81-humanismo.pdf>. Acesso em: 06
out. 2021.

RIMBAUD, Arthur. Cartas visionárias. Trad. João Ro-


cha. Belo Horizonte: Chão da feira, 2020. Disponível em:
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SERRES, Michel. Biogée. Paris: Éditions Le Pommier,


2013.

WOOLF, Virginia. As mulheres devem chorar… ou se


unir contra a guerra: patriarcado e militarismo. Trad.
Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

128 129
para você, ana cristina cesar, São muitos os vocativos sacudindo as pá- ²⁴Ana Cristina Cesar
em Cenas de abril.

sereia de papel ginas, interpelando, reivindicando interlo-


²⁵“Eu dizia há pouco, a
amanda m. cução. Um deles há de se mover em direção respeito do saber, que
a literatura é catego-
a mim? “Minha dor. Me dá a mão. Vem por ricamente realista,
Escrever cartas? Gesto mais misterioso do ¹⁷“Escrever cartas é na medida em que
mais misterioso do que aqui²⁴” ... Estou tentada a ler cada palavra ela sempre tem o real
que se pensa¹⁷ , eis o lembrete remetido por se pensa”. Ana Cristina
como indício cristalino da confissão de sua por objeto de desejo;
Cesar em “O poeta é e direi agora, sem me
você, Ana C., incansável missivista a fazer de um fingidor”, de 1977.
intimidade, supondo “sensato o desejo do contradizer, porque
emprego a palavra em
nós seus destinatários. ¹⁸Em L'acte psy- impossível²⁵” , mas acabo por abraçar certa sua acepção familiar,
chanalytique, Lacan que ela é também obs-
afirma que “la psycha- ideia: “a forma das letras oculta amor, dese- tinadamente: irrealis-
nalyse, ça fait quelque ta; ela acredita sensato
Nesse assunto, suas mãos tinham perícia: chose”, aproximando-a jo, e a tua esquiva pessoa ao meu redor”²⁶ . o desejo do impossível”
da poesia ao dizer que Roland Barthes em
as numerosas missivas trocadas com amigos “La poésie aussi ça fait Passeio os olhos pela capa de A teus pés, há Aula.
íntimos dão vazão ao anseio por endereça- quelque chose”.
tons de vermelho e rosa sobre a escrivani- ²⁶“Tenho medo de
mento e à força que norteia o ato da escrita. ¹⁹Ana Cristina Cesar
nha, e sei: não há cândido relato, querida, dizer que a forma das
em Luvas de Pelica. letras oculta amor,
Isso – escrever – faz alguma coisa¹⁸ . e ainda assim há você em toda parte, como desejo, e a tua esquiva
²⁰“Te amo estranha, pessoa ao meu redor”.
esquiva, com outras ausência, rastro, impulso e ganas loucas de Ana Cristina Cesar em
cenas mixadas ao sabor Antigos e soltos
É certo que a essa alguma coisa por ora não do teu amor”. Ana estar. Amor, isto não é um livro, é você que
Cristina Cesar em A ²⁷“Amor, isto não é um
sei dar nome, apenas experimentá-la em sua Teus Pés. eu seguro e sou eu que você segura²⁷ . livro, sou eu que você
vastidão, no langor do fim de tarde, quando segura e sou eu que te
²¹ “perco o sono ima- seguro”. Ana Cristina
anseio a “lenta cumplicidade da correspon- ginando aulas mirabo- Cesar em Luvas de
lantes”. Ana Cristina Você uiva, invoca. Pelica
dência” , da sua correspondência¹⁹. Leio e Cesar em carta, 5 de
abril de 76. ²⁸“Nada, esta espuma”,
releio seu encorpado epistolário, brincando – O que me conta, Ana? poema de Ana Cristina
²²“Em Paris, fiz lim- Cesar em Cenas de
de imaginar a rasura inesperada na caligra- peza de pele e comprei – Nada. Espuma ²⁸ . “Coisa ínfima, quero Abril.
cremes mirabolantes”
fia, o capricho na escolha dos postais. Com Ana Cristina Cesar em ficar perto de ti ²⁹.” ²⁹“Sexta-feira da
carta, 31 de julho de Paixão”, poema de Ana
você, A.C., vivo de “cenas mixadas²⁰” , diluo 1977. Cristina Cesar em A
tempo e espaço: duas mulheres mirabolando Extremada sedução do fulgor e do acon-
teus pés.
²³“Opto pelo olhar es-
aulas²¹ e cremes²² , decididas pelo “olhar tetizante, com epígrafe
chego, Ana-sereia, prateada, azul. Seu texto ³⁰ “O texto que o
de mulher desconheci- senhor escreve tem
estetizante²³” por trás dos óculos escuros da”. Ana Cristina Cesar
torna-se escritura porque dá provas de que de me dar prova de
em Luvas de Pelica que ele me deseja.
sob este sol, que afinal é o mesmo em seu me deseja ³⁰ , de que só se faz comigo, leito- Essa prova existe: é a
escritura. A escritura
poder de encandear cidades e séculos, Rio de ra, num viver junto. Mais que as cartas pro- é isto: a ciência das
fruições da linguagem,
Janeiro dos anos 70 e Fortaleza de 2021. Lá priamente ditas, é antes esse estilo episto- seu kama-sutra (desta
e cá neste país, você sabe, um sufoco danado. ciência, só há um trata-
lar, marcado na insistente convocação ao tu,

130 131
a mim, que promove o “escancaramento do do: a própria escritu- um texto ardente pelo que carrega de impos- ³⁵“O que pretendemos
ra)” Roland Barthes em aqui, neste breve passo,
desejo” ³¹. O Prazer do Texto. sível, a um passo de sentido³⁵ . não é nos determos
nas diversas nuances
³¹“‘De repente eu digo que os conceitos de
“isto, aquilo é um livro; letra e de escrita foram
Bem sei que dos poemas publicados em isso aqui sou eu; eu Nas palavras em ponto de lettre, sua car- tomando ao longo do
caio nos teus braços, eu ensino de Lacan, mas o
noites cariocas aos papéis antigos e sol- estou a teus pés, leitor’. ta-letra faz falar a paixão: sensualética³⁶ , de apurarmos, a partir
Isso representa, diga- de uma formulação de
tos atulhando a pasta rosa, o que se impri- mos, o escancaramento
significância³⁷ . Recebo algo de seu corpo, Lacan acerca da escrita,
me nessa escrita, como lastro do coração de do desejo. Todo texto de seu além-corpo³⁸ imantado no grafo da a noção de letra como
desejaria não ser texto”. pas-de-sens: como o
quem escreve, é “o desejo do encontro ou o Ana Cristina Cesar no página: o grão da voz num desejo de man- não sentido que confina
Curso Literatura de justamente com o passo
desejo de mobilização do outro”³² . Texto de Mulheres no Brasil, sa conversa; o sussurro ao pé d’ouvido, pele de sentido.” Lúcia Cas-
ministrado por Beatriz tello Branco em “Um
evocação, chamamento, paixão. Se não se es- Resende no ano de (en)contra outra pele; e o sopro, pulsão e rit- passo de letra”.
1983.
creve para o outro³³, como advertiu nosso mo. ³⁶ Termo de Maria
³²“A gente não sabe di- Gabriela Llansol que
amado Barthes, escreve-se com o outro. Aqui reito para quem a gente ouvi de Lúcia Castello
escreve. Mas existe, Branco.
está sua aposta, Ana, seu mistério sem segre- “Para não sufocar, sorve-se ar aos pou-
por trás do que a gente
do³⁴ : a literatura como uma carta de amor, escreve, o desejo do cos³⁹” . Quanto de fôlego foi preciso naquele ³⁷ “O que é a signi-
encontro ou o desejo de ficância? É o sentido
mobilização do outro”. fim de século? Seu sopro, além-corpo, pousa na medida em que é
Ana Cristina Cesar no produzido sensualmen-
Curso Literatura de em meu peito e me faz respirar, pois a lettre, te”. Roland Barthes em
Mulheres no Brasil, O Prazer do Texto.
ministrado por Beatriz Ana, a lettre é “uma fala que voa⁴⁰” .
Resende no ano de ³⁸“Essa dicção outra,
1983. flagrantemente marca-
da pelas pulsações do
³³“Saber que não se corpo e do além-cor-
escreve para o outro, po – a voz, o olhar, o
saber que essas coisas sussurro, o sopro (...)”
que eu vou escrever não Lúcia Castello Branco
me farão ser amado por em “Todos os sopros, o
quem eu amo, saber sopro”.
que a escritura não
compensa nada, não ³⁹Lúcia Castello Branco
sublima nada, que ela em “Todos os sopros, o
está precisamente aí sopro”.
onde você não está – é
o começo da escritu- ⁴⁰ Jacques Lacan em
ra”. Roland Barthes “O Seminário sobre ‘A
em Fragmentos de um Carta Roubada’”.
discurso amoroso.

³⁴“Te apresento a mu-


lher mais discreta do Amanda Moura, implicada no ofício da letra, é
mundo: essa que não professora e pesquisadora. Doutoranda em Lite-
tem nenhum segredo”. ratura Comparada pela UFC, interesso-me pelas
Ana Cristina Cesar em relações entre o literário e a psicanálise.
A teus pés.
Fortaleza, CE

132 133
sobre o futuro, agora: um mural branco inevitável. levemente côncavo,
atravessado por
⁴² idem

imagem, desastre e tempo estranhos redemoinhos na superfície, ele nos


⁴³ Trecho do artigo “Ima-
gem, Evento e Duração” de
atrai para a sua curvatura,
cláudia itaborahy nos chama fisicamente, nos convida à aproxima-
Didi-Huberman, traduzido
por Patricia Franca Huchet.
ção, mas sua opacidade Image, événement, durée,
ouro preto, 30 de setembro de 2021 subitamente nos sobranceia, nos barra o cami- 2008. Disponível em: URL:fi-
le:///C:/Users/User/Downlo-
nho. maneira de nos desviar
ads/15667-Texto%20do%20
estacando o nosso passo, maneira de nos deso- artigo-43574-3-10-20191008.
cara clandestina, rientar diante dele, nos pdf
imobilizando⁴²

as imagens duram. elas têm memória, um ⁴¹ Pietà du Kosovo, ou


comment construire para Didi-Huberman, essa massa é uma mas-
passado capaz de durar. a cada momento a une durée. IN: DIDI-
-HUBERMAN, Geor-
sa de silêncio, longe dos clichês.
duração se constrói, numa relação entre a ges. Ninfa dolorosa.
Paris: Galimard, 2019.
história e a memória, entre o presente e o e descobrimos que essa ternura branca, agitada
como um grande panejamento é, na realidade,
desejo. mas essa construção esbarra sempre uma imagem com uma voz potente, uma ima-
em um obstáculo, o hábito. assim começa o gem que clama, tempesteia, que protesta dian-
te de nós. todas essas ondas de cera drapeada,
texto de Didi-Huberman sobre “Pietà do Ko- todas essas cavidades são as formas dos gritos
sovo – ou como construir uma duração⁴¹” . e das dores que emanam de uma dezena de fi-
guras femininas reunidas em torno de um corpo
estendido, provavelmente um cadáver. (...) não
Didi-Huberman traz perguntas sobre as são somente nove mulheres que se lamentam
diante de um corpo morto; (...) é como um muro
imagens, se seriam elas apenas informações de lamentações que está diante de nós, um muro
da tv, se seriam fragmentos de filmes ou ti- inteiro modulado de gritos abertos, um muro no
qual tudo se torna “bocas desgovernadas”, “lou-
pos de clips das desventuras históricas que cura” e “infortúnio”, segundo o vocabulário trá-
gico de Eurípedes nas Bacantes. ⁴³
elas podem documentar. entre cliques e cli-
chês, em um esmagamento, as imagens pa-
Nesse sentido, Didi-Huberman aponta
recem niveladas ao modo da sociedade do
uma referência ao debate estético sobre a
espetáculo, onde parece haver cegueira ou
utilização da cavidade para esculpir o grito,
cinismo – não se sabe bem – em um fluxo
trazendo ao texto G.E. Lessing, alemão e es-
onde é possível encontrar o simulacro de re-
tudioso clássico da teoria estética, que tra-
ferências e significações. como aceno para
balha na escultura Laocoonte (~ 40 a.C. /em
tantas questões, Didi apresenta a obra de
mármore) e acena para uma tradição escultu-
Pascal Convert como uma espécie de pano,
ral das “bocas desgovernadas”. Para Lessing,
massa e obstáculo:

134 135
“uma boca aberta é, em pintura uma man- ⁴⁴ idem volto ao texto de Didi-Huberman: ele evo- ⁵⁰Livre tradução, feita por
mim e Walmir Lacerda, do
cha, na escultura uma cavidade, produzindo ⁴⁵idem ca a fotografia de Georges Mérillon, que deu texto “Pietà du Kosovo”, de
Didi-Huberman. 2019.
o mais chocante efeito do mundo, sem falar ⁴⁶Lucia Castello Branco. “A início ao processo de construção de Pascal Sigmund Freud. As pulsões
branca dor da escrita – três e seus destinos (1915). “Obras
no aspecto repugnante que ela dá ao resto tempos com Emily Dickinson”. Convert – inicialmente, “vigília fúnebre no completas”, v XII.
2003.
do rosto retorcido e contrativo⁴⁴”. para Didi, kosovo”, depois nomeada “pietà do kosovo”,
⁴⁷Herman Melville, citado por
Pascal Convert faz uso das “bocas desgover- Lucia Castello Branco, em A
apontando para as dimensões que fizeram a
nadas”, lançando mão de marcar a figura e a branca dor da escrita. fotografia ter reconhecimento: primeiro, es-
expressão, a dor e o pathos que isso pode sig- tética. mas, também, uma dimensão trans-
⁴⁸Flaubert citado por Schnei-
nificar, apresentando o grito como seu “pró- der, que é citado por Lucia -histórica, de transmissão política e histórica.
Castello Branco, em A branca
prio panejamento, o escuro abismo doloroso dor da escrita.

com seu próprio pudor, ou seja, sua própria ⁴⁹Sigmund Freud. A cabeça da Didi nos interroga sobre tal nova nomea-
medusa. “Obras Completas de
brancura”⁴⁵. Sigmund Freud”. vol. XVIII.
ção que a fotografia ganha. ninguém expli-
cou de onde ela teria vindo. Pietà do Kosovo
Em a branca dor da escrita⁴⁶, livro que lê carrega em si uma dimensão iconográfica,
Emily Dickinson, podemos ver que “no bran- cultural e cultual. as imagens implicam uma
co reside não só a beleza, mas também o hor- duração que vai muito além do tempo que
ror⁴⁷” . assim escreve Lucia Castello Branco: representam ou documentam. há um destino

o branco de suas vestes se espalha pelas letras


– ou destinação da imagem. o destino, para
dos poemas, pelas cartas letras e escreve-se em Didi, é o que a história produz para além dela
envelopes usados, páginas de cadernos, folhas
de receitas. O branco escorre pelos olhos, pelas mesma, ou seja, o destino engaja a história
mãos, pelo corpo. Escreve porque, como alguns, na direção de um passado que não se lembra
essa mulher sofre da doença das palavras e quer
arrancar o que dizer do silêncio, da brancura, mais e na direção de um futuro que ela ainda
apesar de tudo. escreve porque, para alguns, a não conheceu. Ele escreve que “as relações
escritura é uma nostalgia do branco (...),
de tempo estão na imagem, na medida em
sendo o branco, também, “a branca dor de que ela é criadora também. as imagens tor-
nosso desejo” ⁴⁸, vale lembrar, nesse ponto, nam visíveis/sensíveis as relações de tempo
entre horror e desejo, o uso que Freud faz de irredutíveis ao presente”⁵⁰ . Didi-Huberman
“a cabeça da medusa” para falar do horror da cita Walter Benjamin com sua “dialética
castração – a horripilante cabeça decapitada temporal” e Aby Warburg com os conceitos
da Medusa – o horror de uma mulher ao se de emaranhamento cultural de “migrações” e
deparar com a falta⁴⁹. de “sobrevivências”, pensando a necessidade

136 137
de verificar o quanto uma imagem funciona. ⁵¹Trecho do artigo “Imagem, memória e do desejo, aponta, de fato, para a ⁵²Ninfa: conjunto de ima-
Evento e Duração” de Didi- gens onde o motivo/tema da
E, para tal verificação, para compreender as -Huberman, traduzido por Pa- construção de uma duração e acena, inclu- feminilidade se aproxima pe-
tricia Franca Huchet. Image, rigosamente da negatividade
imagens, é preciso, segundo Didi, interrogar événement, durée, 2008. sive com base na teoria freudiana sobre as violenta e assassina.
o seu destino, no sentido falado por Freud, construções em análise, para a interpretação ⁵³Francisco José de Goya y
notadamente, de um “destino” das pulsões. e a construção de sentido intrínseca, que se Lucientes (30 de março de
1746 —15 ou 16 de abril de
faz possível em uma construção de duração. 1828) foi um pintor e grava-
dor espanhol.
Para Freud, o destino ou destinação das
⁵⁴Livre tradução, feita por
pulsões tem relação com o desejo de satisfa- A arte dessa construção – desse conheci- mim e Walmir Lacerda, de
“Pietà du Kosovo”, p 32.
ção que pulsa no corpo. todo sujeito, então, mento – passa por um pensamento e prática
constrói, sem saber bem como, o seu circui- de montagem. é o que Warburg fez, a título
to pulsional, e é nele que se localiza a busca da construção de um atlas de imagens, que
pela satisfação, sempre faltante. os caminhos ele intitulou Mnémosyne. uma prancha des-
da pulsão compõem, então, uma destinação, se Atlas, explica Didi Huberman, tem como
um endereçamento que visa a um objeto, que tema a expressão da dor extrema através
pode variar constantemente, inclusive: tanto da iconografia. não por acaso, ele diz, essa
pode ser uma parte do corpo, como um obje- prancha é diretamente precedida de uma das
to do mundo, ou algo que faz compelir a algo numerosas montagens dedicadas à figura pa-
ou pressionar para algum lugar ou objeto. A radigmática da ninfa.
pulsão irrompe como uma exigência de tra- é um conjunto de imagens cujo motivo se apro-
balho que para cada um seguirá um traçado xima perigosamente da negatividade violenta e
mortífera. a prancha que segue, fecha, em sua
particular⁵¹. lógica, esta espécie de dialética: é consagrada
ao cadáver deposto, do luto e da lamentação.
das bacantes pagãs às lamuriantes cristãs, pas-
Ao lembrar Georges Bataille, Didi-Huber- sando pela Kinah judia ou à queixa muçulmana,
man reafirma a necessidade constante de co- eis o motivo – essencialmente trágico – de uma
ninfa dolorosa que Warburg esboçava nas pran-
locar as imagens em face do destino – feito as chas de seu atlas.⁵²
pulsões, as imagens estão sempre em desti-
nação, a caminho de algo, de alguém, em um Didi-Huberman, após referência no texto

traçado particular. e, parece que é assim, en- sobre Warburg e seu atlas com montagens

tão, o modo como as imagens podem mostrar dedicadas às ninfas⁵³ , escreve que a Pietà do

o que a história produz além dela mesma. tal kosovo, de Convert, vem a partir da abertura

construção de uma historicidade, a partir da feita por Goya⁵⁴ e a inserção dos seus desas-

138 139
tres nas pinturas de guerra – época aberta ⁵⁵Livre tradução, feita por Qual futuro temos, agora? qual futuro te-
mim e Walmir Lacerda, de
pelos horrores de Goya – suas imagens feitas “Pietà du Kosovo”, p 32. remos, amanhã? as imagens de luto e barbá-
de traum (de rêve) e de trauma . os desastres ⁵⁶idem, p. 41-42. rie desses tempos de pandemia no país, as
de Goya trazem, principalmente, o horror pietás do brasil. as dores, o desejo e o hor-
das mulheres – a própria ninfa dolorosa faz ror. para o futuro, escrevo, pedindo que ele
parte da pilha de corpos assassinados – com chegue, que ele aconteça até ficar diferente e
seu arquivo de gestos extremos, o informe, que as ninfas nos protejam, nos lavem e nos
os mortos de guerra – imagens do trauma⁵⁵. levem, no ritmo branco do mar. os restos de
Didi fala, a partir de Warburg, em uma ico- tudo são inevitáveis. salve a poesia, salve a
nologia política – o motivo do trauma que arte, axé, amém!
aparece na imagem, no mundo contemporâ-
neo, apresenta o artista como etnógrafo de até breve,
seus traumas – pós-moderno/ pós-traumáti-
co, uma iconografia do desastre. claudia itaborahy
Claudia Itaborahy é psi-
canalista e escritora, possui
As imagens, escreve Didi-Huberman, têm graduação em Psicologia
(2006), especialização em
o poder de mostrar o que a história produz Ciência da Religião (2008)
e mestrado em Educação
além dela mesma. ele cita Deleuze: a ima- (2013). Atualmente é dou-
gem não está no presente (...) a imagem é toranda do Programa de
Pós-Graduação em Estudos
um conjunto de relações de tempos cujo pre- Literários da Universidade
Federal de Minas Gerais, na
sente apenas deriva. essas relações de tempo linha Literatura e Psicanálise.
Inventou e co-produz o Ateliê
irredutíveis ao presente, escreve Didi, de Psicanálise e outras Artes
de Ouro Preto, desde 2014 -
um espaço de encontro, estudo
aparecem somente no final de uma interpre- e formação em literatura e
tação, isto é, daquilo que Freud nomeou uma psicanálise. Atua no Serviço
“construção na análise”: construção de sentido de Psicologia da Supervisão de
involuta na análise de seu material e que faz Segurança e Saúde Ocupacio-
nal da Prefeitura Municipal de
sentido somente através de uma construção da
Ouro Preto, onde é servidora
duração. trata-se de colocar a história “face a pública, desde 2008. Fundou e
seu destino”: de a confrontar com o passado que integra, desde 2018, a Casa-
a engaja, mas do qual ela não se lembra, bem Ateliê de Ouro Preto - casa,
como com o futuro no qual se engaja, mas que clínica, consultoria e formação
ela ignora. Trata-se de construir a historicidade nas áreas de psicanálise, psico-
logia, educação e outras artes.
segundo a memória e segundo o desejo que a
carregam inconscientemente⁵⁶. Ouro Preto, MG 

140 141
vazios cheios Poema é quando o silêncio e a música das
ivan nicolau corrêa vivências, sentidos e sem sentidos da vida-
-morte tomam formas de palavras; apare-
ce no tempo da fruta que amadurece, surge
Escrevo aqui pra você sobre minha relação instantaneamente ou apodrece. Daí pode ser
e o que eu penso/sinto atualmente sobre três trabalhado, moldado, como escultura de bar-
palavras: poesia, poema e deus. E, com isso, ro, mesmo que seja água e vento que leva e
também sobre como vejo/sinto o tempo e a lava a vida, fogo que instiga e arde o corpo e
própria noção de palavra. Minhas impres- a consciência. E a poesia está por aí, na vida
sões sobre a arte são vivências do e no tem- e na morte; às vezes nos visita em girassóis
po que escorre. Um presente-instante que se murchos ou em um sentimento e vivência que
frutifica ou futurifica no agora. Parece que nos transpassa; às vezes está em um sorriso,
essas três palavras não estão ligadas; para alegria, ou em uma profunda tristeza e nos-
mim, simultaneamente, estão e não estão. talgia; às vezes vira versos-palavras; outras
são só silêncios e espantos. Em outras some,
Poemas surgem dos partos e dores, in- deixando saudades nas lidas do dia a dia; e,
quietações e alegrias gestadas. Poesia é lin- às vezes, as ouvimos de novo em algum pôr
guagem sentida, vivida e usada para apalpar do sol... Isso porque a poesia não é apenas
e tentar ir além da linguagem; é o que gesta um estilo de escrita ou um formato de texto,
e o que surge; palavra tentando falar silen- e sim um estado de espírito e experiência de
ciosa, suave ou ruidosamente de palavras e vida, quer ela venha de e em um texto em
não-palavras através de imagens, sons, pro- prosa, em um filme, uma música/canção ou
vocações, deságues, revelações, observa- peça musical, uma comida e ou qualquer ex-
ções dos esconderijos e formas do aparente, periência da sinfonia interna e da sonata que
do presente e do ausente. Poema é vivência são a sensibilidade e a intuição humanas.
palavreada e despalavreada; é corpo; poe-
sia é seu gesto, fala, movimento, ausência, Escrever para você, hoje, esta cronikairô-
silêncio, suor, gozos e lágrimas (pérolas da nica (uma crônica não cronológica, sem de-
pele...), sonoridade... talhes de fatos cotidianos e pontuais; pince-
ladas de instantes e pensamentos/sentidos
sobre vida, arte, morte e tempo; por isso per-

142 143
meada do kairós, do tempo instante...); que, Bachelard, Byung-Chul Han, Alberto Mars-
então, é mais uma kairônica (do kairós que ciano, Rodolfo Witzig Guttilla e Rubem Al-
é instante oportuno; não apenas do kronos ves que o haikai e a poesia são, entre outras
preso nos ponteiros do passado ou do futu- coisas, fotografias e imagens do instante;
ro...), meio ensaística também, me deixou uma vivência escrita; é poesia em estado
muito próximo também de uma relação com natural, viva, pulsante: o muito no mínimo;
a escrita que há alguns anos eu tinha per- para mim, o haikai é muito mais que apenas
dido. Nos últimos anos tenho escrito muito a estrutura rigidamente formalizada em três
no estilo haikai, creio que para deixar espaço versos com 5-7-5 sílabas: é um disparador,
para o vazio criativo e aberto do indizível, provoca a presentificação de um espanto, de
para a tristeza/alegria e presença da ausên- uma percepção da vida, com e sem memó-
cia sem palavras totalmente descritíveis ou ria, o próprio perceber, como disse o Alberto
adjetiváveis que a poesia (e sua brevíssima Caeiro/Fernando Pessoa, de às vezes ouvir o
forma, o haikai) me conduz. O haikai, como vento passar, e só de ouvir o vento passar,
disse o diretor de cinema Andrei Tarkóvski sentir que vale a pena ter nascido. O haikai,
comparando essa forma de poesia aos seus como a poesia, é espaço aberto em que pala-
filmes, é uma escultura do tempo. Veja como vras são pequenas e vastas, e abrem espaço
sinto e tentei esculpir o tempo em um haikai: tanto para a imensidão breve de um instan-
te-já (como a Clarice Lispector expressou no
Sonhos grudados nas cascas início do Água Viva, ou no trecho em que ela
raspadas nas paredes menciona que o presente é o instante em que
das casas velhas a roda do carro em alta velocidade toca mini-
mamente no chão; ou quando ela disse que o
O haikai traz essa des-subjetivação vazia instante é o vasto ovo de vísceras mornas...)
da abertura à vida/morte/natureza/imper- quanto para o vazio.
manência/imanência; notei, em minhas ex-
periências na meditação e espiritualidade, e Mas um vazio que não é um nada, e sim
com os aprendizados poético-teóricos com espaço em que e onde cabem e estão relacio-
Bashô, Issa, Buson, Shiki, Leminski, Alice nadas muitas coisas (é este vasto ovo de vís-
Ruiz, Adélia Prado, Cecília Meireles, Bau- ceras mornas), como o céu e o mar juntos,
delaire, Guilherme de Almeida, Millôr Fer- uma interligação, começo, caminho, inters-
nandes, Tarkóvski, Roland Barthes, Gaston tícios e término entrelaçados; este vazio do

144 145
haikai vem do e é/está no vazio/vastidão da ainda que o floco e o gelo não renasçam en-
espiritualidade/poesia e da vivência búdica quanto conceito, palavra; a palavra mais
tibetana/indiana e do zen, a noção/possibi- imensa e a mais pesada, a palavra mais ob-
lidade/experiência que nos atravessa como sessiva, de obsediar e de julgar – Deus – pa-
abertura/interligação/interdependência... lavra que cai em mim, desde criança, como
um peso invisível de um edifício que jogas-
no oco sem em minhas costas! o peso de toda a ci-
do ovo vilização, seja a ocidental e parte da oriental
vazio cheio também...; encontrei esta palavra/experiên-
cia (deus, maiúsculo ou minúsculo, feminino
Já a palavra deus (abismo e mar muito ou masculino, com ou sem formas, natural
abusados nas verbalizações, conceituali- ou transcendental, ocidental ou oriental...)
zações e normatizações humanas e sociais) em danças confeitadas em 12 anos de minha
hoje para mim é e não é como a imagem do vida e perdi/encontrei ela nos amargores
deusinho que teima em morar na gente, que agridoces da amiga e presença que volta pra
a Aline Bei descreve em seu romance O Peso me mostrar que a escorrescência é o absolu-
do Pássaro Morto. Para mim, deus foi, por to da relatividade deste mundo: a morte; a
muito tempo, o açúcar da morte; e em mui- impermanência; elas foram as reais absolu-
tos sentidos também não. O açúcar da morte tas Deusas e mestras de minha vida; senho-
não mora mais em mim. Não como o foi an- ras talvez mais idosas ou menos sensíveis e
tes do suicídio de minha mãe, ou da morte líricas que a senhora poesia, ou suas irmãs;
religiosa que tive há três anos, que iniciou ou formas gêmeas... palavra: um é que está
fortemente a quatro (e desde minha infância sendo; “substância”, verbo/ação, estado, nú-
e suas angústias e questionamentos...). Mor- cleo vital que escorre entre os dedos...
reu. Parte de um todo que se calcifica, vira
floco ou, no mais, como disse a Hilda Hilst, é Esta palavra/conceito/experiência “deus”
uma superfície de gelo ancorada sobre o riso. (que, muitas vezes, se assemelha à poesia, ou
Um riso de tristíssimo palhaço, do acrobata assim o foi pra mim...) não mora em mim em
da dor de Cruz e Sousa... suas formas institucionais de negociatas de
Mas esse oceano ainda vive em mim (mais berçários sociais e rebanhísticos; seja como
como o mar absoluto da Cecília Meireles...). um Papai Noel superior, ou em suas formas
Hoje lhe dou outro nome (mesmo indizível), sádicas e ameaçadoras, como o Narciso su-

146 147
premo que deseja ser elogiado especifica e pensemos/acreditemos ou percebamos que
infinitamente para “perdoar” os males de a consciência/mente/alma/subjetividade ou
quem vêm nascer ou “cair” aqui por tê-lo como a chamem vá para outros lugares ou
desafiado ou por escolher ficar longe dele e gere outras formas, é nesta nossa linha inter-
sair do paraíso de formas perfeitas e imor- mediária palavrada pela preposição ‘entre’, a
tais/congeladas e, com isso, ser castigado/a nossa vida intermediária neste planeta, que
com a morte; ou a tortura, o estupro, a ida somos/estamos em transição e em que temos
prematura, como criança morta no caixãozi- de encarar a impermanência; ou fazer as pa-
nho pequeno do casulo das vivências absur- zes com ela e deixar fluir tudo dentro/fora de
das e sem respostas simples e isentas de fés nós no rio Heraclitiano e na Búdica pedago-
enquanto crenças que consolam e dão açú- gia consciencial da vida/morte.
car para morte, bolo de confeitaria que, na Nessa existência cíclica (pessoal ou so-
maioria das vezes, azeda... ou pedagogizado cial) de metamorfoses e vida/morte do entre
em um hospital-prisão com as cordas do de- é que estamos sendo intermediários, de pas-
sejo insaciável, da doença e da morte. sagem nas certezas incertas do que chamam
de vida; é aí que a poesia tece os fios e corre
Ainda assim deus é um meta-conceito; o as águas que podem, nas feiuras ou nas be-
Ivan Nicolau Corrêa nasceu
deusinho; mesmo que venha como imagem lezas de viver/morrer, estar e se transformar em Embu-Guaçu/SP, em
23/02/1982, e mora em Ca-
em rezas que desejam intimidades infan- em deuses, poemas e vivências que não po- ruaru-PE há 11 anos. Mestre
tis, quase como o menino Jesus do Alberto dem ser totalmente descritas por e aprisio- em Educação Contemporânea
pela UFPE, Licenciado em Le-
Caeiro/Fernando Pessoa; só que este meta- nadas em palavras, embora ainda o sejam; tras pela FAFICA e Graduando
em Pedagogia pela Pitágoras
-conceito (enquanto norma e ameaça social) seja nas palavras poesia, poema, deus ou Unopar, é professor de Língua
Portuguesa no Colégio Motivo
não é mais belo que a experiência de um cre- mesmo vazio/abertura. Por isso, para mim, em Caruaru-PE. Como poeta
púsculo serenando fogos amarelos e rosáce- o futuro é o agora; ou um presente projetado tem um livro pronto (no prelo,
possivelmente será publica-
os nos abismos e vastidões do céu. Entre a que quase sempre sai diferente da maquete; do pela Editora Penalux em
2022), chamado “Entre Algas
senhora poesia e uma de suas formas pala- é mais o instante-já escorrescente, o vasto e Corais”, e outro em cons-
trução. Publicou poemas em
vreadas, o poema, e esta palavra/experiência ovo de vísceras mornas que gesta e flui ven-
antologias de concursos literá-
que muitos chamam de deus estão a linha, as tres grávidos de poesia. rios, na Antologia Nem tudo o
que há no Mundo, da Editora
tessituras e as águas de nossas vivências; e, Arrelique, e na revista de
Literatura Contemporânea Su-
para mim, a presença onipresente da morte; A pedra que vês curu. Também publica poemas
que é, também, apenas outra forma da trans- escorre no tempo em sua página do instagram:
@ivan.nicolaucorrea
formação. A metamorfose “definitiva”; quer e é levada pelo rio
Caruaru, PE

148 149
elena ferrante e a modulação do mergulha em um estado de desespero pro-

sofrimento por meio da escrita fundo ao se perceber abandonada por aquele

isabelle bessa a quem renunciou tantas coisas em nome de


um matrimônio. Semelhante às indagações
As mulheres escrevem muito, e não tanto
que vemos muito bem representadas nas so-
por profissão, mas por necessidade. Re-
frências sertanejas, Olga pergunta constan-
correm à escrita sobretudo em momentos
temente ao marido “como você faz com ela”
de crise, e o fazem para se explicarem a si
quando este relaciona-se sexualmente com
mesmas.
sua amante, às voltas em descobrir como a
outra é e o que ela pode ter que a faz ser o
Elena Ferrante
objeto de desejo em detrimento de si.

Enquanto a maioria das histórias de ro-


Em todo esse trabalho de uma nova re-
mances do século XIX de autoria feminina
constituição do Eu, Olga sofre de reminis-
eram regadas a um certo romantismo e ide-
cências. Ao rememorar as lembranças da sua
alização dessa posição a ser ocupada pela
infância, a protagonista demonstra como foi
mulher como esposa, Elena Ferrante nos
atravessada pelas falas que escutava enquan-
traz justamente a desconstrução desse lugar,
to brincava. Tendo sua mãe costureira, Olga
rompendo com o “felizes para sempre” an-
sempre esteve envolta de alfinetes, linhas,
tes mesmo de enunciar o “era uma vez”. Em
réguas e tecidos e das conversas que circun-
Dias de abandono conhecemos a personagem
dam esse ambiente:
Olga que em um corriqueiro almoço de famí-
lia, recebe abruptamente o pedido de divór- Minha mãe falava sobre isso com suas funcioná-
rias, cortavam, costuravam e falavam, falavam,
cio do seu marido. costuravam e cortavam, enquanto eu brincava
sob a mesa com os alfinetes, o gesso, e repetia a
mim mesma o que eu ouvia, eram palavras en-
A partir disso, presenciamos a desmargi- tre a aflição contida e a ameaça, quando você
nação dessa mulher que perde os seus con- não sabe segurar um homem perde tudo, rela-
tos femininos de fins de caso, o que acontece
tornos ao descobrir que foi traída pelo mari- quando, plena de amor, você não é mais amada,
do. A desorganização da sua casa e a rotina é deixada sem nada. A mulher perdeu tudo, até
o nome (talvez se chamasse Emilia), se tornou
dos filhos refletem o seu sofrimento. En- para todos “a pobre coitada”, começamos a fa-
contrando-se nessa situação, a protagonista lar dela chamando-a desse jeito. (FERRANTE,
2016, p. 12).

150 151
Nesse ponto percebemos o valor atribuí- Traçando paralelos entre a relação de Olga
do ao casamento e o sofrimento da mulher com a sua mãe, percebemos que a escrita e o
entendido pela cultura quando a separação costurar não se distinguem totalmente entre
acontece. Sem a presença da figura masculi- si. Ambas atividades concernem a essas mu-
na para que possa legitimar a sua existência, lheres modos de alinhavar um certo contor-
a mulher que um dia teve um nome agora re- no sobre um corpo, seja o delas ou de outras.
cebe a alcunha de pobre coitada. Diante dis- Seja na linha do papel ou na linha da costu-
so, Olga identifica-se com essa mulher sem ra, há a possibilidade de criarmos algo, de
identidade. inventar-se acerca daquilo que ainda não é
possível nomear.
Ao refletir sobre suas escolhas, a perso-
nagem percebe que a saída pela maternida- Numa entrevista, traduzida por Fabiane
de não foi uma escolha exclusivamente sua, Secches, Elena Ferrante fala sobre seu pro-
mas imposta por esse relacionamento. A per- cesso de escrita:
sonagem abdica, portanto, do seu desejo de A metáfora do nascimento aplicada ao trabalho
dedicar-se à escrita por conta dessa parceria de escrita nunca pareceu convincente para mim.
A metáfora da tecelagem soa mais eficaz. Escre-
amorosa. Deposita nesse casamento questões ver é uma das próteses que inventamos para dar
mal resolvidas em sua vida, o afastamento da poder ao nosso corpo. Escrever é uma habili-
dade, um forçar de nossos limites naturais que
cidade, do dialeto, da sua mãe e espera que requer longo treinamento para assimilar técni-
ele seja suficiente para satisfazê-la. cas que nós usamos com perícia crescente e, se
for preciso, inventamos novas. A tecelagem re-
presenta bem essa ideia. Nós trabalhamos por
Como que sem alternativas, tudo que lhe meses, por anos, tecendo um texto, o melhor
que somos capazes naquele momento. E quando
resta é a caneta e o papel. Na tentativa de está pronto, está lá, para sempre o mesmo, en-
convencer o marido deste erro, Olga trans- quanto nós mudamos e continuaremos a mudar,
prontos para tentar criar outras tessituras.
forma seus pensamentos em palavras. A cada
carta destinada a esse alguém que não quer Para Olga, foi preciso recorrer à desmedida
recebê-la, há uma reinvenção de si mesma a
para, posteriormente, encontrar a sua justa
partir de um sofrimento que consegue ganhar
medida, definida agora pelo seu próprio de-
contorno por meio da letra. Na escrita, Olga
sejo. Foi preciso recorrer à obscenidade para
desembaraça seu sofrimento e consegue, a
que a retomada desse equilíbrio pudesse se
partir desse lugar, existir para além dele.

152 153
dar de maneira autêntica e, além de tudo, foi
preciso transbordar por meio das palavras no
papel. Nesse sentido, a escrita tecendo algo
que até então não havia sido possível dizer
fornece a Olga uma possibilidade de reinven-
tar-se a partir do seu sofrimento, podendo
movimentar-se diante desse vazio e fazendo
algo com ele. Por fim, parafraseando Freud,
se o enigma pertence às mulheres, que possa-
mos então procurar os poetas - ou melhor, as
poetas - para entender algo daquilo que até
então não havia sido possível nomear.

Referências

FERRANTE, Elena. Dias de abandono. Trad. Francesca


Cricelli. - 1. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
Isabelle Bessa é estudante
Elena Ferrante: em entrevista rara, autora comenta de psicologia pela UFCG que
o processo de escrita da tetralogia napolitana. [En- aprende psicanálise com a
trevista concedida a Ddier Jacob]. L’Obs. Paris jan. 2018. literatura. Tem interesse em
pesquisar sobre o feminino
Trad. por Fabiane Secches. Disponível em: https://fabiane-
e tenta se dizer por meio da
secches.medium.com/elena-ferrante-em-entrevista-rara- escrita.
-autora-comenta-o-processo-de-escrita-da-tetralogia-na-
politana-892bc0b840c7 Encanto, RN

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esta carta nunca chegará ao escrever também não seria?

destinatário
silvano barbosa Só te peço perdão
por uma coisa

Que não se convertam as próximas linhas


uma única coisa
num mar de lamúrias ou rosário de desculpas
mas que sirvam apenas ao propósito
que já adivinhas
de nos momentos derradeiros
mas que não o farei agora
me desassombrar o espírito
aqui não encontrarás conforto algum
Não guardo remorso
pela terra arruinada
Lamento as palavras escritas
ou minha incapacidade
poderiam ser narradas
de preservar ar puro
ou apenas soterradas
as folhas frescas
no casulo último
conservar gotas d’água límpida
que me abraça
uma vez que de nada te servirão
admito que ensaiei discursos
e dentro em pouco nem a mim também
mas é que gaguejo às vezes
Não me arrependo da casa penhorada
tenho a fala desenfreada
perdida após o fim da tua vó
e o tempo de desenhar as letras
quando esgotamos toda tua herança
é fundamental pra desenredar
futuro privilégio
o enlinhado das minhas intenções
não por precisar
comer, vestir, sobreviver
Estas palavras
mas gastar e consumir
agora gravadas no papel
ninguém poderá acelerar
Tivesse sorte não herdar
preservando assim
qualquer aptidão artística
toda intensidade e desalento
minha ou da tua mãe
e se nesses tempos apressados
e viver condenado às engrenagens
ler é ato máximo de dedicação
que moem cabeças

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ou definhar nas tentativas inglórias nunca fizemos o inventário
de alcançar nuvens imagina se fossemos três
e se por acaso viessem em dobro?
minha falta de disciplina explica quero reforçar que te quis
a quantidade dos meus êxitos a todo custo
numerados nos dedos de apenas uma das mãos seria esse meu grande ato de egoísmo?
e no afã de equilibrar sobrevivência e sonhos mas ainda assim fracassei
lastimo minha inabilidade em me tornar genitor como também não fui capaz
de te meter em ventres outros
Mas preciso dizer que te quis ou destruiria o trabalho mais árduo
em vários momentos, quase todos que também falhei
mas na minha incapacidade de concretizar a construção da nossa família
te aprisionei na gaveta tua construção
dos quadros inacabados o tempo, areia fina
livros rascunhados me escorreu entre dedos
cigarros nunca tragados antes que nos organizássemos
é que tudo só acontece na minha cabeça pra te chamar pra perto
nunca nas mãos pra te tirar de dentro
enfim te amparar
Tua mãe também te quis mas não estávamos prontos
em alguns momentos, quase vários nunca estivemos
mas com receio de te ver sofrer ainda hoje
te enclausurou no útero assim permanecemos
com as viagens apenas vontades não fomos capazes nem de te acolher já pronto
nunca objetivos ao aviso do coração
os esboços das decorações sonhadas eis aí vosso filho
nunca concretizadas mas espantamos a pomba
perto da parede pra sempre mofada tal qual fizemos à cegonha
e despedaçamos os repolhos do quintal
Sabe o preço de zelar por dois? bloqueando todas tuas chegadas
também não sei te sufocando por medo
158 159
quando ainda eras dividido em dois o necessário pra ti
mas nem assim, nem hoje, nem nunca
Pais nunca confessarão te dei, nem darei a chance de existir
me disseram uma vez o que faria eu agora contigo nos braços
nunca assumirão falhas quando já nem suporto o peso deles próprios?
manchas ou rachaduras perante um filho a esta altura caberia te chamar
mas talvez eu por ser apenas filho filho, neto, bisneto, Bernardo?
esteja aqui te confessando profundidades
da casa e da alma Repito que te quis, sim
eu, pra sempre filho as custas de mim próprio
jamais pai, padrasto, tampouco avô mas não eram minhas
que tanto sonhava as entranhas que te gestariam
então perdoa, aprende e me ensina
Amargou-me o peito ver evaporar a perdoar também
todo aprendizado que te ensinaria
andar de bicicleta agora, condenado à solidão
amarrar os cadarços meu maior medo
apontar lápis de cor sem quem me ajude a levantar
dirigir carros, não trancar a casa
isso também nunca aprendi cozinhar as batatas
mexer papa de aveia
Vi desbotarem brinquedos lavar feridas caducas
que nunca marcarás com teus primeiros dentes me gasto perseguindo ecos
de leite da minha própria melancolia
que não cresceram, nem crescerão a reverberar nas paredes dessa casa-túmulo
também não encharcarás com baba generosa vazia de gentes
a pelúcia que nunca lavei e já perdeu cheiro, antessala da eternidade
costura, lembrança com saudades me afligindo açoites
despregaram todos meus dentes
Dizem que permaneço fértil e eu a sacudir a própria poeira
minimamente fértil porque sou pó, Ele disse
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e me torno a cada dia
me espalhando pela casa
acumulando nas quinas
enchendo a cova por dentro
mas antes que me desintegre por inteiro
que me sopre o vento do fim de tarde
repito, não peço desculpas
por dilapidar herança
arquitetar o fim do mundo
nem deteriorar meu corpo-santuário
sufocando meus próprios desejos
não peço perdão por nada
exceto pela covardia
de não me permitir tua existência

Silvano Barbosa é natural


de Belo Jardim. Designer pela
UFPE, se equilibra entre os
desenhos e as palavras. Já par-
ticipou de concursos literários
e acredita que só se conectan-
do com suas raízes pode se
tornar universal. Também é
editor na Editora Arrelique.

Caruaru, PE

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a clandestina dedica seu terceiro volume, neste ano de 2021, às
mais de 600 mil vítimas do coronavírus (e de um governo geno-
cida) no brasil & a todos e cada um dos brasileiros que desejam,
como nós, imaginar com bravura um futuro

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