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1. DESTRUIÇÃO DE MONUMENTOS
O escultor Júlio Guerra, desde a inauguração de sua escultura de Borba Gato,
localizada no antigo povoado que nascera, Santo Amaro1, tem sido alvo de frequentes
discussões na sociedade. Em matéria de 1963 da Folha de S. Paulo, a estátua
comentava que, para uns, a estátua era “um enorme boneco a olhar indiferente para
a cidade”, enquanto para outros, “a gente simples, os moradores de Santo Amaro, e
os que vivem na cercania acharam Borba Gato um monumento de primeira ordem” 2.
As objeções, à princípio, eram do mais claro dissabor estético:
“Quem ama o feio, bonito lhe parece”, dirá o futuro diretor da
Pinacoteca do Estado, Delmiro Gonçalves, ao descrever nos anos 1960 o
bandeirante esculpido por Júlio Guerra como um “trambolho” e um “atentado
à estética”16. Na mesma linha, a galeria Collectio — espaço que teve um
importante papel na formação do mercado de arte brasileiro (Rodrigues 2015)
— reitera no anúncio de um de seus leilões artísticos, veiculado nos anos
1970, que qualquer um que viva em uma São Paulo cercada por construções
como o “Borbagatão” deveria ter em casa inúmeros quadros para que ao
menos pudesse ter algum contato com algo belo; o publicitário Neil Ferreira,
redator do texto, defende ainda que “o sujeito que fez aquele negócio deveria
pagar um imposto pela obra, só por estar poluindo a cidade” (WALDMAN,
2019, p. 6)
Em sua defesa, Guerra preparou o seguinte poema, onde explicita a concepção
artística proposta:
Fiz o Borba Gato
Diferente
Não parece túmulo e não tem o pedestal enfeitado
E quando fazia esquecia de Policleto e lembrava de Aleijadinho
E dos bonecos da arte popular
Depois de pronto eu gostei
E o povo da minha terra também gostou
Fizeram festa
E os romeiros recordaram o Santo Amaro das chácaras e das poesias
1 (WALDMAN, 2019, p. 4)
2 (WALDMAN, 2019, p. 5)
Muitos olhos umedeceram
E os letrados, que Leonardo já ironizava, xingaram o Borba Gato
De Bonecão
Boi Parado
Monstromento
E que era feito de pastilhas
Mas não é. Ele é feito de pedras e mármores
(WALDMAN, 2019, p. 6)
A obra foi erguida num contexto em que a população do município de Santo
Amaro, criado em 1832, contestava sua anexação ao município de São Paulo em
1935. Foi fundado o Centro Autonomista de Santo Amaro como grupo de resistência
ao expansionismo paulistano, e em 1945, tiveram um plebiscito rejeitado pela Câmara
Municipal.3 Em 1963, foi festejado o IV Centenário de Santo Amaro, quando a estatua
foi inaugurada com uma inscrição de evidente partido “santoamarista”: “Aqui em Santo
Amaro em meados do século XVII nasceu Borba Gato”4
O que mais impressiona quando se compara as discussões de outrora com as
atuais, é a completa desconexão tanto entre as objeções à estátua hoje com os
argumentos de seus defensores e detratores na década de 60, como entre a própria
figura histórica de Borba-Gato do século XVII, que provavelmente não dedicava seu
tempo para pensar sobre a identidade do vilarejo em que nasceu, ou sobre os crimes
aos quais seria associado:
“Era o Dia do Índio, 19 de abril, e um cartaz aos pés da estátua do
bandeirante informava o que acontecia na confluência das avenidas Santo
Amaro e Adolfo Pinheiro: o julgamento de Borba Gato. Outros cartazes
estavam dispostos no local. Um deles descrevia o julgamento como um
“movimento no falso monumento”, enfatizando que “estuprador, homicida,
explorador não merece estátua”; outro afirmava que os atos do bandeirante
seguiam sendo reproduzidos na história atual — “Estupra, mas não mata!”,
dizia o texto, relembrando a frase proferida em 1989 por Paulo Maluf, que em
2008 concorreria à prefeitura de São Paulo pelo Partido Progressista (PP);
enquanto um terceiro cartaz, colocado no fim do julgamento, trazia o veredito:
“Julgado, condenado e preso, fato inédito para um branco e rico”.
O júri popular declarou Borba Gato culpado pelos seguintes crimes:
homicídio qualificado de negros, índios e brancos; promoção de trabalho
escravo de negros e índios; estupro de mulheres negras e índias; apropriação
3 (WALDMAN, 2019, p. 6)
4 (WALDMAN, 2019, p. 3-4)
indébita de riquezas e poder; e porte indevido e ofensivo de armamento
pesado em espaço público. A defesa rebateu — “Povo ingrato! Povo ingrato!
O acusado de fato merece trato de herói! Tudo aquilo que constrói, que o
progresso traz de fato, veio com esse cidadão, que chamamos Borba Gato”
—, mas o juiz decretou: “Quem decide aqui é o povo, isso é júri popular!”. Sua
sentença? Segundo o blog Anonimato S/A (Histórias de quem não entra para
a história), alguns sugeriram que ele deteriorasse sob o cocô dos pássaros.
Outros, que grades fossem colocadas ao seu redor (atitude frequente por
parte do poder público em relação à proteção de vários monumentos da
cidade). Teve ainda quem propusesse que os pedágios das avenidas que
levam nome de “jagunço” revertessem o valor arrecadado para as nações
indígenas.” (WALDMAN, 2019)
Destaco algumas contradições com este trecho. Apesar de integrar o mito
construído sobre os bandeirantes, sua associação histórica é com a resistência local
dos “paulistas” em Minas Gerais ao poder régio, os “emboabas. Estes utilizavam
grande quantidade de “forasteiros” indígenas em seus grupos, o que “aumentava sua
o potencial de superação das adversidades naturais, especialmente aquelas
relacionadas à procura de alimentos, e os tornavam mais aptos a enfrentar possíveis
ataques de tribos hostis que encontravam em seu percurso”5. Este tipo de tática é
evidência da “afinidade” indígena desses jagunços, transformados em heróis pela
historiografia, tornando o julgamento de Borba Gato como “um branco e rico” bastante
dúbio.
Finalmente, dando minha opinião como arquiteto, “o cocô dos pássaros”, ou
mesmo o arder do fogo, pouco fará para deteriorar uma estátua que foi “construída a
partir dos trilhos dos bondes que deixaram de funcionar, [...] revestido com basalto e
mármore, formando uma espécie de mosaico tridimensional montado com pedras
coloridas provenientes de distintos lugares do Brasil e também de Portugal, pedras
que Júlio Guerra quebrou, cortou e poliu no quintal de sua casa em Santo Amaro”6.
Apesar das contradições históricas e de análise das estruturas físicas, a estátua
claramente suscitou temas seríssimos que revoltou os manifestantes, que não está
nas Minas do século XVII ou das apropriações de estéticas populares no século XX,
mas sim na atualidade, onde o extermínio de negros e índios, a banalização do
estupro, as desapropriações de moradores de periferia e o armamentismo violento
encontram palco na figura dos bandeirantes. Como lembra Paulo César Garcez
7 (POLLAK, 1989)
Portanto, o que tem valor artístico maior, a manutenção das estátuas, ou
destruí-las? Cada caso será um caso. Retirar as estátuas e colocá-las em um porão
me parece uma solução covarde, que não pretende tomar parte o conflito, apenas
esquecê-lo, apesar de sua civilidade característica da democracia.
A alternativa de apresentar um texto, de outro modo, me parece uma forma de
negar o conflito para superá-lo, não o esquecer. E assim, consegue trazer uma
solução verdadeiramente satisfatória.
“Uma vez mais, é dialeticamente que devemos considerá-las, no
sentido mesmo em que Walter Benjamin — próximo nesse ponto de Aby
Warburg — pôde falar de “imagem dialética”, quando tentava, no Livro das
passagens, pensar a existência simultânea da modernidade e do mito:
tratava-se para ele de refutar tanto a razão “moderna” (a saber, a razão
estreita, a razão cínica do capitalismo, que vemos hoje se reatualizar na
ideologia do pós-modernismo) quanto o irracionalismo “arcaico”, sempre
nostálgico das origens míticas (a saber, a poesia estreita dos arquétipos, essa
forma de crença cuja utilização pela ideologia nazista Benjamin conhecia
bem). Na verdade, a imagem dialética dava a Benjamin o conceito de uma
imagem capaz de se lembrar sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar
o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua beleza estavam no
paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura
realmente inventada da memória.
‘Não cabe dizer que o passado ilumina o presente ou que o presente
ilumina o passado. Uma imagem, ao contrário, é aquilo no qual o Pretérito
encontra o Agora num relâmpago para formar uma constelação. Em outros
termos, a imagem é a dialética em suspensão. Pois, enquanto a relação do
presente com o passado é puramente temporal, contínua, a relação do
Pretérito com o Agora presente é dialética: não é algo que se desenrola, mas
uma imagem fragmentada. Somente as imagens dialéticas são imagens
autênticas (isto é, não arcaicas); e a língua é o lugar onde é possível
aproximar-se deias.’” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 114)
O texto não será apenas o fim de um problema. Ele nos possibilitará ter acesso
a algo que ainda não temos, um enquadramento da memória, uma imagem autêntica,
sem a ambiguidade que é semente da discórdia.
3. BIBLIOGRAFIA
BASTOS, F. M. DO TE DEUM LAUDAMUS AO ENTERRO DOS OSSOS DE
MOMO: festas e sociabilidades em Vitória, 1850-1872. Revista Tempo de
Conquista, n. 10, Dezembro 2011.
BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica,
2013.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,
2014.
FÁTIMA OLIVEIRA DE SALES, I.; JOSÉ ZANGELMI, A. Poder, tradição militar
e armas no contexto das Minas Setecentistas: influências europeias e indígenas.
Caminhos Da Historia, n. 16, p. 63–78, 2011.
FERREIRA, A.; MARINS, P. C. G. Quem tem direito à memória? Fundação
Fernando Henrique Cardoso, 2020. Disponivel em:
<https://www.youtube.com/watch?v=EOcXvsVWr9Y>. Acesso em: 25 Novembro
2021.
NORA, P. Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
História, 1993. Disponivel em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763>. Acesso em:
14 Maio 2021.
POLLAK, M. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos, 1989.
Disponivel em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417.>. Acesso em:
24 Junho 2021.
WALDMAN, T. C. Os bandeirantes ainda estão entre nós: reencarnações entre
tempos, espaços e imagens. Ponto Urbe, n. 25, 2019.