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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL – 2º SEMESTRE DE 2021


Vítor Tosato Boldrini – “A Preservação da Memória”

1. DESTRUIÇÃO DE MONUMENTOS
O escultor Júlio Guerra, desde a inauguração de sua escultura de Borba Gato,
localizada no antigo povoado que nascera, Santo Amaro1, tem sido alvo de frequentes
discussões na sociedade. Em matéria de 1963 da Folha de S. Paulo, a estátua
comentava que, para uns, a estátua era “um enorme boneco a olhar indiferente para
a cidade”, enquanto para outros, “a gente simples, os moradores de Santo Amaro, e
os que vivem na cercania acharam Borba Gato um monumento de primeira ordem” 2.
As objeções, à princípio, eram do mais claro dissabor estético:
“Quem ama o feio, bonito lhe parece”, dirá o futuro diretor da
Pinacoteca do Estado, Delmiro Gonçalves, ao descrever nos anos 1960 o
bandeirante esculpido por Júlio Guerra como um “trambolho” e um “atentado
à estética”16. Na mesma linha, a galeria Collectio — espaço que teve um
importante papel na formação do mercado de arte brasileiro (Rodrigues 2015)
— reitera no anúncio de um de seus leilões artísticos, veiculado nos anos
1970, que qualquer um que viva em uma São Paulo cercada por construções
como o “Borbagatão” deveria ter em casa inúmeros quadros para que ao
menos pudesse ter algum contato com algo belo; o publicitário Neil Ferreira,
redator do texto, defende ainda que “o sujeito que fez aquele negócio deveria
pagar um imposto pela obra, só por estar poluindo a cidade” (WALDMAN,
2019, p. 6)
Em sua defesa, Guerra preparou o seguinte poema, onde explicita a concepção
artística proposta:
Fiz o Borba Gato
Diferente
Não parece túmulo e não tem o pedestal enfeitado
E quando fazia esquecia de Policleto e lembrava de Aleijadinho
E dos bonecos da arte popular
Depois de pronto eu gostei
E o povo da minha terra também gostou
Fizeram festa
E os romeiros recordaram o Santo Amaro das chácaras e das poesias

1 (WALDMAN, 2019, p. 4)
2 (WALDMAN, 2019, p. 5)
Muitos olhos umedeceram
E os letrados, que Leonardo já ironizava, xingaram o Borba Gato
De Bonecão
Boi Parado
Monstromento
E que era feito de pastilhas
Mas não é. Ele é feito de pedras e mármores
(WALDMAN, 2019, p. 6)
A obra foi erguida num contexto em que a população do município de Santo
Amaro, criado em 1832, contestava sua anexação ao município de São Paulo em
1935. Foi fundado o Centro Autonomista de Santo Amaro como grupo de resistência
ao expansionismo paulistano, e em 1945, tiveram um plebiscito rejeitado pela Câmara
Municipal.3 Em 1963, foi festejado o IV Centenário de Santo Amaro, quando a estatua
foi inaugurada com uma inscrição de evidente partido “santoamarista”: “Aqui em Santo
Amaro em meados do século XVII nasceu Borba Gato”4
O que mais impressiona quando se compara as discussões de outrora com as
atuais, é a completa desconexão tanto entre as objeções à estátua hoje com os
argumentos de seus defensores e detratores na década de 60, como entre a própria
figura histórica de Borba-Gato do século XVII, que provavelmente não dedicava seu
tempo para pensar sobre a identidade do vilarejo em que nasceu, ou sobre os crimes
aos quais seria associado:
“Era o Dia do Índio, 19 de abril, e um cartaz aos pés da estátua do
bandeirante informava o que acontecia na confluência das avenidas Santo
Amaro e Adolfo Pinheiro: o julgamento de Borba Gato. Outros cartazes
estavam dispostos no local. Um deles descrevia o julgamento como um
“movimento no falso monumento”, enfatizando que “estuprador, homicida,
explorador não merece estátua”; outro afirmava que os atos do bandeirante
seguiam sendo reproduzidos na história atual — “Estupra, mas não mata!”,
dizia o texto, relembrando a frase proferida em 1989 por Paulo Maluf, que em
2008 concorreria à prefeitura de São Paulo pelo Partido Progressista (PP);
enquanto um terceiro cartaz, colocado no fim do julgamento, trazia o veredito:
“Julgado, condenado e preso, fato inédito para um branco e rico”.
O júri popular declarou Borba Gato culpado pelos seguintes crimes:
homicídio qualificado de negros, índios e brancos; promoção de trabalho
escravo de negros e índios; estupro de mulheres negras e índias; apropriação

3 (WALDMAN, 2019, p. 6)
4 (WALDMAN, 2019, p. 3-4)
indébita de riquezas e poder; e porte indevido e ofensivo de armamento
pesado em espaço público. A defesa rebateu — “Povo ingrato! Povo ingrato!
O acusado de fato merece trato de herói! Tudo aquilo que constrói, que o
progresso traz de fato, veio com esse cidadão, que chamamos Borba Gato”
—, mas o juiz decretou: “Quem decide aqui é o povo, isso é júri popular!”. Sua
sentença? Segundo o blog Anonimato S/A (Histórias de quem não entra para
a história), alguns sugeriram que ele deteriorasse sob o cocô dos pássaros.
Outros, que grades fossem colocadas ao seu redor (atitude frequente por
parte do poder público em relação à proteção de vários monumentos da
cidade). Teve ainda quem propusesse que os pedágios das avenidas que
levam nome de “jagunço” revertessem o valor arrecadado para as nações
indígenas.” (WALDMAN, 2019)
Destaco algumas contradições com este trecho. Apesar de integrar o mito
construído sobre os bandeirantes, sua associação histórica é com a resistência local
dos “paulistas” em Minas Gerais ao poder régio, os “emboabas. Estes utilizavam
grande quantidade de “forasteiros” indígenas em seus grupos, o que “aumentava sua
o potencial de superação das adversidades naturais, especialmente aquelas
relacionadas à procura de alimentos, e os tornavam mais aptos a enfrentar possíveis
ataques de tribos hostis que encontravam em seu percurso”5. Este tipo de tática é
evidência da “afinidade” indígena desses jagunços, transformados em heróis pela
historiografia, tornando o julgamento de Borba Gato como “um branco e rico” bastante
dúbio.
Finalmente, dando minha opinião como arquiteto, “o cocô dos pássaros”, ou
mesmo o arder do fogo, pouco fará para deteriorar uma estátua que foi “construída a
partir dos trilhos dos bondes que deixaram de funcionar, [...] revestido com basalto e
mármore, formando uma espécie de mosaico tridimensional montado com pedras
coloridas provenientes de distintos lugares do Brasil e também de Portugal, pedras
que Júlio Guerra quebrou, cortou e poliu no quintal de sua casa em Santo Amaro”6.
Apesar das contradições históricas e de análise das estruturas físicas, a estátua
claramente suscitou temas seríssimos que revoltou os manifestantes, que não está
nas Minas do século XVII ou das apropriações de estéticas populares no século XX,
mas sim na atualidade, onde o extermínio de negros e índios, a banalização do
estupro, as desapropriações de moradores de periferia e o armamentismo violento
encontram palco na figura dos bandeirantes. Como lembra Paulo César Garcez

5 (FÁTIMA OLIVEIRA DE SALES e JOSÉ ZANGELMI, 2011, p. 7-8)


6 (WALDMAN, 2019, p. 6)
Marins, historiador e professor da USP, os monumentos muitas vezes são
apropriações políticas do espaço, mas sua existência tem longevidade maior que os
próprios conflitos, deixando sua análise confusa.
“Muitas esculturas são feitas inclusive por pressão de grupos. [...] O
monumento ao Anchieta foi construído pelo Partido Anchietano, que era muito
ligado às comunidades espanholas da cidade. E os portugueses acabaram
construindo um outro monumento na praça Clóvis, que depois foi para o
Ibirapuera, de homenagem ao Nóbrega, que era o partido dos nobreguistas
contra o partido dos anchietanos, que na verdade era também, portanto, um
partido que queria sobrevalorizar a herança portuguesa ou a presença de um
espanhol das Canárias. Isso, pelo amor de deus, é uma coisa que sumiu
completamente da consciência das pessoas. Quando eu li isso, eu pensei, eu
passei 500 mil vezes nesse lugar, trabalhei com o inventário de obras, e
nunca soube dessas “brigas de bronze” na cidade. Isso normalmente passa
por algumas chancelas e autorizações, mas são os grupos que se organizam
para conseguir dinheiro inclusive, para fundir ou esculpir as obras. E,
portanto, a palavra que o Abílio usou é extremamente adequada, são disputas
por espaço. A cidade vai sendo marcada por essa vontade de escrever a sí
próprio.” (FERREIRA e MARINS, 2020)
Como analisar então a vontade dos grupos que pretendem destruir esses tipos
de monumentos? Que qualidades podemos estabelecer sobre eles? Qual sua função
enquanto marcas de um evento histórico? Talvez possamos esclarecer essas
dinâmicas pela diferenciação dos conceitos de história e memória, proposta pelo
historiador francês Pierre Norra:
“A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e
do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável
a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de
repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e
incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual,
um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado.
Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a
confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou
flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências,
cenas, censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e
laicizante, demanda análise e discurso crítico. (NORA, 1993)
Esse trecho, aliás, me lembra muito a descrição de Walter Benjamin sobre o
caráter da verdade distinta do conhecimento:
“O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do
conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional, formado por
ideias. O procedimento que lhe é adequado não será, assim, de ordem
intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento
nela. A verdade é a morte da intenção. É o que parece querer dizer a história
da imagem velada de Saïs, cujo desvelamento era fatal para quem, com esse
gesto, quisesse descobrir a verdade. Isso deve-se, não a uma enigmática
crueldade da situação, mas à própria natureza da verdade, perante a qual
mesmo o mais puro fogo da busca se apaga como se estivesse debaixo de
água. O ser da verdade, sendo da ordem da ideia, distingue-se do modo de
ser próprio dos fenômenos. A estrutura da verdade exige, assim, um modo
de ser que, na sua ausência de intenção, se aproxima do modo de ser simples
das coisas, mas lhes é superior pela sua consistência e permanência. A
verdade não consiste num intencionar que encontraria na empiria a sua
determinação, mas na força que marca a própria essência dessa empiria. O
ser livre de toda a fenomenalidade, e único detentor dessa força, é o ser do
nome. É ele que determina o modo como são dadas as ideias. E estas dão-
se, não tanto numa língua primordial, mas antes numa percepção primordial
em que as palavras ainda não perderam a aura [Adel] da sua capacidade de
nomear em favor de um significado cognitivo. (BENJAMIN, 2013)
Uso desse gancho para discorrer sobre a aura, essa manifestação da verdade
das coisas. Essa verdade livre de transformações que naturalmente se liga à memória,
em oposição ao conhecimento, ao qual está a história. Adiciono mais esses termos
com a intenção de esclarecer a complexidade de trabalhar com objetos onde não há
apenas um caráter histórico, mas também estético. Assim, lidamos com essas
camadas:
• O conhecimento que temos sobre a estátua
• A verdade que se manifestava na estátua enquanto fenômeno
• A história produzida pela estátua em sua interpretação do passado
• A aura de sua manifestação iconográfica
• A memória impressa pela estátua
Os três primeiros tópicos são possíveis de ser precisados ao ponto de
chegarmos a uma resposta, ou pelo menos, a uma coleção de respostas que podemos
interpretar como coerentes. Porém, os dois últimos têm caráter subjetivo, ou, como
citado, “afetivos” e “mágicos”, gerando respostas contraditórias quando analisadas as
testemunhas de diferentes grupos sociais e tempos históricos. O trabalho de
“enquadramento histórico”, como proposto por Michael Pollack7, é bastante confuso,
ambíguo e, quando transposto a uma relação de poder sobre o território,
necessariamente conflituosa, além de, se tratando de objetos físicos, extremamente
trabalhosa:
“O quê, quem passa por aquela praça, no final da Avenida Brasil, no
começo da Avenida Pedro Álvares Cabral, consegue ter de informação sobre
todas essas situações, e sobretudo dos vários atos já de contestação desse
monumento que aconteceu nessa própria década? É importante lembrar, ele
foi alvo em 2013 ou 14, agora já não me lembro mais precisamente, de tinta
vermelha que foi jogada sobre o monumento de maneira a caracterizar o
derramamento de sangue associado ao processo das bandeiras. E isso foi
apagado, porque ele é um monumento tombado, porque ele é uma obra de
Victor Brecheret, o maior monumento modernista erguido na cidade de São
Paulo. Mas ele é tantas outras coisas...
Várias pessoas dizem, “ele tem que ser retirado”, ele tem que ser
retirado, mas ele terá que ser colocado em algum lugar, porque ele é enorme,
se se decidir pela sua retirada. Eu tenho dito que é preferível então, se a
sociedade decidir que ele deve ir para um museu, construir um museu em
cima dele, porque tirá-lo dali e levar para outro lugar, realmente, o país não
suporta um gasto nisto, é preferível gastar pra fazer um prédio em cima do
que gastar para transferi-lo e remontá-lo, o que é uma fortuna. Enfim.
Mas ele não um texto. Esses dois monumentos são exemplos, do
quanto eles não têm um texto que seja capaz de colocar os problemas dessa
evocação para o público. Alguns monumentos podem ser eventualmente
retirados, outros são muito complicados porque o consenso da retirada não é
claro na sociedade. Mas o que fica claro é a necessidade, acho que ninguém
talvez conteste isso, de discutir o monumento como um artefato de memória,
e nós sequer isso fazemos com os monumentos.” (FERREIRA e MARINS,
2020)
Assim, da incompreensão, surge a violência. A aura presente no momento de
sua construção não é, e talvez nunca tenha sido capaz, de se explicar para a
sociedade. Ao momento que o protesto com a tinta vermelha, provavelmente efêmero
mesmo em sua intenção, foi eternizado em sua reprodutibilidade técnica, e em seu
movimento dialético, atingiu uma potência visual muito maior e atual que a estátua
original. A destruição de estátuas, ainda mais dramática, se potencializa ainda mais.

7 (POLLAK, 1989)
Portanto, o que tem valor artístico maior, a manutenção das estátuas, ou
destruí-las? Cada caso será um caso. Retirar as estátuas e colocá-las em um porão
me parece uma solução covarde, que não pretende tomar parte o conflito, apenas
esquecê-lo, apesar de sua civilidade característica da democracia.
A alternativa de apresentar um texto, de outro modo, me parece uma forma de
negar o conflito para superá-lo, não o esquecer. E assim, consegue trazer uma
solução verdadeiramente satisfatória.
“Uma vez mais, é dialeticamente que devemos considerá-las, no
sentido mesmo em que Walter Benjamin — próximo nesse ponto de Aby
Warburg — pôde falar de “imagem dialética”, quando tentava, no Livro das
passagens, pensar a existência simultânea da modernidade e do mito:
tratava-se para ele de refutar tanto a razão “moderna” (a saber, a razão
estreita, a razão cínica do capitalismo, que vemos hoje se reatualizar na
ideologia do pós-modernismo) quanto o irracionalismo “arcaico”, sempre
nostálgico das origens míticas (a saber, a poesia estreita dos arquétipos, essa
forma de crença cuja utilização pela ideologia nazista Benjamin conhecia
bem). Na verdade, a imagem dialética dava a Benjamin o conceito de uma
imagem capaz de se lembrar sem imitar, capaz de repor em jogo e de criticar
o que ela fora capaz de repor em jogo. Sua força e sua beleza estavam no
paradoxo de oferecer uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura
realmente inventada da memória.
‘Não cabe dizer que o passado ilumina o presente ou que o presente
ilumina o passado. Uma imagem, ao contrário, é aquilo no qual o Pretérito
encontra o Agora num relâmpago para formar uma constelação. Em outros
termos, a imagem é a dialética em suspensão. Pois, enquanto a relação do
presente com o passado é puramente temporal, contínua, a relação do
Pretérito com o Agora presente é dialética: não é algo que se desenrola, mas
uma imagem fragmentada. Somente as imagens dialéticas são imagens
autênticas (isto é, não arcaicas); e a língua é o lugar onde é possível
aproximar-se deias.’” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 114)
O texto não será apenas o fim de um problema. Ele nos possibilitará ter acesso
a algo que ainda não temos, um enquadramento da memória, uma imagem autêntica,
sem a ambiguidade que é semente da discórdia.

2. LUGAR DE MEMÓRIA EM MINHA CIDADE


O processo de modernização do Centro de Vitória derrubou grande parte da
cidade colonial, soterrando nesse processo vário elementos de sua história. Dentre as
mais emblemáticas, temos a rivalidade entre “Peroás” e “Caramurus”, grupos sociais
ligados ao culto de São Benedito:
Se os irmãos de São Benedito do Convento de São Francisco
usavam capas com a cor verde, os congregados da nova irmandade do santo
preto passaram a usar um mantelete de cor azul (BONICENHA, 2004, p. 151).
A essas divisões nas cores prosseguiu uma distinção de nomes: os irmãos
do Rosário chamavam os do convento de caramurus13, por associação da
cor da indumentária à cor do peixe de mesmo nome. Os caramurus, por sua
vez, apelidaram os devotos do Rosário de peroás devido à cor azul de seus
manteletes.
As duas irmandades passaram, então, a dividir a mesma imagem de
São Benedito e também os meses para comemorarem o orago: de 1º de
janeiro até o dia de Corpus Christi, a imagem ficava com os caramurus e no
dia seguinte até o fim do ano a mesma passava às mãos dos peroás. Assim,
os moradores de Vitória e alhures tinham festejos confirmados durante todo
o ano: no primeiro semestre os caramurus iluminavam a fachada da igreja do
convento, promovendo feiras e fogos de artifício. Os maiores festejos eram
realizados no domingo do Divino Espírito Santo e nos dois dias seguintes,
consagrados ao Menino Deus e a São Benedito. No segundo semestre, a
entrega da imagem significava o direito da irmandade de Nossa Senhora do
Rosário de festejar o orago. Na ocasião da entrega da imagem realizava-se
uma ladainha e a partir daí os meses consecutivos seriam marcados pelas
celebrações religiosas ou profanas, como leilões, congadas e bandas de
música. Siqueira viveu um amor contraditório com as festas de São Benedito:
ao mesmo tempo em que enchia os olhos de lágrimas para elogiar as duas
irmandades, também se apavorava com a profanação da festa religiosa dos
pretos do Rosário. Um dos aspectos que ele mais se regozijava residia no
fato de durante todo o ano a capital da Província poder solenizar um
intercessor divino. Era um privilégio das irmandades de São Benedito.
(BASTOS, 2011)
Hoje, a pequena Igreja de Nossa Senhora do Rosário se apresenta escondida
em meio um cenário de descaso no centro histórico. Mais importantemente, porém,
acredito que ela não tenha sida propriamente identificada, enquanto construção de
uma memória coletiva, como ponto de grande importância para a resistência e
vivências das pessoas negras de Vitória, uma cidade marcada por uma história oficial
que enquadra a memória de heróis jesuítas e imigrantes, e frequentemente ignora o
caráter negro e escravista de sua história. Portanto, sugiro ela como principal lugar de
memória a ser resgatado pela história coletiva, necessitando de uma restruturação de
seu entorno, com restaurações, demolições e até mesmo reconstruções que
recomponham seu conjunto, e sua divulgação através da educação e meio oficiais,
para que entre no inventário cultural dos capixabas, especialmente de sua população
negra.

3. BIBLIOGRAFIA
BASTOS, F. M. DO TE DEUM LAUDAMUS AO ENTERRO DOS OSSOS DE
MOMO: festas e sociabilidades em Vitória, 1850-1872. Revista Tempo de
Conquista, n. 10, Dezembro 2011.
BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica,
2013.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,
2014.
FÁTIMA OLIVEIRA DE SALES, I.; JOSÉ ZANGELMI, A. Poder, tradição militar
e armas no contexto das Minas Setecentistas: influências europeias e indígenas.
Caminhos Da Historia, n. 16, p. 63–78, 2011.
FERREIRA, A.; MARINS, P. C. G. Quem tem direito à memória? Fundação
Fernando Henrique Cardoso, 2020. Disponivel em:
<https://www.youtube.com/watch?v=EOcXvsVWr9Y>. Acesso em: 25 Novembro
2021.
NORA, P. Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
História, 1993. Disponivel em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763>. Acesso em:
14 Maio 2021.
POLLAK, M. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos, 1989.
Disponivel em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417.>. Acesso em:
24 Junho 2021.
WALDMAN, T. C. Os bandeirantes ainda estão entre nós: reencarnações entre
tempos, espaços e imagens. Ponto Urbe, n. 25, 2019.

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