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1975 A Prisao Vista por um Filésofo Francés IL carcere visto da un filosofo francese” (A prisdo vista por um Mésofo francés entrevista com F Selanna: trad. 4. Ghizzardi). Leuropeo,n. 1.515, 3 de abril de 1975, p. 63465. ~ Por que a prisdo, professor? — Temos vergonha de nossas prisdes. Esses enormes edifi- cios que separam dois mundos de homens, construidos outro- ra com orgulho, a ponto de situd-los, com frequéncia, nos cen- tros das cidades, hoje nos constrangem. As polémicas que se desencadeiam com regularidade a respeito das prises, ¢ recen- temente devido a numerosas revoltas, testemunhiam de modo claro esse sentimenito. Polémicas. constrangimento ¢ auséneia de amor que, alids, acompanharam as prisdes desde que elas se afirmaram como pena universal, digamos em torno de 1820. E, no entanto, essa instituicao resistiu 150 anos. E um fato bastante extraordinario. Como, cu me perguntei, uma estrutura que foi tao censurada pode resistir por tanto tempo? ~ Como nascem as prisées? = No comeco, eu pensava que era inteiramenete falha de Beccaria, dos reformadores, das Luzes, em suma. Depols. olhando mais de perto, eu me dei conta de que nao era nada disso. Os reformadores, € em particular Beccaria, que se er- gueram contra a tortura e os excessos punitivos do despotismo mondrquico. ndo propuseram absolutamnete a prisdo como al- ternativa, Seus projetos. os de Beccaria sobretudo, assentavam sobre uma nova economia penal, que tendia a ajustar as penas conforme a natureza de cada delito: assim, a pena de morte para 05 assassinatos, o confisco dos bens para os ladrées €, € claro, a prisao, mas para os «elitos contra a liberdade. (© que foi organizado, em contrapartida, foi a prisdo como pena universal e semethante para todos, tendo somente uma gradagao no que concerne a duracao, Se isso se produzit, nao 1975 ~A Priso Vista por umm Filésofo Francés 149. foi, portanto, devido a polémicas dos reformadores; Beccarla nao queria substituir os suplicios ¢ torturas pela prisao. = Por que entdo essa passagem do suplicio & prisao? = Até 0 Século XVIII, com o absolutismo monérquico, o su- plicio nao desempenhava o papel de reparacao moral; ele tinha, antes, 0 sentido de uma ceriménia politica. O delito, como tal, devia ser considerado como um desafio & soberania do monar- ca; ele perturbava a ordem de seu poder sobre os individuos e sobre as coisas. © suplicio ptiblico, longo, terrificante, tinha exatamente a finalidade de reconstruir essa soberania: seu carater espeta- cular servia para fazer participar 0 povo do reconhecimento dessa soberania; sua exemplaridade ¢ sus excessos serviam para definir a extensdo infinita dessa soberania, O poder do principe € excessivo por natureza, Os reformadores, com seu projeto de nova economia penal, estavam na esteira de uma sociedade em plena transformacao. A proposta de Beccaria era uma espécie de let de taliao, mas ela nao deixava de ser uma lei, valida para todos, e, portanto, se substraia a arbitrariedade da vontade do principe. A proporcionalidade das penas para 08 delitos refletia ¢ reflete ainda a nova ideologia capitalista da sociedade: para um trabalho, um salario proporcional; para os delitos, penas proporcionais. Esse principio permanece nas variagdes da duragio das pe- nas de detencdo, mas ¢ contradito pela privacao da liberdade como castigo tinico. = Como aconteceu entao de a forma punitiva ter se im- posto? ~ As explicacées dadas até o momento se reportavam essen- cialmente fs modiifieagdes econémieas da Sociedade. No tempo dos principes, em uma sociedade do tipo feudal, 0 valor de mercado do individuo como mao de obra era minimo. a pr ria vida, por causa das violentas epidemias, da grande mor- talidade infantil ete., nao tinha de modo algum o mesmo valor que nos séculos seguintes. Seja como for, 0 objetivo do castigo nao era levar a morte; a arte do suplicio. ao contrario, consistia em retardar a morte ao maximo em uma “requintada agonia”, como o diz um de seus tedricos. Nesse sentido, 0 momento da mudanca qualificativa, na filo- sofla do castigo. foi a guilhotina, Hoje, tem-se o habito de falar disso como de um vestigio da barbarie medieval. Nao se trata 150 Miche! Foucault -Ditos e Eseritos disso, Em sua época, a guilhotina fot uma engenhosa pequena_ maquina que transformou o suplicio em execucao capital, que se efetuava como um relampago, de modo quase abstrato, verda- deiro grau zero do sofrimento. Apelava-se sempre a0 povo para que ele assistisse ao ritual teatral da pena, mas somente a fim de raiificar a execucio, e nao para que ele participasse dela. ‘Com a nova estrutura econémica da sociedade, a bur- guesia precisa organizar sua chegada ao poder com a ajuda de uma nova tecnologia penal muito mais eficaz do que a precedente ~De todo modo, mais suave. — A “suavidade” das penas nao tem nada a ver com a efi cécia do sistema penal. E preciso desembaracar-se da iluséo segundo a qual a atribuicao das penas se faz com 0 objetivo de reprimir os delitos: as medidas punitivas nao desempenham somente © papel negativo de repressao, mas também 0 “po- sitivo" de legitimar 0 poder que edita as regras. Pode-se até afirmar que a definigao das “infracées a let” serve justamente de fundamento ao mecanismo punitivo. Com os principes, 0 suplicio legitimava 0 poder absoluto, sua “atrocidade” se desdobrava sobre os corpos, porque cor- po era a tinica riqueza acessivel. A casa de correcao, 0 hospl- tal, a prisio, os trabalhos forcados nascem com a economia ‘mercantil ¢ evoluem com ela. O excesso nao € mais necessario, muito ao contrério. O objetivo é a maior economia do sistema penal. Este ¢ 0 sentido de sua “humanidade”, (© que ¢ verdadeiramemte importante, de fato, na nova rea- lidade social nao é a exemplaridade da pena, mas sua eficdcia. Por isso ¢ que 0 mecanismo empregado consists menos ¢m punir do que em vigiar ~ Mas a vigilancia nao estava excluida da tradigdo penal até 0 século XIX? ~ Sim. Pode-se também afirmar que, apesar do rigor do sis- tema, sob a monarquia, o controle dla sociedade era muito mais fraco, mais largas as malhas através das quais passavam os mil e um ilegalismos populares. As condenacées permaneciam frequentemente sem um amanha, 0 uso as fazia cair. O contra- bando, a pastagem abusiva, a colheita da lenha nas tertas do rei, embora ameacados de penas terrivels, na realidade, nao ocastonavam perseguicées. De certa maneira, eles entravam no 1975 ~A Pristo Vista por um Fidsofo Francés 151 jogo do sistema, tal como continuam a entrar nele em certas realidades econémicas ¢ sociais particularmente atrasadas. — Lauro dizia que 0 contrabando em Napoles é a Fiat do sul. - Exatamente. Mas no fim do século XVIII a burguesia, com as novas exigéncias da sociedade industrial, com uma maior subdivisao da propriedade, nao péde mals tolerar os ilegalis- mos populares; ela buscou novos métodos de coagao do indi- viduo, de controle, de enquadramento e de vigilancla. Os refor- madores da época das Luzes propunham uma nova economia penal, nao a nova tecnologia de que se necessitava, ~ Em que tradiedo se enterram as ratzes culturais da prisdo? = A forma prisdo nasce muito antes de sua introdugao no sistema penal. Nés a encontramos em estado embrionario em toda ciéncia do corpo, de sua “correcao”, de sua aprendiza- gem que era adquirida nas usinas, nas escolas, nos hospitals, nas casernas. “Mas eles respiram!”, comentava com Irritaca0 0 grao-duque Michele quando assistia a uma parada militar. © novo ideal do poder torna-se a “cidade pestilenta’, que é também a cidade punitiva. Ali, onde ha peste, hd a quarentena: todo mundo esta controlado, catalogado, Internado, subme- tido a regra, Para defender a vida e a seguranca da coletivi- dade, concede-se 0 direito de matar qualquer um que circule sem autorizacdo, exceto alguns grupos de infima importancia, 0s Individuos descritos por Manzoni, aqueles aos quais cram atribuidas as tarefas as mais ignébeis, como o transporte dos caddiveres pestilentos. A estrutura arquitetural dessa exigéncia tecnologica ¢ fornecida por Bentham, em 1791, com seu pan- 6ptico. = O que € 0 pan-éptico? ~ E um profeto de construgdo com uma torre central que vi- wla toda uma série de celas, dispostas circularmente, em direcao oposta a luz, nas quats se encarceram os individuos. Do cen- to, controla-se qualquer cotsa e todo movimento sem ser visto. 1 Bentham (J), Panopticon. Dublin e Londres, 1791 (Le Panoptique. Mémoire Sur un nouveau prineipe pour construire des maisons dinspeetion et nom- ément des maisons de force, Paris, Imprimerie Nationale, 1791) 154 Michel Foucault ~Ditos e Escritos O poder desaparece, ele nao mais se representa, mas exis cle se dilul inclusive na infinita multiplieldade de seu tinteg olhar. As prisdes modernas, € mesmo um grande nimero dentre as mais recentes chamadas “modelos”, se assentam sobre esse principio. Mas, com seu pan-dptico, Bentham nao pensava de maneira especffica na priséo; seu modelo podia ser utilizado — © 0 fol - por qualquer estrutura da sociedade nova. A policia, invengao francesa que fascinou imediatamente os governos eu. ropeus, €a gémea do pan-éptico. ‘A iscalizactio moderna, os asilos psiquiatricos, os fichérlos, 0s clrcuitos de televisdo ¢ tantas outras tecnologias que nos en- volvem sao sia concreta aplicagao. Nossa sociedade é muito mais benthamiana do que beccariana. Os lugares nos quais se encontrou a tradigao de conhecimentos que conduziram & pri- ‘sao mostram por que esta se parece com as casernas, com os hospitais, com as escolas, ¢ por que esses se parecem com as prisoes. = Mas a prisdo fot criticada desde 0 comeco. Ela foi defini- da como um fracasso penal, uma usina de delinquentes. = Isso, todavia, ndo serviu para destrué-la. Depois de um século € meio, ela se mantém sempre de pé. Alids, ela é ver- dadeiramente um fracasso? Ou nao seria, antes, um sucesso, ¢ justamente pelas mesmas razdes pelas quais a acusam de fracassar? De fato, a prisao € um sucesso. ~ Que sucesso? ~ A prisao cria e mantém uma sociedade de delinquentes. 0 meio, com suas regras, sua solidariedade, sta marca moral de infamia. A existéncia dessa minoria delinquente, longe de ser a medida estrondosa de um fracasso, ¢ muito importante para a estrutura do poder da classe dominante. ‘Sua primeira funcdo ¢ a de desqualificar todos os atos ilegais, que se reagruparam sob uma comum infamia moral. Outrora nao era assim: um bom mimero de atos ilegais cometidos pelo povo era, na realidade, tolerado. Hoje, isso nao é mais possi vel; 0 delinquente, fruto da estrutura penal, ¢antes de tudo um criminoso como qualquer um que infringe a lei, sefa qual for ‘a razao. Em seguida, cria-se uma estrutura intermediaria da qual se serve a classe dominante para seus ilegalismos: so os delinquentes, justamente, que a constituem. O exemplo mais gritante € 0 da exploracdo do sexo. De um lado, Instauram-se 1975 ~ A Pristo Vista por um Fulésofo Francés 155 interdigées, esciindalos ¢ represses em torno da vida sextal: {sso permite transformar @ necessidade em “mercadoria’ Se- xual dificil € cara; depois, exploram-na. Nenhuma grande in- diistria de ndo importa qual pais industrializado pode rivalizar com a enorme rentabilidade do mercado da prostituigio. Iss0 € vlido para o alcool na época da proibicao; hoje, para a droga (cf. 0 acordo turco-americano para a cultura da papoula. para © contrabando do tabaco, de armas.. = Como é mantida a ligacéo com 0 poder? ~ Bssas enormes massas de dinheiro se elevam, se elevam até 0 momento em que chegam as grandes empresas financel- ras e politicas da burguesia. Em suma, mantém-se um tabulel- ro de xadrez, onde hé casas perigosas, e outras seguras. Nas perigosas esto sempre os delinquentes. Esta é a ligaga0. E ‘chegamos ao outro papel da delinquéncia: a cumplicidade com as estruturas policiais no controle da sociedade. Um sistema de chantagens ¢ de trocas no qual os papéis s40 confundidos, como em um cireulo, Um aleaguete ¢ algo além de umm policial- delinquente ou de um delinquente-polieial? Na Franca. a eS trepitosa figura simbolo dessa realidade ¢ Vidocq, o famoso bandido que se torna em um certo momento chete de policia Os delinquentes tém ainda outra excelente funcao no mea nismo do poder: a classe no poder se serve da ameaca da orl minalidade como um alibi continuo para endurecer 0 controle da sociedade. A delinquéneia d medo, e se cultiva esse medo. Nao é a troco de nada que, a cada momento de crise social © econ6mica, assiste-se a uma “recrudescéncia da criminalida- de" € ao apelo consecutivo a um governo policial. Pela ordem piiblica, se diz, Na realidade, para se por um freio sobretudo na ilegalidade popular e operdria. Em suma, a criminalidade desempenha uma espécie de nacionalismo interno. Tal come © medo do inimigo faz. “amar” o exército, o medo dos delinquet tes faz, “amar’o poder policial. ~ Mas ndo a priséo. A prisao, nao se consegue fazer amé-la. ~ Porque ha um fundo de suplicio nos mecanismas moder nos da justiga criminal que nao fol completamente exorciza~ do, ainda que hoje ele seja cada vez mais incluido na nova penalidade do incorporal. A nova penalidade, de fato, mais do que punir, corrige ¢ cuida. © juiz. torna-se um médico ¢ viee- versa. A sociedade de vigilancia quer fundar seu direito sobre a eléncia; Isso torna possivel a “suavidade" das penas, ott me 156 Michel Foucault - Ditos € Eseritos Ihor, dos “cuidados”, das “correcdes de controle, de imposicao da “norma”. Persegue-se o “diferen- te”. O delinquente nao € fora da lei, mas ele se situa desde 9 comeco no préprio centro desses mecanismos nos quais se passa insensivelmente da disciplina a lei, do desvio ao delito, ‘em uma continuidade de instituigdes que se remetem umas as outras: do orfanato ao reformatério, a penitenciaria, da cidade operdria ao hospital, a prisao. 1975 Entrevista sobre a Prisao: 0 Livroe o seu Método Entrevista sobre a prisio: @ livro € © seu método” (eirevisia com Jd. Brochier), Magazine littéraire, 101, junho de 1975. p.2 = Uma das preocupagées de seu itvro é dewunctar as ta- cunas dos estuclos historicos. Por exemplo, 0senhor observa que nunca ninguém fez o exame da historia: ninguém pensou nisso, mas € impensdvel que ninguém o tenhapensado. — Os historiadores estio, tal como 0s fildsofesou os historia- dores da literatura, acostumados a uma historia dos apogeus. Mas, hoje, diferentemente cos outros, eles acetam com mais facilidade remexer um material “nao nobre”. Amergéncia des- se material plebeu na histéria data de uns bons50 anos. Tem- se entdo menos dificuldade de se entender comeles. O senhor Jamais eseutaré um historiador dizer o que disse alguém cujo home nao importa, em uma revista incrivel. Ralson présente, 4 respelto de Buffon e de Ricardo: Foucault sé se ocupa com ‘os mediocres.' Quando 0 senhor estuda a pristio, o senhor lamenta, pa- rece, a auséneta de um matertal, de monograia sobre tal ou tal prisdo, por exemnplo. = Atualmente, recorre-se muito & monogralis, mas a mono- grafia considerada menos como o estudo de um objeto parti- cular do que como uma tentativa de fazer emergir novamente ‘08 pontos onde um tipo de discurso se produziu ¢ se formou (© que seria hoje um estudo sobre uma prisio ou sobre um hospital psiquidtrico? Fizeram-se centenas deles no século XIX, principalmente sobre os hospitais, estudando a historia 1 Revaull dAllonnes (0.), "Michel Foucault: les mots contre les choses", Ratson, présente, n, 2, 1967, p. 29-41

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