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’ ~ a Interpretacao OF ROL bs einem elt) a02 es Pas as BSesP I I Em seu livro Philosophy in a New Key, Susanne Langer observa que certas idéias surgem com tremendo inpeto no panorama intelectual. Elas solucionam imediatamente tantos problemas fundamentais que pare- cem prometer também resolver todas os problemas fundamentais, esclarecer todos os pontos obscuros. Todos se agarram a elas como um “abre-te sésamo” de alguma nova cigneia positiva, o ponto central em temos conceituais em toro do qual pode ser construiclo um sistema de andlise abrangente. A moda repen- tina de tal grande idée, que exclui praticamente tudo o mais por um momento, deve-se, diz ela, “ao fato de todas as mentes sensiveis e ativas se voltarem logo para exploré-la. Utilizamo-la em cada conekdo, para + todos 0s propésitos, experimentamos cada extensio possfvel de seu significado preciso, com generalizagdes cederivativos.” Entretanto, a0 nos familiarizarmos com a nova idéia, ap6s ela se tomar parte do nosso suprimento geral de coneeitos te6ricas, nossas expectativas so levadas a urn maior equilibrio quanto as suas reais utilizagdes, ¢ termina a sua popularidade excessiva. Alguns fansticos persistem em sua opinigo anterior sobre ela, a “cha- ve para ouniverso”, mas pensadores menos bitolados, depois de algum tempo, fixam-se nos problemas que idkia gerou efetivamente. Tentam aplicé-la e amplié-la onde ela realmente se aplica ¢ onde & possivel F expandi-la, desistindo quando ela néo pode ser aplicada ou ampliada. Se foi verdade uma idéia seminal, el se toma, em primeiro luger, parte permanente e duradoura do nosso arsenal intelectual. Mas nao tem mais o escopo grandioso, promissor, a versatilidade infinita de aplicagao aparente que um dia teve. A segunda lei da ‘ermodinamica ou prinefpio da selegio natural, a noo da motivago inconsciente ou a organizagao dos neios de produgdo nao expticam tudo, nem mesmo tudo o que é humano, mas ainda assim explicam alguma coisa, Nossa atengdo procura isolar justamente esse algo, para nos desvenciler de uma quantidade de pseudocitncia & qual ele também deu origem, no primeiro fluxo da sua celebridade. io sei se & exatamente dessa forma que todos os conceitos cientificos basicamente importantes se desen- ‘wlvein. Todavia, esse padttio se confirma no caso do conceito de cultura, em torno do qual surgiu todo 0 esndo da antropologia e cujo fimbito essa matéria tem se preocupado cada vez mais em limitar, especiticar, enfocare conter. E justamente a essa redugao do conceito de cultura 4 uma dimensdo justa, que realmente assogure a sua importiincia continuada em vez. de debilité-lo, que os ensaios abaixo so dedicados, em suas ‘ferentes formas ¢ diregdes. Todos eles argumentam, as vezes de forma explicita, muitas vezes simples- | mente através da anélise particular que desenvolvem, em prol de um conceito de cultura mais imitado, mais aspecializado c, imagino, teoricamente mais poderoso, para substituir o famoso “o todo mais complexo" de E.B. Tylor, o.qual, embora eu no conteste sua forga ctiadora, parece-me ter chegado ao ponto em que confunde muito mais do que esclarece. 4 carmoun pantanal conceptual para o qual pode conduzir a espécie de teorizagdo pot-au-feu tyloriana sobre cultu- a6 evidente naquela que ainda é uma das mefhores introdugdes gerais & antropologia, 0 Mirror for Man, de Clyde Kluckhohn. Em cerca de vinte e sete paginas do seu capitulo sobre o conceito, Kluckhohn conseguiu definir a cultura como: (1) “o modo de vida global de um povo”; (2) “o legado social que o individuo adquire do seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir ¢ acreditar”; (4) “uma abstrag30 do comportamento”; (5) “uma teoria, elaborada pelo antropélogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta real- mente”; (6) “um celeiro de aprendizagem em comum”; (7) “um conjunto de orientagdes padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comportamento aprendido”; (9) “um mecanismo para a regulamentagao normativa do comportamento”; (10) “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo ‘como em relago aos outros homens”; (11) “um precipitado da histéria”, e voltando-se, talvez em desespero, Para as comparagdes, como um mapa, como uma peneira e como uma matriz. Diante dessa espécie de difusio teérica, mesmo um conceito de cultura um tanto comprimido € no totalmente padronizado, que pelo menos seja internamente coerente ¢, 0 que é mais importante, que tenha um argumento definido a Propor, representa um progresso (como, para ser honesto, o proprio Kluckhohn perspicazmente compreen- deu). O ecletismo é uma autofrustracao, nao porque haja somente uma diregdo a percorrer com proveito, amas porque h4 muitas: € necessério escolher. O conceito de cultura que eu defendo, ¢ cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é essencial- mente semidtico. Acteditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significa- dos que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua andilise; portanto, ndo como uma ciéncia experimental em busca de leis, mas como uma ciéneia interpretativa, A procura do significado. E justamente uma explicagdo que eu procuro, ao construir expressdes sociais enigmaticas na sua superficie. “Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cléusula, requer por si mesma uma explicagio. II O operacionismo como dogma metodolégico nunca fez muito sentido no que concerne as ciéneias sociais e, a ndo ser por alguns cantos jé bem varridos — 0 “behavorismo” skinneriano, os testes de inteligéncia, etc. — ‘esté agora praticamente morto. Todavia, e apesar disso, ela teve um papel importante e ainda tem uma certa forga, qualquer que seja a forga que sintamos ao tentarmos definir 0 carisma ou a alienago em termos de operagdes: se vocé quer compreender o que é a ciéncia, voc’ deve olhar, em primeiro lugar, nao para as suas teorias ou as suas descobertas, e cextamente nio para 0 que seus apologistas dizem sobre ela; vocé deve ver © que os praticantes da ciéncia fazem. Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prética da emnografia, que se pode comecar a entender o que representa a andlise antropolégica como forma de conhecimento. ‘Devemos frisar, no entanto, que essa nao é uma questo de métodos. Segundo a opinio dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relagGes, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogies, mapear campos, manter um didrio, e assim por diante. Mas nio so essas coisas, as téenicas e os proces- sos determinados, que definem 0 empreendimento. O que o define é 0 tipo de esforgo intelectual que ele Tepresenta: um risco elaborado para uma “descrigdo densa”, tomando emprestada uma nogio de Gilbert Ryle. ‘Uma Deschicio Desa: POR UMA TEORIA INTERPRETATIVG DA CULTURA 5 A discussio de Ryle. sobre “desctigao densa” aparece em dois recentes ensaios de sua autoria (ora reimpressos no segundo volume.de seus Collected Papers) ¢ dirigida ao tema genérico sobre o que, como ele diz, 0 “Le Penseur" esté fazendo: “Pensando e Refletindo” e “O Pensar dos Pensamentos”. Vamos conside- rar, diz ele, dois garotos piscando rapidamente o olho direito. Num deles, esse um tique involuntério; no outro, € uma piscadela conspiratéria a um amigo, Como movimentos, os dois so idénticos; observando os dois sozinhos, como se fosse uma camara, numa observacao “fenomenalista”, ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou, na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora nfo retratével, a diferenga entre um tique nervoso e uma piscadela é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver 0 primeiro tomado pela segunda. O piscador esta se comunicando ¢,de fato, comunicando de uma forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em particular, G)transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um cédigo socialmente estabetecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros. Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas ages — contrair a pilpebra e piscar — enquanto o que tem um tique nervoso apenas executou uma — contraiu a pilpebra. Contrair as pélpebras de propésito, quando existe um cédigo pablico no qual agir assim significa um sinal conspiratério, é piscar. E tudo que hé a respeito: uma particula de comportamento, um sinal de cultura ¢ — vail! — um gesto. ~ “Todavia, isso € apenas o principio. Suponhamos, continua ele, que haja um terceiro garoto que, “para divestir maliciosamente seus companheiros”, imita 0 piscar do primeiro garoto de uma forma propositada, grosseira, Sbvia, etc. Naturalmente, ele o faz da mesma maneira que o segundo garoto piscou e com o tique nervoso do primeiro: contraindo sua pélpebra direita. Ocorre, porém, que esse garoto nao esta piscando nem tem um tique nervoso, ele est imitando alguém que, na sua opinifo, tenta piscar. Aqui também existe um chdigo socialmente estabelecido (ele iré “piscar” laboriosamente, superobviamente, talvez fazendo uma careta — 08 attificios habituais do mimico), ¢ 0 mesmo ocorre com a mensagem. $6 que agora nao se trata deuma conspiracdo, mas de ridicularizar. Se os outros pensarem que ele esté realmente piscando, todo o seu ‘fopésito vai por 4gua abaixo, embora com resultados um tanto diferentes do que se eles pensassem que ele tinba um tique nervoso. Pode ir-se mais além: em davida sobre sua capacidade de mimica, o imitador pode praticar em casa, diante de um espelho, ¢ nesse caso ele ndo esté com um tique nervoso, nem piscando ou imitando — ele esté ensaiando, Entretanto, para a cfimara, um behavorista radical ou um crente em senten- ‘5 protocolares, o que ficaria registrado € que ele est4 contraindo rapidamente sua pélpebra direita, como.os dois outros. As complexidades sto possiveis, se nao praticamente infindéveis, pelo menos do ponto de vista daligica, O piscador original poderia, por exemplo, estar apenas fingindo, para levar outros a pensarem que havia uma conspiragao, quando de fato nada havia, e nesse caso nossas descrigdes do que o imitador esté imitando ¢ 0 ensaiador ensaiando mudam completamente. O.caso é que, entre o que Ryle chama de “deseri- ‘glo superficial” do que o ensaiador (imitador, piscador, aquele que tem o tique nervoso...) esté fazendo (contraindo rapidamente sua pélpebra direita”) ¢ a “descri¢3o densa” do que ele esté fazendo (“praticando a farsa de um amigo imitando uma piscadela para levar um inocente a pensar que existe uma conspiragio em andamento”) esté o objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos {as quais 0s tiques nervosos, as piscadelas, a3 falsas piscadelas, as imitagbes, os ensaios das imitagdes so produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato no existiriam (nem mesmo as formas 210 de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, so tanto ndo-piscadelas como as piscadelas so nio-tiques), ndo importa o que alguém fizesse ou no com sua ptdpria pélpebra. Como tantas historietas que os fildsofos de Oxford gostam de inventar para eles mesmnos, todo esse piscar, 2imitagio de piscat, a farsa da imitagao do piscar, o ensaio da farsa da imitago de piscar, pode parecer um tanto artificial. Para actescentar uma nota mais empitica, deixem-me dar, sem precedé-lo deliberadamente 6 Carino Un de qualquer comentério explicativo, um excerto nfo pouco tipico do meu préprio disrio de campo, para demonstrar que, mesmo aplainado para propésitos didéticos, 0 exemplo de Ryle apresenta wna imagem extremamente correta do tipo de estruturas superpostas de inferéncias e implicagbes através das quais 0 etndgrafo tem que procurar o seu caminho continuamente: Os franceses (disse o informante) acabavam de chegar. Eles construiram cerca de vinte pequenos fortes entre este local, a cidade ¢ a dea de Marmusha, no meio das montanhas, colocando-os em promontdrios de forma a poderem Pesquisar o campo, Todavia, apesar disso eles nio podem garantir a seguranga, especialmente durante a noite, ¢ assim, a despeito do mezrag, o pacto comercial, ter sido supostamente abolido do ponto de vista legal, na verdade tudo continua come antes. Una noite, quando Cohen (que fala berbere fluentemente) estava Ii em cima, em Marmusha, dois outros judeus que negociavam com uma tribo vizinha aparecetam para comprar dele algumas mercadorias. Alguns berberes, de uma outra tribo vizinha, tentaram penetrar na casa de Cohen, mas ele deu uns tiros para o ar com seu rifle, (Tradici« onaimente, nfo era permitido aos judeus portarem armas, mas a situagao era tdo insegura na época que alguns as adquiriam,) Isso atrain a atengo dos franceses e os invasores fugiram. Na noite seguinte, porém, eles voltaram, ¢ um deles, disfargado de mulher, bateu na porta, contando uma histéria. Cohen desconfiowe ndo quis deixé-"Ia" entrar, mas os outros judeus disseram, “ora, estétudo bem, 6 s6 uma mulher”. les abriram a porta ¢ todo 0 bando entrou; mataram os dois judeus visitantes, mas Cohen conseguiu entrincheirar-se no aposento contiguo. Ele onvin os ladroes planejarem queimé-to vivo na loja, depois de retiarem suas mercadorias; abriu a porta e, manobrando um cacete, como um louco, conseguiu escapar por uma janela. Foi ento até o forte, para tratar seus ferimentos, ¢ queixou-se ao comandante focal, um certo Capitéo Dumari, dizendo que queria ser ‘ar-, isto €, quatro ou cinco vezes 0 valor da mercadoria que Ihe fora roubada. Os ladrdes eram de uma tribo ainda no submetida as autoridades fruncesas e estavam em rebelifo aberta contra elas, portanto ele pedia uma autorizagto para ir com o seu portador-mecrag, 0 xeque tribal Marmusha, cobrar a indenizagio a que tinha direito, segundo os regulamentos tradicionais, © Capito Dumari no podia dar-lhe uma permissio oficial para fazé- Jo, uma vez que havia uma proibigfo francesa para a relagdo mecrag, mas ele Ihe deu uma autorizagao verbal dizendo: “Se voce for morto, o problema é seu.” Assim, o xeque, 0 judeu ¢ um pequeno grupo de Marmusha, armados, percomreram dez ou quinze quilémetros até a érea rebelde, onde naturalmente ndo havia franceses, e furtivamente capturaram © pastor da tribo dos ladrdes e roubaram seus rebunhos, A outca tribo prontamente veio em sua perseguicio, montados a cavalo, armados de rifles & pronios a atacar. Mas quando viram quem eragn os “ladrdes de carneiros”. pensaram melhor e disseram, “muito bem, vvainos conversar”. Eles nfo podiam negar efetivamente 0 que acontecera — que alguns dos seus homens haviam roubado Cohen € matado os dois visitantes — ¢ no estavam preparados para comegar uma briga séria com os “Manmashas, 0 que a luta com os invasores acarretaria. Assim, 0s dois grupos falaram, falaram, falaram, ali na plani- cie, entre os milhates de carneiros, e finalmente decidiram ressarcir os danos com quinhentos cameiros. Os dois ‘grupos berberes armados alinharam-se em seus cavalos, nos pontos opostos da planicie, com o rebanho de carneiros entre eles, ¢ Cohen, com seu traje negro, chapéu-coco e chinelos batendo, percorreu sozinho o rebanho, escolhenda tum por um ¢,inteiramente & vontade, os que ele achava melhor como pagamento. Assim Cohen conseguin seus cameiros e levou-os de volta a Marmusha, Os franceses, If no seu forte, escutaram- ‘no chegar ainda a algama distancia, (“Ba, ba, ba’, dizia Cohen, muito feliz, relembrando o acontecido)e se pergun- taram: “Que diabo é isso?” E Cohen responden: “Isto é o meu “ar.” Os franceses nao podiam acreditar que ele fizera o que dizia e acusaram-no de ser espido dos berberes rebeldes, pondo-o na pristo ¢ apossando-se do seu rebanho. Na cidade, sua familia, nfo tendo noticias dele durante tanto tempo, o julgava morto. Apés algum tempo os franceses 4 Soltaram-no ¢ ele voltou para casa, porém sem o rebanho. Dirigiu-se, entéo, ao coronel da cidade, um francés encar- ‘Usta DesceicHo Deva: Por uma Teowia INTERPRETATIVA DA CuLTURA 7 regado de toda a regido, para queixar-se, Todavia, o coronel respondeu: “Nada posso fazer a respeito, Ndo é meu problema.” Citada literalmente, como um recado numa garrafa, essa passagem indica, como qualquer outra seme- thante.o faria, um sentido correto do muito que existe na descrigio etmografica da espécie mais elementar — como ela é extraordinariamente “densa”. Nos escritos etnogrdficos acabados, inclusive os aqui seleciona- dos; esse fate. — de que 0 que chamamos de nossos dados.séo realmente nossa prdpria construgao das construgGes de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propdem — esté obscurecido, pois a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia, 00 9 que quer que seja esté insinuado como informacao de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. (Mesmo revelar que esse pequeno drama ocorreu nas montanhas do Marrocos central em 1912 —e foi novamente contado aqui em 1968 — é determinar muito da nossa compreensio dele.) Nada hd de cerrado nisso e, de qualquer forma, é inevitavel. Todavia, isso leva a visio da pesquisa antropolégica como uma atividade mais observadora e menos interpretativa do que ela realmente é. Bem no fundo da base fatual, arocha dura, se € que existe uma, de todo o empreendimento, nés j4 estamos explicando e, 0 que é pior, explicando explicagdes. Piscadelas de piscadelas de piscadelas... A andlise 6, portanto, escolher entre as estruturas de significagio — 0 que Ryle chamou de cédigos sstabelecidos, uma expresso um tanto mistificadora, pois ela faz com que o empreendimento soe muito parecido com a tarefa de um decifrador de c6digos, quando na verdade ele € muito mais parecido com a do io — e determinar sua base social ¢ sua importancia, Aqui em nosso texto, tal escolha comega- tia com 0 diferengar os trés quadros desiguais de interpretagio, ingredientes da situagio — o judeu, 0 berbere e 0 francés — e passaria entdo a mostrar como (e por que), naquela ocasigo, naquele lugar, presenga produziu uma situagzio na qual um desentendimento sistemético reduziu uma forma tradicional a uma farsa social. O que levou Cohen a fracassar, e com ele todo o antigo padriio de relagées sociais e econdmicas dentro do qual ele funcionava, foi uma confusio de idiomas. Voltarei a este aforismo demasiado compacto mais tarde, bem como aos detalhes sobre o préprio texto. O ponto a enfocar agora é somente que a etnografia é uma descrigdo densa, O que o etndgrafo enfrenta, de fato —ando ser quando (como deve fazer, naturalmente) esti seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados — € uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas unas ds outras, que sfo simultaneamente estranhas, irregulares e inexplicitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. E isso € verdade em todos os niveis de atividade do seu trabalho de eampo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar tituais, deduzir os termos de parentesco, tragar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu didrio. Fazer a emografia como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de dlipses, incoeréncias, emendas suspeitas e comentirios tendenciosos, escrito nao com os sinais convencio- nais do som, mas com exemplos transit6rios de comportamento modelado. 8 carmmouM il A cultura, esse. documento de atuago, € portanto publica, como uma piscaliela burlesca ou uma incurs fracassada aos cameiros. Embora uma ideacdo, nfo existe na cabega de alguém; embora ndo-fisica, na uma identidade oculta, © debate intermindvel, porque nfo-termindvel, dentro da antropologia, sobre st cultura é “subjetiva” ou “objetiva’, ao lado da troca miitua de insultos intelectuais (“idealista!” — “mate alista!”; “mentalista!” — “behavorista!”; “impressionista!” — “positivista!") que o acompanha, € conce do de forma totalmente erronea. Uma vez. que 0 comportamento frumano € visto como a¢ao simbélica ( maioria das vezes; hd duss contragdes) — uma ago que significa, como a fonago na fala, o pigmento pintura, a inka na escrita ou a ressonancia na misica, —o problema se a cultura é uma conduta padronizz ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de algama forma perde o sentido, O que se de perguntar a respeito de uma piscadela burlesca ou de uma incursio fracassada aos carneiros nao é qual os status ontolégico. Representa 0 mesmo que pedras de um lado e,sonhos do outro — so coisas deste mum -O que devemos indagar é qual é a sua importncia: o que esta sendo transmitido com a sua ocorrénci através da sua agéncia, seja ela uin ridiculo ou um desafio, uma jronia ou uma zanga, um deboche ou + orgulho. Isso pode parecer uma verdade Sbvia, mas ha infmeras formas de obscurecé-la, Uma delas é imaginar ¢ cultura € uma realidade “superorgénica” autocontida, com forgas e propésitos em si mesma, isto é, reifi la. Outra € alegar que ela consiste no padrio bruto de acontecimentos comportamentais que de fato obser mos ocorrer em uma ou outra comunidade identificdvel — isso significa reduzi-la, Todavia, embora es duas confusées ainda existam, e sempre continuaréo conosco, sem drivida, a fonte principal de desord te6rica na antropologia contemporanea € uma opinido que se desenvolveu em reago a elas e que hoj Jargamente difundida — a saber, “a cultura (est localizada) na mente e no coragao dos homens”, para ¢ Ward Goodenough, talvez seu proponente mais famoso. Chamada diversamente de etnociéncia, andlise componencial ou antropologia cognitiva (hesita terminolégica que reflete uma incerteza profunda), essa escola de pensamento afirma qué'a cultura € ct posta de estruturas psicolégicas por meio das quais os individues ou grupos de individuos guiam seu ex portamento. “A cultura de uma Sociedade”, para citar novamente Goodenough, desta vez numa passag que se tomou o locus classicus de todo o movimento, “consiste no que quer que seja que alguém tem: saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros.” A partir dessa vistio do que cultura, segue-se outra visio, igualmente segura, do que seja descrevé-la — a elaboragdo de regras sister ticas, um algoritmo etnogréfico que, se seguido, tornaria possfvel operd-lo dessa maneira, passar por nativo (deixando de lado a aperéncia fisica). Desta forma, um subjetivismo extremo é casado a um formalit extrsiiio, com 0 resultado jd esperado: uma explosio de debates sobre se as andlises particulares (que sur sob a forma de taxonomias, paradigmas, tabelas, genealogias e outras inventivas) refletem o que os nati pensam “realmente” ou se sdo apenas simulacdes inteligentes, equivalentes I6gicos, mas substantivam diferentes do que eles pensam. Jé que, num primeiro relance, essa abordagem pode parecer suficientemente préxima da que esté se desenvolvida aqui para ser tomada por ela, € util ser bem explicito quanto ao que as separa. Deixand: lado, por um momento, nossas piscadelas ¢ cameiros, se tomamos, por exemplo, um quarteto de Beethe como umaamostra de cultura, muito especial, mas suficientemente ilustrativa para estes propsitos, acre que ninguém o identificaria com os seus arranjos musicais, com a habilidade ¢ o conhecimento necess ‘Uns Descrigho Densa: Pon im Teoma DETERPRETATIVA DA CULTURA 9 pata tocd-lo, com 2 compreensio dele que tém seus instrumentistas ou ouvintes, nem, para levar em conta en assant 0s recuicionistas ¢ 0s reificadores, com uma execugao particular do quatteto ou com alguma entida- misteriosa que transcende sua existéncia material. Talvéz a expresséo “ninguém” aqui utilizada seja demasiado forte, pois sempre hé os incortigiveis. Todavia, o fato de um quarteto de Beethoven ser uma ¢straturd tonal desenvolvida temporalmente, uma seqiiéncia coerente de sons modulados — em suma, uma iisica — € no 0 conhecimento ou a crenga de qualquer pessoa em algo, inclusive como executé-Id, é uma proposigao com a qual, apés refletir, concordard a maioria das pessoas. Para tocar violino € necessério possuir certos hébitos, habilidades, conhecimento e talento, estar com Aisposigfo de tocar e (como piada) tet um violino. Mas tocar violino no é nem o habito, a habilidade, o conhecimento e assim por diante, nem a disposigo ou (a nogdo que os crentes na “cultura material” aparen- temente seguem) 0 préprio violino. Para fazer um tratado comercial em Marrocos vocé tem que fazer certas coisas, de uma certa maneira (entre outras, enquanto canta em érabe Quranic, cortar a garganta de um comdeire ante os membros masculinos adultos, nao-aleijados, de sua tribo reunidos) e possuir certas caracte- tisticas psicol6gicas (entre outras, um desejo de coisas distantes). Mas um pacto comercial no é nem cortar 4 garganta nem 0 desejo, embora este seja bastante real, conforme descobriram sete parentes do nosso “xeque” Marmusha quando, numa ocasiao anterior, foram por ele executados em seguida ao roubo de uma pele de camneiro esfarrapada e praticamente sem valor pertencente a Cohen. . A.ccultura € ptiblica porque o significado 0 €. Vocé no pode piscar (ou caricaturar a piscadela) sem saber ‘oque é considerado uma piscadela ou como contrair, fisicamente, suas palpebras, e vocé nao pode fazer uma incutsio aos carneiros (ou imité-la) sem saber 0 que é roubar um carneito ¢ como fazé-lo na pratica. Mas tirar de tais verdades a conclusio de que saber como piscar € piscar e saber como roubar um caneiro € fazer uma incurséo aos carneiros é revelar uma confusio to grande como, assumindo as descrigdes superficiais por densas, identificar as piscadelas com contragdes de pélpebras ou incursdo aos cameiros com a caga aos animais lanigeros fora dos pastos. A falacia cognitivista — de que a cultura consiste (para citar um outro porta-voz do movimento, Stephen Tyler) “em fendmenos mentais que podem (ele quer dizer “poderiam”) set analisados através de métodos formais similares aos da matemética e da I6gica” — é to destrutiva do uso efetivo do conceito como o sdo as faldcias “behavorista” e “idealista”, para as quais ele € uma corregio mal concluida. Como seus erros so mais sofisticados e suas distorgGes mais sutis, talvez seja ainda mais do que isso. Oatagie generalizado as teorias de significado constitui, vesde Husserl, chegando a Wittgenstein, parte tio integrante do pensamento modemo que nao € necessério desenvolvé-lo aqui mais uma vez. O que é recessério é verificar se as notfcias a respeito chegam a antropologia; e em particular esclarecer que dizer que acultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas, nos termos das quais as pesso- 4 fazem certas coisas como sinais de conspiracdo ¢ se aliam ou percebem os insultos e respondem a eles, nao é mais do que dizer que esse é um fendmeno psicol6gico, uma caracterfstica da mente, da personalidade, daestrutura cognitiva de alguém, ou o que quer que seja, ou dizer ainda o que é tantrismo, a genética, a forma progressiva do verbo, a classificagio dos vinhos, a Common Law ou a nogao de “uma praga condici- onal” (como Westermarck definiu 0 conceito do ‘ar em cujos termos Cohen apresentou sua queixa de da- ‘nos). O que impede a nés, que crescemos piscando outras piscadelas ou cuidando de outros cameiros, de entender corretamente, num lugar como Marrocos, que © que pretendem as pessoas nao € a ignoréincia sobre como atua a cognicéio (mas principalmente porque, presume-se, ela atua da mesma maneira que entre nés, € seria bem melhor se pudéssemos passar também sobre isso) como a falta de familiaridade com o universo imaginative dentro do qual 0s seus atos so marcos determinados. Como jé invocamos Wittgenstein, pode- mos muito bem transcrevé- 10 cairo Ue i Falamos... de algumas pessoas que sto transparentes para n6s, Todavia, € importante no tocante a essa observagio 1 ‘que um ser humano possa ser um enigma completo para outro ser humano. Aprendemos isso quando chegamos @ um ppais estranho, com tradig6es inteiramente estranhas e, o que é mais, mesmo que se tenha um dominio total do idioma | do pais. Nés nfio compreendemos © povo (e nio por ndo compreender o que eles falam entre si). No nos podemos | situar entre eles. IV Situar-nos, um negécio enervante que s6 & bem-sucedido parcielmente, eis no que consiste a pesquisa ‘etnogrfica como experiéncia pessoal. Tentar formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar: 1ado, eis no que consiste o texto antropolégico como empreendimento cientifico, Nao estamos procurando, pelo menos eu nao estou, tomar-nos nativos (em qualquer caso, eis uma palavra comprometida) 0u copis-los. Somente os roménticos ou os espides podem achar isso bom. O que procuramas, no sentido ‘mais amplo do termo, que compreende muito mais do que simplesmente falar, € conversar com eles/o que € muito mais dificil, ¢ no apenas com estranhos, do que se reconhece habitualmente. “Se falar por alguém Parece ser um processo misterioso”, observou Stanley Cavell, “isso pode ser devido ao fato de falar a al- ‘guém nao parecer de maneira alguma misterioso” Visto sob esse Angulo, o objetivo da antropologia ¢ o alargamento do universo do discurso humano. De fato, esse nko € seu tinico objetivo — a instrugo, a diversio, o conselho pritico, © avango moral e a desco- berta da ordem natural no comportamento humano so outros, ¢ a antropologia nao é a nica disciplina a persegui-los, No entanto, esse € um objetivo ao qual o conceito de cultura semidtico se adapta especialmente bem. Como sistemas entrelagados de signos interpretiveis (0 que eu chamaria simbolos, ignorando as utili- zagdes provinciais), a cultura no é um poder, algo a0 qual podem ser attibuidos casualmente os aconteci- ‘mentos sociais, os comportamentos, as instituigGes ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual i eles podem ser descritos de forma inteligivel — isto é, deseritos com densidade. ' A famosa absorgdo antropolégica com 0 exético (para nds) — os cavaleiros berberes, os negociantes i judeus, os legiondrios franceses — é, assim, praticamente um artificio para deslocar o senso de familiarida- de embotador com 0 qual o mistério da nossa propria habilidade em relacioné-los compreensivelmente uns aos outros se esconde de nés. Procurar o comum em locais onde existem formas no-usuais ressalta no, como se alega tantas vezes, a arbitrariedade do comportamento humano (no hé nada especialmente arbitré- rio em tomar o roubo de camneiros como insoléncia no Marrocos), mas o grau no qual o seu significado varia de acordo com 0 padiaio de vida através do qual ele ¢ informado. Compreender a cultura de um povo expde ‘sua normalidade sem reduzir sua particularidade. (Quanto mais eu tento seguir o que fazem 0s marroquinos, mais légicos e singulares eles me parecem.) Isso 0s torna acessiveis: colocé-los no quadro de suas proprias banalidades dissolve sua opacidade. Bessa manobra, a que se referem habitualmente, com uma casualidade excessiva, como “ver as coisas do Ponto de vista de ator”, ou muito livrescamente como “a abordagem verstehen”, ow muito teenicamente como “anflise émica”, que tantas vezes leva & nogao de que a antropologia é uma variedade de leitura da mente a longa distncia ou uma fantasia da ilha dos canibais ¢ que, para alguém ansioso em navegar por sobre 0 naufriigio de uma dizia de filosofias, deve ser executada com o maximo de cuidados. Nada mais necessério para compreender o que € a inerpretago antropoldgica, e em que grau ela é uma interpretagdo, Usa Descrucho Denisa: Pon uni Teoma Invexemeraiva pa Cucrua 11 do que a compreensdo exata do que ela se prope dizer — ou ndo se prope — de que nossas formulagdes dos sistemas simbélicos de outros povos devem ser orientadas pelos atos, Isso significa que as descrigGes das culturas berbere, judaica ou francesa devem ser calculadas em termos das construgdes que imaginamos que os berberes, os judeus ou os franceses colocam através da vida que levam, a férmula que eles usam para definir o que Ihes acontece. O que isso nao significa € que tais descri- @es sto elas mesmas berbere, judia ou francesa — isto é, parte da realidade que clas descrevem ostensiva- mente; elas so antropolégicas — isto é, partem de um sistema em desenvolvimento de anilise cientifica. Flas devem ser encaradas em termos das interpretagdes as quais pessoas de uma denominagao particular submetem sua experiéncia, uma vez. que isso € 0 que elas professam como descrigdes. S4o antropolégicas porque, de fato, sio os antropélogos que as professam. Normalmente, ndo é necessdrio ressaltar de forma to laboriosa que o objeto de estudo é uma coisa ¢ o estudo é uma outra. Esté bastante claro que o mundo fisico wo €a fisica e que A Skeleton Key to Finnegan's Wake nio € 0 Finnegan's Wake. Todavia, como no estudo da calmura a andlise penetra no préprio corpo do objeto — isto , comegamos com as nossas préprias interpre= ‘agées do que pretendem nossos informantes, ou 0 que achamos que eles pretendem, e depois passamos a “sistematizd-las —, a Sinha entre cultura (marroguina) como um fato natural ¢ cultura (marroquina) como catidade te6rica tende a ser obscurecida. Isso ocorre ainda mais na medida em que a filtima é apresentada sob aforma de uma descri¢ao do ator das concepe6es (marroquinas) de todas as coisas, desde a violéncia, a oma, a divindade e a justiga, até a tibo, a propriedade, a patronagem e a chefia. Resumindo, os textos antropol6gicos sao eles mesmos interpretagdes e, na verdade, de segunda c terceira nfo, (Por definigGo, somente um “nativo” faz.a interpretagdo em primeira mao: € a sua cultura.) Trata-se, portanto, de ficgdes; ficgdes no sentido de que sdo “algo construfdo”, “algo modelado” — o sentido original de fctio — no que sejam falsas, ndo-fatuzis ou apenas experimentos de pensamento, Construir descrigies ovientadas pelo ator dos envolvimentos de um chefe berbere, um mercador judeu e um soldado francés uns com os outros no Marrocos de 1912 e claramente um ato de imaginagao, néo muito diferente da construgao de descriges semelhantes de, digamos, os envolvimentos uns com 0s outros de um médico francés de provincia, com a mulher frivola e adiltera e seu amante incapaz, na Franga do século KIX. Neste iltimo 480, 08 atores so representados como hipotéticos e 0s acontecimentos como se nio tivessem ocorrido, enquanto no primeiro caso eles so representados como verdadeiros, ou pelo menos como aparentemente verdadeiros. Essa nio é uma diferenga de pequena fmportincia: & precisamente a que Madame Bovary teve dificuldade em aprender, Mas a importncia nio reside no fato da hist6ria dela ter sido inventada enquanto ade Cohen foi apenas anotada, As condigdes de sua criagdo e o seu enfoque (para ndo falar da maneirae da qualidade) diferem, todavia uma é tanto uma ficrio — “uma fabricagdio" — quanto a outra. ‘Nem sempre os antropélogos tém plena consciéncia desse fato; que embora a cultura exista no posto comercial, no forte da colina ou no pastoreio de cameiros, a antropologia existe no livro, no artigo, na conferéneia, na exposigao do museu ou, como ocorre hoje, nos filmes. Convencer-se disso é compreender 'Nap apenas outros povos: a antropologia pode ser treinada no exame da cultura da qual ela propria é parte —e 0 é de maneira crescent. Esse € um fato de profunda importancia, mas, como dé origem a alguns problemas especiais de ordem secundaria e um tanto complicados, deix4-lo-ei a parte no momento. *Opmoblema da ordem, novamente, é complexo. Trabalhos antropolégicos baseatios em outras obras antropol6gicas (Lévi-Strauss, por exemplo) podem ser até de quarte miio ou mais, e mesmo os infontnantes freqlentemente, até mesmo habitwalmente fazer inerpretagdes de segunda mo — o que passou a ser conhecido como “modelos natives”. Nas culturas mais adiantadas, onde a Intepretagio “nativa” pode alcangar niveis mais elevados — com referencia ao Maghteh, temos que pensar apenas em Tbn. Khakiun: quanto 206 Estados Unidos, em Margaret Mead — esses temas se tomam, na verdade, muito intrincados. 12 canto Use que a linha entre o modo de representagao ¢ 0 conteddo substantivo € to intragével na anélise cultural como € na pintura. B este fato, por sua vez, parece ameacar o status objetivo do conhecimento antropolégico, sugerindo que sna fonte nao € a realidade social, mas um atificio erudito, Essa ameaca existe, na verdade, mas ela é superficial. A exigéncia de atengio de um retat6rio etnogréfico indo repousa tanto na capacidade do autor em captar os fatos primitivos em lugares distantes ¢ levé-los para casa como uma mascara ou um entalho, mas no grau em que ele & capaz de esclarecer 0 que ocorre em tais lugares, para reduzir a perplexidade — que tipos de homens sio esses? — a que naturalmente dio origem ot atos nio-familiares que surgem de ambientes desconhecidos. Isso naturalmente levanta alguns problema: sérios de verificagdo — ou, se “verificacio” & uma palavra muito forte para uma ciéncia tao soft* (por min eu preferiria “avaliagao") — de que maneira diferengar um relato melhor de um pior. Todavia, essa é tam bém a sua melhor virtude. Se a etnografia é uma descrigao densa e os etndgrafos so aqueles que fazem descrigdo, ento a questig determinante para qualquer exemplo dado, seja um didrio de campo sarcdstico 0 uma monografia al 1 do tipo Malinowski, é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos e as pisca delas verdadeiras das imitadas, Nao precisamos medir a irrefutabilidade de nossas explicagSes contra ut corpo de documentago ndo-interpretada, descrigGes radicalmeme superficiais, mas conta o poder da ime ginagdo cientifica que nos leva ao contato com as vidas dos estranhos. Conforme disse Thoreau, nfo vale pena correr 0 mundo para contar os gatos de Zanzibar. v Ora, essa proposigio, de que nao € do nosso interesse retirar do comportamento humano justamente : propriedades que nos interessam antes de comecar a examiné-lo, tem sido, por vezes, dimensionada nun grande alegacdo: a saber, de que uma vez que so apenas essas propriedades que nos interessam, no prec amos nos preocupar com o comportamento, a nfo ser superficialmente. A cultura é tratada de modo ma efetivo, prossegue o argumento, puramente como sistema simbslico (a expressio-chave é, “em seus prop 08 termos”), pelo isolamento dos seus elementos, especificando as relagdes internas entre esses elemento: passando entdo a caracterizar todo o sistema de uma forma geral — de acordo com os simbolos bésicos ¢ tomo dos quais ela é organizada, as estrutnras subordinadas das quais é uma expressio superficial, ou principios ideolégicos nos quais ela se baseia. Embora se trate jd de uma melhoria acentuada em retagio nogGes de “comportamento apreni meno mental” do que é a cultura e fonte de algumas ¢ idéias teGricas mais poderosas da antropologia contemporanea, essa abordagem hermética das coisas pat ce-me correr 0 perigo de fechar (e de ser superada cada vez. mais por ela) a anélise cultural longe do s objetivo correto, a légica informal da vida real. Né pouca vantagem em se extrair um conceito dos defeit do psicologismo apenas para mergulhé-lo, imediatamente, nos do esquematismo. Deve atentar-se para o comportamento, ¢ com exatidio, pois ¢ através do fluxo do comportamento —« mais precisamente, da ago social — que as formas culturais encontcam articulagdo. Elas encontram- também, certamente, em varias espécies de artefatos € varios estados de consciéncia. Todavia, nestes ca: © significado emerge do papel que desempenham (Wittgenstein diria seu “uso” no padrao de vida decom soft science, em oposigio as hard sciences, de base metemitics, consideradas mis exatas.

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