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TRADUÇÕES
Magdalena Jetelova, uma artista de alto renome de Praga, criou o palco: uma
pirâmide gigantesca de alumínio suspensa de cabeça para baixo com areia
saindo dela, e que pode ser completamente invertida ao longo da
apresentação, além de uma parede gigante de fios de seda, movimentados
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suavemente por cinquenta ventiladores que ficam atrás deles (e que também
deixam o ator maluco). Em uma cena o ator desaparece atrás da parede de
fios, em outra ele é sugado completamente pela pirâmide suspensa e depois
volta, minutos depois, primeiro pela cabeça. Após os ensaios dessas cenas,
Magdalena Jetelova foi diretamente ao ator, André Wilms, e disse a ele,
entusiasmada: “É absolutamente fantástico quando você desaparece”.
Isso é algo que, definitivamente, nunca se deve dizer a um ator, e este ficou tão
furioso que eu tive que pedir carinhosamente à cenógrafa que não visitasse
mais os ensaios. Mas muito mais interessante foi como ela pôde notar
intuitivamente – e foi capaz de indagar, em um instante, do seu ponto de vista
como artista visual – uma condição importantíssima das artes performativas.
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ou em desaparição, desde os anos 1980 (ver Abwesenheit1, de Gerald
Siegmund, um estudo da ausência como uma estética performativa da dança).
Teatro e ópera se recusam a avaliar seus pressupostos clássicos. Eles podem
ocasionalmente mudar o texto de uma peça ou o som de uma ópera, mas
nunca mais do que isso.
1
Para a tradução para o inglês, ver: SIEGMUND, Gerald. “Experience in a Space Where I am Not:
Staging Absence in Contemporary Dance”. In: BURT, Ramsay e FOSTER, Susan. Discourses in Dance,
vol. 4/issue 1/2007. Não consta tradução para o português deste texto até o momento [N.T.].
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linear. Para Hölderlin, “a poesia trata de diferentes faculdades (…) de modo
que a representação dessas diferentes faculdades forma um todo”, e “a
conexão entre as partes mais independentes das diferentes faculdades” é algo
a que ele chama de “o ritmo” (HÖLDERLIN, 1983, p. 237)2.
2
Todas as citações desta conferência aparecerão de acordo com as edições indicadas pelo autor,
sempre com tradução minha a partir das versões originais ou das traduções para o inglês tais como
apresentadas por Goebbels. [N.T.]
3
Referência ao poema “Le Carnet du bois de pins”, de Francis Ponge [N.T.].
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E o teatro como uma “coisa em si”, não como representação ou meio para
fazer declarações sobre a realidade, é exatamente o que eu tento oferecer.
Esta experiência cindida provavelmente explica por que dois anos mais tarde,
na performance Black on White, eu coloco o peso não na virtuosidade de um
ator brilhante, mas sobre os ombros de dezoito músicos no Ensemble Modern
– um protagonista coletivo, por assim dizer. Essa foi, portanto, também uma
declaração contra uma forma de arte que é muitas vezes completamente
hierárquica: em sua organização e processo de trabalho, no uso dos elementos
teatrais, em seu resultado artístico, até no caráter totalitário de sua estética e
no relacionamento com o público.
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morrer, enquanto os ensaios de Black on White estavam em andamento). A
ausência aqui é para ser encontrada também em outros níveis: como uma
recusa de qualquer ação dramática, por exemplo. Eu acho que “pouco parece
acontecer”, disse Ryan Patt em sua introdução à exibição da versão em filme
de Black on White em Cornell, duas semanas atrás.
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captação do som dos instrumentos. Obstáculos/resistências/dificuldades
estruturais para os músicos (a distância entre eles, a separação entre os
instrumentos de corda e assim por diante) ajudam o público a visualizar o
processo comunicativo de um conjunto sem maestro, responsável por si
mesmo. No lugar do maestro, você encontra apenas uma pequena estátua do
compositor Hanns Eisler, um amigo próximo e colaborador de Bertolt Brecht.
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trabalho, por tanto tempo o maestro é o governante do
mundo (CANETTI, 1962, p. 394-396).
O relógio ao fundo da cozinha mostra o horário real, e o ritmo com que o ator
corta as cebolas está sincronizado com um quarteto no palco tocando um
4
CANETTI, 1989, p. 106.
5
CANETTI, 1999, p. 52 [N. T.: minha tradução a partir da tradução apresentada por Goebbels do alemão
para o inglês].
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quarteto de cordas de Maurice Ravel. Ambos provam a “vivacidade” [liveness6]
da presença mediada.
• Como uma separação das vozes dos atores de seus corpos e dos sons dos
músicos de.seus instrumentos;
6
Cunhado pela emissora londrina BBC em 1934 e discutido ou apropriado posteriormente e
diferentemente por autores como Philip Auslander (ver: Liveness: Performance in a Mediatized Culture.
New York: Routledge, 1999), Peggy Phelan e Erika Fischer-Lichte, entre outros, o termo “liveness” surgiu
como um neologismo para designar uma espécie de diferença de qualidade das transmissões ocorridas
via tecnologias mediadas, como a radiodifusão, permitindo diferenciar, por exemplo, a transmissão de
uma canção tocada ao vivo no estúdio da transmissão de uma canção gravada. Se para Phelan “liveness”
opera como um aspecto ontológico do teatro e da performance e contrasta com a mediatização, que
fragilizaria a singularidade e a irreprodutibilidade de performances realizadas ao vivo, para Auslander, ao
contrário, a distinção entre “liveness” e “mediatização” perde relevância à luz da onipresença da mídia
nessa ordem de práticas artísticas, que poderia inclusive eliminar a experiência de uma pura “liveness”.
Ainda que a discussão em torno dos usos e sentidos da palavra seja extensa, talvez trate-se desde sua
aparição – e em síntese – de designar a qualidade do acontecer ao vivo e a sua consequente influência
na alteração de um estado de presença. Ou, para dizer de outro modo, de um estado de vida. Em seu uso
pela teoria da performance, trata-se de fazer referência, embora de modo inexato, ao “caráter vivencial”
das práticas performáticas – à sua “aovividade”, para criar um novo neologismo. Por não existir em
português um correspondente técnico para “liveness”, e para assegurar a fidelidade semântica e sonora
com relação à palavra original, optei por traduzi-la por “vivacidade”, a despeito de seus possíveis
distanciamentos conceituais [N.T.].
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• Como a criação de espaços intermediários, espaços de descoberta, espaços
que permitam que a emoção, a imaginação e a reflexão aconteçam;
• Como a ausência de uma história, ou, para parafrasear Gertrude Stein: “tudo
que não é uma história pode ser uma peça” (ver seu texto “Plays”, de
Lectures in America7). “Qual é a razão de se contar uma história já que há
tantas e todo mundo sabe tantas e conta tantas (…) então por que contar
outra história” (STEIN, 1998, p. 260);
• E a última, mas não menos importante ausência, pode ser entendida como o
ato de evitar as coisas em relação às quais criamos expectativa, as coisas
que vimos, que escutamos, que geralmente são feitas no palco. Ou, nas
palavras de Elias Canetti outra vez, pronunciadas pelo ator em Eraritjaritjaka
quando ele finalmente abre a janela de seu apartamento:
7
Há uma tradução para o português de “Plays” realizada por Inês Cardoso Martins Moreira e publicada
na edição zero da revista Ensaia (ver: http://www.revistaensaia.com/#!pecas/cxv3). [N.T.]
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dominar. Proteger-se de cada palavra explicada. Manter o
silêncio, o silêncio e a respiração, respirar o
incompreensível.
Não odeio as coisas que aprendi; odeio morar nelas
(CANETTI, 1978, p. 160).
Neste momento o público vê o ator em cena, ao vivo, abrindo uma das vidraças
do cenário e, lentamente – vendo o câmera e o quarteto de cordas através das
janelas na sala do ator –, o público percebe que ele nunca poderia ter
realmente deixado o palco.
Então Stifters Dinge tornou-se um no-man show, no qual cortinas, luz, música e
espaço, todos os elementos que em geral preparam, sustentam, ilustram, e
servem a uma performance teatral e ao domínio do ator, tornam-se – em um
tipo de justiça por muito tempo adiada – os protagonistas, juntamente com
cinco pianos, placas de metal, pedras, água, névoa, chuva e gelo.
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finalmente ativado pela ausência de atores, que usualmente realizam a arte da
demonstração e conectam a visão do público para si pela atração total de
atenção. Apenas a sua ausência cria o vazio no qual esta liberdade e prazer
são possíveis.
O efeito de tais vozes acusmáticas é explicado por minha colega Helga Finter:
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experiência artística (e aqui eu me refiro a uma publicação recente de André
Eirmann intitulada Postspektakuläres Theater) que não necessariamente se
situa em um encontro direto (com o ator), mas em uma experiência através da
alteridade. Alteridade é para ser entendida aqui não como uma relação direta
com qualquer coisa, mas como uma relação indireta e triangular por meio da
qual a identificação teatral é substituída por um confronto bastante inseguro
com um terceiro mediado, algo a que poderíamos chamar de o outro.
8
Para melhor identificação da obra referida: “Sumpt”, em alemão; “The Swamp” ou “A Wooded Marsh”,
em inglês [N.T.].
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Depois da leitura do conto invernal de Stifter, cinco pianos, algumas placas de
metal e uma máquina de fumaça, tudo junto toca uma espécie de concerto,
antes de começar a chover.
Referências bibliográficas:
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TRADUÇÕES
1Stridsberg,Sara: Medealand och andra pjäser. Stockholm: Albert Bonniers förlag, 2012.
See the blogspot "Dissecar uma Nevasca," accessed throughhttp://anevasca.blogspot.com.br/ for
information and journal criticism of the production in Portuguese. (Accessed, September 26 2015).
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