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oe Série Temas Volume 12 Estudos literdrios Responsabilidade editorial Fernando Paixao Assisténcia editorial Isa Mara Lando Preparacdo dos originais José Roberto Miney Producao grafica René Etiene Ardanuy Capa Isabel Carballo yector em 1946 — Acervo Iconographia \cdo de composi¢ao = (Papinagao em video), ete AX HSCS eth Hiromi Toyota ake Dirce Ribeiro de Araujo Adquiri _ - i 1GGO 02 hie ————— &C Q, o(8 t), 0% ee Registro Q-1SS- 399-5 a Regi or A056 BU /DPT 0.255.399 0 drama da wyuagem; uma leitura de Clarice Lispector contém textos — revistos pelo autor — inicialmente publicados na obra Leitura de Clarice Lispector (S40 Pau lo, Quiron, 1973). (N. da Ed.) ISBN 85 08 032730 1989 Todos os direitos reservados Editora Atica S.A. — Rua Bardo de Iguape, 110 — CEP 01507 Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8 656 End. Telegrafico “Bomlivro” — S40 Paulo no alcanza la lengua al coraz6n, ni se puede decir tanto como se siente, y aun esto que se puede no se dice todo, sino a partes. y la pasin con su fuerza y con increible presteza le atrebata la lengua y el corazén de un afecto en otto: y de aqui son sus razones cortadas y Ilenas de obscuridad (Fray Luis de Leon, “Cantar de los Cantares’’, Prélogo.) Sobre 0 autor Benedito Nunes nasceu em Belém do Para em 1929. Espe- cializou-se em filosofia na Sorbonne (com Paul Ricoeur) e no Collége de France (com Merleau-Ponty). E membro do Instituto Brasileiro de Filosofia. No periodo de 1968 a 1969 lecionou literatura brasileira na Universidade de Rennes, na Franca, ¢ durante os anos de 1969 ¢ 1970 pesquisou temas ligados literatura brasileira contemporanea, como bolsista da Fundacao Guggenheim Autor de numerosos artigos de teotia ¢ critica literaria, colabora desde 1955 em diversos suplementos literarios ¢ revistas especializa- das, brasileiras ¢ estrangeiras Atualmente leciona Filosofia na U curso que ele préprio fundou em 1961 iversidade Federal do Para. Edicdes das obras compulsadas para este trabalho ¢ respectivas siglas de citagao: PCS — Perto do coragao selvagem (tom.). 2. ed. Sao Paulo, Fran- cisco Alves, 1963. L —O /ustre (rom.). Rio de Janeiro, Agir, 1946. CS —A cidade sitiada (tom.). 2. ed. Rio de Janeito, José Alvaro Editor, 1964 LF — Lagos de familia (contos). Sao Paulo, Francisco Alves, 1960. (Colecio Alvorada.) ME — A maga no escuro (rom.). 3. ed. Rio de Janeiro, José Alvaro Editor, 1970. LE — A legiao estrangeira (contos ¢ crénicas). Rio de Janeiro, Edi- tora do Autor, 1964 PSGH — A paixdo segundo G.H. (rom.). Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1964. LP — Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (tom.). Rio de Janeiro, Sabia, 1969. FC — Felicidade clandestina (contos). Rio de Janeiro, Sabia, 1971. i ak! Sumario INTRODUGAO. I. DO ROMANCE AO CONTO. 1. A narrativa monocéntrica 2. A cidade sitiada: uma alegoria 3. A maga no escuro ou o drama da linguagem 4. O itinerario mistico de G.H. 5. Do monélogo ao didlogo 6. A forma do conto DA CONCEPGAO DO MUNDO A ESCRITURA 1. Uma temitica da existéncia 2. A paixdo da existéncia ¢ da linguagem 3. O mundo da nausea e o fascinio da coisa 4. O descortinio silencioso 5. O estilo de humildade e a escritura 6. O movimento da escritura 7. O improviso ficcional 8. O jogo da identidade OBRAS CITADAS E CONSULTADAS. ‘OBRAS DO AUTOR. 19 INTRODUCAO Pp: do coragao selvagem (1944), que assinalou a estréia de Clarice Lispector, impés-se 4 atengao da critica pela novidade que a densidade psicolégica, a maneira des- continua de narrar ¢ a forca poética desse romance repre- sentaram no panorama da ficc4o brasileira, entao profun- damente marcado pelo documentarismo social da década de 30. Seria, como logo ressaltou Alvaro Lins, ‘‘o nosso primeiro romance dentro do espirito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf’ *. E para Antonio Candido, que con- fessou haver recebido verdadeiro choque ao lé-lo, Perto do coragao selvagem, apesar de sua realizacao defeituosa, des- culpavel na obra de uma estreante, abria novos caminhos a expressao verbal. Nisso aproximava-se a jovem estreante de uns poucos violadores da rotina literaria — de-um-Mé- tio de Andrade, com Macunaima, de um Oswald de An- drade, com Memérias sentimentais de Joao Miramar — que conseguiram estender ‘‘o dominio da palavra sobre regides mais complexas ¢ mais inexprimiveis, ou fazer da ficcao * Alvaro Lins, A experiéncia incompleta; Clarice Lispector, em Os mortos de sobreca- saca, p. 188. 12 uma forma de conhecimento do mundo e das idéias’’ * E talvez tenha sido antes de tudo esse aspecto do romance que o préprio Oswald de Andrade perceberia ao colocar, entre os continuadores das ‘‘altas cogitagGes estéticas da Semana de Arte Moderna de 22’’, Clarice Lispector ao la- do de Guimaraes Rosa * Perto do coragao selvagem é é, ainda na interpretagao de Antonio Candido, ‘‘uma tentativa impressionante pa- ra levar a nossa lingua canhestra a dominios pouco explo- tados, forcando-a a adaptar-se & um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficgdo nao € um exer- cicio ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espirito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais retorcidos da mente’ No entanto, esse romance de tao boa fortuna liter4- tia, que nos faz penetrar em tais labirintos, nado é mais um romance de anilise psicolégica. Muito embora seja a ex- periéncia interior o seu 4mbito, muito embora tenha no aprofundamento introspectivo o principio mesmo de seu dinamismo, Perto do coragao sae jase desliga da vi- sio objetivista dos estados d’alma‘Nele encontramos, sem diivida, aquela mintcia na descrigéo de miltiplas expe- riéncias psiquicas ou de uma s6 experiéncia interior muta- vel, que podemos compreender a luz de uma “‘enfocacao microsc6pica aplicada a vida psiquica’’ “, sem que isso sig- nifique contudo que a narrativa vise, como o realismo psi- colégico do século passado, a analise de caracteres e a fixa- ¢40 de tipos. Ja se desligam também desse realismo psico- légico, a despeito da relevancia que emprestam 4 ‘‘enfo- cagao microscépica’’, as novelas de James Joyce e Virginia Woolf, nas quais podemos ver os antecedentes de Perto do coragao selvagem. * Antonio Candido, No raiar de Clarice Lispector, em Varios escritos. Sao Paulo, Duas Gidades, 1970, p. 126 * Entrevista a Mario da Silva Brito, ““O poeta Oswald de Andrade perante meio século de literatura brasileira” (do arquivo de O Estado de S. Paulo, recorte sem indicacio de fonte ¢ sem data). * Cf. “*A enfocagdo microsc6pica"’ aplicada a vida psiquica de que fala Anatol Rosen- feld em Reflexdes sobre 0 romance moderno, Comentario, out./dez. 1961 13 Pela agudeza com que descreve, do pensamento cla- ro A cenéstesia, os meandros da experiéncia interna, o pri- meito livro de Clarice Lispector, cujo titulo é decalcado nu- ma passagem de Refrato do artista quando jovem”, tem marcantes afinidades com a perspectiva joyciana anterior a Uhisses. Participa, sem chegar ao desenvolvimento livre ad moné6logo interior, da orientacao geral do ‘‘realismo psicolégico chocante’’ ° de James Joyce. Sua afinidade é porém maior com a atmosfera e com a sondagem intros- pectiva do romance de Virginia Woolf. Percebe-se, na obra de estréia de Clarice Lispector, acima da leve trama que ainda acompanha uma agao romanesca ja francamente in- teriorizada, a rede dos ‘‘pequenos incidentes sepatados’’ ” que Virginia Woolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira de narrar uma convergéncia de momentos de vi- da varios e dispersos. Ora, o que liga o romance de Clarice Lispector a esses autores € menos uma técnica ou um pro- cedimento particular do que os processos comuns — 0 mo- nélogo interior, a digressao, a fragmentacdo dos episédios —, que sintonizam com 0 modo de apreensao artistica da realidade na ficg4o moderna, cujo centro mimético € a cons- ciéncia individual enquanto corrente de estados ou de vi- véncias. A cortelacio dos estados subjetivos substituindo a correlacdo dos estados de fato, a quebra da ordem causal exterior, as oscilagdes do tempo como durée, que caracte- rizam a ficgio moderna ®, e que se originam desse centro, integram-se a estrutura de Perto do coragao selvagem. Es- se livro abria de fato um novo caminho para a nossa * Perto do coragao selvagem tem, como epigrafe, o seguinte trecho, de Une retrato do «artista quando jovem: “Ele estava s6. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem co- ragao da vida"”.(""He was alone. He was unheeded, happy, and near to the wild heart of life."” James Joyce, A portrait of the artist as a young man; New York, The Modern Library, p. 198-9.) S. the striking psychological realism of the narrative” (Stuart Gilbert, James Joy ce's Ulysses, New York, Vintage Book, 1955) little separate incidents which one lived one by one..."” (Virginia Woolf, To the lighthouse, New York, Harcount, Broce 8. Co., p. 73). ® Vera respeito das caractetisticas da ficcio moderna: Erich Auerbach, Mimesis; la tea- lidad en la literatura, México, Fondo de Cultura, 1950, p. 514 14 literatura, na medida em que incorporou a mimese cen- trada na consciéncia individual como modo de apreenso artistica da realidade. Desse centro mimético, responsavel pela ficcdo introspectiva dos romances e contos de Clarice Lispector — desse centro gracas a0 qual a experiéncia in- terior alca-se ao primeiro plano da criacdo literaria —, parte 0 eixo preliminar e direcional do desenvolvimento da obra de Clarice Lispector. Nos romances posteriores de Clarice Lispector acentua-se, com a sondagem interior descéndo ‘‘ao nivel microsc6pico onde a causalidade € miniscula e minuciosa’’ °, um horizonte reflexivo e até especulativo de sondagem existencial. Toda uma tematica da existén- cia, a que nao sao estranhos os contos da autora publica- ‘dos entre 1952 € 1971, projeta-se através das situagdes das personagens. Mas de romance para romance, contrastan- do com a permanéncia dessa temAtica e com a énfase pa- tética da prosa, registram-se variagdes do ponto de vista do sujeito narrador e do préprio discurso narrativo. A cidade sitiada (1949) tem algo de caricatural e sati- rico que o aproxima da crénica de costumes. A maga no escuro (1961), posterior aos contos de Lagos de familia (1960), € uma espécie de narrativa mistico-alegérica. Mas em ambos os romances 0 sujeito natrador adota 0 ponto de vista da terceira pessoa. Ja em A paixdo segundo G.H. (1964), primeiro e até agora Gnico romance da autora na primeira pessoa do singular, e publicado no mesmo ano de A /egiao estrangeira — tepertétio de contos, crénicas e reflexdes —, desagrega-se a sondagem introspectiva que absorve nos romances anteriores o dinamismo da acao fo- manesca. Finalmente, em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969) — que precede Felicidade clandestina (1971), altima coletanea de contos —, Clarice Lispector retorna, apds o deslocamento do centro mimético em que implicou aquela desagregacao, a narrativa em terceira pes- soa, mas ja procurando criar pela dialogacao, antes defici- ° Roberto Schwartz, Perto do coragio selyagem, em A sereia ¢ 0 desconfiado; ensaios criticos, Rio de Janeiro, Civilizacio Brasileira, 1965, p. 39. 15 taria, acidental ou esporadica, um elo intersubjetivo entre as personagens, que parecem entio sair, no auge de uma crise, do isolamento da consciéncia solitaria e perplexa. Essas sucessivas variagdes, que constituem, até a fase final do deslocamento a que nos referimos, desvios ao ei- xo preliminar e direcional do desenvolvimento da obra de Clarice Lispector, nao podem deixar de repercutir na con- cep¢ao do mundo telacionada com a tematica existencial que se projeta nos diversos escritos da autora. Além da es- tabilidade dessa tematica, que atravessa os romances, contos e crénicas de Clarice Lispector, é de se notar nuns e nou- tros a constancia dos mesmos tragos estilisticos. Postulada a hipétese de que tais escritos, com a unidade miltipla que os distingue, constituem as partes dispersas de um con- junto narrativo tnico, faremos aqui a tentativa, por certo precaria, de reuni-los, por uma leitura global da obra de Clarice Lispector. Na primeira seccdo deste ensaio — ‘‘Do romance ao conto’’— procuramos estabelecer, do ponto de vista da for- ma natrativa, a correspondéncia entre os escritos curtos — contos e/ou crénicas — e os romances. Na segunda — “Da concepcao do mundo 3 escritura’’ — especificamos, com base nos motivos constantes nuns € noutros, a con- cep¢do do mundo inerente a obra inteira e tentamos sur- preender, através do estilo que a caracteriza, o movimen- to proprio de sua escritura. *° Somente tomamos como objeto de andlise contos ¢ crénicas publicados nos livros Lagos de familia (1960), A legido estrangeira (1964) e Felicidade clandestina (1971), I DO ROMANCE AO CONTO 1 A NARRATIVA MONOCENTRICA I i so os aspectos fundamentais que se conju- gam em Perto do coragao selvagem: 0 aprofundamento in- trospectivo, a alternancia temporal dos epis6dtos e 0 cara- ter inacabado da narrativa. E na experiéncia interior da protagonista, Joana, que a acdo romanesca esta centrada. Os episédios da primeira parte de Perto do coragao selvagem, sem traco de intriga ou enredo, fundem lembrangas e percepcdes momentneas, idéias getais abstratas e imagens. Analisando sentimentos e intencdes, observando-se e observando os que a cetcam, Joana ‘‘continuava lentamente a viver o fio da infancia..."’ (PCS, 14) lentamente desenrolado: a orfandade, o pai vitivo absorvido em seu trabalho de escritor, a tia que lhe des- perta aversao, o mar diante do qual se extasia, o furto de um livto, o professor amado, a puberdade, a contempla- ¢4o do préprio corpo, a emogao de estranheza ao olhar-se num espelho. Abundantes e significativas, essas vivéncias absorvem os acontecimentos exteriores, escassos € insigni- 20 ¥ ficantes, ¢ exprimem o conflito dramatico que cinde a pér- sonagem, interiormente dividida e em oposicao aos outros. iéncia em-ctise;-a-introspeccao € o fadario de Joana. Por uma espécie de necessidade inelutavel, quanto mais-ela se observa, mais se distancia de seu proprio ser. A teflexao continua a que se entrega corta-lhe a espont: “Geldade dos sentimentos ¢-incompatib za-a com a frui- gao-pura‘e simples da vida. As palavras mesmas que ela se esforca por dominar * agravam esse distanciamento que a totna espectadora de si mesma e das coisas. Afastada do mundo, Joana esta em permanente opo- sig aos outtos. Vé no marido (Otavio) um estranho, que ela ama hostilizando, um inimigo potencial que ela odeia amando. A vida em comum, o.aconchego da paz domés- tica ndo podem conter_a inquietacéo que permeia a sua experiéncia i r. Mas essa inquietac4o, que imprime a narrativa Um tom passional envolvente, desloca 0 apro- fundamento introspectivo do plano da anilise psicolégi- ca, da microscopia da consciéncia a um plano ético, estéti- co e especulativo. \ Obscuro desejo ¢ forca instintiva-represada, sede de liberdade e dp expiesdo;a inqaietagia de que falamos do- mina a pefsonagem: €-a'sua Aybris, sua-vocacao pata 0 ex- cesso e a desmest -eapaz, “‘co- mo um animal solto’’, de transgredir todos.os-limites mo- is; mas tro, seus pendores anarquicos, que jamais $€ concretizam, refluem para a angiistia da liberdade, dian- te dos possiveis abertos 4 acdo. Impetuosa como um ins- tinto e aliciante como um apelo, tal inquietude, violenta + “Presa, presa. Onde esti a imaginacao? Ando sobre trilhos invisiveis. Prisio, liber- dade. Sao essas as palavras que me ocorrem. No entanto nao sao as verdadeiras, finicas ¢ insubstitufveis, sinto-o. Liberdade € pouco. O que desejo ainda nao tem nome" (PCS, * Hybris tem aqui o sentido de culpa tragica, resultante de um excesso, de uma desme- sura, Como possibilidade humana, que corresponde A infinitude do desejo, a Aybris difere do pecado no sentido cristao (falta contra a vontade de Deus). E um perigo de- ‘moniaco, explica Jaeger, que “se acha na insaciabilidade do apetite que sempre deseja duplicar 0 que tem, por muito que isto seja’’. (Werner Jaeger, Paidéia; los ideales de Ja cultura grega, v. 1; p: 272, México, Fondo de Cultura Econémica, 1946.) 21 mas impotente, leva Joana a um constante esforco de ex- pressdo artistica, a um afa de conhecimento e de criagao sempre renovavel ¢ deficitario, que mais exigente se torna quanto mais se exerce, e que mais se exerce quanto mais se frustra a expressdo em que a individualidade se realiza- ria: ‘‘Sinto a forma brilhante e Gmida debatendo-se den- tro de mim. Mas onde est4 o que quero dizer, onde esta o que devo dizer?’’ (PCS, 60). Presa de curiosidade intelectual e filos6fica, Joana ex- perimenta instantes de alegria contemplativa, abandonan- do-se a um jogo de sensagdes, de palavras e idéias: A liberdade que as vezes sentia. Nao vinha de reflexes nitidas, mas de um estado como feito de percepcoes por de- mais organicas para serem formuladas em pensamentos. As vezes, no fundo da sensa¢do tremulava uma idéia-que the dava leve consciéncia de sua espécie e de sua cor. O esta- do para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O préprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade Aprofundava-se magicamente e alargava-se sem propria- mente um contetido e uma forma, mas sem dimensdes tam- bém. A impressao de que se conseguisse manter-se na sen- sag&o por mais uns instantes teria uma revelagdo — facil- mente, como enxergar 0 resto do mundo apenas inclinando- se da terra para o espaco (PCS, 36) A beira de uma tevelacao, a um passo da acao decisi- va, a personagem € traida pela sua liberdade séfrega — essa estranha liberdade que foi a sua maldicéo, que nunca a ligara nem a si propria... (PCS, 174) ~ A ruptura com o meio doméstico, com a sua ambiéncia cotidiana, que se produz afinal, deixa a heroina desampa- rada € solitatia em face da existéncia e de Deus, mas pres- tes a iniciar, gracas a inquietacdo que ressurge, uma nova busca. A contingéncia da auto-anilise que a transforma numa espectadora de seus proprios atos — num ‘‘pequeno bloco fechado, assistindo, assistindo’’ (PCS, 155) —, in- veste a andlise psicolégica num movimento interior jamais completado, que tanto possui a aparéncia de evasio ou de 22 fuga, como de errancia espiritual nao cumulativa, ao lon- go da qual a individualidade perde 0 que vai ganhando. Diferente em cada um de seus momentos, Joana dispersa- se por muitas vidas. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de circulos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros (PCS, 89). Essa dispersdo.no tempo, através da experiéncia inte- rior, de uma vida que contém outras, como ‘‘circulos in- teiros, fechados,”’ € homéloga ao ritmo temporal entre- cortado da narrativa, que alterna ou no mesmo episédio ou em epis6dios distintos, como sucede na primeira parte do romance, o passado com 0 presente. A temporalidade de Perto do coragao selvagem, que acompanha, nessa par- te, a ordem associativa e evocativa das vivéncias, substitui a unidade biografica externa pela unidade miltipla da du- racdo que o dinamismo da consciéncia articula. Os esta- dos subjetivos, com suas qualidades préprias, distribuem- se em cadeias auténomas, que fixam instantaneos do pre- sente ou do passado e correspondem a episédios comple- tos. Assim, o capitulo inicial do romance, ‘‘O pai’’, cons- titui uma cadeia autonoma, dotada de unidade episédi- ca, que remete ao passado da personagem, fixando ins- tantaneos de sua infancia: A maquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O reld- gio acordou em tindlen sem poeira. 0 siléncio arrastou-se 222222. 0 guarda-roupa dizia 0 qué? roupa-roupa-roupa. Nao, néo. Entre o rel6gio, a maquina e o siléncio havia uma ore- lha & escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os trés sons esta- vam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da 4r- vore que se esfregavam umas nas outras radiantes (PCS, 9) O capitulo seguinte, ‘‘O dia de Joana’’, ja mudando de registro, pois que focaliza o livre curso das idéias da pro- tagonista a esmiucar os préprios sentimentos e lembran- gas, liga-se ao anterior por essa unidade de compenetra- ¢ao do hetetogéneo, que caracteriza a durée *: * A durée € a sucesso pela solidariedade de elementos heterogéneos: sucessio pura, qualitativa ou melédica — ‘une pénétration mutuelle, une solidarité, une organisa- tion intime d’éléments..."’. (Bergson, Le temps homogenes et la durée concréte, em Les données immédiates de la conscience, 80. ed., Paris, PUF, p. 75.) 23 A certeza de que dou para o mal, pensava Joana. O que seria ent&o aquela sensa¢do de forca contida, pronta para rebentar em violéncia, aquela sede de emprega-la de olhos fechados, inteira, com a seguranca irrefletida de uma fera? (PCS, 14) Observe-se que os dois episédios citados se enquadram no passado narrativo especifico (“‘A maquina do papai datia tac-tac...”’ ‘“A certeza de que dou para o mal, pensava Joa- na’’). Em outros momentos, porém, como na cena do ba- nho (‘‘O banho’’) de maior densidade, substitui-se 0 pas- sado pelo presente dramatico, como tempo verbal da marracao: A moga ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da agua. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da in- fancia. Estende uma perna, olha 0 pé de longe, move-o ter- na, lentamente como a uma asa fragil. Ergue os bragos aci ma da cabeca, para o teto perdido na penumbra, os olhos fechados, sem nenhum sentimento, sé movimento. O cor- po se alonga, se espreguica, refulge imido na meia escuri- d&o — é uma linha tensa e trémula. Quando abandona os bragos de novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move 0 longo pesco¢o de um a outro lado, inclina a cabeca para tr4s — a relva é sempre fresca, alguém vai beijé-la, coe- thos macios e pequenos se agasalham uns nos outros de olhos fechados. — Ri de novo, em leves murmurios como os da Agua. Alisa a cintura, os quadris, sua vida (PCS, 56) A temporalidade ondulante, que acompanha a erran- cia interior da personagem, passando de um a outro dos pequenos circulos de sua vida dispersa, ¢ sobrepujada, ja na segunda parte do romance, pela sucesso dos incidentes que formam o encadeamento de uma intriga de amor. Apa- rece nessé entrecho um ttiangulo amoroso conflitivo, sus- tentado pelo jogo de sentimentos ambiguos ¢ de posigdes equivocas — de Joana em rela¢ao-a Lidia, ex-noiva e amante do marido (Otavio), que a atrai como 0 seu Oposto, e em telacao a Otavio, complemento de sua feminilidade. Abandonada tanto pelo marido quanto por um aman- te ocasional, Joana vai, numa viagem sem destino e sem 24 esperanga;-ao-encontrto de sua infancia e de sua motte. Es- sas imagens da infancia e da morte se unem num de pro- fundis, grave monélogo do capitulo final, ‘‘A viagem’’, de cuja expressdo patética renasce, no curso de uma pere- grinacao iniciada quando o romance chega ao seu termo, a inquietacao da liberdade e a promessa de uma vida plena: Eum dia vir, sim, um dia viré em mim a capacidade tao vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer sera cegamente seguramente inconscientemente, pi- sando em mim, na minha verdade, téo integralmente lanca- da no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia viré em que todo meu movimento ser criagéo, nascimen- to, eu romperei todos os ndos que existem dentro de mim (PCS, 178) Continua, pois, nessa viagem, que deixa a narrativa suspensa a possibilidade de uma busca que recomega, a errancia da personagem. O inacabamento da narrativa re- duplica a existéncia inacabada da protagonista. (i; \ O /ustre comeca expondo o fato exterior determinan- te da vida de seus personagens. Virginia e seu irmao Da- niel, que se debrucam numa ponte pénsil, veem um afo- gado boiando no rio. A morte que lhes € entao revelada, ¢ acerca da qual silenciam, vai refletir-se nos jogos som- brios das duas criancas. Essa recordagao secreta sela a mtu- tua dependéncia afetiva, cimentada num liame de domi- nio e servidao, em que elas vivem. Virginia aceita o senhorio de Daniel, ‘‘... um meni- no estranho, sensivel ¢ orgulhoso, dificil de se amar...’” (L, 31). Em nome de uma Sociedade das Sombras por ele inventada, Daniel dita ordens 4 irma ¢ impée-lhe a exe- cugdo de seus caprichos. Estéo ambos voluntariamente se- gtegados dentro de Granja Quieta — mundo noturno e denso, que abriga a velha casa de familia, guardando ain- 25 da, dentre os restos de antiga abastanca, um /ustre que pende do teto da sala. Uma ignominia rompera 0 encanto magico do lugar. A mando de Daniel, Virginia delata ao pai os encontros furtivos da irma mais velha (Esmeralda) com um desco- nhecido, no jardim da casa. Ao prego dessa transgressao ética, a delatora se exclui da quietude e da ordem fami- liais para incluir-se no mundo anénimo da grande cidade, para onde parte na companhia de Daniel ¢ onde os dois, ja separados, nao criarao raizes. Os acontecimentos posteriores a essa ruptura serao uma decorréncia fatal da morte guardada em segredo e da infancia perdida. Daniel, que desempenha relativamente a Virginia 0 papel de um Deus ex machina, passa ao se- gundo plano do romance, s6 aparecendo incidentalmen- te, enquanto aquela, envolvida aos poucos pela grande ci- dade — ambiente fantastico, pétreo e metilico, de edifi- cios em construg4o —, vivera solitaria, ensimesmada e er- rante, sem fixar-se em lugar nenhum, como se apenas adias- se 0 seu retorno inevitavel 4 Granja Quieta. A vida coti- diana da personagem central, desagregada num desfile in- conseqiiente de gestos e atitudes grotescas, € uma comé- dia de funambulos a que ela assiste, fechada na sua cons- ciéncia de espectadora, e que lhe dé a perceber a outta fa- ce dos objetos e das pessoas. A sua volta, como no episé- dio de um jantar entre amigos *, por sinal uma das me- Ihores passagens de O /ustre, tudo se torna alucinatério, denso ¢ expressivo. Por oposigao aos objetos, que ganham uma presenga imponente, estavel e luminosa, as pessoas se reduzem, para Virginia, a um detalhe ou a uma parte do corpo, realga dos em isolamento grotesco: ‘‘... as orelhas carnudas ¢ avi- das, grosseiramente desabrochadas ao lado do rosto...”” (L, 117) de um diretor de jornal, ou a mao de ‘‘unhas claras’’ de Adriano, ‘‘... que cortava ligag6es invisiveis...’’ (L, 120). +L, 100-33 Mas essa comédia de funambulos, agravada pela for- ca do relacionamento ora agtessivo, ora equivoco, de Vir- ginia com os outros, é também uma comédia de erros. Re- pelindo e sendo repelida, atacando e se defendendo, hu- milhada ¢ forte em seu 6dio, 0 amor somente proporcio- na 4 moga solitaria uma variacao do antagonismo que co- nheceu, outrora, na companhia do irmao. Ela e o amante (Vicente) se revesam no papel de senhor e de escravo: Era uma luta despercebida que no entanto os ligava num mesmo meio de atragao, desentendimento, repulsa e cum- plicidade (L, 201). O pudor de entregar-se, de violar a alma, impede que cla se identifique com o homem, antagonista ¢ inimige de quem acabar4 fugindo para voltar, movida por um apelo mais profundo — o chamamento da morte ligado 4 in- fancia — a Granja Quieta. Quem saberia se a realidade ndo era a morte — como se toda a sua vida tivesse sido um pesadelo e ela acordasse enfim morta (L, 322) De retorno a grande cidade, Virginia perece, vitima- da por fatal acidente. A ac&o romanesca de O /ustre € difusa como a de Perto do coragao selvagem. Nao se desenvolve, porém, 4 seme- Thanca do que sucede na primeira parte do romance de estréia, pela j justaposicao de episédios auténomos, que al- ternam as vivéncias do passado com as do presente. Do- minada por uma unidade biogrfica externa, a natrativa avanca macicamente, sem divis6es capitulares. Uma ana- lise reflexiva meAndrica, que se espraia e se avoluma em varias diregdes — presente e passado aderidos no mesmo espaco vivencial —, conduz-nos do incidente que a perso- nagem presencia quando menina ao incidente de sua morte por atropelamento. Certas 5 _situagdes bem definidas, como a vida com as tias velhas °, a amizade frustrada de Virginia com 0 zela- SL, 149-56 27 dor do edificio °, a visita ao zoolégico ’, destacam-se do tumulto descritivo das vivéncias, assinalando, no labirin- to da auto-reflexdo, os passos de uma trajetéria. Em _O lustre desenha-se a fi figura nitida de uma erran- cia exterior, no espaco, paralela--errancia-interior no tem- po, que prepondera em Perto do coragéo selvagem. Abs- traida essa diferenca € a ja referida, quafitoaflexibilidade episédica, os dois romances se ligam entre si quer pela Be sigdo absorvente de suas respectivas protagonistas, quer pe/o ritmo de procura * do curso da acao, em ambos compon- do a forma de uma trajet6ria: a errancia das duas persona- gens centrais, que se perfaz como movimento de evasdo yu fuga. Joana (Perto do coracao selvagem) e Virginia (O /us- tre), buscam, em momentos de desamparo e de fracasso, o tempo perdido da infancia e deparam com a motte, a primeira descobrindo a sua condicao mortal, a segunda ful- minada pela fatalidade. Nessa trajet6ria que lhes € comum, cabem dois itinerarios simétricos: em Perto do coragao sel- vagem, o da viagem de Joana, sem rumo certo, quando 0 romance acaba e a narrativa fica em suspenso; em O /us- tre, o percurso de ida e volta, entre o campo e a cidade, onde:a viagem de Virginia acaba, fechando a narrativa. No primeiro romance, a infancia, apenas rememorada pela mulher adulta, integra-se no final 4 sua experiéncia da mor- te; no segundo, a infancia, integrada a um desenvolvimen- to biografico linear, que vai da meninice a idade adulta, liga-se, desde o comeco, a vivéncia da morte. Os dois romances ainda mais se aproximam pela iden- tidade do conflito e da inquietacg4o que as protagonistas conhecem. Desdobramento ou duplicac4o de Joana, Virgi- *L, 161- L, 199-200. ® Distinguindo o aprofundamento introspectivo em Perto do coragao seleagem da ani- lise das paixdes no “romance psicolégico”’, observa Antonio Candido: ‘*O seu ritmo € um ritmo de procura, de penetracio que permite uma tensio psicol6gica poucas ve- zes alcancada em nossa literatura contemporinea"’. (Antonio Candido, No taiar de Clarice Lispector, em Varios escritos. Sa0 Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 129.) 28 nia, também presa da Aydris, conhece a angistia da liber- dade, sente o desejo obscuro de exprimir-se ¢ de realizar- se. A posigéo absorvente dessas personagens centrais, que se refletira no carater da narrativa, aparece ainda mais cla- ramente quando consideramos o relacionamento confliti- vo que as op6e as outras figuras dos respectivos romances. Observe-se que os itinerarios tragados em Perto do co- ragao selvagem e O Justre vatiam dentro de uma situagio conflitual Gnica, que evolui pela rotacdo de conflitos in- tersubjetivos alternados, relativamente aos quais os outros personagens, como simples mediadores, constituem polos de atracdo e repulsdo da consciéncia em crise das protago- nistas. Assim, Joana repele o professor amado °, primeira instancia mediadora de sua inquietacao, substituido de- pois por Otavio, com quem se casa. Pata romper com o marido, a moga se apdia em Lidia, amante dele. Apenas instrumento, 0 personagem-mediador mobiliza na perso- nagem central uma tazao mais profunda que o atinge ¢ supera. Virginia, submissa desde crianga ao irmao volun- tarioso, hostiliza, por ele instigada, a irma Esmeralda. Da- niel medeia, pois, 0 seu rompimento com a familia e o seu éxodo do campo para a cidade. E gracas ao amante (Vi- cente), consegue Virginia romper com a servidao que a acor- rentava a Daniel, para, finalmente, sem sair do citculo fa- tal de um conflito interior insoltivel, afastar-se de Vicen- te, em demanda do campo e da familia. Dessa forma, as heroinas dos dois romances absorvem Os outros personagens, que sdo menos agentes auténomos concorrendo para configurar uma trajet6ria comum, de que a rigor ficam excluidos, do que instrumentos a servigo da situagdo conflitual interior de ambas. O papel da protagonista, tanto em Perto do coragao selvagem como em O /ustre, excede a fungdo de um pri- meifo agente, que apenas conduz ou centraliza a agao. Ela €a origem eo limite da perspectiva mimética, 0 eixo atra- ° PCS, 44-53. 29 vés do qual se articula o ponto de vista que condiciona a forma do romance como narrativa monocéntrica, isto é, como narrativa desenvolvida em torno de um centro pri- vilegiado que o proprio narrador ocupa. Em suma, a posi- co do narrador se confunde ou tende a fundir-se, nessa forma, com a posicao da personagem. E 0 que podem 1 mosttat-nos os aspectos do discurso narrativo ". A romancista, que adota a terceita pessoa, nao se su- prime como instancia externa da narracdo. Mas também percebe € sente com a personagem. Ora a ela aderindo, ora lhe impondo a sua presenca como sujeito-narrador, a romancista pratica um modo de ver oscilante, verdadeiro regime de transagio '*, que se teflete na alternancia do discurso direto ¢ do indireto, contiguos e deslizantes, um ja silhuetado no outro, conforme se vé neste trecho semi- monologal de Perto do coragéo selvagem: Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de fe- bre? Mas a verdade é que tenho mesmo: olhos brilhantes, essa forca e essa fraqueza, batidas desordenadas do cora- 40. Quando a brisa leve, a brisa de veréo batia no seu cor- po, todo ele estremecia de frio e calor. E entao ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. E porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou néo me tocam, sinto — refletia. Pensar agora, por exemplo, em re- Por aspectos do discurso narrativo, entendemos, com Todoroy, que distingue entre a narrativa como histOria ¢ a narrativa como discurso, os modos de relacionamento do narrador com a hist6ria. H& quatro desses modos de ''ver'*, que refletem “a relation entre un i/ (dans Vhistoire) et un se (dans le discours) entre le personnage et le narra- teur’’: a sisdo por detras, propria da narrativa classica (narrador > personagem); a vi so '‘com o personagem'’ (nattador = personagem) ¢ a visdo ‘‘do exterior” (narrador < personagem). (Tzvetan Todorov, Les catégories du récit littéraire, Communications, Seuil, 1966, n. 8, p. 127, 138, 141, 142.) * Nesse caso, a “‘visdo com o personagem"’ € tanto interior quanto exterior, embora © narrador tenha a sua perspectiva centrada, conforme vimos, na protagonista. (V. a distingdo de Roland Barthes, Introduction 3 !'analyse structurale des récits, Communi cations, Seuil, 1966, n. 8, p. 19.) Natrando em terceira pessoa Clarice Lispector jamais se iguala com 0 personagem — ao contrario de Kafka, que adota o modo de ver de seu personagem, suprimindo-se como instncia externa nas suas trés novelas, O proces 50, O castelo ¢ América. (Vide Martin Walser, Descripci6n de una forma, em Ensayo sobre Franz Kafka. Buenos Aires, Sur, 1969, p. 18-20.) Mas tampouco deixa de perce ber e sentir com ele, cedendo-lhe entdo a iniciativa na primeira pessoa 30 gatos /ouros. Exatamente porque nao existem regatos louros, compreende? assim se foge. Sim, mas os dourados de sol, louros de certo modo... Quer dizer que na verdade nao ima- ginei. Sempre a mesma queda: nem o mal nem a imagina- ¢&o. No primeiro, no centro final, a sensac&o simples e sem adjetivos, tio cega quanto uma pedra rolando. Na imagina- ¢d0, que sé ela tem a forca do mal, apenas a viséo engran- decida e transformada; sob ela a verdade impassivel. Mente- se e cai-se na verdade. Mesmo na liberdade, quando esco- thia alegre novas veredas, reconhecia-as depois. Ser livre era seguir-se afinal, e eis de novo 0 caminho tragado. Ela sé ve- ria 0 que j4 possuia dentro de si. Perdido pois o gosto de ima- ginar. E 0 dia em que chorei? — havia certo desejo de mentir também — estudava matematica e subitamente senti a im- possibilidade tremenda e fria do milagre ? (PCS, 16). Quanto a O /ustre, seu modo de ver nao cabe nesse regime de transac4o; mas a proximidade entre o sujeito- narrador e a personagem se faz gracas ao elo afetivo criado pelo adensamento expressionistico na maneira de narrar, que adere desde o inicio, por empatia, a visao infantil de Virginia, povoando de coisas vivas e patéticas o mundo de Granja Quiet: Ela abria grandes olhos. La estava a pedra escorrendo em orvalho. E depois do jardim a terra sumindo bruscamente. Toda a casa flutuava, flutuava em nuvens, desligada de Brejo Alto. Mesmo 0 mato descuidado distanciava-se pélido e quie- to e em vao Virginia buscava na sua imobilidade a linha fa- miliar; os gravetos soltos sob a janela, perto do arco deca- dente da entrada, jaziam nitidos e sem vida. Dai a instantes porém o sol surgia esbranquicado como uma lua. Dafa ins- tantes as névoas sumiam com uma rapidez de sonho dis- perso e todo 0 jardim, o casardo, a planicie, a mataria, re- brilhavam emitindo pequenos sons finos, quebradicos, ain- da cansados. Um frio inteligente, Idcido e seco percorria 0 jardim, insuflava-se na carne do corpo. Um grito de café fres- co subia da cozinha misturado ao cheiro suave e ofegante de capim molhado. O coracdo batia num alvorogo doloroso e Umido como se fosse atravessado por um desejo impossi- vel. E a vida do dia comegava perplexa \ (L, 16). 1? Os grifos so nossos. 1 Os grifos sdo nossos. 31 Ainda quando nao se retrai, mantendo-se, pelo uso continuo da terceira pessoa, numa relativa distancia, o sujeito-narrador est4 comprometido com o ponto de vista da petsonagem que lhe dé o centro privilegiado € discri- minatorio do discurso. O-carater restritivo da a¢ao roma- nesca, que decorte disso, € menos uma falha ou um defei- to de técnica, do-que uma caréncia intrinseca, estrutural, da forma-monocéntrica. A parciménia, a eventualidadee o carater distorsivo dos didlogos de Perto do coragao selva- gem e O Justre, que perduram em obras subseqiientes, co- mo traco peculiar da novelistica de Clarice Lispector, ligam- se a esse tipo de caréncia. A cidade sitiada é a cronica de Sa0 Geraldo, um subGrbio em crescimento, na década de vinte, ‘que j@ misturava ao cheiro de estrebaria algum progresso’’ (CS, 14): novas fabricas em seus arredores, automéveis e cami- nhées na velha rua do mercado — ‘‘onde um gosto passa- do reinava nas varandas de ferro forjado, nas fachadas ra- sas dos sobrados’’ (CS, 15) — e grande naimero de cavalos por toda parte. Essas mudangas, que se refletem nos habi- tantes, se associam a experiéncia interior de Luctécia Ne- ves, a protagonista do romance, que leva uma vida diiplice. Mocinha namoradeira a caga de um bom partido, e bair- tista, ela passeia seu tédio pela cidade, caminhando, de devancio em devaneio, e nutrindo secretamente a espe- ranga de libertar-se dos muros imaginarios que sitiam Sao Geraldo. Casa-se, por fim, com um comerciante forastei- fo que a transfere para a metropole. Mas nem os museus nem os jardins nem os teatros, que Lucrécia Neves visita turisticamente, aplacam-lhe a nostalgia do subirbio, para onde ela volta ainda na companhia do marido, a quem detesta, pouco antes de tornar-se uma vitiva séria, orgu- UFSC 0.255-399-5 | Biblioteca Universitérta] i pn 33 ; Cee lhosa dos Gltimos progressos de sua cidade. E a vista de um novo bom partido, ela deixara novamente a terra natal. O primeiro aspecto a ser considerado nesse_terceiro romance-de-Clatice Lispector, € que 0 diferencia dos ante- riores, € a presenca de um ambiente, o suburbio, que cir- cunscreve os gestos € atos dos personagens, inclusive ¢ principalmente da protagonista. As mudangas do meio de- limitam a ac&o romanesca, que principia com elas e ter- mina quando se completam. A desercdo final de Lucrécia Neves é parte do éxodo dos habitantes, que abandonam a cidade no momento em que ela perde o carater provin- ciano € caem os muros do tempo que a cercavam: Fora levantado 0 sitio de S. Geraldo. Dai em diante ele teria uma hist6ria que nao interessaria mais a ninguém, lar- gado as suas sérias subdivis6es, 8s penas de multa, as suas. pedras e bancos do jardim, avarento de quem em punic’o ninguém mais cobigasse os tesouros. Seu sistema de defe- sa, agora inutil, mantinha-se de pé ao sol, em monumento histérico. Os habitantes 0 haviam desertado ou dele deser- tado seus espiritos. Embora também ficassem entregues a liberdade e & soliddo (CS, 220) A aventura matrimonial de Lucrécia Neves se inscre- ve nos fastos da vida do subirbio, em torno da qual gravi- ta a vida intima da mocinha. O segundo aspecto a destacar diz respeito 4 sucessio dos episédios que formam, em conjunto, quadros estati- cos da vida de provincia, alguns dos quais primam pelo detalhe caricatural e pela intencio satirica. Assim o ‘‘Te- souro exposto’’ (Cap. IX) descreve, como farsa conjugal, a felicidade pequeno-burguesa da heroina com Mateus, o comerciante forasteiro, feita de frases banais, de clichés afe- tivos e de atitudes estereotipadas que garantem a paz € 0 decoro domésticos. Atinge a romancista, no retrato de Mateus, pintado conforme o via a propria mulher, um tra- ado caricatural e grotesco: Um adestramento continuo. Ele era masculino e servil Servil sem humilhago como um gladiador que se alugasse. E ela, sendo mulher, o servia. Enxugava-Ihe o suor, alisava- lhe os musculos. Aviltava-a viver as custas das idas e vin- das dos treinos de Mateus, estendendo camisas que a poei- ta da cidade logo sujava, ou alimentando-o com carnes e vinhos. Mas nao podia sen4o fascinar-se com aquela minu- ciosa ordem, que hé muito parecia ter ultrapassado os mo- tivos, ndo podia sendo gastar os meses a prepard-io para 0 combate. Esperando que um dia enfim alguém esmagasse 9 seu colosso — e, com horror, ela ficasse livre. Cada vez que ele regressava ao hotel, a esposa se surpreendia de vé- lo ainda solto. Ali todos alias pareciam viver ilicitamente, de empregos extraordindrios. Mateus Correia por exemplo era: intermedidrio. Essa funcdo 0 deixava enigmatico e satisfei- to: comia pouco de manhé, beijava-a, a boca através do ca- fé cheirando a pasta de dentes e a enjéo matinal. Usava anéis nos dedos como um escravo (CS, 138). Mas a despeito desses elementos que realcam o hu- mor, ausente dos romances anteriores, como dimensao pr6- pria da obra — A cidade sitiada nao chega a ser uma satira -de-costumes, O humorismo a que nos referimos, abran- gendo o satirico e o caricatural, esta relacionado com 0 4n- gulo que a narradora adota para acompanhar os devaneios de Lucrécia-Neves e registrar os acontecimentos salientes de Sao Geraldo. Esses devaneios contém, de maneira arre- fecida, a direcao da experiéncia interior das personagens de Perto do coragao selvagem e O Justre: a inquietude, o desejo de transgredir os limites preestabelecidos (no caso, as fronteiras de Sao Geraldo), a busca de uma nova vida para além da muda existéncia que estava sempre acima dela, a sala, a ci- dade, o alto grau a que chegavam as coisas sobre a prateleira, o passarinho prestes a voar empalhado pela ca- sa, a altura da torre da usina, tanto intoleravel equilibrio. (CS, 75). Mas, em A cidade sitiada, a0 conttatio do que suce- de naqueles romancés, a narradora se distancia da heroina e, descomprometida com as suas vivéncias, empresta-lhe aos gestos ¢ atitudes algo de maquinal, e aos pensamentos mais sectetos uma énfase cémica. Vem dai, desse distan- = 35 ciamento assumido que reduz 0 patético € 0 grave, 0 cara- ter burlesco da conduta de Lucrécia que se estende a at- mosfera do-subarbio: A mocinha estremecia de medo de estar viva. Certas coi- sas davam o mesmo sinal — a falta de vento — um cego tocando — 0 luar na pedra... persignou-se rapidamente en- quanto um rato gordo se dourava sob o poste. Passos se- cos soaram. O soldado diminuido pela distancia apareceu numa esquina e sumiu por outra... sdbado era noite de bé- bados. Um papel estremecia no cho: entdo ela comecou a correr antes que tudo comegasse até encostar-se a porta de casa. Tocou a campainha longamente... (CS, 13) O humorem A cidade sitiada neutraliza a realidade, dissolvendo-a numa sucessao de aparéncias equivocas. Ma- quinais nos sentimentos e cercados de coisas rigidas *, os personagens desse romance aparecem como fantoches nu- ma atmosfera de sonho. A pantomima substitui os gestos, a pose suprime a atitude, a caricatura, o retrato. Sao todos figuras-servas da cidade. Nao é de outro tipo a presenga de Perseu, o namora- do da heroina, que surge no comego do romance (‘‘O ci- dadao’”’) ‘‘heréico e vazio’’, de pé, 4 janela de um segundo andar, sob a aparéncia de um relevo da paisagem urbana a que se integra — ‘‘porque ele era apenas um dos modos de ser de S40 Geraldo’’ (CS, 32). Lucrécia Neves € tam- bém um modo de ser do subtirbio, refletindo o espitito da provincia em que ela se mira. ‘Tudo era real, mas co- mo visto através de um espelho’’ (CS, 46). Esse espelho the devolve uma imagem exterior de si mesma — pois ‘‘tu- do o que Lucrécia Neves podia conhecer de si mesma esta- va fora dela: ela via’’ (CS, 77). “Os materiais da cidade! Ela estava olhando as coisas que nao se podem dizer. Certos attanjos de forma despertavam-the aquela atencZo oca: os olhos sem piedade olhando, 4 coisa deixando-se olhar sem piedade: um tubo de borracha ligado a uma torneira quebrada, o casaco pendurado atris, o fio elétrico enrodilhando um ferro. Ver as coisas € que etam as coisas’ (CS, 111). 36 Em A cidade sitiada, a romancista acentua particu- larmente, gracas ao Angulo do distanciamento, essa rever- sao da experiéncia interna, objetificada para o préprio sujeito, como reflexo de uma realidade que lhe é estranha ¢ com a qual ele se identifica. Assim mostra-nos, de pre- feréncia, Luctécia Neves ocupando uma posic4o espetacu- Jar, de exterioridade cénica. Ora mocinha timida e medrosa, ora namoradeira, ora jovem casada e boa esposa, a perso- nagem compée todos esses papéis e, a eles entregue por uma natural simulacao, toma lugar numa cena onde é, ao mesmo tempo, atriz e espectadora. S6 ela ainda estava consciente demais para comecar 0 dis- farce, 0 vento entre os sobrados apressava-a... Afinal a es- colha de um chapéu a concentrou permitindo-Ihe pér-se a par do aposento. Abriu a gaveta e da escuriddo para 0 ar trouxe 0 chapéu mais trabalhado. Procurou com ateng¢éo um novo modo de usé-lo. Seu impulso era duro e jamais se quebraria em ldgrimas: com o chapéu enterrado até a testa olhou-se no espelho. Fazia-se inexpressiva e de olhos vazios como se este fosse 0 modo de se ver mais real. Nao chegava no en- tanto a atingir-se, encantada pela profunda irrealidade de sua imagem. Passou os dedos na lingua, umedeceu as sobran- celhas... entéo olhou-se com severidade (CS, 37-8) Mas essa composigao da individualidade aparente de que se reveste a personagem, segue um modelo, um pa- drao a imitar que o subtrbio lhe fornece. Depois de pron- ta, ‘‘sua figura se ocultaria sob emblemas e simbolos’’ (CS, 39). Ao lado de Perseu, Lucrécia Neves sera como as ruas, os sobrados, a praca, a Igreja e o Morro do Pasto, um as- pecto da paisagem de Sao Geraldo. ‘‘Em breve ela desvai- tava um pouco, sonhava em andar sozinha como um cao e ser vista sobre 0 morro: como o postal de uma cidade”’ (CS, 46). Tanto quanto a do namorado, a posi¢ao da pro- tagonista € espetacular e cénica. Sao ambos espectadores das coisas € a0 mesmo tempo atores em espetaculo, que se com- pletam pela possibilidade de serem olhados pelos outros no desempenho de um papel definido: N&o importava 0 que téo animados se diziam: eles mes- mos eram para serem vistos, como a cidade. E se alguém 37 os visse de longe enxergaria um saltimbanco e um rei. Cami- nhar depressa os alegrava — 0 rei sorria e era belo, o saltim- banco se esforcava em caretas de graca; havia um descon- trole mecanico no caminhar de ambos — eram uma s6 pes- soa com uma perna curta e outra comprida, a beleza do ra~ paz e 0 horror, a flor e © inseto, uma perna curta e outra comprida subindo, descendo, subindo. Por vezes 0 rapaz pa- recia andar para a frente e a moca ao redor dele dancava era quando ele sorria divino e puro, a Lucrécia Neves falava — e assim os outros viam (CS, 49) Morando numa casa ‘‘que parecia ornamentada com os despojos de uma cidade maior’’, a heroina e a mae con- vivem através de uma relacao de exterioridade, que o olhar reciproco dimensiona: As duas mulheres se tornaram sonsas e.sagazes, corren- do cheias de cuidado como ratos pela sala em penumbra e assumindo cardter desconhecido de dois personagens que elas jamais saberiam descrever mas que podiam pintar, ape- nas imitando-se (CS, 72) A protagonista € tao exibivel quanto uma estatua publica: Na posiggo em que estava, Lucrécia Neves poderia mes- mo ser transportada 4 praca publica. Faltavam-lhe apenas o sol e a chuva. Para que, coberta de limo, fosse enfim desa- percebida pelos habitantes e enfim vista diariamente com in- consciéncia. Porque era assim que uma estétua pertencia a uma cidade (CS, 88) Luctécia Neves, que copia o invisivel modelo de Sao Geraldo, é um emblema do espirito provinciano, uma pro- jec4o da cidade que prové o repertorio de suas dissimula- des. Sao Geraldo € um pouco mais do que esse espitito. De fato, a cidade que o progresso revolucionou exemplifi- ca menos um meio social definido em mudanca ? do que ? Divergimos nesse ponto de Assis Brasil quando afirma que em A cidade sitiade “‘Clasi- ce Lispector trabalha seus personagens em fungao de um meio social...''. (Clarice Lispee- ‘or. OrganizagOes SimGes, 1962, p. 60.) Falta nesse romance a forma de apreensio da realidade que sintetiza 0 subjetivo e o objetivo, através da correspondéncia entre um meio social determinado ¢ a experiéncia individual das personagens. 38 uma situacao genérica personificada. Nao tem A cidade si- tiada, enquanto crénica de um subirbio em transforma- cdo, o sentido de uma forma de vida completa, que integre a experiéncia individual dos personagens. E uma alegoria das mudangas no tempo dos individuos e das coisas que os rodeiam. Lucrécia Neves personifica essa abstrac4o ro- manesca *. “As abstragdes esto personificadas; por isso, em toda alegoria ha algo de romanesco."” (Borges, Das alegorias aos romances, em Nova antologia pessoal, Rio de Janeiro, Sabia, P. 228.) 3 A MACA NO ESCURO OU 0 DRAMA DA LINGUAGEM I a 4 se observou a ‘‘pouca importancia de que se revestem os falsos motores da aco na obra de CL”’ *,, co- mo em A magé no escuro, o ctime material do protagonis- ta, acontecimento basico em torno do qual o aparente en- redo desse romance se articula. Julgando ter assassinado sua mulher, Martim, um en- genheito, foge desespetadamente e chega a uma fazenda. Por ele attaida, a proprietaria da fazenda (Vit6ria), mu- Ther voluntariosa e solitaria, com quem mora uma prima vitiva (Ermelinda), aceita-o para trabalhos bracais. Entre © protagonista e-essas duas personagens cheias de frustra- Ges € conflitos, tao inquietas ¢ reflexivas quanto Joana de Perto do coragao selvagem e Virginia de O /ustre, format- * Eliane Zagury, Clarice Lispector e 0 conto psicol6gico brasileiro, em A palavra e os ecos, PetrOpolis, Vozes, 1971, p. 22 40 se-4 um singular triangulo amoroso, em que se reprodu- zem, numa-forma de comunicagao reticente e distancia- da, através de didlogos que separam em vez de unir, as relacdes de antagonismo ja encontradas naqueles dois pri- meiros romances. Para defender-se da seducdo do intruso, Vit6ria denuncia Martim a policia, que o procurava por tentativa de homicidio. Numa longa cena em que o cémi- co € o patético se misturam, o engenheiro entrega-se sem resisténcia aos policiais que vém busca-lo. Nisso se resume o enredo propriamente dito, que nfo € sendo um esque- ma de apoio da natracao, cujo objeto — a experiéncia in- terior do protagonista — foi polarizado pelo acontecimento determinante da sua fuga. O personagem foge duplamente: das conseqiiéncias do crime e do seu proprio passado. E na medida em que foge fisicamente, o crime se transforma num ato positivo de ruptura com a sociedade e a fuga, num movimento de evasio interior. Ele rejeita, juntamente com aquilo que foi, o cédigo moral que infringiu. Entrelagando, pois, a eva- sao fisica 4 psicolégica, a ago romanesca, que se desen- volye interna ¢ externamente como em O /ustre, descreve, no espaco € no tempo, singular trajetéria que acompanha a errancia do personagem. Podemos distinguir nessa tra- jetOria, entre a transgressdo inicial cometida e a final san- ¢4o do crime, as etapas de um itinerario, que Martim per- coffe, apds a ruptura com o passado e com a sociedade, a busca de si mesmo, de sua identidade pessoal. As etapas correspondem 4s trés partes do romance: a primeira ‘‘Como se faz um homem'’, que sucede ime- diatamente ao divércio com a sociedade, € a fase de isola- mento interior completo, de plena solitarizagao da cons- ciéncia, durante a qual 0 personagem, em meio aos rudes trabalhos do campo, reconhece a singularidade do seu ser individual; a segunda, ‘‘Nascimento do heréi’’, € a fase da reconstrucaéo de Martim como pessoa, quando ele, ja . ligado afetivamente a Vitéria e a Ermelinda, se faz herdi, capaz de altos sacrificios e destinado a desempenhar uma

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