Você está na página 1de 129

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


CENTRO DE EDUCAÇÃO, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
CURSO DE MESTRADO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE

HAITIANOS NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL: IDENTIDADES E NARRATIVAS


EM TRÂNSITO

ARMSTRONG DA SILVA SANTOS

Rio Branco, Acre


2014

1
 SANTOS, A.S., 2014.
SANTOS, Armstrong da Silva. Haitianos na Amazônia Sul-Ocidental: identidades e narrativas em
trânsito. Rio Branco, 2014. 129f. Dissertação (Mestrado em Linguagem e Identidade) - Pró-Reitoria de Pós-
Graduação e Pesquisa, Programa de Mestrado em Letras - Linguagem e Identidade, Universidade Federal do
Acre, Rio Branco, 2014.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC

S237h Santos, Armstrong da Silva, 1978-


Haitianos na Amazônia Sul-Ocidental: identidades e narrativas em
trânsito / Armstrong da Silva Santos. -- Rio Branco: UFAC/Pró-Reitoria de
Pós-Graduação e Pesquisa, Programa de Mestrado em Letras - Linguagem
e Identidade, 2014.
129f.: il.; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras, Área de
concentração: Identidade, linha de Pesquisa: Cultura e Sociedade.
Inclui bibliografia
Orientador: Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque

1. Diáspora haitiana. 2. Narrativas identitárias. 3. Experiências de


tradução. 4. Apropriação. 5. Burla. Título.

CDD: 325.2097294

Agostinho Sousa Crb11-547

Rio Branco - Acre


2014

2
ARMSTRONG DA SILVA SANTOS

HAITIANOS NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL: IDENTIDADES E NARRATIVAS


EM TRÂNSITO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da
Universidade Federal do Acre, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Letras: Linguagem e Identidade, Área de
Concentração: Identidade, Linha de Pesquisa:
Cultura e Sociedade, sob a orientação do
Professor Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.

3
ARMSTRONG DA SILVA SANTOS

HAITIANOS NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL: IDENTIDADES E NARRATIVAS


EM TRÂNSITO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da
Universidade Federal do Acre, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Letras: Linguagem e Identidade, Área de
Concentração: Identidade, Linha de Pesquisa:
Cultura e Sociedade, sob a orientação do
Professor Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________
Professor Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque (Universidade Federal do Acre)
Presidente

_______________________________________________________________Pro
fessor Dr. João Carlos Ribeiro de Souza (Universidade Federal do Acre)
Membro
_______________________________________________________________
Professora Dr.ª Maria Antonieta Antonacci (PUC - São Paulo)
Membro externo

Aprovada em 29 de setembro de 2014

RIO BRANCO - ACRE

4
AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal do Acre, instituição em que tive a oportunidade de


cursar as disciplinas concernentes ao Programa de Pós-Graduação em Letras:
Linguagem e Identidade.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Acre – FAPAC, pelo apoio
financeiro concedido por intermédio do Edital 004/2013.
Aos homens e mulheres provenientes do Haiti que, com suas presenças,
palavras e gestos colaboraram para que pudéssemos compreender um pouco
melhor as diásporas de ontem e hoje através de experiências transformadas em
narrativas.
Aos docentes do Programa de Mestrado pela preocupação que tiveram
com o andamento desta pesquisa e pelos apontamentos que, se não foram
diretamente incorporados a esta dissertação, serviram de base para problematizar
significados presentes no deslocamento de afrocaribenhos para a Amazônia Sul-
Ocidental.
Aos professores membros da banca de qualificação e defesa, uma vez que
suas sugestões e críticas colaboraram no encaminhamento de questões já
sinalizadas, mas pouco exploradas no texto bem como na ampliação das
perspectivas de análise que se tornaram pontos fundamentais para o estudo que
ora apresentamos.
Aos colegas de curso com quem tive a oportunidade de conviver e discutir
sobre vários assuntos. Companheiros que depositaram em mim uma confiança
muito maior do que aquela que eu mesmo possuía. Sentimento sem o qual não
poderia ter concluído esta etapa de formação.
Aos meus pais Maria José da Silva Santos e José de Souza Santos, seres
humanos que, de maneira muito distinta, estão presentes nas minhas formas de
perceber e analisar o mundo.
A meus irmãos Shirley, Franklin e Jacques pelo incentivo inclusive nos
momentos de devaneio e desorientação e me mostraram como deixar-se perder
pode ser um passo na direção do reencontro.

5
A minha companheira Silvia pelas incontáveis horas de afetuoso auxílio e
compreensão sem os quais estudos como estes e mesmo vidas não seriam
possíveis.
A meu filho Artur, companheiro de campo e praticante da linguagem
universal da compreensão, por ter me ensinado que quando desejamos
entendimento, o que menos importa é o idioma praticado pelos interlocutores.
A meu orientador Gerson Albuquerque, pela encarnada demonstração
prática e teórica de que a luta por justiça social é necessária e que o transcorrer
dos anos não significam necessariamente envelhecimento, se as causas
humanas continuam na ordem do dia.

6
RESUMO

Entre os anos de 2010 e 2014, milhares de homens e mulheres provenientes do Haiti ingressaram
no território brasileiro através das cidades acreanas que fazem fronteira com Bolívia e Peru. Neste
transcurso, no diálogo com a recepção e com os discursos formulados sobre suas presenças,
esses sujeitos elaboraram formas diferenciadas de identificação. Neste estudo, buscamos
compreender como as ações (ou omissões) oficiais e não oficiais repercutiram/repercutem na vida
dos que vivenciaram tais experiências socioculturais em meio aos conflitos e tensões do debate
jurídico/linguístico que gira em torno da “legalidade” de suas presenças/permanências no Brasil.
Neste sentido, realizamos coleta e análise de entrevistas, reportagens de jornais e diversificados
tipos de outros documentos alinhavados em uma proposta de reflexão sobre as narrativas
produzidas sobre (mas também por) esses sujeitos diaspóricos e os efeitos da difusão dessas
narrativas na modificação das maneiras através das quais grupos de haitianos dialogam com a
realidade. As elaborações identitárias e suas relações com a diáspora haitiana foram discutidas
com base nas proposições de Stuart Hall, Paul Ricoeur, Hannah Arendt, Michel de Certeau e
Édouard Glissant, autores fundamentais para compreendermos algumas dimensões das violências
e dos papéis destinados a populações de afrodescendentes no continente americano nos dias
atuais. Esses e outros autores contribuíram para estabelecermos uma reflexão a respeito das
elaborações realizadas por esses sujeitos, visando a superação de centenárias estratégias de
exclusão.

Palavras-Chave: Diáspora haitiana. Narrativas identitárias. Experiências de tradução.


Apropriação. Burla.

RESUMEN

Entre los años 2010 y 2014, miles de hombres y mujeres de Haití inscritos en Brasil a través de las
ciudades de Acre limítrofes Bolivia y Perú. En este supuesto, el diálogo con la recepción y los
discursos pronunciados sobre su presencia, estos chicos han desarrollado diferentes formas de
identificación. En este estudio, hemos tratado de entender cómo resonaban las acciones (o
inacciones) oficiales y no oficiales han repercutido en las vidas de aquellos que han
experimentado tales experiencias socio-culturales a través de los conflictos y las tensiones del
debate jurídico/lingüístico que gira alrededor de la "legalidad" de su asistencia/se queda en Brasil.
En este sentido, llevamos a cabo la recolección y el análisis de las entrevistas, informes de prensa
y otros diversos tipos de documentos clavados en una propuesta a la consideración de las
narrativas producidas sobre (pero también) estos sujetos de la diáspora y los efectos de la difusión
de estos relatos en la modificación de las formas que grupos de haitianos diálogo con la realidad.
Las elaboraciones de identidad y su relación con la diáspora haitiana se discutieron basan en las
propuestas de Stuart Hall, Paul Ricoeur, Hannah Arendt, Michel de Certeau y Édouard Glissant,
autores clave para entender algunas de las dimensiones de la violencia y las funciones para las
poblaciones de ascendencia africana en continente americano hoy. Estos y otros autores han
contribuido a establecer una reflexión sobre las elaboraciones realizadas por estos sujetos, con el
objetivo de superar siglos de estrategias de exclusión.

Palabras clave: La diáspora haitiana. Narrativas de identidad. Experimentos de traducción.


Apropiación. Burla.

7
SUMÁRIO

Considerações iniciais.......................................................................................09

Capítulo I
Do Haiti ao Acre: encontros e desencontros em narrativas de trabalho e
amizade.......................,.....................................................................................15

1.1 - Da viagem e da “odisseia”: o retorno como promessa..............................31

Capítulo II
A imagem do “outro”: a alteridade questionando o “Homem Cordial”................59

2.1 - O homem, a mulher e o coiote: políticas na edificação da “vida


nua”....................................................................................................................75

Capítulo III
Experiências de tradução: o “outro”, a enunciação e a burla............................92

3.1 - Narrativas em trânsito: refúgios e fronteiras entre o visível e o


invisível............................................................................................................106

Considerações finais........................................................................................119

Fontes..............................................................................................................123

Referências.….................................................................................................126

8
Considerações iniciais

A repercussão causada pela chegada de centenas de imigrantes haitianos


à Amazônia acreana e outras áreas nas fronteiras Brasil-Peru-Bolívia, entre os
anos 2010-2014, colocaram em cena sujeitos e questões sociais de significativa
importância.
Os milhares de homens e mulheres que alcançaram as cidades de
Brasileia, Assis Brasil, Epitaciolândia e Rio Branco, no estado do Acre, não
receberam uma atenção que visasse compreender e minimizar seus problemas a
não ser, de algumas instituições religiosas e pequenos grupos de moradores e
alguns administradores dos municípios onde ficam localizadas aquelas cidades,
na região do alto rio Acre.
Em virtude dessa desatenção e em decorrência da compreensão de que as
histórias individuais dessas pessoas, elaboradas no transcurso realizado entre
diferentes regiões do planeta, estão ligadas por um contexto narrativo que separa
grupos humanos através de demarcações arbitrárias de espaços, tempos e
culturas instigando a disputa, a exclusão e a segregação de parcelas significativas
de mulheres e homens sob a alegação de raça, credo, etnia, nacionalidade, entre
outros, nos dispusemos a realizar o presente estudo.
O que mudou desde que “o Haiti nos bateu à porta”? Será que ele ou seus
“naturais”1 que ingressaram no Brasil através do território Acreano deixaram de
ser distantes, estranhos a nós? Como se constrói simbólica e materialmente essa
imagem do “outro”? Quem é esse “outro” que evito conhecer, que figura como
estranheza e que “permito”, através de um cômodo afastamento, que seja
transformado em mão de obra para o funcionamento dos países que os tratam
como excluídos? Como esses sujeitos percebem suas condições individuais e
também coletivas de refugiados? Quem seriam eles? Onde ficariam suas
“pátrias”? Quais seriam suas histórias?
Investir em uma pesquisa como esta, em nossa maneira de ver, significa
tentar compreender, a partir das narrativas construídas por e sobre haitianos, os
porquês da escolha do Acre como rota de entrada no Estado brasileiro; dialogar

1
No presente estudo, termos que denotem naturalização de formas classificatórias e que,
portanto, não são obras da natureza, mas da criação humana, receberão o uso de aspas.

9
com as dificuldades e/ou facilidades encontradas nos caminhos que
ligam/separam o Haiti do Brasil; compreender como as ações (ou omissões)
oficiais e não oficiais repercutiram/repercutem na vida dos que
vivenciaram/vivenciam tais experiências socioculturais em meio aos conflitos e
tensões do debate jurídico/linguístico em torno da “legalidade” de suas
presenças/permanências no Brasil, na condição de “refugiados humanitários” ou
“residentes laborais”.
Estudar o processo de chegada de mulheres e homens haitianos na
Amazônia acreana e o tratamento dispensado aos mesmos, desde o ano de
2010, torna-se relevante para compreendermos algumas dimensões das
violências e dos papéis destinados aos grupos humanos e populações de
afrodescendentes no continente americano nos dias atuais.
Com base na coleta e análise de entrevistas, reportagens de jornais e
diversificados tipos de outros documentos propomos uma reflexão sobre os
discursos que se estabelecem sobre (mas também por) esses sujeitos
diaspóricos2 e os efeitos de sua difusão na modificação das maneiras através das
quais diferentes grupos de haitianos passaram a interagir e se identificar. Nessa
direção, partimos de uma noção de cultura e de identidade cultural que, em
consonância com a perspectiva de Stuart Hall não se trata de uma questão de ser,
mas de se tornar.3
Como tem ocorrido a produção de narrativas identitárias entre imigrantes
haitianos no Acre? De que forma os discursos construídos sobre e por esses
imigrantes têm agido na elaboração dessas narrativas? A recepção e/ou interação
com esses discursos na vida cotidiana têm afetado as visões dos haitianos sobre
si mesmos? As diversas formas de tradução cultural, presentificadas e pensadas
a partir das narrativas produzidas por e sobre imigrantes haitianos no Acre,
caracterizam, em nossa pesquisa, o empenho em responder aos
questionamentos apresentados acima. Nessa direção, foram de fundamental
importância as análises realizadas por Mary Pratt (1999), acerca dos conceitos de

2
O conceito de diáspora aqui empregado acompanha as proposições de Stuart Hall,
principalmente no texto Da Diáspora: identidades e mediações culturais em que o autor faz um
elaborado estudo dos impactos ocasionados pelo trânsito populacional e as consequentes
reelaborações identitárias dos participantes dessa movimentação. Sobre isso ver HALL, Stuart. Da
Diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
3
Hall, Da diáspora, 2003.

10
zona de contato e transculturação, compreendendo locais e práticas de
apropriação, tradução e enunciação efetivadas por indivíduos que experienciam
situações sociais assimétricas, mas que orientam, por intermédio da produção
semântica, as interpretações sobre si, compartilhando campos de produção
discursiva em que a visão do “outro” é, ao mesmo tempo, problematizada e
produzida na representação do “eu”.
Partimos de uma postura metodológica baseada, ao mesmo tempo, na
coleta de registros e na construção de significados presentes nas enunciações
elaboradas sobre e pelos depoentes. Significados produzidos a partir das
experiências e interpretações vivenciadas no momento presente, na acepção de
Walter Benjamin (1987).
Não obstante, compreendendo que a plena reconstrução do vivido “tal qual
ocorreu” é algo impossível, resta-nos a tentativa de capturar um pouco da
transitoriedade do real, procurando construir uma reflexão que passe pelas
elaborações simbólicas do próprio pesquisador (além das reconstruções feitas por
aqueles que narram suas experiências) percorrendo o trabalho de produção do
presente estudo.
O que visamos foi perceber como se organiza(m) o(s) discurso(s) sobre e
do(s) outro(s), os processos de elaboração da alteridade, sua mediação com o
espaço, o tempo e a cultura. Procuramos analisar os discursos de
negação/assimilação da diferença, as maneiras pelas quais esses mesmos
processos de negação dos outros acabam confirmando sua existência e
possibilitando diálogos, tensões e conflitos nas experiências cotidianas.
A opção pela documentação oral advém de suas possibilidades de nos
colocar em contato com experiências, modos de vida, significados e
representações construídas por aqueles que vivenciaram e vivenciam processos
de enraizamento, desarraigamento, e, nesses processos, reconstroem suas
narrativas identitárias (RICOEUR, 1994) se afirmando de diferentes maneiras,
produzindo outras representações, (re)significando culturas.
Entendemos que utilizar fontes orais, imagéticas e textos escritos sem
desperceber as relações entre o que se diz, como se diz e o que se faz4, nos

4
Ver Memória e Relato: a Escuta do outro, de Teresa Caldeira, Revista do Arquivo
Municipal, 200, DPH do município de São Paulo, 1991.

11
permite construir uma análise mais rica e aprofundada no que concerne à própria
complexidade inerente ao tema. É através da discussão da categoria cultura que
vislumbramos diversas possibilidades abertas à pesquisa, na medida em que é
nas manifestações culturais que se materializam símbolos, signos, práticas,
valores, costumes e visões de mundo de homens e mulheres que habitam e
constroem cotidianamente o espaço de uma fronteira vivida em suas relações de
afetividade, identificação e/ou conflito. Neste sentido, destacamos as análises
feitas por Stuart Hall, que nos fornecem alguns fundamentos para pensarmos o
multifacetado conceito de cultura apropriado e presente neste trabalho.
Podemos elencar ainda alguns dos autores, além dos já mencionados, que
permeiam toda nossa escrita uma vez que realizaram inspiradoras análises sobre
alteridade, posicionamento e participação política, modernidade, exclusão social e
construção de identidades. Dentre eles, Paul Gilroy (2001), que procura relacionar
modernidade ao conceito de diáspora negra, e, nessa relação, aborda as
identidades a partir do fenômeno da “dupla consciência”; Hannah Arendt (1989),
por compreender o conceito de “pluralismo” como elemento fundamental na
inserção do outro às práticas e decisões políticas.
Outra importante referência para a elaboração desta pesquisa pode ser
encontrada nas proposições de Paul Ricoeur (1994; 2000), filósofo do qual
recolhemos o conceito de “identidade narrativa”, um interessante caminho em que
o autor relaciona espaço, tempo e reflexão na elaboração dos enredos que
compõem as histórias individuais e coletivas dos seres humanos, fornecendo-lhes
critérios de identificação através da função narrativa.
No que diz respeito aos nossos sujeitos da pesquisa, além dos haitianos
que dominam o português (grupo minoritário), privilegiamos aqueles que fazem
uso do espanhol como “língua de contato”, uma vez que não dominamos nem o
francês nem o crioulo haitiano. Mesmo não figurando como narradores diretos de
suas experiências, alguns desses sujeitos (que não falam nem o português nem o
espanhol) também puderam se expressar seja pela tradução de suas falas
(realizadas por compatriotas) ou por suas atividades dentro e fora dos grupos.
A pesquisa foi realizada nos municípios acreanos de Assis Brasil, Brasileia
e Epitaciolândia, que fazem fronteira com as repúblicas da Bolívia (Cobija) e Peru
(Iñapari). Também pesquisamos em Rio Branco, capital do estado do Acre. Esses

12
quatro municípios receberam atenção especial por serem, os três primeiros, as
principais rotas de ingresso de haitianos no Brasil através do Acre e o último, por
ser a capital do estado, constituindo-se, dessa maneira, em polo de atração
dessas pessoas tanto no que tange à busca por trabalho quanto ao deslocamento
para outros estados do território nacional brasileiro.
É interessante destacar que, nas falas e nas maneiras de proceder dos
haitianos em trânsito, figuram outras demarcações de fronteiras e definições
espaciais que muitas vezes divergem daquelas enunciadas pela cartografia que
definiria oficialmente onde tem início e em que ponto finalizariam os Estados. Há
outra cartografia apresentada nas experiências transformadas em narrativa por
esses indivíduos. Em tais narrativas, muitas vezes, as fronteiras perdem os
significados ou a estes são agregados mais alguns, lastreados pelas afetividades
construídas no percurso sobre o qual somente temos uma dimensão a partir do
olhar em perspectiva, lançado sempre pela interpretação feita no momento
presente (BENJAMIN, 1987). Por intermédio das narrativas (palavras e ações)
desses sujeitos, novos mapas são desenhados e os espaços (re)significados. As
rotas seguidas por este estudo tentam acompanhar os direcionamentos traçados
pelas narrativas produzidas e analisadas.
Para a apresentação desta dissertação adotamos a seguinte divisão
temática entre os capítulos: no capítulo I, Do Haiti ao Acre: encontros e
desencontros em narrativas de trabalho e amizade, discutiremos questões
relativas aos processos migratórios de haitianos na Amazônia Sul-Ocidental,
elencando algumas das implicações relacionadas às formas de acolhida
experimentadas e ao papel desse tratamento na constituição de narrativas que
relacionam trabalho e amizade como elementos de integração desses indivíduos
no território brasileiro. Fazemos isso, procurando realizar uma articulação
conceitual entre os processos ligados ao tema em estudo e as escolhas adotadas
por mulheres e homens provenientes do Haiti, para se identificar e pleitear
direitos, nos aproximando daquilo que Stuart Hall discute como “adaptabilidade
identitária” ou “identidade preferencial” (HALL, 2003, p. 66). Procedemos desta
Forma na tentativa de compreender as maneiras pelas quais os indivíduos
pensam, repensam, constroem e reconstroem seus fazeres cotidianos, suas

13
ações enquanto seres sociais de forma flexível e em estreita relação com as
diversas realidades vivenciadas por eles.
No segundo capítulo, A imagem do outro: a alteridade questionando o
“homem cordial”, fazemos um diálogo com falas de imigrantes haitianos no Acre,
em uma tentativa de reconstrução do vivido através das interpretações e
expressões dos mesmos, destacando o papel desempenhado pelos interlocutores
nos processos de elaboração das narrativas identitárias. Nesse sentido,
atentaremos para as formas de tratamento e acolhida experimentadas tanto no
percurso para o Brasil quanto nos municípios do Acre, buscando perceber como
essas experiências, interpretadas e narradas, interferem nas formas de
identificação dos interlocutores.
No terceiro capítulo, Experiências de tradução: o outro, a enunciação e a
burla, discutiremos como as práticas cotidianas são reorientadas em função das
normas e exigências organizadas para o gerenciamento da vida no interior dos
abrigos para imigrantes no Acre, destacando as táticas utilizadas por haitianos
para burlar essas normas, sem, no entanto, abrir mão dos benefícios
concernentes a elas. Além disso, analisaremos algumas das repercussões
(práticas e discursos) ocasionadas pela transferência organizada de haitianos do
abrigo construído em Brasileia para os de Rio Branco e, destes (de forma
acelerada) para outros estados da nação, notadamente, São Paulo.

14
Capítulo I

Do Haiti ao Acre: encontros e desencontros em narrativas de trabalho e


amizade

O conjunto de transformações ocasionadas pela globalização econômica e


pelas novas tecnologias de transporte, informação e comunicação geram a
sensação de “compressão do espaço pelo tempo” (HARVEY, 1993), nos
possibilitando o acesso a narrativas identitárias provenientes dos mais distintos
recantos do mundo. Isso não significa que em outras épocas, esses contatos não
ocorressem (GLISSANT, 2005), a diferença é que, na atualidade, os choques e os
intercâmbios culturais se dão com uma velocidade nunca experimentada, por
isso, as interações, tensões e conflitos ocasionados por esses encontros, tornam-
se, em nossa época, mais acentuados e complexos.
Essas tensões são potencializadas nas áreas de fronteira política dos
Estados Nacionais, quanto mais em decorrência de algum evento que agrave a
situação vivenciada por populações de países ou regiões distanciadas dos
benefícios da “economia global”, cujos sujeitos nutram em relação a determinados
territórios, laços de afetividade que, na medida de suas necessidades e/ou
possibilidades, tentam satisfazer. Na ânsia por inserção nesse universo de
benefícios “prometidos”, emigram, ficando mais visíveis (como imigrantes) para
quem vive nos países de destino5.
No caso dos haitianos, a destruição e as mortes causadas pelos sismos de
janeiro de 2010, funcionam como fatores de repulsão, acelerando fluxos
migratórios. Por outro lado, o crescimento econômico brasileiro, a presença e a
atuação do Brasil junto às forças da ONU naquele país6 e a apresentação do
“Brasileiro” no cenário mundial, como “um povo acolhedor e alegre” têm agido
como fomentadores do desejo e da procura pelo ingresso dessas pessoas no
5
A ideia de “país destino” está intimamente relacionada à aquisição de trabalho
remunerado, sem o qual emigração tende a seguir, deslocando o “destino” para algum ponto mais
à frente.
6
Desde 2004, o Brasil lidera a Missão da Organização das Nações Unidas Para
Estabilização do Haiti (MINUSTAH).

15
território nacional do Brasil. Em meio a essa busca, sucedem diversas tentativas
de transformação destes indivíduos, desde o Haiti, em mão de obra barata por
uma série integrada de processos práticos e discursivos de desumanização que
visa exatamente esse resultado.
Nos últimos meses de 20107, pequenos grupos de haitianos começaram,
com maior intensidade, a penetrar no Brasil através da Bolívia e do Peru8,
respectivamente pelos municípios acreanos de Brasileia e Assis Brasil. Com o
aumento do número desses indivíduos que alcançavam aqueles municípios,
houve, nos primeiros meses de 2011, por parte do Governo Federal Brasileiro,
uma restrição do acesso à documentação necessária à legalização de suas
estadias, permanências e/ou circulação em terras brasileiras. É justamente nesse
ponto que a presença haitiana no Acre adquire maior visibilidade em reportagens
de TV, jornais, blogs e sites, que veiculam posicionamentos oficiais e extraoficiais
sobre a questão.
Quando o acesso à documentação foi restringido, cresceu o número de
haitianos a ocupar, dentro de suas possibilidades, espaços públicos e privados,
principalmente do município de Brasileia. O “aparecimento” dos imigrantes
haitianos como “problema” a ser “sanado” se evidencia exatamente em função
das tentativas de fazer com que aquelas pessoas se mantivessem fora do campo
de visão. É o “represamento” do processo imigratório que gera a expressão
numérica preponderante para a visibilidade, uma vez que não se falava em
haitianos no Acre antes desse período, apesar deles existirem.
A confirmação trazida pela incidência do olhar e pela posterior enunciação
sobre essa presença inquestionável do “outro”, nos permite discutir a relatividade
dessa situação. Chegar e partir é uma questão de perspectiva, sendo que a meta
anunciada é a da integração mediada pelo emprego e pela aquisição das
condições necessárias para auxiliar os familiares que permaneceram no Haiti.
Caso o objetivo não seja alcançado, o ponto de chegada pode ser deslocado para

7
Antes deste ano, existem relatos de que pequenos grupos de haitianos já se dirigiam para
o Brasil utilizando essas mesmas rotas, o que implica ser equivocada a ideia veiculada pela
imprensa nacional de que esta imigração teria se iniciado com os terremotos que atingiram o Haiti
em janeiro de 2010. Entre nossos depoentes encontramos relatos dando conta dessas migrações
desde 2009.
8
Essa imigração também ocorre através do município de Tabatinga no Amazonas e, em
escala muito mais restrita, através das vias aéreas e terrestre distribuídas pelo restante do país.

16
algum lugar “além da próxima fronteira”: do bairro, da cidade, do estado, do país,
etc.
A presença haitiana no Acre, crescente desde o final do ano de 2010, torna
evidente a complexidade desses encontros que fazem sobressair as diferenças
também nesta parte da Amazônia Sul-Ocidental. Por outro lado, ela torna
possível, a partir das práticas e dos discursos, refletir sobre a dinâmica dessas
vivências e as interpretações elaboradas no contato com os brasileiros, na relação
que estabelecem com o tempo e com as atividades que desenvolvem e/ou se
propõem a desenvolver no Brasil.
O contato com pessoas provenientes de países sobre os quais só tínhamos
ouvido falar vagamente, com hábitos alimentares, idiomas diferentes, além de
práticas religiosas sobre as quais conhecemos apenas, e quando muito, os
nomes, se tornam estranhamente presentes, atestando uma verdade há muito
esquecida: a de que “não estamos sós”!

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A


ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para
os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e
variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para
definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua
conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de
significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar
significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles
constituem nossas “culturas”. Contribuem para assegurar que toda ação
social é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam ou
comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação
(HALL, 1997, p.16).

A presença aparentemente “alienígena” de pessoas praticantes de “ações


significativas” tão diversas daquelas às quais estamos habituados, traz à baila a
problemática de lidar com a alteridade, não apenas com a que viria de fora, mas
também com aquela que estaria no interior de nossas próprias práticas culturais,
desconstruindo a produção significativa de nossa mesmidade, instituímos novos
sentidos para nossa identidade a partir da ação social.
Genericamente denominados de haitianos, sujeitos sociais com as mais
variadas trajetórias, como já adiantamos, têm adentrado o território nacional
brasileiro através dos municípios acreanos de Assis Brasil, Brasileia e
Epitaciolândia. São centenas de homens, mulheres e crianças que articulam seus
modos de agir na interpretação do vivido e reelaboram suas experiências através

17
da memória transformada em narrativa (BENJAMIN, 1987, p.197-221). Dentre
esses sujeitos podemos encontrar pessoas que têm atuado profissionalmente
como professores, técnicos em refrigeração, mestres de obras, carpinteiros,
serralheiros, estudantes, pastores religiosos, agricultores, etc. Sujeitos que falam
das atividades laborais que desenvolviam no Haiti ou em outros países, indicando
possibilidades de continuar trabalhando (no que puderem) também aqui no Brasil.
De modo semelhante à sua identificação como o que seria um grupo
homogeneamente constituído, eles são denominados e se autodenominam
haitianos e são, em grande medida, visualizados como mão de obra,
principalmente utilizável na construção civil brasileira.
Alguns deles, notadamente os homens9, falam de suas experiências na
República Dominicana, onde aprenderam o Espanhol; tratam dos vários anos que
viveram por lá, das dificuldades em se conseguir o visto de permanência naquele
país e da necessidade de continuar mudando em busca de melhoria de vida.
Outros abordam os horrores ocasionados pelo tremor de 12 de Janeiro de 2010 e
agradecem por não terem perdido nenhum parente na catástrofe. Alguns já não
tiveram tanta sorte, perderam casa, carro, loja, parentes e amigos durante o sismo
e visam, através da imigração, “reconstruir o que se perdeu”10.
Suas falas são repletas de contradições, de “conformismos” e “resistências”
(CHAUÍ, 1986) que se relacionam às lides cotidianas repercutindo nas maneiras
de perceber, identificar, agir e reagir. Neste sentido, as narrativas que são
constituídas a respeito dos espaços de convivência ou “zonas de contato”
(PRATT, 1999) entre haitianos e brasileiros incidem significativamente sobre as
identidades culturais dos praticantes dessas “zonas”11.

9
Em razão das atividades laborais desenvolvidas em diversos países, haitianos do sexo
masculino aprenderam outros idiomas enquanto que as mulheres haitianas, em sua esmagadora
maioria, falam o creole e o francês, línguas oficiais do Haiti. Esse fato, por si só, evidencia uma
série de representações de masculinidade feminilidade que orientam as práticas desses sujeitos.
10
Fala recorrente entre os haitianos no Acre e que engloba desde as questões econômicas
e familiares até a necessidade de reorganização mais geral do próprio Haiti.
11
No texto Operários, a moradia e a cidade no século XIX, Perrot (1988), analisa as
apropriações efetivadas por praticantes das cidades no século XIX, para exercício de liberdades e
fugas em relação ao ordenamento estabelecido nas áreas urbanas centrais. Ao se retirarem para
as margens das cidades, para antigas fortalezas e muros criados a princípio para a manutenção
da ordem, essas pessoas criam ali espaços de subversão, as chamadas “zonas”. Neste estudo
essas áreas são pensadas como zonas de trocas e execícios de liberdade. Ver PERROT, Michelle.
Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
pp. 101-127.

18
Um desses sujeitos, o haitiano Tervenkus Petit, 37 anos, casado com a
haitiana Ãnia Silvalien, com quem teve dois filhos (o mais novo nascido no Brasil),
um de oito anos e o outro seis meses à época, nos falou, em entrevista, de suas
expectativas; da recepção oferecida por instituições do Brasil e da relação
estabelecida com o território e as pessoas desde sua “chegada” ao Acre:

(…) fomos chegar em Brasileia três horas de madrugada. Aí eu cheguei


lá na praça de frente, aí ele, ele, ele mostrou pra nós aonde tava os
outros haitiano, num hotel que tem na frente da praça. Aí nós entramo lá.
Aí, aí depois é teve reunião todo dia com um grupo, não sei aonde vinha,
daonde eles vieram, se era de Brasília, não sei! Mas todo dia era reunião
sobre reunião (pausa) é entrevista, sobre entrevista, direto! Aí depois
passei três meses lá em Brasileia pra arrumar os documentos, CPF,
Carteira de Trabalho, passei três meses lá. Aí de três messes saí de lá
pra chegar até aqui em Rio Branco, até hoje tô aqui, por enquanto,
trabalhando (pausa). Demorei três meses porque era muito, é e era mais
devagar a documentação, agora é mais ligeiro né? É mais rápido agora,
mas naquela época era mais, um pouco mais complicado e era mais
devagar. E aqui eu fiquei, trabalhando, até hoje, num (pausa) teve, ééé,
intenção de sair daqui. O Português? Trabalho? A minha Profissão? Não
eu saí de lá com ela. Eu trabalhava de, de pedreiro desde, da República
Dominicana. Eu morava lá, estudei lá também, aí eu saí de lá com essa
(pausa/procurando a palavra) profissão de trabalho de pedreiro. Eu sou
técnico também de refrigeração, só que faz tempo que eu não trabalho
mais. Eu tô mais apegado na construção porque é mais fácil de arrumar
e dá mais dinheiro. Mais fácil, e também dá mais dinheiro (...) Bom, na
verdade é quando eu cheguei aqui em Rio Branco eu, eu fui, eu fui
atendido peloooo. Como se chama aquele coisa é (pausa) deixa ver,
esqueci o nome éé, é as pessoas que davam, que, que sempre dá apoio
pras pessoas que vêm de fora? Não conhece ninguém? Você sabe onde
que fica? Não tem a Polícia é Federal, que fica por éé, Assistência
Social! Eu fui atendido pela Assistência Social, mas atendido não por
eles mesmo não, é por (pausa) teve as pessoas que, que que foi, que
arrumou o serviço pra nós, que é, é Maria da Luz. El, Ela trabalhava na
Assistência Social, agora ela, ela passou pra (pausa), ela passou pra
Direitos Humanos. Conhece né!? Ela foi uma pessoa ótima! Até hoje eu,
eu agradeço a ela porque foi ela que arrumou serviço pra mim no Araújo.
Até hoje tô no Araújo, com dois anos. Até hoje ela ficou sendo amiga da,
da gente. Ela foi uma pessoa ótima, não só pra mim, pra todos os
haitiano que chegou aqui no Brasil. Ela deu muito apoio, mas o primeiro
que eu ficava hospedado foi lá no, no JOCUM. Ouviu falar da Igreja da
Batista? Ele têm um (pausa) é, lá só é um local que ela coloca pra, pra
atender pessoas que não têm onde ficar, por um tempo, eles chamam
“JOCUM”. Fica perto da OCA, do lado! Eu acho que já foi vendido,
porque lá eu tô vendo uma construção que fizeram lá. Ma eles não tão
mais lá, mas tem um ou dois, entendeu? Eu fui atendido por esse grupo
(TERVENKUS PETIT, entrevista, 02/06/2013, Rio Branco-AC).

No Brasil há quase dois anos no momento da entrevista, Tervenkus Petit


nos oferece uma referência a partir da qual podemos perceber várias formas de
identificação elaboradas no percurso, refeito através da memória, do Haiti ao
Brasil. Em uma narrativa pautada pelas experiências de trabalho vivenciadas
19
principalmente na República Dominicana, ele nos conta de sua opção pela
construção civil, apesar de ser também técnico em refrigeração. Ele explica como
o acesso ao trabalho remunerado “mais fácil” de conseguir e que “dá mais
dinheiro” se tornou fator preponderante para essa escolha.
A profissão exercida por ele desde a República Dominicana se torna eixo
de identificação, no entanto, não é como pedreiro que Tervenkus Petit se
identifica. Ele afirma que trabalha “de pedreiro” e logo em seguida diz que “é”
técnico em refrigeração. A fórmula escolhida por Tervenkus Petit, para falar do
trabalho que tem exercido, pode sugerir certa preferência em relação à lida com
refrigeradores se comparada com a atividade de pedreiro. Preferência suprimida
pelas necessidades objetivas de existência que o fazem ficar “mais apegado na
construção”.
Mais uma forma de identificação que figura no relato é em relação ao
espaço, apresentado como pertencente a outros (territórios). Ao falar de sua
“chegada”, Tervenkus Petit se assume enquanto estrangeiro e faz isso quando lhe
são indicados e também reconhecidos os “outros haitianos” que, como ele,
haviam “chegado” à Brasileia. Como na poesia de Patativa do Assaré12,
Tervenkus Petit não reconhece as paisagens familiares que lhe ofereceriam a
segurança do pertencimento, “tudo é diferente, do carro ao torrão”13, e, em meio a
esse estranhamento, ele reconhece a si e aos demais haitianos como
“estrangeiros”, que podem, nesses primeiros contatos com o “ambiente estranho”,
servir de apoio mútuo.
Aqueles que “chegam”, passam por “rituais” (oficiais e não oficiais) de
identificação (DAMATTA,1997). Eles estão reconfigurando suas “narrativas
identitárias” (RICOEUR, 1994) a partir das situações em que estão; das relações
estabelecidas com o local (espaço e população) e através de aparatos
jurídico/linguísticos, que os identificam como imigrantes, haitianos, trabalhadores,
negros, pobres, necessitados, etc. “Chegar”, nesse sentido, representaria esse
estado de coisas vivenciadas pelos indivíduos enquanto calculam o quanto da
meta inicial de “construir a vida”, foi realizada. Esse cálculo, inscrito na realidade

12
A poesia trata da situação experimentada por sertanejos nordestinos durante os longos
períodos de seca e da necessidade de migrar. Ver ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto
cá. Petrópolis: Vozes, 1978.
13
Ibid.

20
da vida vernácula, incide sobre as formas de identificação desses sujeitos que
falam do sendo, apresentando-o como o ser. As necessidades comunicativas
põem freio no movimento e o apresentam como estanque e limitado para discorrer
sobre ele.
Os “chegantes” são transformados, por esses mesmos aparatos e na
interação com eles, em “legais” ou “ilegais”. Seguindo uma lógica binária e
limitada, as diferenças são rapidamente apresentadas como ameaças que
legitimariam ações visando a restrição das liberdades de circulação, confinando
esses sujeitos a espaços em que a morosidade da espera pelos documentos cria
“depósitos” de uma valiosa, mas barata, mão de obra pronta para a
arregimentação de empresários que atravessam o Brasil para encontrá-la e
utilizá-la (legal ou ilegalmente) em suas empresas e/ou negócios.
Essa é a intenção velada que torna “necessária” a morosidade na recepção
aos imigrantes provenientes do Haiti. No entanto, da chegada ao momento da
arregimentação, outras relações são estabelecidas entre os que chegam e os que
aqui estão, através das práticas efetivadas sobre os territórios em que esses
encontros se dão. Afinal, “sempre há o ‘deslize’ inevitável do significado na
semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser
dialogicamente reapropriado” (HALL, 2003, p.33). As proibições e interditos aos
quais são submetidos os imigrantes, não passam despercebidos e, em vez de
esconder, tornam evidentes as contradições aí inscritas. A partir delas, outras
grafias vão sendo acrescentadas, pois “a fantasia de um significado final continua
assombrada pela ‘falta’ ou ‘excesso’, mas nunca é apreensível na plenitude de
sua presença a si mesma” (HALL, 2003, p.33).
É nesse embate entre as expressões que visam o fechamento dos
significados e os usos linguísticos muito mais “deslizantes”, que encontramos o
palco sobre o qual se travam as traduções culturais e as manifestações das
sociabilidades e das identidades, inscritas nesses processos de significação e
(re)significação. Entre uma formalização linguística que encerra e limita e uma
realidade prática que abre e permite, são reorientados os fazeres (re)significando
posicionamentos sociais. A formalização “assombrada” pelo “fantasma” de suas
próprias impossibilidades, apresenta-se ressentida pela presença daquilo que, na

21
realidade, é a consciência dela mesma, incompleta e impotente frente a essa
incompletude.
A dinâmica da experiência que conforma tempo, mobilidade e atividades é
evidenciada na narrativa construída por Tervenkus Petit, principalmente quando
trata da ajuda prestada por instituições e indivíduos que nelas trabalham.
Chamamos atenção neste ponto para a relação estabelecida pelo narrador que
associa ajuda e emprego. Ao mesmo tempo em que agradece aos préstimos
recebidos, Tervenkus Petit une o tempo de serviço à duração da amizade
dedicada a quem lhe possibilitou o trabalho. Aliás, a própria permanência de
Tervenkus Petit no Acre está intimamente ligada à atividade remunerada exercida
por ele.
O “até hoje tô aqui, por enquanto, trabalhando” enunciado por ele, significa
não apenas que seu serviço é provisório (enquanto durar a construção), mas
também que a permanência dele em Rio Branco está ligada às perspectivas de
trabalho e renda aqui disponíveis. Isto pôde ser confirmado meses mais tarde,
quando, terminada a construção, os trabalhadores foram dispensados e
Tervenkus Petit se dirigiu ao estado do Mato Grosso em companhia da família e
de um amigo, também haitiano, à procura de serviço.
Retornando ao tema das formas de identificação, a associação religiosa
atua como facilitador na interação entre os imigrantes e destes com a localidade
de ingresso. A presença de indivíduos que se declaram cristãos, principalmente
evangélicos, entre os haitianos que estão no Acre é significativa. A existência de
templos e locais de acolhida organizados por membros dessas comunidades
religiosas pode nos fornecer pistas importantes para pensarmos sobre esses atos
confessionais, acompanhando aquilo que Stuart Hall (2003) analisou como
preferências identitárias.
Da narrativa de Tervenkus Petit, que é Adventista do Sétimo Dia,
destacamos o atendimento recebido por ele através das ações da JOCUM
(Jovens Com Uma Missão), entidade organizada por membros da Igreja Batista
no Acre. De acordo com ele, a atenção é oferecida de forma irrestrita a todos “que
não têm onde ficar, por um tempo”, no entanto, a aproximação promovida pela
declaração de crença ou pela participação nos cultos realizados em instituições

22
religiosas pode tornar mais fácil a acolhida e a aquisição de emprego, como nos
contou o narrador.
Em uma perspectiva muito semelhante às práticas religiosas correntes no
Brasil, entre os imigrantes haitianos, assumir-se como adepto de determinada
religião, pode representar auxílio, possibilidades de emprego e renda, isso em
razão da rede de contatos e convivências que se estabelecem entre os
praticantes desses credos. Para além do conforto espiritual e do conhecimento
acerca dos ensinamentos valorizados nesses cultos, está em jogo a questão da
sobrevivência e da melhoria das condições gerais de vida. Na diáspora haitiana
(como em várias outras), torna-se comum a ideia de um “destino” em que se
coadunem o pertencimento a uma comunidade (religiosa e/ou nacional) e as
benesses ofertadas por um Deus14 a seus fiéis seguidores.
Enunciações semelhantes em termos de trabalho e religiosidade também
foram encontradas nos posicionamentos transformados em narrativa por Guinot
Gerlin, haitiano, 36 anos, casado e pai de uma filha que ainda vive no Haiti junto
da mãe. Ele também viveu na República Dominicana, onde estudou e trabalhou
por vários anos.

[…] Tem Assembleia de Deus, Batista, tem quase todo tipo, quase tudo!
Só Quadrangular, eu já vi aqui, mas não sei se tem outro nome lá. Não
sei! Mais só isso, só isso eu percebi que é um pouco diferente [...] O
Vodu? É ele tá também! Tem o Vodu também, só que é, esse Vodu é, tá
aí na cultura africano. Ali, a gente, como nós somos assim,
descendentes da África, a gente ter, ficar, ficar, como a cultura […] Só
que é assim, mesmo que a pessoa sempre são Vodu, mesmo é, pessoa
é, como chamar, é, a crença do Vodu, a coisa do Vodu, chama de. Aqui
chama de, tem um nome é (pausa tentando recordar o nome do
praticante do vodu) é Macumbá! É do Macumbá. É macumbeiro, é eles
lá mesmo que as pessoas é uma macumba, eles são da Igreja porque já
é católico, são católico. Foi na igreja Católica. Isso é quando você
encontra uma pessoa que nunca foi na igreja, encontra alguma pessoa e
diz: “você pratica alguma religião”? “Sim, sou católico”! (risos) É assim,
mas é que o católico todo mundo já pratica, mas é, é, outras religião,
como a Batista, a Adventista, eles, se já adventista, eles não vai gostar
do vodu. Não vai! Não vai, não pratica mais, que isso tem, tem é, direito
com o Satanás! (risos) (GUINOT GERLIN. Entrevista, Rio Branco,
11/08/2013)

Ao elencar semelhanças e diferenças entre algumas das religiões e igrejas


existentes no Haiti e no Brasil, Guinot Gerlin evidencia as possibilidades de

14
Os imigrantes haitianos, senegaleses e dominicanos, em sua esmagadora maioria,
identificam-se como monoteístas.

23
estabelecer com elas e/ou através delas, relações de sincretismo e exclusividade.
Na voz do narrador, tanto uma quanto a outra possibilidade, quando enunciadas
na autorreferência, ocorrem na mediação entre interlocutores. Ser praticante do
Vodu e declarar-se católico é ação comum que, de acordo com Guinot Gerlin,
marca duas tradições religiosas: uma de matriz europeia e a outra africana. A
primeira delas, decorrente da presença católica no Haiti desde o início do (e em
relação com o) processo colonizador, impõem a prática do batismo para as
crianças tornando-as “católicas” mesmo que, no futuro, não frequentem as igrejas
dessa religião. A segunda, o Vodu, também decorre do processo colonizador e se
inscreve no elaborado conjunto das trocas culturais engendradas por indígenas,
africanos escravizados e europeus, mas que na enunciação de Guinot Guerlin,
representa a descendência africana inscrita sobre o Haiti.
Mas se as duas tradições remontam ao processo colonizador, por que se
declaram católicos e não vuduístas aqueles que, de acordo com Ginot Guerlin,
são questionados? Exatamente em razão da organização e hierarquização do
sistema colonial e escravagista que apresentava a religião europeia como
superior e a única correta. Esse traço, apesar das resistências, dos diálogos e
sincretismos que se estabeleceram ao longo do tempo, permaneceu, podendo
influenciar as formas de identificação religiosa dos haitianos praticantes do Vodu.
Assim, ao abandonar essas práticas e aderirem às religiões “Batista” e
“Adventista”, essas pessoas buscam se reposicionar socialmente em um universo
que “não vai gostar do Vodu”, muito menos de seus praticantes.
O fenômeno da “dupla consciência” (GILROY, 2001) se apresenta na
narrativa de Guinot Guerlin. Concomitante ao auto reconhecimento de uma
ancestralidade africana representada pelo “nós somos”, ele reproduz o discurso
colonizador que, além de hierarquizar, transforma outras manifestações religiosas
em práticas “demoníacas”. Assim, aquilo que ficou “como a cultura” (de matriz
africana) e marca daquilo que “nós somos” (negros do Haiti), também acaba
sendo demonizado, pois teria “direito com o Satanás”. É na tentativa de escapar a
essa associação e estabelecer outras que, em muitos casos, a auto referência
como católicos, batistas, adventistas, etc., ocorre.
Voltando ao tema do papel desempenhado pelas narrativas de trabalho nos
processos de identificação e acolhida, Gunot Guerlin diz que quando

24
[…] chegou à Brasileia, a gente entregar o documento, que tinha ali. E as
pessoas que tava lá, ele (pausa) faz uma inscrição e manda pro é
Federal, ali o Federal entrega um número para nós, o número já para
entregar para nós o CPF. Entregar o CPF. Já saí de lá pra chegar até
aqui, Rio Branco. Chegou aqui Rio Branco, é (pausa) não é muito, muito
bom, mas é mais ou menos, porque eu não tinha ninguém aqui em Rio
Branco. Chegou aqui já, eu encontrou um amigo, o amigo ajudar a
buscar um emprego, mas no, no emprego, eu não gosto a forma de
tratar, mas eu não fico, dentro da empresa. Eu sai de dentro da empresa,
fui atrás de outra, aí eu passou um tempo também na outra, não era
bom! Porque eles fala mentira para mim, porque diz que trabalhar
quarenta e cinco dia pra receber, mas disse que a, a lei do país é assim.
Eu sabia que não! Eu saí de dentro da empresa, e fui atrás de outro. Eu
vi, eu encontrou uma empresa que trabalha construir a praça Gameleira,
aí eu ficou dentro dessa empresa trabalhando junto com eles. Passou
seis meses trabalhando e depois já acabou a obra, a gente foi embora.
Mas com a relacionamento com os brasileiro é muito bom, muito bom,
faz muitas amizades com as pessoas, com as pessoas da igreja é mais,
muito interessante! Sempre eles convida nós pra casa dele, nos convida
pra saí junto. Fui passear, fui na mata, fui (risos) muito bom, muito
interessante, ali! Eu ficou aqui, é muito bom! Eu gosto! […] Eles me
ajudar, da maneira que pode, que pode! Mas é, é como foi alugar uma
casa pra morar; pro eu alugar minha casa, o encanamento que eu pagou
a casa e ajuda da maneira que eles pode! Então, lá no Haiti, eu não, não
sabia muito sobre o Brasil! Só, eu sabia só o futebol! Porque já todo
mundo de lá gosta muito os times daqui, os times que são brasileiros.
Todo Mundo de lá! Quase que a maioria, porque, quando o seleção
brasileira tá jogando todo mundo tem de ter onde assistir. Assistir o jogo.
Ali quando o time ganho, fica uma festa lá, todo mundo. Ali quase todo
mais, todo mundo, a gente queria ver mais por aqui, que sabia que aqui
tem o futebol melhor [...] Pra trabalhar, e gente (pausa) na primeira
emprego que tinha, é só entrar numa loja, que chama “Lojão dos
Parafusos”, ali, eles me deixaram no depósito, a trabalhar lá, mas como
a gente é profissional, ele (pausa) me contratar como profissional, mas
me deixar no depósito e me pagou como todo mundo de lá, mas isso eu
não gosto não! Por isso eu saí de lá! [...] Sim tenho minha esposa e uma
filha. Ela tem quatro anos […] Ah!, então isso é uma coisa estranha
(risos), porque você não tem amigo, não tem, não tem amigo e não fala o
idioma é (pausa) muito estranho, mas porque o mais importante é que o
brasileiro é muito hospitaleiro. Isso é o mais importante. Pessoa da
igreja, mesmo que a gente não fala muito, mas ele receber com muita
alegria. Ali ele faz amizade e ajudar a gente (GUINOT GERLIN,
entrevista, 28/04/2013, Rio Branco – AC).

Esse trecho de entrevista é bastante significativo, pois nele o narrador


discorre sobre as razões que o levaram a escolher o Brasil como rota de
imigração, fala das expectativas criadas sobre os brasileiros, sobre as relações de
amizade e dos descontentamentos construídos no Acre. Assim como na narrativa
de Tervenkus Petit, Guinot Gerlin estabelece a ligação entre auxílio e amizade
evidenciando os critérios adotados por ele para tecer considerações a respeito
das relações de trabalho e com aqueles que denomina “amigos”.

25
Para Guinot Gerlin, a presença de algum conhecido poderia amenizar o
estranhamento experimentado nos primeiros contatos que estabeleceu na capital
do Acre. Não ter “ninguém aqui em Rio Branco” é uma dificuldade a mais no
processo de adaptação ao novo ambiente. Dificuldade suavizada através do
encontro com “um amigo” que Guinot Gerlin não deixa claro se haitiano ou
brasileiro. No entanto, essa “amizade” parece indicar muito mais o auxílio que
esta pessoa lhe teria prestado do que um possível reencontro com algum rosto
familiar.
Ainda sobre este tema, as “várias amizades” feitas por Guinot Gerlin,
principalmente com membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, frequentada por
ele, são elencadas em meio às práticas religiosas, convites, participação em
visitas e passeios, mas, fundamentalmente, elas são caracterizadas pela ajuda
oferecida, seja no “alugar uma casa pra morar”, no conserto do encanamento
defeituoso ou simplesmente na ajuda oferecida “da maneira que eles pode”.
Urge pontuar que tanto para Tervenkus Petit quanto para Guinot Gerlin, a
orientação religiosa se apresenta enquanto elemento fundamental no que diz
respeito às relações de trabalho e, esta última, desempenha importante papel na
escolha de quem é ou não “amigo”. A sociabilidade estabelecida a partir do labor
vinculado à observação de regras, dias e horários especiais relacionados à
prática religiosa, é orientada para o reconhecimento daqueles que não “fala
mentira” e os tratam “como profissional”.
Ao discorrer sobre suas primeiras experiências de trabalho em Rio Branco,
Guinot Gerlin julga os procedimentos adotados por patrões ligados à esfera
pública e privada e lhes dá o veredito apontando o que “não era bom” e, ato
contínuo, pela saída da empresa em que o tratamento desagradasse. Este gesto
significativo, pautado na interpretação do vivido, lança por terra os discursos
humanitários que oferecem a mão de obra haitiana a um preço baixo sob a
prerrogativa do auxílio ou da solução de seus (próprios?) problemas.
Guinot Gerlin estabelece uma diferenciação entre os patrões que “fala
mentira” ou que o contrataram como profissional, mas o “deixaram no depósito, a
trabalhar lá” e ainda o pagavam “como todo mundo de lá” e os brasileiros que
seriam “hospitaleiros” e “prestativos”. Nesta aparente contradição, afinal os maus
patrões eram também brasileiros, Guinot Gerlin retoma a associação entre auxílio

26
e amizade, desta feita, separando “brasileiros” de exploradores. É óbvio que este
não é um posicionamento imutável, o tempo e as permutas sociais podem conferir
outras interpretações a respeito dos indivíduos com quem ele se relaciona. O
próprio Guinot Gerlin, já aponta essa possibilidade de mudança no que tange à
interpretação ao afirmar que não “tem amigo”, no entanto, “o brasileiro é muito
hospitaleiro”.
Ocorre, neste momento, uma espécie de “blindagem” em relação ao
“brasileiro”, que é representado como alguém que vive no “país do futebol”,
esporte apreciado no Haiti e importante instrumento de intervenção cultural
brasileira naquele país. O acompanhamento das partidas disputadas por times e,
principalmente, pela Seleção Brasileira de futebol, fornece os materiais
necessários para a elaboração de uma representação acerca do “Brasil” e dos
“brasileiros”. Daí o desejo de Guinot Gerlin de se dirigir ao Brasil, porque sabia
que “aqui tem o futebol melhor”. As festas proporcionadas pelas vitórias da
seleção do Brasil são associadas à receptividade do “brasileiro”, que os “receber
com muita alegria”.
Como afirmamos, essas representações sofrem alterações, uma vez que
estão intimamente relacionadas às sociabilidades estabelecidas entre e pelos
sujeitos que as elaboram em “um tempo saturado de ‘agoras’” (BENJAMIN, 1987,
p. 229). Neste sentido, as trocas e mediações ocorrem em todas as direções e
incidem nas formas de interpretação do real vivido pelos sujeitos que o
experimentam e discorrem (com gestos e palavras) sobre ele. Daí o “mais ou
menos” atribuído por Guinot Gerlin, ao seu primeiro contato com Rio Branco
comparado à imagem que já havia construído a respeito do que seria o Brasil.
É importante acentuar que essas trocas não ocorrem isonomicamente,
existem, nunca é demais dizer, entre os elementos em contato, componentes
(espaciais, temporais e situacionais) que tornam privilegiada a situação de um ou
de outro participante dessas interações; deste ou daquele sujeito envolvido nos
processos de mediação cultural e as associações se dão em consonância com o
valor posicional assumido no interior dessas relações, como pontua Stuart Hall:

Há notável variação, tanto em termos de compromisso quanto de prática,


entre as diferentes comunidades ou no interior das mesmas — entre as
distintas nacionalidades e grupos linguísticos, no seio dos credos
religiosos, entre homens e mulheres ou gerações. Jovens de todas as

27
comunidades expressam certa fidelidade as “tradições” de origem, ao
mesmo tempo em que demonstram um declínio visível em sua prática
concreta. Declaram não uma identidade primordial, mas uma escolha de
posição do grupo ao qual desejam ser associados (HALL, 2003, p. 66).

Nessa citação, torna-se evidente o conteúdo político das escolhas


identitárias, que emerge da aspiração de pertencimento a um grupo em dado
momento ou da negativa dessa associação em virtude de mudanças no contexto.
Alternativas construídas a partir da reflexão sobre as implicações decorrentes de
se constituir ou não em membro de determinada comunidade associativa. Assim,
“as escolhas identitárias são mais políticas que antropológicas, mais
‘associativas’, menos designadas” (HALL, 2003, p.63), menos fixas que mutáveis,
mais negociáveis que estáticas.
Nas narrativas dos e produzidas sobre os imigrantes haitianos, estas
escolhas identitárias também se fazem presentes, tanto no que concerne à busca
por uma associação com os “despossuídos” provenientes do Haiti, quanto à
negação ou afastamento em relação a essa identificação. O primeiro caso muito
mais frequente entre aqueles que ainda não conseguiram a documentação
necessária para a permanência e/ou trânsito no território brasileiro. No que se
refere ao segundo posicionamento, o identificamos com maior facilidade nas falas
daqueles que já conseguiram certa estabilização no Brasil (alguns chegam a se
esconder quando percebem a aproximação de algum haitiano).

Eles nos procuram achando que podemos ajudar, mas não podemos e
acabamos ficando mal. Não gosto quando me veem trabalhando aqui
porque eles vêm me pedir ajuda e o patrão pode não gostar. Atrapalha o
serviço e não posso fazer nada por eles (FERNANDO JEAN PIERRE,
entrevista, 02/04/2012, Rio Branco, 2012).

Nesta fala de Fernando Jean Pierre, haitiano, 24 anos, agricultor, que no


momento se apresentava como auxiliar de pedreiro, o “nós” e o “eles” são
reconfigurados para marcar diferenças em relação a uma certa situação de
estabilidade do enunciador. Ele não chega a negar a proveniência haitiana, mas
se percebe em posição diversa daqueles sobre os quais discorre. É a
impossibilidade de prestar auxílio, somada ao medo de ser malvisto no ambiente
de trabalho que, segundo o próprio narrador, o faz se posicionar deste e não de
outro modo em relação a seus patrícios.

28
Fernando Jean Pierre, pensa sobre sua condição e rapidamente articula as
possíveis leituras feitas por aqueles que provavelmente vão lhe pedir auxílio e as
virtuais interpretações efetuadas por esse “outro”, o patrão, que o recebeu como
trabalhador assalariado. Além disso, avalia nossa posição de observador e
articula uma justificativa para seu modo de agir perante aqueles que, para nós,
estariam na mesma condição que o narrador. Sua resposta é a manifestação de
todas essas nuances pesadas e sopesadas na conjunção entre práxis e léxis.
Isso nos faz problematizar as posições do observado e do observador.
Quem faria o que na situação descrita? A observação é mútua e as atitudes são
elaboradas a partir do julgamento político em relação ao outro. Não há aqui
“designação” (HALL, 2003, p. 63), os fazeres e os dizeres são traduções
orientadas por esse misto entre prática e discurso que conforma aquilo que
chamamos realidade (HALL, 2003, p. 364).
A situação descrita corrobora as análises feitas por Mary Louise Pratt
(1999), no que tange às práticas de apropriação, tradução e enunciação levadas a
cabo por indivíduos que experienciam situações sociais assimétricas, mas que em
meio a essa assimetria, produzem significados para reinterpretar a si no diálogo
com a alteridade, dando mostras do quanto a presença desse outro é importante,
pois é a partir dela, que (nos) problematizamos e produzimos a nós mesmos(as).
Orientado por uma prática discursiva que o “eleva” a uma precária situação
de estabilidade através do trabalho, o entrevistado se apresenta reticente quanto
àqueles que, segundo seu julgamento, ainda não adquiriram a condição de
“quase integrado”. Notemos que esse “quase” não denota uma provisoriedade
das situações vivenciadas, ele (o quase) figura como situação de permanente
insegurança, cuja superação é depositada em um futuro “mais ou menos” distante
e que, como “tempo vindouro”, ainda não chegou. A maior proximidade em
relação a esse futuro almejado e sempre adiado é figurativamente alcançada pela
ótica do trabalho, entregue como primeira comprovação de valor e merecimento
de uma (sub)cidadania, a meio caminho da cidadania plena que, como dissemos,
não chega.
De modo semelhante, o “nós” e o “eles” também podem ser questionados
no que concerne às práticas culturais. Ao narrar o exotismo de uma ação inscrita
no interior de “uma” cultura, indicamos a distância que existe entre ela e “nossas”

29
práticas culturais. Ao mesmo tempo, quando dentro do conjunto dessas “práticas
estranhas”, localizamos e valorizamos aspectos semelhantes àqueles que
julgamos inerentes à “nossa própria cultura”, pressentimos ou reconhecemos (não
sem conflitos) um elemento fundamentalmente relacionado a toda formação
cultural: a “crioulização” (GLISSANT, 2005).
Mas se todas as culturas são crioulas como afirma Édouard Glissant, então
por que tanto estranhamento? Exatamente porque, na construção do discurso
identitário nacional e/ou racial, aprendemos a pensar as culturas como únicas,
fechadas, verdadeiras, imutáveis e tudo aquilo que nelas não se enquadrava com
perfeição (se é que isso é possível) deveria ser corrigido, pacificado ou banido.
Paradoxalmente, é esse “outro” visto como estranho que termina por definir
também a identidade daquele que vê e estranha. Aquilo que figura, a partir de
meu olhar, como estranheza, torna-se fonte de doação identitária. Aqui, em meio
a essa contradição, é a imagem de espelho que define quem sou eu. E esse eu
figura concomitantemente como ponto de apoio para a elaboração do que esse
“outro” é. Assim, o “estranhamento”, para quem o detecta, assume, como
mencionamos, outra função, a de definidor da identidade tanto daquele que é
observado quanto do observador (lembrando que esses dois personagens
ocupam quase sempre as duas posições simultaneamente). É pela diferença que
eu afirmo quem é o “outro”, mas, ao mesmo tempo, é a partir dela que afirmo
quem eu sou. É por isso que a alteridade é fundamental na construção das
identidades, pois “você tem de identificar as diferenças para saber o que as
articula. A linguagem é uma articulação de diferenças” (HALL, 2003, p.360).
Desse modo, percebemos a linguagem ao mesmo tempo como produtora e
promotora das articulações necessárias tanto para o estabelecimento das
diferenças quanto de suas junturas no trato cotidiano. É na e pela linguagem que
são produzidos os discursos que representam o mundo e seus agentes uma vez
que é a partir dela (a linguagem) que construímos e apresentamos nossas
percepções sobre o real. Não esqueçamos então que o “mundo real não está fora
do discurso; não está fora da significação. É prática e discurso, como qualquer
outra coisa” (HALL, 2003, p. 364).
Ao analisar a contribuição do pensamento psicanalítico para a
compreensão dos processos de constituição simbólica de nossas personalidades,

30
Stuart Hall, em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade, comenta
algumas diferenças entre os textos de Jacques Lacan em relação aos de Freud e
nos problematiza a elaboração de uma imagem “integral” da pessoa. Apesar de
tratar especificamente da constituição identitária durante os anos iniciais das
crianças, as análises propostas pelo autor, podem também nos ser úteis para
pensarmos alguns dos mecanismos presentes na elaboração da
autocompreensão do sujeito, inclusive na vida adulta, isto se não perdermos de
vista que é no trato com o outro que me percebo como ente diferenciado,
identificado e identificável como indivíduo, aparentemente autônomo e completo.
Ainda segundo essa lógica, mudando-se os observadores (suas posições
sociais em relação ao grupo e/ou indivíduos observados), também deveriam
ocorrer mudanças nas formas de identificação daquele que é observado, e estas,
dialogicamente, provocariam alterações nas identidades daqueles que observam,
uma vez que o “espelho” não é fixo e que a imagem a ser refletida depende das
mediações culturais; da (re)significação do que é dito e feito pelos dois lados; de
suas relações com o espaço e o tempo (elaborados na e pela linguagem).
Pensar as articulações entre indivíduos provenientes do Haiti, suas atitudes
e presenças enquanto enunciações, assim como as narrativas elaboradas por
essas pessoas, nos permite questionar muito mais do que explicar essas trocas
estabelecidas entre indivíduos temporalmente inscritos em uma dada realidade
social15. Questionamentos que continuaremos elencando nas linhas dos capítulos
seguintes

1.1 Da viagem e da odisseia: o retorno como promessa

O sentimento da diáspora (HALL, 2003) se faz presente nas falas de


nossos entrevistados. Elas guardam uma relação muito atual com o país de
ingresso, e, ao mesmo tempo, traçam os vínculos entre as causas da dispersão e
as possibilidades de retorno à terra natal. Esse retorno, em um primeiro momento,
se faz representar pelo envio de notícias e/ou recursos para ajudar familiares que
permaneceram no Haiti. A estadia em solo brasileiro é vista como provisória, pois

15
CALDEIRA. op.cit.

31
a vontade é de poder conseguir um trabalho que propicie regresso o mais
brevemente possível.
O retorno como “promessa” é uma das características da diáspora; “cada
disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor” (HALL, 2003, p.
28). Cessadas ou amenizadas as condições que forçaram a saída, o regresso
(como reencontro com o mítico local de origem) deve se fazer no mais breve
espaço de tempo. Como nos contou Kesnel Theodule, haitiano, trabalhador
agrícola de 23 anos, que em janeiro de 2012 se identificava como pedreiro, em
uma conversa que tivemos e gravamos durante um almoço em uma pensão nas
proximidades da praça Hugo Poli, no centro de Brasileia: “cinco anos é muito
tempo, não podemos ficar tanto tempo assim, porque nossa família ficou lá.
Temos que trabalhar para voltar, no máximo em um ano ou dois, não aguento
mais que isso!”.
Os cinco anos aos quais Kesnel Theodule se refere, são os fixados como
máximo permitido para aqueles que tiveram o pedido de refúgio realizado junto ao
e indeferido pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), que trata da
concessão de permanência aos imigrantes no Brasil. Durante esse período, eles
utilizarão um visto humanitário que lhes dá o direito de ter CPF, Carteira de
Trabalho e utilizar os serviços públicos de saúde. Após esse prazo, eles deverão
demonstrar que estão trabalhando e estabelecidos no país se desejarem aqui
permanecer, caso contrário, devem ser “repatriados”.
O desejo de permanecer por apenas “um ano ou dois” confirma a
percepção do Haiti como o lugar de “destino”, que deve, à medida que os
emigrados alcancem sucesso em suas empreitadas, ser reconstruído,
possibilitando-lhes o regresso. O Brasil, nesses enunciados, subjaz como o meio
necessário para alcançar este fim.
Não podemos deixar de anotar que, para muitos estrangeiros haitianos,
senegaleses, dominicanos, “quase todos pretos”16 no Brasil, esta é mais uma das
diversas tentativas de melhoria nas condições gerais de vida a partir da imigração.
Suas experiências dentro e fora das Américas nos dão mostras do lugar que,
apesar das enunciações conciliatórias e acobertadoras, tem sido reservado aos
pobres de “todas as cores” neste nosso mundo moderno. Eternamente

16
Haiti. Caetano Veloso e Gilberto Gil.

32
deslocados e reduzidos (discursivamente) à condição de força de trabalho,
números estatísticos e/ou matéria de jornais, essas pessoas se tornam “quase
abstrações” maleáveis pelas práticas discursivas recorrentes nesses textos.

“Refugiados do Haiti vão para Rondônia trabalhar em usinas” (Estelita


Hass Carazzai -Folha de São Paulo – 10/03/11); “Haitianos refugiados
conseguem emprego no AM, RO e AC” (Estelita Hass Carazzai, Fábio
Freitas e Kátia Brasil – Folha de São Paulo – 14/03/11); “Refugiados
haitianos buscam Brasil por emprego” (Edson Luiz – Correio Braziliense
– 15/03/1); “Firma de Santa Catarina vai a Brasileia para contratar
haitianos” (Marcelle Ribeiro – O Globo -05/01/11); “Especialistas:
crescimento do Brasil atrairá novos imigrantes” (Flávio Freire – O Globo -
11/01/12); “RS vai receber haitianos para trabalhar em fábrica” (Rossana
Silva – Zero Hora – 11/01/12); “Conselho Nacional de Imigração cria visto
especial de trabalho para haitianos” (Daniella Jinkings – Agência Brasil
EBC – 12/01/12); “Empresas gastam até R$ 1 mil para importar mão de
obra haitiana do Acre” (Dubes Sônego – Portal iG – 01/02/12); “Haitianos
chegam ao interior do Paraná para suprir falta de mão de obra” (Amanda
de Santa – Jornal de Londrina – 08/02/12); “Mega obras facilitam
inserção de haitianos” (Mario Osava – Envolverde/IPS – 22/03/12)

Enunciados como esses podem ser facilmente encontrados nas páginas de


jornais e pronunciamentos de autoridades ligadas às esferas federal, estadual e
municipal, produzindo e difundindo narrativas em que a preciosa mão de obra
haitiana pode ser amplamente explorada sob a alegação de que se está agindo
com finalidade humanitária. Sem qualquer menção às causas do espalhamento
haitiano, ou apenas com pequenas referências a essa questão, essas pessoas
são (discursivamente) reduzidas a força de trabalho que pode ser “importada”,
“inserida”, “recebida” para “suprir” carências de empresários e empresas, no que
concerne ao desenvolvimento de seus negócios, por todo o território nacional.
Neste sentido, torna-se relevante perceber como antigas e novas formas
de expropriação, que se entrelaçam para compor alguns dos elementos das
diásporas (passadas e presentes), subjazem nesses enunciados e se mostram
com todo o vigor na diáspora haitiana. Exemplo disso foi o episódio divulgado em
reportagem veiculada pelo jornal Gazeta em Manchete do dia 25 de janeiro de
2012, cuja chamada de matéria foi realizada pela apresentadora do programa nos
seguintes termos:

Em Brasileia, empresas de Rondônia contratam haitianos para trabalhar


na construção civil. Até aí tudo bem, só que tem um detalhe: eles
escolhem os haitianos de acordo com a canela! É isso mesmo, de
acordo com a canela. De acordo com os contratantes quem tem canela
fina é trabalhador e quem tem canela grossa (...)

33
No texto de chamamento da reportagem destaca-se não o vínculo
estabelecido entre as formas de seleção dos “futuros trabalhadores” e os métodos
implementados nas “feiras da carne” organizadas para a compra e venda de
escravos por toda a América entre os séculos XVI e XIX, mas o inusitado de se
escolher “haitianos de acordo com a canela!”. A presença desse “inusitado” não
esconde a naturalidade com que era visualizada a redução daqueles seres
humanos a mera mão de obra disponível às empresas de Rondônia e de outros
estados do Brasil. O “até aí tudo bem”, enunciado pela apresentadora, nos
comunica a “normalidade” da procura e do “encaminhamento” dessa “mão de
obra” para o mercado nacional.
Na sequência da matéria, um repórter discorre sobre a chegada dos
haitianos ao Acre e diz que “com a ajuda humanitária recebida, centenas deles
cruzaram nossas fronteiras”. Essas afirmativas fazem parte do material que
enreda determinada perspectiva de auxílio humanitário, pautado pela inserção
dos haitianos (estrangeiros) em uma (sub)cidadania no interior de “nossas
fronteiras”, através de uma narrativa que justificaria a hierarquização entre grupos
humanos. Ao continuar sua fala, o repórter diz ainda que “o drama vivido pelos
haitianos repercutiu na imprensa nacional e atraiu empresários de vários estados
em busca de mão de obra, principalmente para a construção civil […]”. Essa
enunciação, em conjunto com o comentário de um representante da Secretaria de
Direitos Humanos do Acre, nos evidências da forma como esses seres humanos
são “levados” para outros estados. Isso desvela não apenas uma tentativa de
privar de vontade um conjunto de seres humanos, mas também a concordância
popular com essas práticas, uma vez que “é o apoio do povo que confere poder
às instituições de um país” (ARENDT, 2009, p.57).
Ainda em relação à reportagem, o próprio contratante indicava naquele
momento as referências adotadas por ele para efetivar a seleção de
trabalhadores, segundo ele, a “técnica” seria uma “tradição antiga, de pessoal da
escravidão. Quem tem canela fina é bom no trabalho; canela grossa é mais ruim
de serviço”. A imagem do contratante negro selecionando trabalhadores também
negros utilizando-se de critérios do “tempo da escravidão” sob a égide do auxílio
humanitário, além de lançar os não selecionados para “fora da humanidade”,

34
também encerra (discursivamente) os “escolhidos” em um nível de humanidade
pré-determinado pela compleição física, indicando que alguns seriam, “por
natureza”, menos humanos que outros.
Não obstante essas tentativas de eliminação de vontades e de
silenciamento de opiniões, como Hannah Arendt (2007, p.330) nos convida a
refletir, esses sujeitos passam também a dizer de si, a partir desse lugar-comum
da força de trabalho, mas, ao recorrer a esses enunciados redutores, eles buscam
reafirmar sua humanidade real, re-significando e invertendo os sentidos do que é
dito na tentativa de lhes reduzir a mera mercadoria. E fazem isso a partir de
outras experiências e referenciais. Com este propósito, vemos emergir a
afirmação de uma haitianidade inventada no deslocamento e apresentada na
oposição/comparação entre brasileiros e haitianos, repetidamente enunciada nos
dizeres recolhidos junto a esses indivíduos. Essas enunciações reivindicam o
reconhecimento, ao mesmo tempo, das diferenças entre brasileiros e haitianos e
exigem igualdade, pois estariam todos inscritos no campo da humanidade.
Da presença física e enunciativa de sujeitos com corpos negros nesta parte
da Amazônia Sul-Ocidental, vemos emergir a outra face da racionalidade
moderna, que organiza o tempo, fende e hierarquiza culturas. Como nos ensina
Maria Antonieta Antonacci, esses sujeitos subvertem “a pauta do possível”17,
fazendo-se vistos e ouvidos; “expondo intimidades de agressões seculares e
assumindo latências político ideológicas”.18 Procuram um lugar mais justo no
enredo que conforma este Ocidente, que sustentaram e sustentam com o suor e
sangue de seus corpos negros; rompendo e re-significando distâncias, unindo isto
e aquilo, exigem continuar sendo seres humanos.
Estar no Brasil (como imigrante haitiano) representa essa re-elaboração de
sentidos, a luta permanente para permanecer enquanto seres humanos e, em
meio aos embates concernentes a esse anseio, não apenas uma relação íntima
com o Haiti é elaborada, mas também é construída uma nova leitura de trajetória
a partir do momento presente (SARLO, 2007). Aí está inscrita a percepção de se
estar provisoriamente em solo estrangeiro, e, por isso mesmo, cogita-se um

17
ANTONACCI, 2013, p. 240
18
Idem.

35
retorno à “terra natal”, lugar de justiça e igualdade cuja palavra “destino” é o
referencial.
Assim como na narrativa hebraica do Antigo Testamento, é durante o
Êxodo19 que são estabelecidas as leis (escritas) e os códigos que fornecerão a
base identitária para a constituição do “Povo Escolhido”20. É no trânsito que se
constrói o sentimento de pertencimento a um local, ao mesmo tempo, de origem e
de destino. É sobre a areia do deserto, localizada entre o cativeiro e a liberdade,
que se trava a luta entre o poli e o monoteísmo que caracterizará o “Povo de Jah”
(HALL, 2003. p. 28-29). É ali, entre o partir e o chegar que se recupera a imagem
da “Terra Prometida”; que se estabelecem os laços entre aqueles que devem, um
dia, dirigir-se novamente para lá. Todas as “provações” experimentadas no
caminho são relidas a partir do momento presente e re-significadas com base na
situação atual dos narradores (BENJAMIN, 1987) e/ou daqueles que se
identificam com aquelas narrativas.
Dentre os haitianos que lograram alcançar o território brasileiro, a narrativa
daquilo que ocorreu no translado adquire a forma de odisseia finalizada. Não que
os haitianos se pensem como partícipes e partidários de uma disputa épica entre
o pensamento lógico e o poder dos deuses (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
53-80)21, tema da Odisseia de Homero (sec. VIII a.C.), mas eles elencam as
distâncias e as dificuldades superadas como feitos grandiosos que serviriam
como prova de obstinação e vontade de trabalhar; uma espécie de título inserido
ao Curriculum Vitae desses indivíduos.
A distância existente e insistentemente anunciada entre o Haiti e o Brasil
não é apenas o espaçamento físico entre um e outro país, e o deslocamento
enunciado não é mero translado. A despeito de ser toda odisseia também uma
viagem, compreender que nem toda viagem é, em si, uma odisseia torna-se
relevante para o entendimento da função que o relato das dificuldades
desempenha nas narrativas dos sujeitos desta pesquisa.

19
O Êxodo, segundo dos cinco primeiros livros (pentateuco) daquilo que os cristãos
denominam de Antigo Testamento, narra o período de transição entre o cativeiro hebreu no Egito e
o retorno a Canaã, terra prometida por Deus aos herdeiros de Abraão, de acordo com a tradição
religiosa hebraica.
20
De acordo com a tradição bíblica, Javé teria estabelecido um pacto com Abraão e seus
descendentes que, mais tarde se identificariam com o Povo Eleito.
21
Aliás o poder divino sobre a ordem dos acontecimentos é reiterado nas falas dos
depoentes, em sua maioria cristãos evangélicos.

36
O simples deslocamento não produz as extraordinárias histórias (nem
sempre felizes) narradas pelos imitadores de “Ulisses”22. Odisseu enfrentou seus
desafios ao retornar de Troia para Ítaca, mas talvez seus companheiros nunca
tivessem sabido do que lhe ocorrera caso ele não tivesse chegado e também
vencido os perigos que lhe esperavam em casa. Seu triunfo foi cantado como o
fim glorioso de uma eloquente coleção de aventuras elencadas no encadeamento
de um destino já traçado. No entanto, como nos ensina Walter Benjamin (1987),
esse destino só foi reconhecido a partir do olhar voltado a um passado elaborado
e narrado, considerando primordialmente aquilo que parecia relevante para a
construção do que fora alcançado no instante em que se narra23.
Se o desfecho fosse outro, talvez o passado também fosse contado de
forma diferente, pois a ideia de destino é construída no presente, a partir da
relevância que o fato narrado assume no (e para o) momento atual24, na
elaboração do enredo que compõe a narrativa. “Seria preciso distinguir conforme
as épocas, e ver como as decepções transformam as representações originais”
(PERROT, 1988, p.115). Se Ulisses não tivesse voltado a Ítaca, sua história teria
outro final, localizado, talvez, naquele lugar que para nós se encontra “no meio”
de suas aventuras. Neste caso, o destino seria meramente “aquilo que aconteceu
com ele” e não o que lhe estava, desde o início, “reservado”.
Nas entrevistas realizadas, encontramos relatos que tratam o trajeto do
Haiti ao Brasil tanto como viagem, quanto como odisseia (transcurso e vitória em
relação aos obstáculos do caminho). Essas narrativas, como não poderiam deixar
de ser, adquirem formas diferentes em decorrência das experiências vivenciadas
pelos sujeitos durante o trajeto, mas também ganham novos contornos a partir do
“destino” alcançado; da recepção direcionada aos que chegam; dos discursos que
22
Ulisses, também conhecido por Odisseu, herói que, segundo a mitologia grega, teria
lutado dez anos na Guerra de Troia e depois vivido mais dez anos de desafios e aventuras na
tentativa de retornar à sua terra Natal, a ilha de Ítaca.
23
Beatriz Sarlo, refletindo sobre as análises de Walter Benjamin a respeito da História,
afirma que “Os chamados ‘fatos’ da história são um mito ‘epistemológico’ que reifica e anula sua
possível verdade, encadeando-os num relato dirigido por alguma teleologia. No rastro de
Nietzsche, Benjamin denuncia o causalismo; no rastro de Bergson, reivindica a qualidade psíquica
e temporal dos fatos da memória. O historiador, ao seguir essa afirmação em todas as suas
consequências, não reconstitui os fatos do passado (isso equivaleria a se submeter a uma filosofia
da história reificante e positivista), mas os ‘relembra’, dando-lhes assim, seu caráter de passado
presente, com respeito ao qual sempre há uma dívida não paga” (SARLO, 2007, p.28).
24
Walter Benjamin, no texto Sobre o conceito de História, afirma que “a história é objeto de
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agora’”
(BENJAMIN, 1987, p.229).

37
se estabelecem a respeito dos recém-chegados. É a partir do ponto de chegada
que se organiza o que é “necessário” lembrar, é aí que ocorre a valorização de
determinados aspectos do percurso em detrimento de outros, neste lugar se
constroem as narrativas e, dentre elas, as identidades (RICOEUR, 1994).

Não emigramos porque queríamos emigrar de nosso país! Não saímos


do país porque queremos! Saímos de nosso país, de nossa amada
pátria, porque tivemos que sair, porque não tem, não há trabalho! É um
país defo, devastado: terremoto, furacões e uma má gestão do governo!
Por isso os haitianos saem, não saem “por assim, por assim”! Graças a
Deus temos chegado em muitos países onde temos dado prova de que
sim, o haitiano é uma pessoa honesta, uma pessoa trabalhadora, sai de
seu país para trabalhar, para progredir e juntamente com esse
progresso, o haitiano também, com seu labor, ajuda a comunidade a
progredir juntamente com ele! (LEONEL JOSEPH, entrevista retirada
blog do Altino Machado 18/04/2011, Brasiléia).

Neste trecho significativo, podemos perceber a valorização das dificuldades


e dos perigos do caminho (destacados em diversas outras falas), não apenas
como enumeração da ocorrência destes, mas como valorização do próprio
narrador, que, por ter vencido tais obstáculos, se mostra obstinado, corajoso, mas
também trabalhador e, no momento, necessitado.
Leonel Joseph incorpora e traduz os discursos elaborados que tentam
enquadrá-lo e aos demais haitianos como sujeitos sem vontade, utilizando essa
tradução para afirmar exatamente o contrário disso. Ao elencar as causas da
dispersão haitiana: escassez de trabalho, devastação, “terremoto, furacões e uma
má gestão do governo”, ele discorre sobre a ausência de um querer quanto à
imigração, concomitantemente, elenca as razões que os levaram a “optar” pela
saída do país, evidenciando o quanto desta “escolha” está fundamentada na
leitura e interpretação do vivido. Apesar de não terem emigrado porque
“quiseram”, “quiseram” emigrar porque necessitavam. Revisitando essa
experiência através dos trabalhos da memória (BOSI, 1998), ele afirma que
“Saímos de nosso país, de nossa amada pátria, porque tivemos que sair”.
Em uma perspectiva que se aproxima das proposições feitas por Paul
Ricoeur, visualizamos na narrativa de Leonel Joseph, o entrecruzamento de
diversas articulações que colaboram para a conformação de uma trajetória
individual no diálogo com o coletivo. Essas articulações são compostas por
escolhas feitas com base na reflexão, mas também são frutos de acasos que se

38
entrelaçam em determinados espaços e tempos (que são também narrativas),
tornando cada experiência irrepetível.
Do relato de Leonel Joseph, destacamos a compreensão de que nem
sempre fazemos nossas opções baseados apenas em nossa própria vontade (se
é que alguma vez agimos assim) e, inspirados por Ricoeur, inferimos que não
podemos ter o controle sobre todas as implicações decorrentes dessas escolhas,
o que nos leva a refletir sobre as possibilidades de exercício de nossas liberdades
individuais e as relações estabelecidas entre o eu e o outro (indivíduos, cultura,
sociedade, etc.), eixo central para a construção incessante das narrativas
identitárias. Sujeito e objeto nesta reflexão não estariam separados, apesar de
estabelecerem relações assimétricas entre si, atuam como interlocutores.
Ao discorrer sobre aquilo que chama de “prova”, Leonel Joseph, responde
a um questionamento lançado por um interlocutor oculto, mas hierarquicamente
localizado acima, posto que tem a possibilidade de questionar as capacidades
dos imigrantes no que concerne ao trabalho e às suas intenções no Brasil. A
fórmula “Graças a Deus, temos chegado em muitos países onde temos dado
prova de que sim (...)”, utilizada pelo narrador, expõe tanto esse interlocutor
quanto seu questionamento. A resposta formulada pelas ações (interpretadas e
descritas) desse sujeito evidencia o reconhecimento dessa autoridade (do
interlocutor) e uma tentativa de reposicionamento, no interior da interlocução,
daquele que responde, “com seu labor” e com suas palavras, ao questionamento
lançado.
A resposta afirmativa apresentada pelo narrador exige o reconhecimento de
que “o haitiano é uma pessoa honesta, uma pessoa trabalhadora, sai de seu país
para trabalhar” e propõe a igualdade entre os interlocutores, exigindo o
reconhecimento do imigrante enquanto membro daquilo que Leonel Joseph
denomina de “comunidade”, uma vez que ele veio “para progredir e juntamente
com esse progresso, o haitiano também, com seu labor, ajuda a comunidade a
progredir juntamente com ele”.
Leonel Joseph, fala fluentemente várias línguas, e orgulha-se deste fato.
Orgulho presente no olhar que dirige à câmera quando discorre sobre sua
experiência como professor e durante a enumeração dos idiomas dominados por
ele. A condição de “coitado” ou miserável pode até ser utilizada para se fazer

39
ouvir, mas está distante da maneira como ele enxerga a si e aos demais
haitianos.

Sim, os que chegaram primeiro, depois do terremoto, entraram sem


problemas, na fronteira em Inãpari, sem problema eee já muitos deles já
estão traba, traba, trabalhando no Brasil, estão desempenhando seu
labor como pessoa humana. Os haitianos somos pessoas muito
trabalhadoras, em qualquer país que chegamos nós, se reconhece que
os haitianos trabalham, por isso ao chegar ao país do, do Brasil, damos
prova contundente de que somos trabalhadores. Muitos estão
trabalhando em Manaus, estão trabalhando em Minas Gerais, Rio de
Janeiro eee muitos também estão em Rio Branco, Porto Velho. Muitos
haitianos estão trabalhando em território brasileiro de maneira legal, de
maneira digna (LEONEL JOSEPH, entrevista retirada blog do Altino
Machado 18/04/2011, Brasileia)

As vitórias sobre os empecilhos do caminho são apresentadas como


“provas contundentes” de sua (deles) vontade/coragem de trabalhar não apenas
em causa própria, mas de suas famílias que permaneceram no Haiti e da
comunidade encontrada nos países de ingresso. Leonel Joseph escolhe muito
bem as palavras para construir seus enunciados e conscientemente relaciona as
adversidades transcorridas a uma valorização daqueles que lograram adentrar o
território brasileiro. Certificação, segundo suas concepções, de capacidade e
merecimento dos ingressantes.
Destaque-se deste ponto da narrativa a apresentação do trabalho como
norteador da elaboração do mérito que o narrador quer comprovar. Nas palavras
de Leonel Joseph, o labor é pressuposto para a aquisição da dignidade desejável
a todo ser humano. Com base no tratamento direcionado aos haitianos, ele
formula uma interpretação em que apenas a alegação de que “somos todos
humanos” não é suficiente. Seria necessária uma “prova” de outra ordem,
baseada no “labor”, na “honestidade” e na vontade de “progredir junto à
comunidade”.
Uma vez tratados como simples números em estatísticas, ou oferta de mão
de obra que serviria de motor para empresas de todas as nacionalidades
inseridas nos países percorridos por esses homens e mulheres, esses sujeitos
passam também a negar/assumir (CHAUÍ, 1986) tal identificação. Negam, pois
compreendem sua humanidade como inalienável, daí o próprio sentido da
imigração, permanecerem sendo homens e mulheres. Assumem, pois percebem
que é a partir da apropriação dos discursos elaborados pelos outros que poderão

40
alcançar a inserção que lhes garantiria pleitear a igualdade, segundo as palavras
de Leonel Joseph, necessária ao reconhecimento de que eles não perderam ou
devem ser repostos na condição humana.
No diálogo com os discursos que se reproduzem a respeito dos haitianos,
estes últimos reelaboram e produzem novas narrativas para dizer de si. Ao
negar/assumir (CHAUÍ, 1986) a condição de mão de obra, pleiteiam eliminar as
possíveis justificativas para sua exclusão. Por outro lado, ao buscar a superação
desta situação através do labor (que eles já executavam antes de emigrar)
acabam também se reduzindo àquilo que os tratamentos instaurados sobre eles
visavam desde o início. A desumanização serviria para torná-los “dóceis” para o
trabalho mal remunerado destinado aos “não integrados” e estes, se afirmam a
partir do labor na tentativa de demonstrar ou reivindicar suas permanências na
condição humana.

Eu sou Fernand, Fernand Jean Píerre, saímos do Haiti e fomos à


República Dominicana. Chegamos, compramos passagens para viajar
ao Peru, capital Lima para visitá-lo como turistas. Compramos as
passagens por quarenta e nove mil pesos para chegar ao Peru. Porque
tínhamos que sair para visitar e quando chegamos ao Peru cruzamos
para chegar aqui ao Brasil. Porque tínhamos, quando aconteceu o
terremoto perdemos tudo o que tínhamos, casa, perdemos dois primos
que morreram e chegamos aqui para trabalhar e ajudar nossas famílias
que ficaram no Haiti, porque a situação não está muito bem, muito boa.
Chegamos aqui para conseguir trabalho para ver o que se pode fazer, se
volta a construir a casa ou ajudar nossas famílias. Já temos um mês aqui
no Brasil, já temos! (FERNAND JEAN PIERRE. Entrevista 31/01/2012,
Brasileia).

Nessa passagem, o “trabalho redentor” novamente norteia as perspectivas


de retorno e o sentimento da diáspora (HALL, 2003) se faz presente nas palavras
de Fernand Jean Pierre. Elas guardam uma relação muito atual com o país de
ingresso e traçam os vínculos entre as causas da dispersão e as possibilidades
de retorno à “terra natal”. Este retorno, em um primeiro momento, se faz
representar pelo envio de recursos para ajudar familiares. A vontade é de poder
“conseguir trabalho para ver se volta a construir a casa”.
A viagem do Haiti ao Brasil; as dificuldades encontradas no trajeto; o
encontro com outros que partiram há mais tempo e ainda não conseguiram
alcançar seus objetivos; a busca pelo ingresso no Brasil e a coesão estabelecida
entre membros dos grupos de imigrantes como forma de proteção nesse “novo
lugar”, fomentam uma formação discursiva na qual o Haiti não é apenas o lugar
41
de onde se partiu, mas também o ponto para onde se deve retornar para
reconstruir aquilo que se perdeu. No entanto, essa reconstrução aparece como
idealização, posto que o Haiti do qual falam e do qual se lembram, também o é.
Semelhantemente, ao refletirmos sobre a questão identitária, enfocamos as
enunciações que se fazem a partir das e pelas ações de nossos sujeitos da
pesquisa, de sua práxis e sua léxis, como materialização daquilo que desejam
para si e para o mundo, expressões de um dado momento inscrito em um
determinado espaço constitutivo de uma certa identidade pensada por Paul
Ricoeur (1994) como narrativa.
Seguindo essa orientação, podemos afirmar que não há inocência nos atos
(palavras e ações) de um sujeito no mundo. Todos esses atos indicam interesse e
uma determinada orientação do pensamento sobre si e sobre aquilo que o cerca,
é performance (BUTLER, 1990) e denota identidade. De acordo com Paul Ricoeur
(1994), a função narrativa estaria então na base constitutiva da elaboração
identitária, seja dos indivíduos ou das coletividades, pois ela atuaria como ponto
de inteligibilidade unindo história e ficção.

Parece, pois, plausível ter como válida a cadeia seguinte de asserções: o


conhecimento de si próprio é uma interpretação _ a interpretação de si
próprio, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e
símbolos, uma mediação privilegiada, _ esta última serve-se tanto da
história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma história
fictícia, ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias
dos grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR,
2000, p. 2)

Utilizando-se do exemplo da autobiografia o filósofo, compreende a


indissociabilidade entre identidade e narrativa. Para ele, os seres humanos
elaboram suas próprias narrativas e essa “propriedade” adquire duplo sentido. Ela
é “própria”, pois discorre sobre um dado sujeito, mas também é “própria” por ser
produzida pelo mesmo sujeito que narra. Esse duplo sentido de propriedade
também é utilizado por Ricoeur para diferenciar dois tipos de identidade às quais
estariam concomitantemente submetidos os sujeitos, a saber, mesmidade e
ipseidade.
Na acepção de Paul Ricouer, identidade como mesmidade ocorre enquanto
repetição, como idem, e representa a permanência da substância através do
tempo (eu sou eu próprio). Por outro lado, a identidade enquanto ipseidade age

42
enquanto relativização do sujeito no tempo (eu sou eu próprio enquanto discorro
sobre mim). Assim, mudança e permanência se entrecruzam nas identidades dos
sujeitos, o ser se encontra com o Dasein Heideggeriano que é a manifestação do
“ser-no-mundo” em uma determinada temporalidade (HEIDEGGER, 2012). Ser e
Deisein se encontram dessa maneira, intrigados para conformar um personagem
que narra sua própria identidade.

É, pois, em primeiro lugar, na intriga que é necessário procurar a


mediação entre permanência e mudança, antes de poder aplicá-la à
personagem. A vantagem deste desvio pela intriga é que ela fornece o
modelo de concordância discordante sobre a qual é possível construir a
identidade narrativa do personagem. A identidade narrativa da
personagem só poderá ser correlativa da concordância discordante da
própria história (RICOEUR, 2000, p.6)

Esta é uma passagem bastante sugestiva para refletirmos a respeito das


funções narrativas presentes tanto nas identidades dos sujeitos quanto na
elaboração do conhecimento histórico. Nessas duas produções narrativas,
permanência e mudança, mediadas pela intenção do narrador, unem-se para
conformar duas personagens que se influenciam mutuamente: o sujeito que narra
“sua” história e a história que serve de base para que aquele sujeito se localize,
social e temporalmente, para poder produzir “sua” narrativa.
A história, pensada enquanto “concordância discordante”, pois une
movimento e conformidade, evidencia no ato de sua produção, as identidades
(narrativas) dos haitianos nesse trânsito (temporal, espacial e identitário)
amazônico, uma vez que o recurso a essas formulações interpretativas se tornam
vias para que eles discorram sobre aquilo que são ou estão sendo, segundo suas
próprias intenções; no diálogo com as situações que experimentam. Isso implica
um posicionamento político e ético em relação ao mundo, já que essa intenção é
fruto de uma decisão consciente de se afirmar desta e não de outra maneira, ação
inscrita e norteada pela ipseidade que pode ser questionada por quem ouve e
também interpreta o que está sendo narrado. Ipseidade e alteridade se encontram
então imbricadas tendo em vista que somos sujeitos do e no mundo, sendo e
agindo nele e sobre ele.
A “identidade narrativa” de Paul Ricoeur, está então localizada em algum
ponto entre a mesmidade, que são os traços que permaneceriam inalterados em
cada indivíduo e a ipseidade que representa o conjunto de aspectos relacionados

43
aos quais esses indivíduos agem, construindo representações de si e do mundo.
Representações que emergem das fissuras abertas em espaços de negação do
direito à voz e à participação, em uma perspectiva muito próxima daquilo que
Maria Antonieta Antonacci discutiu ao analisar as manifestações artísticas
produzidas na articulação entre cultura e diásporas. Para ela, essas
manifestações permanecem “insinuando-se em fronteiras, articulando o
semelhante à diferença, suas inesperadas performances configuram-se em
fatigante trabalho de romper brechas, tornar visíveis e audíveis lugares de
memória entre o gesto e a voz” (ANTONACCI, 2013, p.14).
A ação de migrar e as representações construídas nesse e sobre esse
trânsito, são referentes às tentativas de fazerem-se vistos e ouvidos na união
entre gesto e palavra. Nesse sentido, a ideia de um “destino” apresentada nas
narrativas identitárias de haitianos no Acre, está relacionada ao espaço e ao
tempo em que se narra; com as especificidades desse tempo e do espaço nos
quais e através dos quais elas (as narrativas identitárias) foram construídas.

Quer se trate de afirmar a afinidade estrutural entre a historiografia e a


narrativa de ficção (…) quer de afirmar o parentesco profundo entre a
exigência de verdade dos dois modos narrativos (…) um pressuposto
domina todos os outros, a saber, que o desafio último, tanto da
identidade estrutural da função narrativa quanto da exigência de verdade
de toda obra narrativa, é o caráter temporal da experiência humana. O
mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo
temporal. Ou (…) o tempo torna-se tempo humano na medida em que
está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é
significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal
(RICOEUR 1994, p.15).

O tempo da significação não é o tempo dos deuses tendo em vista ser este
inacessível aos homens25. Os significados são articulados no fluir profano da
experiência humana, único local em que se pode exigir a verdade dos modos
narrativos. O tempo posto em narrativa recebe sua significação da experiência
tornada comum26 pela enunciação (presença, palavra e gesto). Os narradores são
“eles mesmos” com seus nomes, suas origens, seus dramas e suas esperanças,

25
Apesar de elaborar suas narrativas em um tempo profano, os seres humanos o fazem
também na relação/comparação com os deuses, tanto para Paul Ricoeur quanto para Martin
Heidegger essa é uma das características que confeririam um modo de existência diferenciado
aos seres (humanos) no mundo. Para o filósofo alemão aliás, e citando Hölderlin, “o homem mede
a dimensão em se medindo com o celestial. O homem não realiza essa medição de maneira
ocasional, mas é somente nesse medir-se que o homem é homem” (HEIDEGGER, 2002, p.172).
26
SARLO, 2007, p. 25.

44
mas também são outros, pois se tornam projeções daquilo que buscam, do
“destino” que esperam encontrar na diáspora.
O “destino” é, assim como as identidades, constituído de narrativas
ordenadas e orientadas por sujeitos que desejam produzir determinados sentidos
a partir do ato de narrar (BENJAMIN, 1987). O encadeamento dos fatos narrados;
a escolha deste ou daquele fragmento que comporá o enredo são frutos dessa
busca pelo sentido, que é o próprio (no duplo sentido) processo de elaboração
identitária.
Quem conta as histórias daqueles que “ainda não chegaram” ou de quem
não tem para onde ir? Quem fala sobre os que tiveram que abandonar sua terra
para (ajudá-la a) sobreviver? Quem conta histórias sobre os condenados da terra
(FANON, 2006), obrigados a permanecer nas “fronteiras” entre o partir e o
chegar? Quem narra essas histórias “do meio” ou da diáspora? Quem pode torná-
las comuns?
Os narradores só podem ser aqueles que vivenciam tais experiências. O
olhar externo, por mais comprometido e simpático que seja, é um olhar provisório,
necessariamente, “de fora”, sobretudo quando tratamos da situação de pessoas
lutando para entrar e/ou permanecer em outro país. Acompanhando as
proposições de Ecléa Bosi (1998), acreditamos que a simpatia e o
comprometimento podem aproximar o ouvinte do narrado, no entanto, a
experiência relatada é sempre daquele que não pode, no tempo de sua vontade,
abandonar a situação em que está. O que é narrado, independentemente de sua
veracidade, tem relevância e reflexo nas realidades materiais vivenciadas por
esses sujeitos, caso contrário a narração não seria realizada.
Resta-nos então o papel de tentar, da posição mais próxima que
conseguirmos e entendendo sempre que este é um olhar intencionado,
compreender o que significa, para nossos sujeitos da pesquisa, aquilo que foi
escolhido (consciente ou inconscientemente) para ser narrado, pois “a lembrança
é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição,
no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI,
1998, p. 55).
Para os recém-chegados, a insegurança inicial, seja na procura pelos
locais em que possam ficar e/ou comer, vai, aos poucos, criando a necessidade

45
de se estabelecer mais fortemente ligações com outros que, provenientes do
mesmo lugar27, apresentam-se como pontos seguros no caminhar pelas ruas dos
municípios acreanos, nas rodas de conversas nas praças de Brasileia ou nas
redes de auxílio e contatos que se formam entre os recém-chegados e aqueles
que aqui (no Brasil) estão há mais tempo. É comum ver grupos com quatro ou
mais dessas pessoas caminhando pelas ruas de Brasileia ou Epitaciolândia;
fazendo compras nos estabelecimentos comerciais; buscando empregos ou
pedindo algum tipo de informação. A presença física dos concidadãos parece
representar certa segurança aos que pouco conhecem das práticas diárias nesses
“novos espaços”.
A situação do país de origem, o Haiti, assim como a dos próprios
imigrantes, é apresentada como provisória e essa provisoriedade aparece nas
falas de nossos narradores como dependente, em parte, do sucesso ou insucesso
daqueles que imigraram. O desejo é de ajudar àqueles que lá ficaram e, fazendo
isso, colaborar com a reconstrução do país. No entanto, para aqueles que já estão
no Brasil há “mais tempo” (o que pode variar de acordo com as experiências
individuais), o retorno físico torna-se menos evidente em suas narrativas. O que
nos parece é que esse reencontro com a origem se torna mais simbólico que
material. Fala-se agora em “naturalização”, em “buscar a família”, “ajudar os
amigos que desejam sair do Haiti”28, pois “não se deixa de ser haitiano quando se
vive em outro lugar”29, tendo em vista que “o Haiti está em nós”30.
Com o esvaziamento das perspectivas de regresso, o retorno se faz por
outra via. Nas palavras de Guinot Gerlin, são eles próprios que tomam para si a
responsabilidade pela redenção da terra natal metaforizada em seus corpos e
seus dizeres. Na comunicação com a família distante milhares de quilômetros do
Acre, eles falam das boas condições de acolhida; de suas possibilidades de
trabalho e de suas expectativas de permanência.

27
Aqui nos referimos ao Haiti como local mítico de retorno e não como um espaço físico
único e indiferenciado apresentado nas representações cartográficas. Além disso, dentre os
imigrantes genericamente chamados de haitianos, existem alguns que vieram diretamente da
República Dominicana e apesar de terem nascido no Haiti, já viviam nestes locais há vários anos.
Outros, filhos de haitianos, já nasceram na República Dominicana e de lá emigraram.
28
Guinot Gerlin. Entrevista 25/05/2013, Rio branco – Acre.
29
Ibid.
30
Ibid.

46
A consciência de que a estrutura física, política e social do Haiti não está
sendo reconstruída, somada às informações provenientes do Brasil, além da piora
nas condições gerais de vida das populações que permanecem na terra natal
(essa percepção também é construída pela mediação entre a realidade prática
experimentada e as notícias que chegam de parentes e amigos que estão no
Brasil) é solo amplo para o convencimento de novos possíveis emigrantes, que
deverão, como os que partiram anteriormente, reconstruir o Haiti fora de lá. Para
os que conseguiram trabalho no Brasil, o retorno ao país se faz pelas “boas
notícias” enviadas aos que lá ficaram; pelos recursos financeiros disponibilizados
e/ou pelas possibilidades de emigração de outros parentes.
Promissão realizada a despeito das infindáveis dificuldades não
comunicadas ao telefone ou através da internet, afinal (por mais que aqueles que
observam digam o contrário) a situação aqui encontrada, é melhor que a deixada
para trás e, na reflexão sobre essas circunstâncias, mais uma vez as identidades
se deslocam. No bojo das reflexões sobre as realidades experimentadas, os
sujeitos que delas participam, constituem outras narrativas identitárias (Ricoeur,
1994) para que possam “dizer de si” e posicionar-se em relação ao mundo social.
Para Paul Gilroy (2001), a Diáspora Negra como elemento constituidor de
identidades se apresenta como um interessante caminho para pensarmos a
formação cultural americana e europeia, pois é na experiência do tráfico negreiro,
realizado sobre a fluidez oceânica; lastreada nos porões, conveses e cabines dos
navios que se misturaram línguas, hábitos e fazeres; que se reorganizariam
através da tradução cultural conformando os horizontes das culturas da
América/Europa/América, em um movimento de ir-e-vir nem sempre preciso ou
previsível, mas constante.
Ao pensar as identidades muito mais como movimento do que como
enraizamento, Paul Gilroy analisa os “essencialismos” presentes nas maneiras de
pensar as culturas e identidades negras pelo mundo. Se essas culturas e
identidades são sempre frutos da mistura e das trocas, como pensá-las a partir de
critérios de pureza? Onde encontrar esses critérios?

Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas,


quero desenvolver a sugestão de que os historiadores culturais poderiam
assumir o Atlântico como uma unidade de análise única e complexa em
suas discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir uma

47
perspectiva explicitamente transnacional e intercultural. Além do
confronto com a historiografia e a história literária inglesa, isso acarreta
um desafio aos modos como as histórias culturais e políticas dos negros
americanos têm sido até agora concebidas. Quero sugerir que grande
parte do precioso legado intelectual reivindicado por intelectuais africano-
americanos como substância de sua particularidade é, na realidade,
apenas parcialmente sua propriedade étnica absoluta. Não menos do
que no caso da Nova Esquerda inglesa, a idéia do Atlântico negro pode
ser usada para mostrar que existem outras reivindicações a este legado
que podem ser baseadas na estrutura da diáspora africana no hemisfério
ocidental (GILROY, 2001, p. 57)

A metáfora da fluidez atlântica que une, mistura, e, neste movimento,


separa os continentes (eles mesmos construções narrativas), nos dá mostras de
como a compreensão das divisões continentais seria impensável sem a presença
daquele oceano através do qual trafegaram, em todas as direções, os mais
variados modos de vida, que contribuem, com sua constante tradução, para a
conformação daquilo que atualmente chamamos de América, Europa ou África.
Representações espaciais (sempre culturais) que durante muito tempo foram
pensadas separadamente e que, por isso mesmo, tornaram-se conceitualmente
limitadas e incompreensíveis uma vez que são vistas de formas dissociadas.
Explicitar esses intercâmbios rotineiramente esquecidos contrariando uma
lógica que inscreve o Atlântico apenas como “rota” ou “caminho” é fomentar a
possibilidade de compreensão dos diversos legados de migrantes e imigrantes
distribuídos por todos os lados do atlântico; é pensar a atualidade a partir das
realidades diaspóricas cujos ecos ainda se fazem ouvir, no trânsito realizado por
pessoas das mais variadas matizes, se encontrando em determinados espaços
de sociabilidade e, fundamentalmente, de mudança. Isso pudemos apreender
durante os últimos instantes de uma das entrevistas gravadas junto ao Haitiano
Tervenkus Petit, momento em que procuramos direcionar os questionamentos
buscando fazer com que o entrevistado falasse sobre suas expectativas quanto
ao final do prazo exigido para a obtenção do visto definitivo e/ou de sua (dele)
naturalização como brasileiro.

Armstrong da Silva Santos_ É e daqui pra nove anos, como é que tu


imaginas ser brasileiro? O que é ser brasileiro pra ti?
Tervenkus Petit _ Bom, é tipo assim, não sei aqui, porque se eu, tipo,
futuramente, né, com a bandeira, troco de bandeira! Quer dizer, você vai
ser brasileiro, naturalizado como brasileiro. Quer dizer, você já não é
mais, tem o direito de ser deportado daqui. Aí você tá aqui que nem
brasileiro naturalizado! É isso que eu tô pensando um dia ser, vou, tô na
lida!

48
Armstrong da Silva Santos_ Aí você deixa de ser haitiano por causa
disso?
Tervenkus Petit _ É porque todo o meu documento tá (pausa) sendo
mandado debaixo da bandeira, né? Aí, quer dizer, daqui a mais tempo,
nêgo vai, é (pausa) piorando né? Aí o cara vai passar por brasileiro!
(risos).
Armstrong da Silva Santos_ Aí vão perguntar: “Petit, o que ele é”? E o
Petit vai responder o quê?
Tervenkus Petit _ O Petit vai ser “O Pequeno”! (risos) (TERVENKUS
PETIT, entrevista, Rio Branco, 01/08/2013).

Ao perceber nossa intenção, Tervenkus Petit evitou responder sobre sua


futura forma de identificação nacional; se ele se identificaria dali em diante como
brasileiro ou haitiano. Ele enfatiza que não terá como deixar de se identificar
como brasileiro depois de nove anos, quando terá direito ao pedido de
naturalização. Todos seus documentos serão idênticos aos de todos os brasileiros
e ele estará, a partir de então, “embaixo da bandeira”. Estar sob a flâmula
brasileira significaria, de acordo com o entrevistado, assumir a condição do “outro”
no que tange aos direitos civis; deixar de ser o “outro” da legislação brasileira.
O acesso à documentação é apenas um dos rituais de legitimação
identitária e Tervenkus Petit sabe disso, daí os desvios assumidos para responder
àquilo que não desejava. A saída magistral elaborada por ele para as incômodas
perguntas, nos permite pensar que questionamentos como aqueles somente se
fazem possíveis, pois presenciamos a evidência de uma diferenciação entre o
entrevistado (percebido como estrangeiro/não integrado) e o entrevistador
(brasileiro/integrado). O que Tervenkus Petit assinalara em seu depoimento e que,
apenas posteriormente, pudemos perceber é que quando ocorre de fato
integração, questionamentos como aqueles não fazem mais sentido.
Assim, ele prefere discorrer sobre si “como sendo ele mesmo” e afirma: “O
Petit vai ser ‘O pequeno’”. A tradução para o português do nome originalmente em
francês torna-se paráfrase de sua (dele) situação pessoal. Indica que ele é filho
de alguém que tem o mesmo primeiro nome; em sinal de ancestralidade. O
“pequeno” Petit se torna, então, um pleonasmo que responde duplamente, mas
sem explicar em demasia.
Ao afirmar sua “pequenez”, Tervenkus Petit atesta não apenas humildade,
mas o fato de que ele sempre vai ser aquilo que estiver sendo quando for
questionado. Corroborando as assertivas de GLISSANT (2005), podemos afirmar
que se existe algo de puro no âmbito das culturas e das identidades, isto deve ser

49
a mistura e o movimento, pois é a partir destes que podemos dizer não aquilo que
somos, mas o que estamos sendo. Essa compreensão se torna fundamental para
a reflexão sobre as narrativas identitárias (RICOEUR, 1994) entre nossos
entrevistados: seres no mundo; produtores e produtos de si, dos outros e do que
os cerca, a partir da arte de narrar (BENJAMIN, 1987).
A própria língua que nomeia é também ela um nome. A palavra inscrita no
seio das regras de uma língua organiza, através de significados socialmente
construídos, o ordenamento de toda nossa cultura presente e passada, uma
função aproximada à do mito que, como nos ensina Micea Eliade (2002), dá conta
do que nós éramos antes de nos tornarmos aquilo que somos e que diz porque as
coisas são como são. Assim, “falar uma língua não significa apenas expressar
nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar a imensa
gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos
sistemas culturais” (HALL, 2006, p. 40).
Fazer uso de uma língua é evocar um passado presentificando-o no
momento da fala (BEMJAMIN, 1987) ou no momento de sua construção,
compreensão; é manter relação com o nosso e com os outros tempos; é poder
decidir pelo silêncio para concordar e/ou refutar uma ideia; é poder calar por
acreditar que a discussão não vale o esforço ou por perceber que a enunciação
pode ser perigosa. A isso chamamos de linguagem, e ela é

a manifestação de nossa relação com a língua, de nossa atitude em


relação ao mundo, atitude de confiança ou de reserva, de profusão ou de
silêncio, de abertura para o mundo ou de fechamento, de adaptação das
técnicas da oralidade ou de compressão em torno das exigências
seculares da escrita, ou ainda de uma atitude de simbiose em relação a
tudo isso (GLISSANT, 2005, p.52).

Nossas insistentes e tentativas de criar significados – permanentes e


fechados – esbarram na própria origem desses significados, que surgem “nas
relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras no
interior do código da língua” (HALL, 2006, p. 40). O jogo entre alteridade e
mesmidade cria a necessária instabilidade na qual estão inscritos os significados.
Traduzir, nesse sentido, é tornar habitual a circulação nos “campos” onde esses
“jogos” são realizados; é aprender seus usos e funcionamentos. Não é apenas
aproximar uma palavra do seu correspondente em outra língua (quando estes

50
existem), mas é também estarmos familiarizados às especificidades da língua que
se quer traduzir e com os outros significados que são ativados sempre que uma
palavra é dita por intermédio das regras nas quais elas estão imersas, mas o que
se produz não é nem uma língua nem outra e mesmo assim, esse resultado exibe
uma relação extremamente necessária entre ambas. “O que isso significa, senão
que o tradutor inventa uma linguagem necessária de uma língua para outra, uma
linguagem comum às duas línguas, mas, de certa forma, imprevisível em relação
tanto a uma como à outra?” (GLISSANT, 2005, p. 56).
Falar uma língua é atuar socialmente na construção de significados; é
caminhar com certo conforto através de suas veredas para dizer de si para si, de
si para os outros e dos outros para este, em um dado momento. No entanto,
sentidos implícitos e explícitos acabam nos escapando durante aqueles períodos
em que apenas tateamos no universo cotidiano de uma língua. Não que
possamos, em algum momento, dar conta de toda a complexidade envolvida
naquilo que enunciamos

nossas afirmações são baseadas em proposições das quais não temos


consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na corrente
sanguínea de nossa língua. Tudo o que dizemos tem um “antes” e um
“depois”_ uma “margem” na qual as outras pessoas podem escrever
(HALL, 2006, p. 41).

Se essas dificuldades se apresentam para aqueles que vivenciam


cotidianamente suas experiências no interior de uma realidade social na qual a
organização se dá através de determinada língua, muito mais problemáticas são
as situações de tradução para aqueles que abruptamente são lançados para o
interior de um sistema linguístico.

Quando chegou aqui, então já quando chegou, sabe que (pausa) a gente
não sabia nada sobre o português, só chegou pra aprender a idioma.
Mesmo assim foi (pausa), tem que dá o conhecimento da idioma pra
perguntar alguma coisa sobre ali, dia, dia a dia se aprende mais sobre o
país. Sim, não sabia nada de Português, só a gente fala espanhol,
francês, é, inglês, mais ou menos, francês creólle, é esse idioma, mas o
Português a gente não sabia nada, de Português! (...) mas éé, a idioma
não é, não é (pausa) não é problema, mas a gente não fala muito, mas é
a conhecimento das coisa é das profissional, da profissão é ruim mesmo!
E o SENAI, agora, porque, eu saí de lá com uma diploma, mas chegou
aqui, quase, todas coisa quase o mesmo, mas os termo de falar sobre as
coisas é precisar o conhecimento. Por exemplo, quando a gente for
encontrar com o engenheiro, ele vai falar sobre os termas mesmo da
construção e a gente não sabia ou vai ficar assim, como que a gente não
sabia nada. Mas, agora, é melhor porque o conhecimento de lá e daqui

51
também vai se aumentar (GUINOT GERLIN, entrevista, 28/04/2013, Rio
Branco - AC).

Neste trecho de entrevista, Guinot Gerlin se esforça para falar das


dificuldades enfrentadas por ele logo após a chegada ao Brasil. Antes da
entrevista informamos que, se ele preferisse, poderia falar em espanhol, no
entanto, ele respondeu que falaria em português porque “precisava treinar”. O
resultado desse esforço é a expressão da busca por entendimento, da
necessidade de conhecer a língua do outro “pra perguntar alguma coisa sobre [o]
dia a dia” e ver “se aprende mais sobre o país”, evidenciando, na forma da
enunciação, as dificuldades vivenciadas por ele.
Forma e conteúdo estão aí imbricados (FISCHER, 1977). Ao organizar sua
narrativa para elencar os problemas experimentados, Guinot Gerlin elabora uma
construção que é a expressão desses problemas. Unindo a maneira de dizer
àquilo que se diz, ele duplica os significados, transformando a narrativa em muito
mais que um “treino”. Falar, neste sentido, é “ato performativo” (BLUTER, 1990),
pois a enunciação (forma e conteúdo) produz significados sobre o que se tenta
dizer, e, ao mesmo passo, sobre aquele que enuncia.
Ao enumerar as línguas dominadas para falar daquela que ele não domina,
Guinot Gerlin contesta a ideia que, segundo ele, se tem de que quem não fala a
língua local “não sabia nada”. A enumeração dos idiomas e dos “níveis de fala”
organizados por ele em uma escala que vai do “falar”, passando pelo “falar mais
ou menos” até o não “saber nada de português”, evidenciam os conhecimentos
adquiridos, aprendizado realizado também em função do trânsito pelos países em
que ele trabalhou.
Na narrativa de Guinot Gerlin, língua e trabalho estão relacionados, pois
nessa elaboração, o idioma em si não seria o problema e sim o conhecimento dos
termos utilizados na profissão que “é ruim mesmo”. A certificação profissional
obtida na República Dominicana, não tem serventia se o narrador não consegue
realizar a tradução dos termos (que já são traduções para uma linguagem técnica)
para executá-los profissionalmente em um novo contexto. O curso oferecido pelo
SENAI, representa essa possibilidade de tradução e a consequente atuação como
profissional que poderá repercutir nos valores recebidos em função do trabalho
realizado, “porque o conhecimento de lá e daqui também vai se aumentar”. É

52
interessante visualizar neste momento da fala, a compreensão que Guinot Gerlin
tem da aquisição do idioma como acréscimo e não como uma restrição mediante
a exclusividade linguística. Ele compreende a tradução enquanto algo que junta o
“de lá” e o “daqui” em uma perspectiva muito semelhante àquilo que Édouard
Glissant defende afirmando a necessidade do outro para a autocompreensão,
pois eu “falo contigo na tua língua e é na minha que te compreendo” (GLISSANT,
2011, p.105).
Para o poeta nascido na Martinica, as identidades rizomáticas produzidas
nas diásporas, diferentemente das identidades de raiz única, podem nos legar
possibilidades de reflexão para além do topos continental de África, América ou
Europa. A perspectiva de arquipélago cuja representação é o Caribe (apesar de
também ser uma elaboração de império), pode produzir enunciações em que o
contato não é visto enquanto perda, e as trocas ocorridas nesses ambientes
crioulizados alargam fissuras, evidenciando permutas longamente realizadas que
figuram no atual como rastro/resíduo.
Outra fala que pode ser problematizada quanto às formas de tradução e
suas significações é a de Fernand Jean Pierre, pela intrigante relação identificada
por ele entre língua e posse em uma perspectiva diferente da apresentada por
Guinot Gerlin.

Nós que falamos espanhol, conseguimos nos comunicar com um pouco


mais de facilidade, temos sorte porque trabalhamos na República
Dominicana e lá aprendemos a falar espanhol. Aqui em Brasileia, no
Acre, as pessoas nos compreendem bem e nós, se queremos água, nos
dão. Não sei como vai ser em outros locais, se em São Paulo ocorre
isso. Um amigo acreano outro dia me disse que se você está com sede
aqui no Acre você pode pedir água que lhe dão, mas em São Paulo se
morre de sede e não lhe dão de beber. Conseguimos alguma ajuda
falando em espanhol. Quem fala espanhol tem pouco, quem não fala não
tem nada! (FERNANDO JEAN PIERRE. Entrevista, Brasileia, 31/01/12)

Fernand Jean Pierre chama de “sorte” o fato de ter trabalhado na


República Dominicana. Segundo ele, aquela foi uma oportunidade de aprender o
espanhol, mas seu enunciado também mostra que a situação diaspórica dos
haitianos é anterior ao terremoto de 12 de janeiro de 2010, e que a mudança para
o Brasil corresponde a mais um adiamento do encontro com aquela fronteira que,
uma vez transposta, guardaria a “chave da felicidade” e da vida digna. Se na
primeira mudança, do Haiti para a República Dominicana, ele tivesse encontrado

53
tudo aquilo que buscava, não haveria mais motivos pra novamente juntar recursos
e depois seguir para o Brasil.
Nas palavras do agricultor e, no momento, trabalhador da construção civil,
o tema da apropriação linguística aparece como uma questão de “ter” ou “não ter”
o que pode pôr em risco a própria sobrevivência do imigrante. A fronteira política
partilhada entre Brasil e Bolívia, através de Brasileia, Epitaciolândia e Cobija,
acabou trazendo o espanhol para o cotidiano dos moradores desses municípios
acreanos, transformando o castelhano em uma espécie de segunda língua para
grande número de pessoas naquelas localidades, tornando, portanto, mais fácil a
prestação de auxílio (quando o desejo for esse) aos imigrantes que já dominam
esse idioma.
Para aqueles que têm como línguas apenas o francês e/ou o crioulo,
conseguir um pouco de água, mesmo em uma relação comercial, torna-se uma
difícil tarefa, quanto mais se o item desejado não está à vista e não pode ser
demonstrado. Nesses casos, recorre-se a gestos e sons na tentativa de indicar
aquilo que se deseja. E o que se deseja não é meramente aquilo que se está
tentando pedir, mas o entendimento.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que deixa transparecer o plano de
rumar para “outros lugares”, o narrador problematiza, com base na informação
dada por “um amigo”31, a prestação de auxílio oferecida por acreanos e paulistas,
evidenciando que a questão do entendimento ou da ajuda recebida, vai muito
além da simples aquisição do idioma. Não saber se “em São Paulo ocorre isso”,
na fala de Fernando Jean Pierre, pode indicar a problemática da língua na relação
com usos efetivados por seus praticantes e a comunicação. Esse questionamento
se pauta na possibilidade de que o ato de tornar comum (SARLO, 2007) poderia
ser mais fácil no Acre, “pois se você está com sede aqui no Acre você pode pedir
água que lhe dão” e talvez, em São Paulo, “se morre de sede e não lhe dão de
beber”.
Esse interessante posicionamento, também elenca uma contradição, fruto
do diálogo produzido pelo indivíduo no remoer de suas experiências. Se o
entendimento e o auxílio prestados no Acre são mais acessíveis, o que impele o
narrador a seguir para “outros lugares”? Uma das possíveis respostas a este

31
Outra vez se apresenta a relação entre amizade e auxílio.

54
questionamento, é a origem da informação reproduzida por Fernand Jean Pierre.
Ela teria sido transmitida por um acreano e pode indicar muito mais a visão que
este indivíduo elaborou sobre si mesmo, com base nas experiências por ele
vivenciadas, do que naquilo que pôde ser observado por Fernand Jean Pierre.
Como nos lembra Édouard Glissant, “há um equilíbrio precário entre o
conhecimento de si e prática do outro” (GLISSANT, 2011, p.143).
O não saber “se em São Paulo ocorre isso”, encerra a dúvida de quem
experimenta uma realidade diferente daquela enunciada pelo “amigo acreano”.
Realidade esta, marcada por todos os tipos de dificuldades, mesmo em um lugar
em que “você pode pedir água que lhe dão”. Nesse caso, o “Acre” que
experimentam é o mesmo que eles querem deixar e isso termina por desdizer a
afirmação de que o Acre seria um bom “destino” para os imigrantes do Haiti.
Em Brasileia, acompanhamos as dificuldades de um grupo de haitianos
que tentava comprar alguns alimentos postos à venda em uma lanchonete no
centro da cidade. Os problemas ocorreram em diversos momentos, desde a
identificação nos cardápios dos alimentos que desejavam consumir, passando
pela realização dos pedidos junto às atendentes e a visível insatisfação destas em
atender a exigências que não conseguiam compreender, até o momento de
quitação das dívidas junto ao caixa do estabelecimento comercial.
O mútuo descontentamento se fez presente não por conta de uma relação
preconceituosa entre brasileiros e estrangeiros, apesar de manifestações como
essas serem possíveis e, em muitos casos ocorrerem, mas pela falta de
compreensão entre as partes. É evidente que o imigrante está fragilizado, uma
vez que é minoria, no entanto, superadas as barreiras concernentes à
comunicação, superação geralmente realizada pela aprendizagem da língua local,
parte deste descontentamento tende a diminuir.
A compreensão do idioma possibilita o acesso a serviços e direitos, o que
torna compreensível que aqueles que, mais facilmente dominem o português
sejam “eleitos” como representantes e, nos mais diversos momentos, falem em
nome do(s) grupo(s). Nas falas desses “representantes”, novamente o “nós”
(haitianos) figura no diálogo com o “eles” (brasileiros), re-significando o termo
haitiano a partir das experiências no Acre. Isso não significa, no entanto, que a
simples compreensão dos enunciados proferidos seja capaz de solucionar todas

55
as tensões que esses contatos encerram. Outras fronteiras continuam de pé
norteando a separação entre o nós e o eles. Diferenças quanto à condição social
e/ou em relação à cor da pele continuam orientando práticas de inclusão e
exclusão que visam, como observamos, a diminuição da condição humana de
homens e mulheres no intuito de sua (deles) transformação em estimativas
utilizáveis ou mão de obra sem vontade para o funcionamento do próprio sistema
que os trata como excluídos.
Entre os dias 24 e 25 de janeiro de 2014, estivemos em Brasileia para mais
uma vez verificar a situação dos haitianos que estavam naquele município. Mais
de 1.200 pessoas dividiam e disputavam espaços no interior do abrigo
improvisado há quase dois anos pelo governo acreano com pequena participação
da administração federal. Tumultuadas filas se formavam ao redor dos pontos de
retirada de documentos, nos postos de saúde, unidades bancárias, prédios dos
correios; banheiros públicos e privados (nos postos de gasolina e na rodoviária)
do município. No interior do alojamento o mau cheiro, as péssimas condições de
higiene e de alimentação somam-se à desinformação generalizada quanto à
utilidade de documentos e à obrigatoriedade de ali permanecer. Junto a tudo isso,
um descontentamento visível na forma de falar e/ou nos comentários sobre a
presença haitiana naqueles locais proferidos por atendentes comerciais e agentes
nos postos da Receita e Polícia Federal evidenciam crescentes tensões
resultantes da falta de compreensão existente entre praticantes de diferentes
idiomas e do despreparo dos agentes públicos para lidar com as diferenças.
Em todos os momentos do dia, grupos de haitianos (também senegaleses
e dominicanos), caminhavam de um lado a outro da cidade buscando
principalmente a documentação necessária para que pudessem sair do município.
No sábado, dia 25 de janeiro, por exemplo, quando um grupo com mais de trinta
pessoas conseguiu finalmente ser atendido pelo vigilante do prédio da Receita
Federal em Brasileia e, depois de muita gesticulação e palavras proferidas em um
espanhol atravancado, entender que os serviços apenas seriam retomados na
segunda-feira (27/01), decidiu novamente se dirigir ao alojamento, refazendo o
caminho que haviam percorrido horas antes, agora em sentido oposto.
Não obstante, dali a pouco mais de meia hora, outro grupo de haitianos
mais ou menos do mesmo tamanho se formaria na frente do mesmo prédio de

56
onde os compatriotas acabaram de sair, buscando, com as mesmas dificuldades
experimentadas pelo grupo anterior, ser atendidos pelo órgão público32. Esse ciclo
se repetiu durante toda a manhã. Em meio a essa espera e ao caminhar que, na
maioria dos casos, termina sem que lhes sejam solucionados os casos, eles
ocupam praças, calçadas e parques conversando em espanhol, crioulo e francês,
procurando compreender o que ocorria, sempre buscando a superação das
dificuldades.
Entre os munícipes de Brasileia, a presença haitiana é interpretada de
forma negativa. Isso é facilmente perceptível nos olhares que se lançam sobre as
dezenas de sujeitos negros sentados ou andando nas calçadas daquela cidade;
pelas enunciações racistas e xenófobas que são formuladas a respeito daqueles
sujeitos; pelos comentários feitos em sussurros nos bancos, postos de saúde e
agências de correio onde essas pessoas, como todas as outras, esperam para
ser atendidas. Apesar de não ser um tratamento generalizado, essas
manifestações de descontentamento em relação aos haitianos têm modificado as
formas de proceder de alguns desses sujeitos no espaço público daquele
município. Um deles chegou a dizer que o fato de tê-los andando, em todo
momento, em grupos pelas ruas da cidade era “feio”, mas que eles nada
poderiam fazer, já que não possuíam a documentação necessária para seguir
viagem em situação legal no país.
Identificados pela cor da pele e mal compreendidos em função do idioma,
imigrantes de várias origens percorrem esse difícil trajeto entre o “nada” e o
“pouco”, representado pela aquisição de auxílio mediante o uso da palavra
compreensível por aqueles que os recepcionam. Entre o “nada” e o “pouco” é
local em que estão aqueles que esperam horas, dias e meses intermináveis por
um atendimento (comunicado ou solução de questões pendentes) que parece
nunca chegar, “limbo” imposto pela carência de tradução da palavra enunciada.
Enunciação presentificada nos grupamentos humanos que inscrevem com seus
corpos negros tudo aquilo o que o verbo já havia dito, mas permaneceu sem
tradução para a língua local.
32
No dia 31/01/2014, houve, em frente ao órgão em questão, uma manifestação com
princípio de tumulto em função das dificuldades vivenciadas pelos imigrantes que buscavam
algum tipo de atendimento naquele órgão. Já no dia 03/02/2014, houve luta corporal entre
senegaleses e haitianos que disputavam vagas nas filas para serem atendidos pela Receita
Federal em Brasileia. Esses episódios foram divulgados por periódicos locais.

57
O transcurso linguístico, que segundo Fernando Jean Pierre, representa a
diferença entre o “pouco” e o “nada” se apresenta como metáfora do caminho
físico percorrido por eles de suas “terras natais” até o Brasil; dos alojamentos aos
pontos de atendimento; entre Assis Brasil, Brasileia, Epitaciolândia, Rio Branco e
“outros locais” brasileiros, essa trajetória entre o “pouco” e o “nada” se repete.

58
Capítulo II
A imagem do “outro”: a alteridade questionando o “homem cordial”33

Na presente seção estabeleceremos um diálogo com falas proferidas por


haitianos no interior da fronteira brasileira. Uma parte dessas manifestações foram
por nós colhidas em entrevistas durante a execução da pesquisa cujos resultados
ora apresentamos, outras foram retiradas de reportagens veiculadas pelas
emissoras de TV locais (Acre) e/ou jornais eletrônicos que discorreram sobre o
tema da imigração haitiana. Com base nessas narrativas discutimos aspectos
apresentados como relevantes para a escolha do Brasil como rota de emigração
de uma parcela de pessoas que entraram no Brasil através dos municípios
acreanos de Assis Brasil, Brasileia e Epitaciolândia. Neste sentido, torna-se de
fundamental importância refletir sobre as representações construídas a respeito
dos brasileiros e do Brasil por parte desses sujeitos, da mesma forma que abordar
o papel desempenhado pela ocupação militar realizada pelas tropas da ONU, sob
a liderança do Brasil no Haiti desde 2004, na elaboração dessas representações;
bem como da imagem que se formulou dos brasileiros a partir da recepção
direcionada aos haitianos no Acre.
Uma pergunta muito frequente nos encontros, palestras34, conversas e
entrevistas realizadas com imigrantes oriundos do Haiti ou que tratem do tema da
imigração haitiana para o Brasil, é a que visa saber das razões que os levaram a
se dirigirem para terras brasileiras. As respostas mais recorrentes apontam como
fatores preponderantes, a “alegria” e “receptividade” dos “brasileiros”; o bom
momento econômico vivenciado pelo país, sua “grandeza” e sua “Beleza” (do
Brasil) em comparação com a atual situação do Haiti.
As enunciações elaboradas por imigrantes haitianos no Acre, seguem
muito de perto as visões apresentadas pela mídia internacional a respeito do
Brasil e dos brasileiros, principalmente aquelas ligadas à promoção da visitação
turística e à atração de investimentos para o país. A primeira delas apresenta o
Brasil como um país exuberante, com dimensões continentais e um povo “quente”
33
HOLANDA (1995, p.146).
34
Audiência Pública realizada pela Assembleia Legislativa do Acre, na cidade de Brasileia
em março de 2011, Palestra sobre o processo de imigração haitiana para o Brasil realizada em
24/10/2013 na UFAC; Mesa redonda “Diásporas haitianas e interculturalidade nas amazônias”,
realizada em 07/11/2013, na UFAC.

59
e acolhedor. A segunda mostra o Brasil como a sexta economia mundial; um país
que possui ótimas perspectivas de crescimento sustentado da economia, o que
significariam grandes possibilidades de investimento, oferta de empregos e renda.

Como vocês sabem que depois dos terremotos de doze de janeiro do


ano dois mi, 2010, do ano passado, nosso país ficou totalmente
destruído, então, como haitianos estamos buscando uma nova vida, uma
nova oportunidade para poder é (pausa) encontrar um futuro melhor e,
graças a Deus, o Brasil nos têm aberto a porta para poder vir a trabalhar
dignamente neste país bonito, um país grande, um país que, que é o
maior, a maior economia da Latino-América, da América do Sul (LEONEL
JOSEPH. Entrevista retirada do blog do Altino Machado 18/04/2011,
Brasiléia).

“Aqui no Brasil, porque era a melhor maneira, mais fácil para chegar a
este. Outra, existem pessoas que saem do Haiti para viajar para a
França, à Guiana e chegam a voltar ao seu país, porque o governador
da imigração não permite que entrem ilegais em outro país, mas aqui no
Brasil nos aceita chagar aqui ilegais e nos ajuda a tirar o CPF, que é
muito importante aqui e por isso que lutamos para chegar no Brasil. O
governador deixa entrar, porque ele gosta de nos ver e nós gostamos do
país, porque os que chegaram antes dizemos que é um país bom, a
gente aqui tá normal e gosta de nos ver, haitianos, somos amigos,
todos!” (FERNAND JEAN PIERRE. Entrevista, 31/01/2012, Brasileia)

É importante ressaltar que essas falas foram recolhidas no interior da


fronteira brasileira e os entrevistados vivenciavam uma situação de dependência
alimentar, de estadia e de mobilidade em relação ao governo Estadual acreano e
Federal brasileiro. O receio de perder benefícios ou de ser impedido de
permanecer no país pode influenciar nas manifestações de apreço ou desapreço
que se formam a respeito do Brasil e/ou sobre a situação experimentada por
esses indivíduos. É isso o que significa dizer que “o Brasil nos têm aberto a porta
para poder vir a trabalhar dignamente neste país bonito” ou que o “governador
deixa entrar, porque ele gosta de nos ver e nós gostamos do país”.
Semelhantemente, essas condições podem interferir nas formas de agir e
reagir frente a algumas situações cotidianas e/ou de conflito. Nestes casos, pode-
se afirmar que o Brasil “é um país bom, a gente aqui tá normal e gosta de nos ver,
haitianos, somos amigos, todos!”, apesar desses imigrantes serem impedidos de
entrar e transformados, a partir dessa proibição e/ou de sua (dela) desobediência,
em ilegais. Essa “ilegalidade”, como veremos nas linhas seguintes, corroboram a
instabilidade necessária para as tentativas de transfiguração dos haitianos em
mão de obra barata a ser explorada a partir de um processo iniciado no Haiti.

60
Por outro lado, e interpretando essas práticas de exploração, esses sujeitos
vão se posicionando e encontrando alternativas para superá-las. Nesses
processos, as mesmas fórmulas semânticas criadas para produzir a exclusão,
podem ser relidas e transformadas em artifícios para que homens, mulheres e
crianças se façam vistos e ouvidos, tornando-se incluídos, se não no atendimento
às suas necessidades, ao menos na exposição de suas exigências.
As manifestações de descontentamento aparecem muitas vezes veladas
em meio a elogios, em enunciações aparentemente contraditórias. Dizer que na
França ou na Guiana não é permitida a entrada de imigrantes ilegais, mas que o
Brasil os “aceita chegar (...) ilegais” e ainda os “ajuda a tirar o CPF, que é muito
importante aqui”, figuram como agradecimento à receptividade e auxílio prestados
pelas instituições do Brasil, mas deixa transparecer o fato de que essas pessoas
também não são queridas por aqui. Tanto que muitos ingressaram no país
utilizando-se de práticas legalmente vedadas ou se tornaram ilegais em virtude de
uma determinação governamental.
Esse “chegar (…) ilegais” denota falta de acesso aos instrumentos de
imigração reconhecidos como válidos pelo estado nacional brasileiro, que nega
essa possibilidade aos haitianos através da morosidade e das exigências feitas
para que consigam os vistos de viagem na embaixada brasileira localizada no
Haiti. Assim, os mecanismos criados para dificultar a imigração haitiana para o
Brasil produzem uma rede substancialmente lucrativa que vende “facilidades” aos
que se dispuserem a pagar por elas.

Primeiro república Dominicana, depois é Panamá, depois do Panamá é


... Quito Equador, depois de Quito Equador, atravessamos a fronteira do
Peru e do Peru chegamos até... é... Lima, Cuzco e Puerto Mal Donado.
De Puerto Mal Donado pegamos um táxi para chegar até Iñapari, mas
muitos de nós, quando chegamos à fronteira do Brasil, pensávamos
entrar de maneira normal ou regular como entrávamos no Peru ou
Bolívia, mas nossa grande surpresa é que, quando chegamos em
Iñapari, não pudemos entrar, tivemos que parar em Iñapari. Alguns de
nós tivemos que buscar, man... é buscar dinheiro extra ou pedir dinheiro
de nossos familiares que estão no Haiti ou se algum de nós tínhamos
família nos Estados Unidos para mandar-nos um pouquinho de dinheiro
mais para poder ver como podemos ingressar de maneira ILEGAL ao
território [...] brasileiro, porque o governo Brasil não permite a entrada
sem visto, sem um visto de passaporte para entrar no território do Brasil.
Então, todos os haitianos que chegaram ultimamente, nos últimos
meses, todos entraram de maneira ilegal e uma vez que entráramos
nesse território, graças a Deus, alguns que entramos de maneira sem
visto ou de maneira ilegal, graças a Deus, o... o gov... o governo do
Brasil, nos dá proteção, nos dá alojamento, nos da água para tomar,

61
comida duas vezes ao dia. Uma comida à uma da tarde e a outra comida
às sete da noite todos os dias e também nos brinda com a facilidade de
tirar os “papéis” (LEONEL LOSEPH. Reportagem retirada do blog do
Altino Machado 18/04/2011, Brasileia).

O “brinde” a que o haitiano e professor de idiomas Leonel Joseph se refere


é o “prêmio” concedido àqueles que lograram, através da ilegalidade, cumprir
todas as regras estabelecidas pelas estruturas estatais que impedem e,
simultaneamente, fomentam essa mobilização de pessoas que deverão atuar
como subempregados nos países que, primeiramente lhes negam o acesso, e,
depois, sob a bandeira do auxílio humanitário, oferecem-nos como mão de obra
barata aos contratantes de todas as regiões do país.
A tal “receptividade brasileira”, que aparece nos relatos desses haitianos
como um dos fatores preponderantes para a escolha do Brasil como “destino”,
parecia procedente para os que chegaram ao Acre em fins de 2010 e início de
2011, pois eles puderam entrar no país sem problemas e regularizar suas
situações. No entanto, essa mesma “receptividade” se revelava ambígua, a partir
desse período. Isso fica evidente nas falas de Leonel Joseph e Fernand Jean
Pierre, pois eles discorrem sobre o fato de que, por um lado, os imigrantes eram
impedidos de transpor a fronteira, e, por outro, aqueles que conseguissem entrar
ou que já estivessem no Brasil, receberiam auxílio humanitário e acesso à
documentação necessária para seguir viagem e/ou permanecer no país por um
prazo determinado.
Ao adotar a posição governamental de cerrar suas fronteiras aos “haitianos
ilegais”, o Brasil subverte o Princípio da Reciprocidade por ele adotado diante de
outras nações. Esse princípio reza que o tratamento dado por um Estado a
determinada questão, também será seguido pelo país afetado em relação ao
Estado autor primeiro da ação, em uma palavra, reciprocamente. Entretanto, não
houve (e nem poderia haver no memento) por parte do estado haitiano, nenhuma
decisão para barrar ou restringir a entrada de brasileiros naquele país, o que torna
injustificada a atitude do governo brasileiro, ao menos no que diz respeito ao
citado princípio35.

35
Houve, no período, uma ação movida pelo MPE (AC), questionando a legalidade da
medida adotada pelo Governo Federal brasileiro.

62
Como sugerimos a decisão governamental brasileira de barrar a entrada
dessas pessoas, criava para elas uma situação de vulnerabilidade ainda maior.
Impedidos de acessar o território brasileiro – de forma segura e legal –
permaneciam nos pequenos povoados peruanos e bolivianos ou se dispersavam
pelas florestas desses países, em busca de um ponto a partir do qual pudessem
transpor as linhas imaginárias (mas com efeitos bem reais) que os separavam do
Brasil. É isso o que quer dizer recorrer aos “familiares que estão no Haiti” ou a
parentes que moram em outros países para “ver como podemos ingressar de
maneira ILEGAL ao território (...) brasileiro”.
A ilegalidade é representada aí pela negativa do acesso legal ao território
brasileiro e, após o ingresso no país, pelo indeferimento do pedido de refúgio feito
ao Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), como prerrogativa para que os
imigrantes possam receber o “auxílio humanitário” oferecido pelos “cordiais”
cidadãos brasileiros. Estes, ao mesmo tempo em que exigem o fechamento das
fronteiras nacionais aos possíveis concorrentes oriundos do Haiti, se mostram
também compadecidos pela situação dos “ilegais”. A humanidade reduzida pela
ilegalidade possibilita a afirmação da humanidade daqueles que estão em
condição regular e que podem, através do agenciamento laboral dos sujeitos “não
integrados”, se sentirem melhor por cumprir seu dever enquanto seres humanos,
inserindo os “estrangeiros” em uma (sub)cidadania, oferecida como o préstimo
supremo, um “brinde” de uma nação “cordial”. Os dispendiosos auxílios ofertados
por instituições e pessoas aos imigrantes haitianos, figuram nas declarações de
intenções e discursos governamentais, não apenas como simples proclamações
da existência dessas ações, mas também como marco identitário na interação
entre o “nós” e o “eles”.
O impedimento à imigração legalizada por uma série de dispositivos
adotados pelas instituições brasileiras desde o Haiti, força os imigrantes a se
lançarem na ilegalidade sob a assessoria de grupos especializados
(institucionalizados ou não) no translado irregular de pessoas entre as nações.
Sob a “marca da ilegalidade”, formas diversificadas de exploração são acionadas
para minar resistências e exaurir os recursos financeiros dos agenciados. No
Brasil, a assistência ofertada como paliativo da condição de “refugiado não

63
reconhecido”, fortalece o ideal identitário dos brasileiros como prestativos e
“cordiais”.
Dessa maneira, podemos compreender a ambígua posição assumida pelo
CONARE do Brasil, que tem, reiteradamente, negado o visto de refúgio aos
haitianos que o requisitam, mas assegura a possibilidade dessas pessoas
permanecerem em solo brasileiro sob a “proteção” de um “visto humanitário”.
Adota-se uma política nacional de abertura das fronteiras, mas,
contraditoriamente, é mantida a exigência de visto para que se permita a entrada
de haitianos no país. Por outro lado, os gastos e os esforços dispensados na
resolução do “problema haitiano” no Acre, são propalados como a expressão de
acolhimento e cordialidade “típica” de acreanos e brasileiros.
Entrar ilegalmente no Brasil era possibilidade cogitada por um grupo de
haitianos que no mês de janeiro do ano 2012, estava retido na cidade peruana de
Iñapari, que faz fronteira com Assis Brasil, no Acre. Em reportagem publicada no
sítio agazeta.net, no dia 24/01/201236 e em diversas entrevistas divulgadas por
outros veículos de comunicação durante o período em que eles aguardavam a
liberação de ingresso em território brasileiro, esses homens e mulheres
expunham seus descontentamentos, angústias e esperanças frente àquela
situação37.
Naquele momento, muitos estavam sem dinheiro, tendo que recorrer aos
bancos da praça de armas do município e/ou buscar abrigo durante a noite na
única estrutura minimamente coberta daquele local: um singelo coreto erguido no
centro da praça. A descrição da precariedade do ponto onde buscavam abrigar-se
não deixa de evidenciar a poderosa ironia posteriormente desenhada na parte
interior do teto que, na noite da qual tratava a referida reportagem, pouco poderia
proteger aqueles imigrantes da chuva que se avizinhava.

36
A este respeito ler Haitianos amargam fome, sede e a desesperança no Peru.
Disponível em <http: //agazeta.net/plantao/noticias/7996-haitianos-amargam-fome-sede-e-a-
desesperanca-no-peru.html>. Acesso em 06/03/2014.
37
A descrição da situação mencionada foi amplamente descrita por diversos veículos de
comunicação. É mediado pelas leituras que fizemos dessa cobertura jornalística e de uma visita
que fizemos posteriormente à cidade de Iñapari, no Peru, que redigimos os parágrafos
subsequentes.

64
Em visita à cidade de Iñapari em fins do mês de junho de 2013, pude
observar no conjunto de reformas que a cidade recebeu após a última alagação38,
que o coreto do qual tratavam as mencionadas reportagens sofreu algumas
alterações. Dentre elas, as mais impactantes, em nossa opinião, foram as
imagens gravadas sob a cobertura daquela construção. Desenhos que
simbolizam alguns dos processos e heróis da independência peruana. Da coleção
dessas representações elaboradas sobre um fundo azulado, destacamos as de
Túpac Amaru II, Simon Bolívar e José de San Martín, personagens centrais dos
processos de independência da América Espanhola e da posterior constituição de
países como Equador, Bolívia e Peru, rotas adotadas pelos imigrantes haitianos
de 2012, impedidos, naquele momento, de ingressar no território brasileiro e
obrigados a se alojar em local cuja segurança residia apenas no fato deles não
estarem completamente ao relento.
Nem sequer a pálida lembrança dos aclamados “mártires” e “heróis”, havia
ainda sido grafada no cimo do coreto e a água trazida pelo vento da poderosa
tempestade que desabara na noite acompanhada pelos repórteres trazia, talvez, à
memória o fato de que eles estavam, como grupo, sozinhos. Quem poderia
entender o que uma situação como aquela representava para quem estava
exposto(a) a ela? Não seguramente o(s) repórter(es). Este(s), aos poucos,
aprendia(m) a grafar corretamente o nome daquele ponto oficialmente chamado
de Iñapari39, no Peru, e corriam com os equipamentos para locais mais seguros,
apenas retornando ali de tempos em tempos para fazer alguma tomada de
imagens. Muito menos eu, tendo em vista que, como observador ou leitor,
construo minhas representações a partir de um olhar externo ou ainda, sobre
outras representações, e posso, como podiam os repórteres, no tempo de minha
vontade, retornar ao Brasil.
Lembremo-nos então que solidão e abandono não são sinônimos de
conformidade. E isso foi percebido a partir dos reclames apresentados pelos
sujeitos que ali estavam. Recorrendo a anúncios de sua humanidade e de que
não era desejo deles ali permanecer, afirmavam que suas condições se tornaram
38
A enchente do rio Acre de Março/abril de 2012, também foi causa da revogação da
proibição de ingresso dos haitianos no Brasil uma vez que Iñapari foi, nesse período, quase
completamente coberta pelas águas.
39
Na reportagem publicada no sítio agazeta.net do dia 24/01/2012, o nome do município
aparece escrito sem o til e no trecho citado acima, a palavra é grafada com ipsilone.

65
precárias em virtude da proibição de seguir viagem. Impedidos de continuar e
também de retornar (pela ausência de recursos), eram privados da liberdade que
seus espectadores possuíam.
Entre o partir e o chegar, essas pessoas do trânsito (HARDMAN, 2009),
forjam-se em novos errantes como os que povoam o imaginário e a literatura de
tantos outros espaços tão inventados quanto a Amazônia (GONDIN, 1994);
escrevem novas (geo)grafias com as tintas retiradas da presença física de seus
corpos negros, que não puderam ser apagados da constituição dos continentes
ligados pela fluidez atlântica (GILROY, 2001) e exigem, desde muito, suas fatias
desse mundo moderno, que outros tantos desterrados (FANON, 2006)
construíram com suor e sangue, mas também não receberam.
O sonho da liberdade presente em suas falas nos faz pensar que o
“fantasma” da escravidão negra como característica prevalente das Américas
ainda “vive” nestas primeiras décadas do século XXI, mostrando, mais uma vez,
que o simples transcorrer dos dias, meses e anos na linearidade artificial dos
calendários e dos livros de história; que o limiar tecnológico atualmente
vivenciado, não são suficientes para esconder que ainda vivemos, em muitos
aspectos, em uma época psicologicamente localizada entre os séculos XVI e XIX.
A modernidade descumpriu suas promessas ou talvez tenha cumprido aquilo que
não prometeu.
A sonhada integração continental de Simón Bolívar, que a partir de 1810,
receberia auxílio do governo haitiano para seu retorno à Venezuela, para suas
proclamações e conquistas40, ainda hoje não passa de distante e/ou inexistente
lembrança; a emancipação liderada por San Martín tornou-se sinônimo de
restrição do trânsito para os países deste sul da América; do martírio de Tupac
Amaru II, resta a presença física e viva de que a busca pela autonomia e
liberdade é mortificante e necessária. Aqueles homens, mulheres e crianças à

40
C.R.L. James, em seu livro Os jacobinos negros: Toussanit L'Overture e a revolução de
São Domingos, discorrendo sobre a importância da Revolução Haitiana para o mundo além da
abolição da escravidão, afirma que “Quando os latino-americanos viram que o pequeno e
insignificante Haiti podia conquistar e manter a independência, começaram a pensar que poderiam
fazer o mesmo. Pétion, o governante do Haiti, ajudou na recuperação do enfermo e derrotado
Bolívar: deu-lhe dinheiro, armas e uma prensa tipográfica para auxiliá-lo na campanha que
culminou com a libertação de cinco Estados” (JAMES, 2000, p. 364).

66
espera de autorização para poderem prosseguir, podem, mesmo sem palavras,
dizê-lo melhor do que nós.

Bom, o problema é por, é por causa do dinheiro, porque dinheiro é


assim, eles gosta de tomar dinheiro das pessoas assim, na força e “na
tora mesmo”! Além da pressão que eles dão, no povo! Às vezes, eles
seguram o, o, o teu passaporte, te avisa se você não pagar, eles não
entregam o passaporte; eles não deixam passar! E às vezes, não é que
você não pode passar, você pode passar que eles têm que fazer esses
tipo de coisa pra chegar, tirar o teu dinheiro, entendeu! E tu que não é
daí, tu vai ficar na pressão, pensando que eles vão, têm o direito de
mandar você voltar. Aí tu fica é aperreado, desesperado. Se você tem
uma meta na frente pra chegar no Brasil, né? Aí pra tu, como tu fica a,
aperreado, aí tu tem que dar um jeito de pagar, o dinheiro que eles pede,
você tem que dar, pra eles. Aí depois que tu dá esse dinheiro eles, eles
deixa você passar. É pra poder continuar na, na é na viagem. Mas é que
cada canto que é assim! Entendeu? (TERVENKUS PETIT. Entrevista,
02/06/2013, Rio Branco)

Os que não têm como pagar e que estão, por isso mesmo, mais sujeitos à
“pressão” à qual Tervenkus Pettit se refere, tornam-se exemplos a serem
observados pelos demais para orientá-los sobre o que pode ocorrer com eles
próprios, caso não realizem os pagamentos exigidos. Ser mandado de volta se
constitui em temor constante já que houve, por parte do imigrante e de seus
familiares, um grande investimento monetário e psicológico. Permanecer é a
certeza de que novos investimentos deverão ser realizados e outras dificuldades
enfrentadas, caso ainda se queira prosseguir e isso aumenta a “pressão”. Se em
“cada canto que é assim”, o ficar (ali) se torna mais dispendioso e inútil.
A reprodução do discurso elaborado para marcar uma suposta diferença
entre os deslocados advindos do Haiti e outros deslocados que se pensam
inerentemente ligados a um determinado local, também funciona como elemento
de legitimação das “pressões” a que o entrevistado se refere. Isso pode ser visto
na fórmula “E tu que não é daí, tu vai ficar na pressão” por ele utilizada e pela
autoridade que o narrador julga que aqueles que o estão pressionando podem ter
para mandá-lo de volta.

Em cada lugar que você chegar, tem polícia, é a mesma coisa, é uma
luta! Entendeu? Bom, os coiote mesmo, o povo é lascado por causa dos
coiote mesmo, porque lá no Equador, na embaixada tem uns coiotes!
Mesmo haitiano mesmo! Ó, eles que tão trezentos e cinquenta dólar a
minha irmã, a cada um! Entendeu? No, no aeroporto! Aí quando você vai
sair, na mesma saída, eles tão lá fora! Você não sabe de nada, não
conhece num, nenhum lugar! Aí tu tá sendo mandado por eles! O tanto
que eles pede, tem que dar! Ainda eles têm um lugar pra ir levar você,
passar a noite. Aí se o outro dia você vai saí, “te vira!” “Te vira!” E quem

67
te vai levar, entendeu? Eles, eles pegaram trezentos, trezentos e
cinquenta dólar, e esse dinheiro, é, sem fazer nada pra você! Nesse,
com esse dinheiro você não vai(...), não, não, como diz assim? Eles
pegam esse dinheiro pra eles! Nada vai, vai vir de volta pra você! Nem
pensar! Entendeu? (TERVENKUS PETIT. Entrevista 02/06/2013, Rio
Branco)

Nesta fala, Tervenkus Petit apresenta o desconhecimento do local e das


pessoas como elemento preponderante para a extorsão. Os haitianos têm que
“optar” entre um translado cheio de desvios, ameaças e cobranças em que o
investimento não “vai vir de volta pra você” e a permanência frustrante que
garante a perda de tudo o que foi gasto. Nem seguir nem voltar; permanecer sem
ser desejado é possibilidade aproveitada na edificação de novos expedientes
extorsivos cuja não aceitação ou a impossibilidade de atender, pode representar a
diferença entre a vida e a morte; aceitá-los também pode significar o mesmo, uma
vez que não há garantias de que os “acordos” serão cumpridos, de que aqueles
expedientes cessarão.

Esse, esses são os coiotes que moram lá em Equador! O trabalho deles


é esse mesmo! Só pegar o dinheiro dos, dos, dos passageiro; dos
imigrantes que vão passando! Mas não são, não são pessoas de
Equador. São mesmo haitianos! É uma coisa, se tiver como, é, tirar
essas coisas é, seria muito bom! Seria muito bom! São coisas que
deveria ser chamado atenção! Não permitir! Porque eu conheço pessoas
que vende terras, casas, carro deles, pra poder vir nessa viagem.
Entendeu? Aí, as pessoas sai lá com mil, mil e quinhentos, mil e
duzentos dólar, entendeu? É, é trocar dinheiro porque lá no Haiti não é
dólar! Lá é Gourd, o nosso dinheiro, entendeu? Você tem que trocar esse
dinheiro, é muito! Pra poder compra esses dólar! Aí esses dólar você
comprou é pra dá, é pros, é, é pra, os, os caras vêm pegar no seu bolso,
“na tora” e “na força”! Entendeu? Faz que o cara passa até fome na, no,
no meio do caminho, na viagem! É, é um dinheiro que dava pro cara
chegar aqui, ainda sobrava, muito! Muito dinheiro! Não, ajuda de nada!
Esses coiote que tão na, que tão no Equador, é só pra pegar dinheiro e
colocar no bolso deles e deixar você na rua. Se quiser morrer, morre, se
quiser ficar vivo fique! Se não tiver mais você... você que sabe, “te vira!”
Entendeu? Não é um dinheiro, o cara pega pra te ajudar passar fronteira
ou pra te ajudar viajar ou ele vai te acompanhar, não! (TERVENKUS
PETIT. Entrevista 02/06/2013, Rio Branco)

Tervenkus Petit evidencia toda uma rede de exploração ordenada desde o


(mas também sobre o) Haiti, que visa exatamente extrair lucros a partir da
redução e manutenção de indivíduos na condição de pobreza. Tal situação é o
ponto chave tanto no que diz respeito a ampliação das formas de reprodução da
exploração, quanto da promoção daquilo que os tiraria daquela situação. Vender
“carro”, “casas” e “terras” “pra poder vir nessa viagem”, representa, nessa

68
enunciação, abrir mão dos poucos bens que ainda restaram a essas pessoas,
mas também pode ser um questionamento endereçado aos compradores
daqueles bens, que estariam presentes nas casas de câmbio, onde se
“compra[m] esses dólar[es]”, nos agiotas de toda sorte que “facilitam” o crédito ou
nesses “caras [que] vêm pegar [o dinheiro] no seu bolso, ‘na tora’ e ‘na força’”.
Se a meta é chegar ao Brasil, como afirma nosso entrevistado e se “cada
lugar que você chegar, tem polícia, é a mesma coisa”, o que garante que alcançar
o “destino” desejado propiciará uma experiência diferente das vivenciadas até
então? A manifestação no aqui e agora de um futuro melhor e que,
paradoxalmente, já se realizou, pulula entre os dizeres do depoente; de suas
aspirações, anseios e curiosidades a respeito de um Brasil que já idealizou desde
o Haiti e que, no instante em que enuncia, não pode deixar de existir (como
representação).
O Brasil se torna então a projeção de um espaço imaginado e (por isso
mesmo) real, edificado em um lugar “logo após a próxima fronteira”; terra na qual
os exploradores não o alcançariam mais. “Disposição e compreensão” estão
entrelaçadas nessa narrativa como existenciais fundamentais para a “abertura do
ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2002, p.218); o “destino” traçado pelo imaginário é
a realização da existência que une dentro e fora nessa relação entre identidade e
diferença que conforma o homem. Certeza de realização, essa
aspiração/realização incita o caminhar obstinado, pois se a satisfação do desejo
ainda não se efetivou, se as dificuldades continuam, é porque ainda não se
chegou ao local almejado. É neste momento que o permanecer “no meio do
caminho” se torna mais doloroso.
Simultaneamente à idealização do espaço para o qual estariam se
dirigindo, se dá a elaboração de imagens dos e sobre os “viajantes”. Perspectivas
que, assim como “o destino”, já se realizaram em seus imaginários. As
representações dessas duas certezas (sobre o espaço e sobre os indivíduos em
deslocamento) se unem também nas enunciações daqueles que já estão no
Brasil. Chegar a Brasileia ou Epitaciolândia, no Acre, representa, nessas falas, um
afastamento (pelo menos de forma imediata) em relação aos perigos do caminho;
receber auxílio das instituições governamentais, não governamentais e das

69
pessoas comuns desses municípios, faz parecer e aparecer nas enunciações que
a maior parte das dificuldades haviam sido superada.
Repitamos ainda uma vez que a posição de nossos depoentes é de
desconfiança e dependência em relação ao Brasil e aos brasileiros e isso
repercute na perspectiva apresentada sobre suas situações atuais. No entanto,
essas mesmas afirmações se repetem nos e-mails, ligações e contatos pelo
Facebook realizados por eles, o que nos leva a crer que elas se devem muito
mais a uma comparação com a situação anterior do que com o receio que os
enunciadores possam ter de serem malvistos e/ou desassistidos pelos brasileiros.
A assistência recebida pelos recém-chegados repercutiu na maneira como
os brasileiros e os governos de seu país são vistos. Ao contrário das
representações construídas sobre “os peruanos” (principalmente sobre os policiais
e soldados), que são enunciados como “corruptos” e “exploradores”, os brasileiros
são apresentados como “prestativos”, “ordeiros” e “atenciosos”. Em contraposição
aos “Bolivianos” (principalmente taxistas e soldados), que figuram como “ladrões”,
“aproveitadores” e “violentos”, aparecem os brasileiros que os “respeitam”, “dão
abrigo” e “ajudam a tirar seus documentos”, mesmo que eles tenham de ingressar
no país como “ilegais”.
Se as atitudes do governo brasileiro em relação aos haitianos no Brasil
ocorrem de forma incoerente, mais confusa é a compreensão que essas pessoas
têm de sua situação jurídica e quanto ao exercício de seus direitos civis. Nas
conversas que tivemos com alguns deles, repetiram-se rituais de demonstração
de documentos (CPF, Carteiras de Trabalho, Passaportes, Vistos, Protocolos,
etc.). Alguns de nossos interlocutores traziam seus CPFs pendurados por cordões
colocados ao redor do pescoço. Isso era feito para atestar a regularidade ou
regularização de suas estadias/permanências no país e para marcar sua
diferença em relação aos “ilegais”.
Pudemos observar diversos rituais identitários (DAMATTA,1997) ocorrendo
concomitantemente. Esses indivíduos estavam reconfigurando suas identidades
no caos do desencontro entre instituições e práticas daqueles que os
recepcionavam e na interação com os que já adquiriram documentação; com os
que ainda estão chegando ou com os que já trabalham regularmente no Brasil.

70
Demonstrar seus “papéis”41 pode significar que não estão mais “ilegais”, mas
também pode servir para pedir informações a respeito da validade e utilidade
desses documentos; ter a faculdade de se sentir um pouco mais seguro que
aqueles que não os possuem ou se visualizar como haitianos “quase aceitos” ao
universo civil brasileiro.
Com duração relativamente curta, a validade dos vistos de permanência no
Brasil obriga os haitianos a buscar rapidamente locais onde possam encontrar
emprego que lhes possibilite prolongar o direito de estar no Brasil e ajudar
parentes que permaneceram no Haiti. Empregar-se então, torna-se exigência não
apenas na garantia de sobrevivência, mas, igualmente, para pleitear permanência
legal.
Pequenos, com uma estrutura comercial bastante limitada e indústrias
praticamente inexistentes, os municípios de Assis Brasil, Brasileia e Epitaciolândia
(como os demais municípios acreanos) não têm condições para oferecer todos
esses empregos. Mudar, mais uma vez, é a alternativa geradora de frequente
rotatividade nos grupos de imigrantes em Brasileia a esperar pela retirada dos
documentos necessários para que possam seguir viagem. Situação que se torna
obstáculo para formação de grupos de imigrantes mais inteirados dos modos de
proceder e quanto às práticas cotidianas nesses municípios. O fator tempo,
fundamental na elaboração e assimilação das experiências de tradução cultural
(PRATT, 1999) revela-se deveras curto e os que “chegaram antes” nem sequer
tiveram tempo para aprender o que “devem” fazer, mas já estão indo para outras
paragens. Eles não podem transmitir o pouco aprendido àqueles que “chegaram
depois” e estes, não podem contar com uma carga de experiência que poderia
amenizar o choque vivenciado desde o momento de “chegada”.
Se “o narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em
experiência dos que o escutam” (BOSI, 1998, p.85) e lhe é furtado o espaço
cronológico para o remoer dessas experiências através de um esforço de
pensamento realizado ao longo do tempo, então nossos narradores estão em
uma posição semelhante ao Dom Quixote de Cervantes, que “sofre as
vicissitudes do isolamento e, se não consegue expressá-las de forma exemplar

41
Papéis, na fala de nossos entrevistados, são os documentos necessários à estadia e
permanência no território nacional brasileiro.

71
para nós, é porque ele mesmo está sem conselho e não pode dá-lo aos outros”
(BOSI,1998, p. 85).
Citando Kobena Mercer, Stuart Hall propõe que “a identidade somente se
torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo,
coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (HALL,
2006, p. 9). Raramente problematizamos nossa constituição identitária enquanto
não somos questionados a esse respeito ou enquanto uma mudança radical em
nosso modo de vida não nos leva a esse questionamento. É nesse momento que
as identidades são postas em xeque, mas é também aí que elas são
reelaboradas.
Para entrar em outros territórios somos obrigados a obedecer a alguns
rituais (DAMATTA, 1997, p.77) de legitimação identitária (civis e culturais),
apresentamos documentos e comprovantes; tiramos vistos e carimbamos
passaportes; dependendo do tempo de permanência, do interesse e/ou da
necessidade, aprendemos gírias regionais, sotaques e línguas; nos identificamos
pelo nome do lugar de onde viemos. Somos agora rio-branquenses, acreanos,
brasileiros, haitianos, migrantes, imigrantes (legais ou ilegais), refugiados, etc.
Aprendemos a nos relacionar a partir do nome que nos é dado, assumimos
determinadas identidades através dos atributos da linguagem. Começamos a nos
identificar pelo gentílico utilizado na primeira pessoa do plural. Isso ocorre não
apenas por desejo, mas pelas vicissitudes da comunicação, pois é a partir dessa
denominação que se pode relacionar com os outros e/ou pleitear direitos.
No caso dos sujeitos de nossa pesquisa, o vocábulo haitiano é utilizado
como sinônimo dos pronomes “eu”, quando no singular, e “nós”, quando no plural.
Assim, aquele que fala estabelece uma diferença em relação àqueles que
representam o “tu” e o “vós”, os brasileiros. Como nos lembra Édouard Glissant
(2005), na prática social construímos os significados inclusive sobre aquilo que
somos. A identidade reside na linguagem, no reconhecimento de nossa
diversidade em relação ao outro e na comparação estabelecida com ele é que re-
significamos aquilo que somos.
Isso não significa que essas mesmas formas de identificação sejam pontos
fixos, identificáveis e decifráveis, nem que essas diferenças estejam marcadas já
e sempre no mesmo lugar. Elas transitam seguindo a lógica complexa da vida

72
vernácula e as avaliações feitas por aqueles que se dizem e se afirmam desta ou
daquela maneira.
Assim, ao refletir sobre os sujeitos da pesquisa como testemunhas que
narram suas experiências tornando-as comuns como defende Benjamin (1987),
vamos também ao encontro do que nos diz Beatriz Sarlo em seu livro, Tempo
Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Quando a autora aborda a
questão da narração da experiência, afirmando que:

A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença


real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem
experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem
liberta o aspecto mundo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou
de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum.
A narração inscreve a experiência na temporalidade que não é a de seu
acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do
tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também
funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a
se atualizar (SARLO, 2007. p.25).

No ato de comungar sua experiência através da linguagem, o narrador


estabelece outro tempo, funda outro espaço (do corpo, da narrativa ou do corpo
que narra), interpretando o vivido e exprimindo-o através de seus atos
comunicativos, que não são imutáveis e acompanham as relações do narrador
com o tempo e o espaço presentes, e, na interação com estes condicionantes,
constrói e reconstrói; repete, varia, atualiza e escolhe o que deve narrar (BOSI,
1988). Ainda acompanhando Beatriz Sarlo (2007), pensamos que
concomitantemente, cada uma dessas escolhas transitam no campo da inter e da
trans-textualidade, posto que as palavras e as fórmulas utilizadas para
estabelecer a comunicação são anteriores ao próprio narrador, que interage com
a matéria narrada bem como com a posição do ouvinte durante o ato
comunicativo. Ao analisar o caso de Primo Levi, a autora discute essa
problemática nos seguintes termos:

A verdade do campo de concentração é a morte em massa, sistemática,


e dela só falam os que conseguiram escapar a esse destino; o sujeito
que fala não escolhe a si mesmo, mas foi escolhido também por
condições extratextuais. Os que não foram assassinados não podem
falar plenamente do campo de concentração; falam então porque outros
morreram, e em seu lugar. Não conheceram a função última do campo,
cuja lógica, portanto, não operou por completo neles. Não há pureza na
vítima que tem condições de dizer “fui vítima”. Não há plenitude nesse
sujeito (SARLO, 2007, p. 34).

73
Essa ausência de plenitude nos conclama a assumir que “não se pode
representar tudo o que a experiência foi para o sujeito, pois se trata de uma
matéria-prima em que o sujeito testemunha é menos importante que os efeitos
morais de seu discurso” (SARLO, 2007, p. 36). Os atos de lembrar e de narrar o
que é lembrado se tornam versões incompletas que “lutam” para tornarem-se
críveis, construindo sentidos que acabam servindo de matéria-prima também para
aqueles que ouvem ou leem os relatos relacionando os mesmos com o presente.
Para refletirmos sobre as narrativas colhidas junto aos e sobre os
imigrantes haitianos que ingressaram no território brasileiro através das fronteiras
peruanas e bolivianas, a problemática da construção das narrativas é
fundamental, pois não há inocência nessas construções e muito menos nos olhos
e ouvidos daqueles que veem e ouvem esses testemunhos. O que essas pessoas
escolheram contar, porque contar e/ou a forma de contar depende,
fundamentalmente, das situações vivenciadas e pesadas na comparação com as
anteriores. Assumir o papel de vítima, porque este é o discurso que se formulou
sobre determinados sujeitos; utilizar esses mesmos discursos (e não apenas
rechaçá-los) visando alcançar objetivos diversos daqueles para os quais foram
elaborados (CHAUÍ, 1986), faz parte das táticas assumidas por essa “luta”
cotidiana (CERTEAU, 1998) em prol do entendimento e da sobrevivência.
Os gestos e fazeres adotados por esses indivíduos estão, de maneira
semelhante, inscritos nessa mesma lógica de tradução e contextualização do
universo cotidiano. O simples caminhar, sozinho ou em grupo, pode nos dizer
muito sobre suas experiências e, se cremos como afirma Beatriz Sarlo (2007),
que é o ato de narrar que torna comum a experiência, então essas
movimentações realizadas pelos haitianos pelas ruas, parques e praças dos
municípios acreanos também podem ser consideradas narrativas já que nos
comunicam algo sobre seus agentes.
Entre os imigrantes, andar desacompanhado de outros concidadãos
haitianos é mais frequente no município de Rio Branco do que em Epitaciolândia,
Assis Brasil ou Brasileia e isso está diretamente relacionado ao tempo de estadia
no território brasileiro e ao tamanho das áreas urbanas dos municípios. É óbvio
que nos municípios que possuem áreas urbanas maiores a dispersão desses

74
sujeitos ocorre com maior facilidade, no entanto, o que destacamos quanto a ela é
que esta dispersão se deve mais ao fator tempo que ao espacial.
Para aqueles que estão no Brasil há um tempo maior, existe autoconfiança
no que tange aos trâmites legais exigidos, às formas de tratamento, às relações
com os brasileiros e, junto a tudo isso, o aprendizado do idioma ocorre. Nesses
casos, caminhar sozinho pelas ruas e parques acreanos não mais se apresenta
como um desafio tão grande e os “conterrâneos” não necessitam estar sempre
presentes durante essas ações.
Receber proteção e facilidade ao tirar os “papéis” significa o início de uma
recepção no universo político/civil nacional, da mesma forma que receber comida
e tirar o CPF, figuram enquanto possibilidades de ingresso no mundo do trabalho
e dos direitos civis do país. Os próximos passos almejados pelos imigrantes em
seus processos de inserção seriam a ampliação das garantias legais, bem como a
aproximação em relação à “cultura nacional” para poder caminhar sozinho uma
vez que “integrado” (eis um paradoxo que une integração e solidão).
Stuart Hall se refere a esse tema afirmando que as “identidades nacionais
representam precisamente o resultado a reunião dessas duas metades da
equação nacional _ oferecendo tanto a condição de membro do estado-nação
político quanto uma identificação com a cultura Nacional” (HALL, 2006, p. 58). O
acesso à documentação e a proteção das leis é uma parte do processo, a outra,
muito mais complexa e demorada é a identificação cultural. Para esta, a aquisição
da língua do país de ingresso torna-se imprescindível. Por outro lado, “integração”
também é reconhecimento e não está claro se a aquisição da documentação
necessária e/ou do uso da língua é, por si, garantidor dessa acolhida à
“comunidade nacional” (caso ela exista). Nesse sentido, a cor da pele aparece
ainda como marca de alteridade: quanto mais clara a pele, mais tênue a linha
entre o “estrangeiro” e o “nacional”. Somemos a isso as condições financeiras
apresentadas por aqueles que chegam (quanto mais pobre menos aceito) e
compreenderemos de que maneira tem se dado a “integração” haitiana no Brasil.
Essa triste afirmativa nos confere o choque de realidade que evidencia o
chamado “problema haitiano” no Acre e do impedimento ao livre trânsito com o
qual essas pessoas têm que lidar em diversos momentos nesse Brasil “cordial”.

75
2.1 O homem, a mulher e o coiote: políticas na edificação da “vida nua”42

Dentre as personagens que figuram nos enunciados elaborados nas


discussões relativas à imigração haitiana, os “facilitadores”, genericamente
chamados de “coiotes” são os mais recorrentes. Eles são apresentados como
os(as) grandes responsáveis pelas dificuldades enfrentadas por aqueles(as) que
se viram impedidos de entrar legalmente em determinado Estado Nacional.
Entretanto, como veremos nas linhas a seguir, as explicações para a existência de
tal figura, não são tão simples e as técnicas por eles empregadas encontram
assento justamente nas instituições e determinações legais impostas por esses
mesmos Estados sob a intenção alegada de controlar o acesso de estrangeiros a
seus territórios.
Denominação elaborada no contexto das tensões resultantes das questões
imigratórias na fronteira entre os Estados Unidos e o México, o termo “coiote” se
tornou referência mundial nos processos de imigração como “o agente que
conduz imigrantes pelas áreas de fronteira mediante pagamento”43. A apropriação
desse vocábulo em diferentes situações e países desvela não apenas o tipo de
tratamento, cuja referência clara é estadunidense, direcionado aos “condenados
da terra” (FANON, 2006), mas também a tentativa de desvincular a própria
estrutura de funcionamento desses Estados Nacionais, das estratégias de
exploração a que imigrantes são submetidos tanto no trajeto para, quanto no
interior desses países.
Destaque-se da definição apresentada acima, a ausência do termo “ilegal”
logo após a palavra imigração, o que termina por enquadrar na condição de
“coiote” todos aqueles que atuam na condução de imigrantes e que recebam
algum tipo de pagamento por isso. Neste sentido, instituições, agências de
transporte e indivíduos que atuem nesta condução, poderiam ser identificados

42
Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua é o nome do livro de Giorgio Agamben, que
trata das diversas técnicas utilizadas através dos tempos para desvalorizar a existência de
determinados indivíduos, excluindo-os dos aparatos jurídicos e religiosos, impedindo inclusive que
os mesmos fossem, no caso romano antigo, executados pelo Estado ou sacrificados em
cerimônias religiosas, no entanto, poderiam ser assassinados, sem que o autor desse assassinato
pudesse ser penalizado, tendo em vista que, pelo código romano, não teria matado uma pessoa
na plena acepção da palavra. Ver AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida
nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004.
43
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Coiote_(desambiguação)>.acesso em
24/02/14.

76
como “coiotes”, uma vez que cobram pelo translado de imigrantes, no entanto,
não é deste modo que as coisas funcionam.
A ausência do termo “ilegal”, na referida definição de “coiote”, declara a
associação tácita entre imigração e ilegalidade. Discursivamente imbuídos da
presunção de culpa, e não de inocência, invertem-se os pressupostos
constitucionais44 brasileiros e aqueles que imigram devem, quando lhes for
exigido, atestar a legalidade de suas estadias no país. Caso não o façam, uma
série de aparatos linguístico/jurídicos podem ser acionados para enquadrá-los na
situação de ilegalidade. A figura do “coiote” é um desses aparatos.

É, é, é como eu te falei né? Os coiotes serve pra várias coisa, pra várias
coisa: primeiro, eles quer tirá dinheiro do povo; eles, ele é capaz de falar
que aqui, por exemplo, aqui no Acre, uma diária tá mil reais! Você tá num
canto, é ruim de serviço, não tem muito trabalho e o cara vem falar pra tu
que tem um canto ali que a diária tá mil reais! Tu vai ficar ali? Tu não vai
vir não né? Tu vai vir! Negócios, é assim! Aí eles enganam o povo na
mentira, aí o povo cai. Quem, quem, quem não gosta de dinheiro? Todo
mundo tá atrás de uma vida melhor! Atrás de um[...] futuro, mas esse
futuro por vias do, do do, do dinheiro, entendeu? Aí esses povo fica
animado, aí eles diz “Ah, se é assim, eu vou pro Brasil”! Aí eles fica
animado, os coiote vêm e pega eles e trazem até aqui. Mas quando
chega aqui, viu, eles veem, ele vê outra coisa (…) Problema esse tá
acontecendo, por causa dos coiotes! A maioria dos haitianos, que tá
vindo de fora, dos Estados Unidos, do México, da ééé, da Espanha, em
todos, em todos os países do, do, do, do mundo. É através dos co, dos
coiotes! Entendeu? Através dos coiotes! Eles falam mentiras, coisa que
não é! Entendeu? Aí as pessoas cai! Cai! Cai na mentira! Entendeu? É!
Eles falam assim: “Brasil é bom!”; “Brasil, tem um salário muito alto”. É,
“Paga, tem canto que paga dois mil uma diária; tem canto que paga mil!”.
Assim, quer dizer eles, chama, chama, chama! E um vai falar pro outro,
já era! Entendeu? Mas, são problema dos coiotes! Entendeu?
(TERVENKUS PETIT. Entrevista, Rio Branco 02/06/2013)

A afirmação de Tervenkus Petit de que “os coiotes servem para várias


coisas”, nos permite visualizar a fluidez do significado deste termo e de suas
formas de utilização. No singular ou no plural, o termo é sempre utilizado na forma
masculina, o(s) coiote(s), e estabelece uma classificação homogênea para definir
sujeitos que atuam de diversas maneiras e em momentos distintos na exploração
de quem tenta, através da imigração, melhorar suas condições objetivas de
existência. Essa homogeneização oculta a elaborada estrutura que enreda
instituições públicas e privadas como partícipes (conscientes ou não) nessa rede
de exploração.

44
BRASIL (1988).

77
Ao transferir o crédito dessas práticas exploratórias para indivíduos que
atuam nas chamadas áreas de fronteira, essas instituições se eximem da
responsabilidade sobre tais ações e, concomitantemente, lançam “coiotes” e
imigrantes em uma confusa área em que suas “ilegalidades” se misturariam. Ao
destacar os locais de onde estão partindo os haitianos em direção ao Brasil,
Tervenkus Petit nos faz lembrar que a pobreza tem se reproduzido e que, seja nos
Estados unidos, no México ou na Espanha, esse problema se repete.
Subjacente às estratégias de objetar o tráfego e o acesso de haitianos às
fronteiras nacionais brasileiras, existe uma coletânea de práticas exploratórias
que têm se retroalimentado das mesmas proibições e da manutenção do Haiti em
uma posição de dependência. Assim, dependência e promessas de alternativas
viáveis e lucrativas funcionam como arregimentadoras da imigração haitiana, mas
também existem como razões para a manutenção da situação de pobreza em que
aquele país está.
É possível afirmar que os arregimentadores agem em consonância com as
legislações e que os códigos atuam, indiretamente, talvez não intencionalmente,
para que essas possibilidades comensais da lei existam. A precarização da
condição humana torna viável uma série de rotinas exploratórias sobre quem está
na frágil situação de “ilegalidade”. Exemplos disso são as ameaças de delação
que ocorrem durante a viagem ou os empregos com baixa remuneração
oferecidos aos imigrantes sob o argumento humanitário, destinado a auxiliar os
“desassistidos”.
Essa alegada desassistência para “justificar” o subemprego, põe sob
rasura a ideia de exclusão ou de marginalização desses sujeitos, levando-se em
consideração que a exploração não pode ser efetivada sobre aqueles que estão
fora de um determinado sistema. Entretanto, a classificação dessas pessoas
através do uso desses termos, se constitui em estratégia para desobrigar o
próprio sistema de responsabilidade. Através de aparatos jurídicos/linguísticos,
esses indivíduos são transformados em “marginais” ou “excluídos”, o que, de
acordo com essa lógica, isentaria instituições, estados e pessoas do compromisso
de zelar por esses seres humanos, uma vez que estes estariam “fora do alcance”;
“para além da margem”. Por outro lado, as estratégias utilizadas no intuito de
“incluí-los” são confusas e demoradas, criando um contingente crescente de seres

78
humanos à espera de documentação e/ou regularização documental, prontos para
o trabalho.
Essas pessoas passam então a ser tratadas como “problema” e as
“propostas de solução” são indicadas em resoluções conjuntas tomadas pelos
governos haitiano e brasileiro, passando pelas determinações de Bolívia, Peru e
República Dominicana. A limitação e o controle da concessão de vistos a
haitianos, exercida desde o Haiti pelo governo do Brasil através da embaixada
naquele estado; as pressões para que os vizinhos andinos auxiliem o Brasil na
“solução” desta questão e mais recentemente a ameaça de fechamento da
fronteira dominicana à entrada de haitianos naquele país, além de não
minimizarem as causas da dispersão, ampliam as dificuldades de quem insiste
em se retirar do Haiti. Esse incremento nas exigências para a saída torna-se base
para a venda da “facilitação”. Dito de outro modo, mais fácil se torna a saída de
quem consegue os meios (pecuniários) para pagar por essa “facilidade”.
Para driblar as causas do espalhamento haitiano e atender a
inconformidade com as situações vivenciadas nos Estados Unidos, no México, na
Espanha e em “todos os países do mundo”, como afirma Tervenkus Petit, é
oferecida a esperança da ascensão econômica, que possibilitaria “uma vida
melhor” ou um “futuro por vias do dinheiro”. Nas palavras do entrevistado, o futuro
é o tempo das realizações, o que nos dá uma ideia da interpretação realizada por
esse sujeito no e sobre o tempo presente em uma perspectiva que se aproxima
do que defende Beatriz Sarlo (2007).
Um pouco das percepções sobre essas fórmulas adotadas para manter o
Haiti e os haitianos na condição de dependência, o que, como dissemos, termina
por fomentar a emigração, pode ser observada a partir de outra fala de Guinot
Guerlin

Fala é música, eles que cantam essa música, eles falam sobre as
político, como que os políticos do país, eles vai sempre falar, mas é,
fazer ação mesmo para desenvolver o país, ficou mais difícil. Ali sempre
eles cantar, falar sobre as condições do povo, como o povo tá vivendo,
falam que eles têm que ter uma ajuda, ter uma reforma na forma do
governo (...) aqueles tem, esses tipos de música não tem, nesse sentido.
Mas tem outro que cantar, mas esses que canta assim, não é exato,
evangélico! Mesmo se a pessoa é evangélico, ele cantar canção
evangélica, mas tem algum canção que ele fez mesmo que não é direito
evangélico; cantar sobre a político. Bom, quando eu saí lá, teve um, um
eleição, ele chama Michel Martelli, ele que governa lá agora, ainda tá lá.

79
Mas, na verdade, quando um país que tá num, num, como assim, num,
falha, ele tá como muita febre, muito é, não tem poderoso pra fazer
alguma coisa. Se o presidente, ele queria fazer uma coisa, mas se não
tem condição econômica, ali, as coisas ficam mais difícil para se
desenvolver. Ele queria fazer, mas não tem condição de fazer. Ali
sempre, o povo fica reclamando, mas, não tem como, fazer as coisas
mais para satisfei, deixar o povo satisfeito (...) um país que dá ajuda,
ajuda com dinheiro pra fazer alguma coisa, mas, pra se desenvolver, tirar
o povo do sistema que tem, que se mais precisar, eles não, não faz isso!
Porque é assim, por exemplo, o país que dá mais ajuda, como se foi os
Estados Unidos, por exemplo, por exemplo, é, da forma que ele dá
ajuda, ele vai dar uma ajuda para, por exemplo, o país precisar de um
sistema agricul, agricultura mais avançada, mas ele não vai fazer isso
para desenvolver o sistema agrícola, porque ele vai querer sempre que o
país comprar a comida na casa deles. Ali, se o país mesmo não tem
como dar uma olhada pra perceber esse, esse sistema pra que ele sai,
mesmo se ele dar a ajuda, eles não vai ajudar a sair dessa forma.
Porque eu, perceber que o país, o mais importante que ele precisa só no
sistema agrícola, mesmo se, a verdade é que o país tem alguma coisa,
porque, pra sustentar o país, não muito forte, pra sustentar toda a
população, mas, sempre comprar alguma coisa fora e por isso mesmo o,
o governo americano, eles não, nunca vai dar uma ajuda pra sair pra fora
(...) O Brasil, na verdade eu não sei, o direito, todos tipo de ajuda, que o
país recebeu, mas só da Força Militar, o Brasil cedeu, o Brasil já dá ajuda
lá no, na segurança, porque no primeiro tempo tinha um, uma força
militar, o país tinha. Se ano, mil novecentos e noventa e, quatro, acho.
Ali, esse governo, esse tipo de militar, ele começar a fazer muitas coisas,
diferente, que o povo não fica satisfeito, maltratar o povo. Ali o povo, não
queria mais esse tipo de militar, por isso, tem um presidente que, que já
subir, no, no, no governo, ali ele já excluir esse tipo de militar. E depois
disso, mesmo se o governo que já queria fazer outro tipo de militar,
queria ter alguma coisa, mas o povo não queria, porque ele pensar que o
mesmo, a mesma coisa vai se acontecer. Na verdade tem polícia, mas o
militar mesmo, não tem! Como o povo sempre fica reclamando,
reclamando, faz alguma coisa diferente: quebra as coisas, queima as
coisas a se reclamar. Ali, pra se defender, o governo pedir ajuda pra
outro país. Ali dá o segurança, pra dar segurança. Aí é por isso que tem
essa força, ainda estão lá! Não sei como tá, se tá do mesma coisa, como
estava. Não sei! É o MINUSTAH! Na verdade o MINUSTAH, não só o
Brasil, mas é um, internacional, uma força internacional. Tem, o Brasil
tem uma parte, Estados Unidos, Cuba, todas é todos os países têm uma,
parte qual mais poderoso que tem lá. Só eu sei, o chefe, que comanda
essa força é um brasileiro. Lá mesmo, eu conhecia só coisa de futebol.
Não sabia nada mais, sobre o Brasil. Na verdade a gente só tem que
fazer algumas pesquisas através da internet, mas, a gente não fez só
queria vir pro Brasil já, a gente sair (GUINOT GERLIN. Entrevista, Rio
Branco,11/08/2013)

Inicialmente falando sobre canções, Guinot Gerlin chama atenção para a


relação existente entre política e religião, afirmando que lá, no Haiti, existem
composições que “não é exato, evangélico”. A falta de “exatidão”, na acepção de
Guinot Gerlin, diz respeito ao afastamento daquilo que seriam manifestações
meramente religiosas, no caso da música, das práticas ou reivindicações
políticas. Na perspectiva apresentada pelo entrevistado, ainda que alguém seja

80
evangélico, ele pode “cantar sobre a político”, talvez porque, se ele não cantar,
também fará política através do silenciamento diante das “condições do povo,
como o povo tá vivendo”, então os artistas “falam que eles têm que ter uma ajuda,
ter uma reforma” no governo. Aliás, de acordo com Guinot Gerlin, as canções vão
continuar sendo cantadas exatamente para denunciar a falta de atitudes de
governantes que vão “sempre falar, mas é, fazer ação mesmo para desenvolver o
país, ficou mais difícil”.
Neste ponto, ele relaciona a inatividade dos políticos locais à política
internacional e à situação de dependência experimentada pelo Haiti. Em um relato
simples, ele enumera os tipos de “auxílio” destinados ao estado haitiano,
destacando o fato de que essa “ajuda” não é direcionada para aquilo que o país
mais necessita que, em seu modo de pensar, seria tirar o país da dependência.
Para Guinot Gerlin, a agricultura deveria ser incentivada e desenvolvida, o que
não ocorreria, de acordo com ele, pelo interesse em manter a fraqueza e a
dependência do Haiti frente àquelas potências, que lhe prestam auxílio justamente
para que o país continue necessitado. É por isso que “eles não, nunca vai dar
uma ajuda pra sair pra fora”.
A partir do exemplo das estratégias de “auxílio”, implantadas pelos Estados
Unidos, Guinot Gerlin começa a discorrer sobre a presença brasileira no Haiti,
também incluindo o Brasil no bojo de nações que prestam “ajuda” ao país
caribenho. Assim, ele fala sobre o descontentamento geral da população quanto à
estrutura político-econômica do Haiti e sobre os modelos de segurança
elaborados e implementados para controlar as manifestações populares que
reivindicam melhorias nas condições gerais de vida.
Segurança e controle social figuram como sinônimos nas práticas descritas
por Guinot Gerlin, assinalando os beneficiários desse modelo de segurança que
seriam o governo do Haiti e os países que lhe prestam auxílio e não os haitianos.
Desse modo, o Brasil também colaboraria na manutenção da “ordem” no Haiti,
uma vez que a nação sul-americana “não tem como dar uma olhada pra perceber
esse, esse sistema pra que ele sai, mesmo se ele dar a ajuda, eles não vai ajudar
a sair dessa forma”. Concomitantemente, como uma espécie de preparação e
facilitação para a presença brasileira no Haiti, recorre-se a poderosos
instrumentos de intervenção cultural, centrados nas práticas desportivas,

81
notadamente o futebol, também apontado por Guinot Gerlin, como um dos
elementos fomentadores do desejo de sair do país e seguir para o Brasil.
Dependência e pobreza figuram nessa narrativa como instâncias
fundamentais tanto no que concerne ao país, o Haiti, quanto para as tentativas de
controle da população haitiana; tanto daquela que fica, quanto da que deseja,
bem como de alguns que efetivamente saem de lá. A segurança é oferecida para
proteger o governo do povo, que exige alternativas para a situação em que está.
À medida que a procura por essas alternativas (e a emigração é uma delas)
crescem, os valores cobrados e as formas de extorsão se especializam
evidenciando a lucratividade desse sistema.

naquela época que eu sai de lá foi um pouco mais, mais fácil porque era,
era no começo que ninguém, é essas pessoa que tão, que tão
explorando o povo agora no meio do caminho não tava, não tava tão
esperto para fazer essas coisa, entendeu? Mas enquanto o povo vinha
chegando ai eles fica mais, mais esperto pra explorar mais pessoas, pra
fazer mais coisas com eles, mas naquela época que eu vim foi 2011, aí
eu, deu um trabalho lá no Peru, mas é porque foi por causa da, é da
cultura que é diferente né! Tem coisa que eu não gostei de lá, entendeu?
Além do que eu, quando eu... nós, nos chegamo lá em Lima, aí de Lima
nós pegamo um ônibus pra ir lá pro Desaguadero, aí Desaguadero é
um, é uma cidade que faz fron, é fronteira com, com Bolívia. Aí só
quando nós chegamo lá, a polícia da Bolívia, eles pediram pra cada um
do nosso grupo tinha, é, se se alguém não tiver com quinhentos dólar,
não podia passar porque (pausa) não podia passar, não deixava
ninguém passar. Aí eles per, perguntavam se cada um de nós tava com
quinhentos dólar, o único que tinha mais dinheiro era eu! A maioria, tem
um bocado que tinha vinte dólar, cinquenta, cem, duzentos, mas o único
que tinha mais era eu. Éramos doze, do grupo que vinha. Aí nós temos
que voltar pra trás, porque na hora que nós chegamo lá, não tinha mais
transporte, era sete horas da noite (TERVENKUS PETIT. Entrevista, Rio
Branco, 02/06/2013,).

Nessa passagem, a demonstração do dinheiro serve como base de dados


para futuras cobranças sobre os imigrantes que são impedidos de prosseguir.
Eles são constantemente sondados para que os próximos agentes da conexão,
saibam exatamente de qual deles poderão extorquir. Nesse ponto, torna-se visível
a relação entre insegurança e a venda de proteção existente entre os chamados
“coiotes” e as instituições oficiais. Os “coites” ameaçam se tornar delatores
daqueles que descumprirem as “regras”, deixando claro que agem em
conformidade com elas, e, como parte desse “regulamento”, estão inscritas as
instituições oficiais. Paga-se pela proteção, inclusive contra aqueles que dizem

82
proteger quem está pagando, e os agentes fiscalizadores dos Estados Nacionais
se tornam policiais em prol da conservação deste ordenamento.

naquela época não era tão, tão complicado como, como, como um
tempo de agora, entendeu? Porque naquele tempo que, que eu vim aqui,
não era tão difícil porque, só paguei num canto que é na fronteira Peru
com Equador. Os imigrações de lá nos fizeram entrar num quarto com
eles, cada quem pagou vinte dólar, pra deixar passar. Aí de lá nós
pagamo um, nós chegamo em, em, em Lima que é capital do Peru. Aí de
lá só pagamo a passagem é, viajando, é direto. Não teve essa frescura
que tem agora com, com os haitiano: exploração e mui... hu, humilhação,
naquele tempo não, não não tinha (TERVENKUS PETIT. Entrevista, Rio
Branco, 02/06/2013)

Ocorre aí uma deturpação das exigências estabelecidas para concessão de


vistos e passagem aos turistas45. A renda exigida como pagamento pelos agentes
da imigração peruana deveria, no máximo, consistir da comprovação de sua
existência, e, para isso, a simples apresentação de um comprovante impresso
(como um contracheque ou extrato bancário) seria suficiente para atestá-la. No
entanto, o que ocorre é a cobrança para a concessão do trânsito e o argumento
de que, sem ela, ninguém poderia prosseguir. O Estado, representado por seus
agentes, atua, no exemplo narrado, como o grande agenciador e “coiote”, não
estando, portanto, desvinculado dessas formas de exploração.
A percepção de Tervenkus Pettit de que na época em que veio para o
Brasil, “não teve essa frescura que tem agora”, parte da constatação de que a
organização dos grupos e instituições que exploram os imigrantes adquiriu, entre
os dois períodos, um patamar especializado, e, acompanhando essa
especialização, o número de pagamentos e valores cobrados também foi
ampliado. Refletir sobre a afirmação de que os agentes da imigração peruana os
fizeram, já naquele momento, entrar em um quarto, para exigir-lhes dinheiro, nos
permite afirmar que aqueles impedimentos, as referidas “frescuras”, existiam sim,
embora em menor escala. O que houve foi a ampliação desses abusos, e, por
outro lado, um maior número de denúncias a esse respeito.
Relatos de exploração econômica, assaltos, roubos, agressão física, abuso
sexual e até assassinatos foram e estão sendo noticiados pelos veículos de

45
De acordo com Fernand Jean Pierre esta é a modalidade de visto utilizada pelos
haitianos a partir da República Dominicana para transitarem por todos os países de língua
espanhola (nas Américas). FERNAND JEAN PIERRE. Entrevista 31/01/2012, Brasileia.

83
imprensa e denunciados junto à Polícia Federal Brasileira e à Secretaria de
Justiça e Direitos Humanos do Acre, chegando à Organização dos Estados
Americanos (OEA)46. Os relatos colhidos e as denúncias realizadas dão conta de
que essas práticas abusivas fazem parte de uma estratégia de intimidação que
visa fragilizar o imigrante, que, diga-se de passagem, já está fragilizado por ter de
viajar como “ilegal” por uma rota que ele não conhece e submetido a regras que
podem variar muito, dependendo do momento ou da quantidade de recursos que
essas pessoas disponibilizem.
O fundamento para essas práticas parece ser a elaboração de discursos
diferenciadores e hierarquizantes nos quais estariam inscritos os indivíduos
envolvidos nesses eventos. Quanto mais próximos da base dessa hierarquia
classificatória, mais expostos às formas de exploração estariam os sujeitos.
Assim, é a negação do princípio da igualdade que possibilita a elaboração de
discursos que visam legitimar práticas exploratórias multifacetadas.
Em relação aos imigrantes haitianos, essas ações criminosas ocorrem
mediante uma composição de elementos variados para produzir uma ideia de
inferioridade. Supostas ilegalidades cometidas no acesso ao território brasileiro; a
condição de pobreza em que aqueles indivíduos estão e a cor de suas peles se
tornam (no interior desses discursos) fatores de identificação do grupo que se
quer desqualificar, retirando (discursivamente) deles os requisitos capazes de
mantê-los na condição humana. Essa negação ao tratamento jurídico/social
isonômico, como afirmamos, se torna resultado e fundamentação para práticas
discriminatórias, dentre as quais podemos citar o racismo.

O senso comum sugere que o racismo é um fenômeno antiquado, que


deveria se enfraquecer aos poucos, num processo quase linear com a
passagem do tempo. O erro dessa ideia é imaginar que a escravidão
negra tenha sido algo como um ponto culminante do racismo. Mas o
instituto legal da escravidão não tem relação com o racismo e não
precisa dele para existir: os negros não eram escravos por serem
negros, mas por terem sido convertidos à condição de mercadorias nos
quadros do sistema político e jurídico que admitia a extensão do direito
de propriedade ao corpo humano. O racismo organizou-se de fato
apenas no outono do sistema mercantil- escravista que integrava
Europa, América e África (MAGNIOLLI, 2009, p.117-18).

46
Conforme reportagem veiculada pelo sítio http://www.ac24horas.com, do dia 23/082013, a
ONG, Conectas, pediu, nesta mesma data, a realização de uma audiência temática na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA, para discutir as condições e o atendimento aos
imigrantes haitianos que entraram ilegalmente no Brasil.

84
Exercício de exclusão e exploração bem conhecido no mundo
contemporâneo, o racismo emerge fortalecido justamente no momento de crise
dos regimes escravagistas. Exatamente no período em que estavam sendo
discutidas maneiras através das quais todos os homens se tornariam iguais, outra
questão se tornava evidente, a saber: de que maneira poder-se-ia justificar a
desigualdade entre os homens em um universo jurídico pautado pela igualdade?
A questão racial emerge de um contexto em que circulam as exigências
gêmeas liberdade e igualdade (que se tornaram lemas durante a Revolução
Francesa 1789-1799). Discussões que tiveram repercussões e (também) suas
raízes no continente americano, evidenciando aquilo que C.R.L. James já
destacava no final da década de 1930, quando afirmava que “os africanos ou
seus descendentes, em vez de serem constantemente objeto da exploração e da
feridade de outros povos, estariam eles mesmos agindo em larga escala e
moldando outras gentes de acordo com suas próprias necessidades” (JAMES,
2000, p. 11).
A constante luta por liberdade levada a cabo por homens e mulheres
relegados à condição escrava dentro e fora das Américas, exercia suas
influências sobre a organização do próprio sistema escravista. Os códigos
voltados ao controle da mão de obra escrava, bem como os diversos castigos
físicos aos quais eram submetidos os “indisciplinados”, referendam a tese, não
apenas de que esses indivíduos não foram destituídos de vontade, mas também
de que suas lutas, aspirações e desejos tinham reflexos sobre a atuação de quem
estava na outra ponta do chicote e o empunhava na tentativa de eliminar esses
desejos e aspirações.

A dificuldade residia no fato de que, embora fossem apanhados como


animais, transportados em cercados, atrelados para trabalhar ao lado de
um cavalo ou de um burro, sendo ambos feridos pelo mesmo chicote,
colocados em estábulos e deixados para morrer de fome, eles
permaneciam, apesar de suas peles negras e dos seus cabelos
encaracolados, quase irresignavelmente seres humanos; com a
inteligência e os rancores dos seres humanos (JAMES, 2000, p.26).

Ao estudar o exemplo de São Domingos, atual Haiti, C.R.L. James aborda


essa disputa entre feitores e escravizados. Ali a luta pela liberdade radicalizada a
partir de 1792, trazia à baila a possibilidade de criar homens iguais no que
concerne à cidadania. Caso a primeira exigência (liberdade) não pudesse deixar

85
de ser atendida pelos proprietários e seus (deles) representantes, a segunda (a
igualdade) deveria ser impedida a todo custo. As vitórias de São Domingos sobre
as três maiores potências econômicas e militares do final do século XVIII e início
do XIX, configuravam-se em exemplo que poderia ser seguido pelos escravos
(territórios e pessoas) do planeta, e, por causa disso, “tinha de ser” silenciado. O
novo país “deveria ser” condenado à miséria, e, desse modo, servir de modelo
negativo aos escravos (territórios e pessoas) do mundo47.
É a partir deste ponto e durante todo o século XIX, que se fortalece a
associação entre cor e uma suposta inferioridade que legitimaria a persistência do
tratamento desigual. Em alguns casos, como o dos EUA, por exemplo, essa
inferiorização tinha amparo jurídico nos códigos e leis elaboradas especificamente
para este fim. Em outros países, como o Brasil, não houve embasamento jurídico
para essas práticas discriminatórias lastreadas em critérios raciais após a
abolição. Isso não quer dizer que elas não pudessem (como de fato foram) se
inscrever nas práticas cotidianas adotadas em relação aos negros no país. Se a
pobreza já se constituía na principal marca de distinção social, a cor passaria a
ser uma das formas utilizadas para sua identificação. Seria necessário perpetuar
“a marca que a escravidão deixou” (JAMES, 2000, p.50) para que houvesse
distinção entre os seres humanos em um universo jurídico que afirma a igualdade
dos cidadãos.
Durante séculos, os estados nacionais (ou os reinos, territórios e colônias
que mais tarde os constituíram), exploraram o trabalho escravo como base pra a
geração de suas fortunas. Quando houve a negativa de inserção dos negros livres
no universo pleno dos direitos civis, ocorreu simultaneamente o lançamento da
grande maioria dos “ex-escravos” e de seus descendentes em uma realidade em
que a miséria se perpetuava. Cor e degradação estavam, através dessas práticas,
associadas, e poderiam ser utilizadas como legitimação das mais variadas formas
de discriminação. Identificados como pobres por serem negros ou identificados

47
Michel-Rolph Trouillot, ao se referir a alguns episódios da história haitiana, elabora um
intrincado estudo a respeito dos silêncios que ocorrem na produção historiográfica. De acordo com
o autor, ocorrem silenciamentos na fabricação das fontes, na criação dos arquivos, na própria
narração da história e, na utilização/interpretação da história narrada. Enunciação e silenciamento
são instâncias inseparáveis na concepção do autor e podem ser utilizadas na edificação de
determinadas visões acerca do passado. A esse respeito ver TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing
the past: Power and the production of history. Boston: Beacon Press, 1995.

86
como negros por de serem pobres, podemos agora compreender as razões que
levaram ao fechamento das fronteiras brasileiras aos imigrantes haitianos no
início do ano de 2011 (medida repetida total ou parcialmente, entre aquele ano e
este de 2014). Ocorria uma evidente elaboração discursiva (palavra e prática) que
demarcaria as posições ocupadas pelos “excluídos” “de dentro” e os que vêm “de
fora” do Estado Nacional brasileiro.
Esses discursos produzidos nas e difundidos pelas instituições de governo
(nacional e estadual) oficiais e/ou através dos posicionamentos veiculados pelas
mídias e por indivíduos das mais diversas esferas sociais, incidem diretamente
sobre as formas de identificação dos sujeitos enunciados por esses discursos,
sujeitos que passam a se identificar a partir de suas habilidades e/ou intenções
laborais, na tentativa de fugir dos estigmas discriminatórios atribuídos às suas
condições de negros pobres, provenientes do Haiti.
A “abertura” a uma (sub)cidadania apresentada como benesse estatal ou
filantropia assistencial é a fórmula adotada para solucionar o “problema haitiano”.
Evidentemente, essa fórmula é assumida sem a anotação de que ela apenas se
tornou possível graças a um esforço institucional e internacional no sentido de
lançar os haitianos na pobreza mediante a manutenção do Haiti em uma posição
de dependência, do fechamento ou da restrição do acesso às fronteiras e das
consequentes medidas adotadas por aqueles indivíduos para o ingresso no
território nacional do Brasil.
É a situação de ilegalidade documental ou irregularidade quanto à estadia
no país quem cria as condições para que estes “excluídos” sejam tratados como
tal. Aliás, é este o objetivo (não declarado) dessas práticas, minar a segurança
desses sujeitos, torná-los cada vez mais dependentes para que possam, a partir
de então, serem tratados como simples números representativos de uma mão de
obra barata e disponível.
Por outro lado, entre nossos entrevistados verificamos de forma recorrente,
relatos dando conta de que, ao se sentirem lesados por patrões e empregadores,
muitos haitianos têm abandonado esses postos de trabalho mesmo correndo o
risco de serem tachados de “vagabundos” ou acusados de “ingratidão” por
aqueles que lhes prestaram esse tipo de “assistência”.

87
É importante anotar que o processo de exploração e agenciamento tem
início no (e sobre) o próprio Haiti e é ampliado e reformulado de acordo com as
possibilidades existentes no trajeto e no ponto de chegada. O fechamento das
fronteiras, por exemplo, em vez de empecilho, torna-se “justificativa” para
ampliação dos valores cobrados em diversos momentos da viagem. O “fator de
risco” alegado é a proibição do livre acesso às fronteiras nacionais do país
destino. A rigidez da vigilância e a busca por vias alternativas de ingresso fazem
com que os valores se multipliquem, também porque partes destes pagamentos
devem ser repassadas a alguns agentes públicos que deveriam fiscalizar a
imigração ilegal e seus agenciadores. Isso quando não são esses mesmos
agentes públicos que atuam como “coiotes” em alguns trechos da viagem.

A polícia do Peru, que são imigração, né? Eles explora muito o povo!
Eles tomam o dinheiro do povo! Além de to, além de tomar o dinheiro do
povo, eles mandam as mulheres tirar a roupa; ficar nu; eles faz que está
investigando se alguém leva, é tem trazido drogas ou armas de fogo ou
qualquer tipo de armas, mas, não precisa você mandar uma mulher tirar
a roupa, ficar nu! Não precisa! Isso é uma hum, humilhação! Na frente de
todos os homens aí! É uma humilhação! Somos ser humano! Uma
pessoa não precisa ser tratado desse jeito! Não precisa, entendeu!? Não
precisa! Quer dizer que, só porque as pessoas não é daí, não é de lá ou
porque tá passando, né? Aí a pessoa pega e se aproveita de qualquer
ma, é de qualquer maneira, entendeu? O problema é esse: eles toma
muito dinheiro das pessoas; faz que as pessoa chega no meio do
caminho, se não tiver algum parente pra, pra fazer uma chamada e pedir
dinheiro pra mandar, pra eles poder continuar na viagem e fica aí
mesmo! A pé! Fica aí mesmo, entendeu? (TERVENKUS PETIT.
Entrevista, Rio Branco, 02/06/2013).

A partir desta significativa passagem, podemos refletir sobre o que


justificaria tais práticas. Desde o Haiti, um requintado processo discursivo de
desumanização vem sendo acionado. Processo cuja inversão só seria alcançada
mediante remuneração. Desumanização questionada por nosso entrevistado, que
afirma com outras palavras, que o deslocamento ou a ausência de vínculos
nacionais com um determinado território, não tira a humanidade daqueles que por
ali transitam e que “uma pessoa não precisa ser tratado desse jeito”.
“Irresignavelmente humano”, como afirmaria C. R. L James (2000), Tervenkus
Petit, reafirma sua humanidade para contestar a violência a que estão sendo
submetidos os haitianos que vêm para o Brasil.
Ele percebe que é a visível tentativa de transformação dos indivíduos em
“não-humanos”, o que possibilita tais atitudes, por isso, insiste na afirmação de

88
que os haitianos são ainda e sempre humanos e não precisariam ser tratados
daquela maneira. Ao enunciar essa humanidade presente entre aqueles que
estão sendo humilhados, Tervenkus Petit também lança um questionamento aos
praticantes de tais violências, tentando saber se esses “outros”, que lhes
exploram e humilham, são ou algum dia foram, também, seres humanos. Esse
questionamento parte da concepção de que um homem não deveria impingir tais
sofrimentos a seus pares, pois, quem pratica atos como aqueles, estaria se
distanciando da humanidade, condição precípua para o tratamento insensível
oferecido aos “outros” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.157-194). A
humanidade, nesse enunciado, conclama os autores de atos de desrespeito à
integridade humana a repensarem suas práticas, uma vez que elas não seriam
“coisas de seres humanos”. Esse reconhecimento poderia proporcionar a revisão
das atitudes e o fim daquelas atrocidades, recolocando todos no mesmo patamar
(de igualdade) cuja humanidade seria a referência.
“Mandar as mulheres tirar a roupa; ficar nu” é prática inserida nesse
processo de desumanização. Além do abuso em si, ela se configura em eloquente
demonstração de poder que incide não apenas no somático, mas sobre as
representações de masculinidade e feminilidade dos sujeitos que
executam/sofrem/observam essas ações. Aliás, elas são realizadas a partir do
lançamento dos sujeitos na condição de “natureza” vista aqui como o feminino,
que deve ser dominado e submetido. Quando o entrevistado enfatiza que elas
não apenas ficavam nuas, mas o faziam, “na frente de todos os homens”, ele
inscreve em seu enunciado as formas de organização social, que lhe serviram de
base para ordenar, explicar e orientar seus fazeres no mundo; suas experiências
transformadas em narrativa deixam transparecer de que lugar social ele está
falando. Ele é “homem” como os demais que também observam a humilhação a
que estão sendo submetidas as “mulheres”. É sobre essas representações (de
homem e mulher), que age fundamentalmente a exposição pública daqueles
corpos despidos. É no gerenciamento desses corpos que se produz a vida nua
(AGAMBEN, 2004), pois é a partir do somático que se constroem as
representações.
Finalidade e princípio das elaborações discursivas, o corpo é, a todo o
momento, transformado em signo, e, como tal, re-significado para poder

89
comunicar. O corpo posto em linguagem como toda experiência passível de
comunicação, ordena e é ordenado por uma coerência inseparável das
disposições ou situações sociais dos sujeitos que o enunciam. O corpo, neste
sentido, é a experiência que comunica (e se comunica). É por ele que se luta! E
as batalhas se dão pela vida ou até a morte.
Os emolduramentos que nos dariam a definição do que seria “tipicamente”
masculino e/ou feminino estão inscritos nessas conturbadas disputas, trocas e
tensões que caracterizam o trato entre seres produtores de linguagem.
Enquadramento edificado e reproduzido ao ponto de nos fazer quase esquecer de
que o modo que são as coisas tem uma origem e uma forma de organização que
não são legados pelo divino e podem ser transformados pelos agentes de sua
criação: os seres humanos.
Rigidez que tolhe a interpretação, imagens que:

povoam nossos sonhos, irrigam nosso imaginário, tramam a literatura e a


poesia. Pode-se amar sua beleza, mas recusar sua pretensão de
também contar a história das mulheres, mascarada sob os traços de
uma dramaturgia eterna _ em qualquer lugar, sempre, o coro das
mulheres_ e de uma simbologia congelada no jogo dos papéis e das
alegorias. É preciso desprender-se delas, pois moldam a história dentro
de uma visão dicotômica do masculino e feminino: o homem criador/ a
mulher conservadora, o homem revoltado/ a mulher submissa etc.
(PERROT, 1988, p. 188).

De qual maneira podemos refletir sobre as condições masculina e feminina


na realidade cotidiana desconsiderando a necessidade de dispor essas
representações frente a frente? Vemos aqui que as duas apenas se tornam
compreensíveis por meio de relações/comparações. “A poética da Relação não é
uma poética do magma, do indiferenciado, do neutro. Para que haja relação é
preciso que haja duas ou várias identidades donas de si e que aceitem se
transformar ao permutar com o outro” (GLISSANT, 2005, p. 52).
Recusar a pretensão eternizadora dos lugares, comportamentos, fazeres e
todo arcabouço de significados atribuídos às qualidades de ser homem ou mulher,
como nos convida Michelle Perrot, é tarefa árdua e distante, pois a repetição é
mais cômoda que o estranhamento causado pela percepção da mudança e a
monotonia traz a ilusão de segurança pela aparente ausência de movimento. O
despir/exibir as mulheres haitianas na rota para o Brasil, é ação inscrita sobre e
em consonância com esse sistema de imagens. O homem “provedor” e “protetor”,

90
se vê humilhado frente a ação de outros homens; a mulher, “vítima” e “submissa”
se apresenta sem proteção frente àqueles que já submeteram também “seus
homens”.
Por outro lado, como nos ensinam Theodor Adorno e Max Horkheimer, na
Dialética do Esclarecimento, os executores dessas ações também são reduzidos
à condição de natureza e seus corpos são transmutados naquilo que querem
dominar e submeter, na dialética das relações humanas, eles também têm sua
humanidade diminuída. É a parir daí que Tervenkus Petit lança seu
questionamento a esse outro.
Tentar destituir de vontade esses seres humanos, seja através de ações
como as descritas acima ou tomando como pressuposto um conjunto de imagens
que os apresentam como tal, é coisificar esses indivíduos. Coisificação (que
incide sobre vítimas e executores) utilizada como estratégia de obtenção de
lucros cada vez maiores no trato com quem “cai” em uma dessas rotas
migratórias. Paradoxalmente, o próprio ato de falar sobre e/ou denunciar a
ocorrência dessas formas de exploração confirma a inexistência da total
submissão. Se não houve reação no momento em que as ações se deram, é
porque foram pesados os riscos e se considerou a vida mais importante; se a
enunciação sobre esses eventos somente agora se fez, é porque apenas neste
momento ela se tornou necessária e capaz de produzir algo, se não a mudança
das práticas relatadas, pelo menos a indignação de quem fala e de quem ouve.
Ao se referir aos abusos sofridos ou presenciados pela irmã, Avenise Petit,
durante o percurso do Haiti ao Brasil, Tervenkus Petit, que é muito falante, diz
“não poder nem falar”, sobre uma coisa que ele considera “nojenta”. Essa
dificuldade em tratar de um assunto que deve ser denunciado se dá por ter de
admitir que o corpo da irmã foi, de alguma forma, violado. Ao mesmo tempo em
que diz não poder falar, ele vai dando pistas sobre o que teria ocorrido; classifica
os delitos cometidos como hediondos ou “nojentos” e finalmente enuncia sua
indignação tornando-a comum (SARLO, 2007).
Sobre esse mesmo relato ocorreu naquele momento outro tipo de
enunciação. Anteriormente questionada sobre algum tipo de violência ocorrida no
caminho, Ania Silvalien, esposa de Tervenkus Petit, disse não saber de nenhum
tipo de abuso contra mulheres durante a viagem, no entanto, ao ouvir as palavras

91
do marido, concorda balançando a cabeça afirmativamente e repetindo as últimas
palavras ditas pelo esposo. Não temos certeza se Ania Silvalien tentou omitir tais
informações. O que talvez possamos inferir é que a experiência posta em
enunciação trouxe para ela a indignação frente ao narrado, pois fora alcançado o
objetivo da comunicação. A experiência comunicável presentifica as ações
narradas, que são rapidamente julgadas em um novo momento, a partir do qual
se produz a indignação comum (SARLO, 2007).

Capítulo III

Experiências de tradução: o “outro”, a enunciação e a burla


_ ¿Eres haitiano?
_ Non, monsieur, je suis colombianne!

Neste capítulo discutiremos como as práticas cotidianas são reorientadas


em função das normas e exigências organizadas para o gerenciamento da vida
no interior dos abrigos para imigrantes no Acre e dentro das fronteiras brasileiras,
destacando as táticas utilizadas pelos haitianos para burlar essas normas, sem,
no entanto, abrir mão dos benefícios concernentes a elas. Além disso,
analisaremos algumas das repercussões (práticas e discursos) ocasionadas pela
transferência organizada de haitianos do abrigo montado em Brasileia para Rio
Branco e, deste ponto (de forma acelerada), para outros estados da nação,
notadamente para São Paulo.
Com esses objetivos, faremos uso de entrevista tratando das situações
experimentadas por haitianos no Brasil e também utilizaremos reportagens que
tratem da transferência destas pessoas para outros entes federativos brasileiros.
Destacamos a esse respeito o fato de que imprensa e instituições (na voz de seus
agentes), em seus discursos, tratam esses seres humanos como “problema” e, na
base das medidas visando “solucioná-lo”, estão tentativas de mantê-los fora do
campo de visão, ações por nós interpretadas enquanto constituintes tanto das
tensões nacionalistas quanto das estratégias de redução do valor pago pelo
trabalho executado por haitianos no território nacional brasileiro.

92
Michel de Certeau é presença fundamental para as análises que
estabelecemos neste capítulo, pois, para o autor, os sujeitos, em suas vidas
cotidianas, além de sofrerem as imposições normativas concernentes ao controle
de seus fazeres, também se apropriam dessas imposições, fazendo uso delas
para criar liberdades e garantir outras maneiras de circulação, práticas que
conseguimos visualizar dentro e fora dos abrigos organizados no Acre.
O insólito diálogo apresentado no início do capítulo se enquadra então,
como uma dessas “artes do fazer” (CERTEAU, 1998). O diálogo em questão foi
estabelecido entre mim e um homem negro que tocava uma espécie de xilofone
construído com pedaços de madeira, às margens do rio Acre, no Calçadão da
Gameleira48, em março de 2012. Ele traduz uma tentativa de desassociação em
relação aos haitianos em função de possíveis desvantagens enfrentadas por
quem fosse identificado como membro daquele grupo de pessoas. Naquele
momento, o governo brasileiro havia fechado as fronteiras aos imigrantes
haitianos, o que ampliava as tensões experimentadas por quem fosse identificado
como imigrante ilegal.
A resposta formulada por nosso interlocutor nos remete a uma série de
interpretações elaboradas, difundidas e reproduzidas a respeito da presença
haitiana no Brasil e nos servem de base para refletirmos sobre os diálogos
estabelecidos por homens e mulheres provenientes do Haiti com essas mesmas
elaborações, traduzindo e as fazendo circular com significados diferentes
daqueles para os quais foram inicialmente produzidas.
Percebemos que nossa interrogação dirigida àquela pessoa, em espanhol,
evidencia de maneira subjacente uma associação entre a cor da pele, pobreza e
origem. De outro modo, a questão colocada não faria sentido, uma vez que
normalmente não nos aproximamos de qualquer pessoa para perguntar se ela é
proveniente de algum país especificamente. No caso descrito, houve uma
associação entre uma imagem previamente construída a respeito dos imigrantes
haitianos (como negros e como pobres) e aquele indivíduo negro, aparentemente
pobre, que se apresentava artisticamente em troca de algumas contribuições em
dinheiro ofertadas pelos transeuntes.

48
Famoso ponto turístico da capital acreana.

93
Sem embargo, a negativa por ele enunciada em francês como resposta a
um questionamento feito em espanhol, pode ser interpretada enquanto tentativa
frustrada de se desvincular do grupo daqueles que vêm do Haiti. Principalmente
em um contexto em que pesava a ameaça de deportação de “todos os que
tivessem entrado ilegalmente no país”49. Se, por um lado, ao questioná-lo
expomos uma ideia preconcebida a respeito dos indivíduos provenientes do Haiti,
nosso interlocutor também assume essa caracterização e busca, por esse motivo,
se afastar de qualquer forma de associação àquela imagem. Tentativa denunciada
pela língua em que a enunciação foi realizada.
O ocorrido nos permite inferir que havia, naquele momento, uma sondagem
mútua, bem como um jogo de interpretação de imagens preconcebidas atuando
sobre e através de nós. Uma dessas imagens me levou a fazer aquela
interpelação, a outra, era internalizada e rechaçada na tentativa de desassociação
elaborada pelo interlocutor. Esses “jogos interpretativos” também puderam ser
observados em visitas que fizemos nos dias 24 e 25 de janeiro de 2014, ao abrigo
construído para imigrantes na cidade de Brasileia.
Naquela oportunidade, pudemos presenciar um pouco desses diálogos e
observamos algumas das estratégias para que os haitianos se fizessem ouvidos
em seus descontentamentos. No interior do abrigo, que os haitianos chamavam
de “refúgio” em referência à condição que pleiteavam junto ao Governo Federal
brasileiro, queixas e denúncias de todos os tipos se repetiam nos grupos que
rapidamente se formavam ao nosso redor assim que adentrávamos aquele
espaço e nos identificávamos como pesquisadores. Falava-se dos animais
peçonhentos que apareciam durante a noite; da ordem das filas (visíveis e
invisíveis) que não eram respeitadas; das doenças, principalmente respiratórias,
que se multiplicavam e minavam a saúde dos acometidos por esses males.
Tratavam também da falta de informações, segundo eles, ocasionada pelo fato de
que os agentes públicos, principalmente os ligados à esfera federal, não lhes
davam atenção e não falavam diretamente com eles. De acordo com os haitianos,
aqueles agentes públicos apenas dialogavam entre si ou com alguns daqueles
identificados como “representantes” dos refugiados.

49
Ameaça amplamente veiculada através da imprensa, que pesava para aqueles que não
conseguissem legalizar suas situações no Brasil.

94
O mesmo problema que, ainda de acordo com os imigrantes, fazia com que
eles não permitissem que seus depoimentos fossem gravados, pois essas
denúncias, apesar de facilmente comprováveis pela observação simples, caso
realizadas sem a anuência das “lideranças”, poderiam trazer problemas para os
denunciantes. Então, sem a autorização dos “representantes”, tudo o que eles
poderiam fazer era falar sobre aquelas dificuldades e pedir que nós
observássemos, ouvíssemos o que estava sendo dito e que, não menos
importante, fizéssemos as denúncias “por nossa própria conta”.
O estado de dependência no que concerne a alimentação, alojamento e
documentação fragiliza-os enquanto indivíduos, que apesar de terem, individual e
coletivamente, muito a dizer, apenas poderiam fazê-lo mediante a sanção dos
“representantes” haitianos ou brasileiros. Por outro lado, ao observarem nossa
condição e perceberem a ausência dessa mesma relação de dependência,
burlavam o regulamento tácito do controle sobre a informação e se utilizavam de
nossa presença para se fazerem vistos e ouvidos à revelia dos “líderes” ou
“representantes”.
É interessante destacar a esse respeito que nenhum dos membros dos
grupos com quem mantivemos contato no interior do abrigo, soube informar o
nome do “representante” haitiano com quem deveríamos tratar para que a
autorização para a tomada de imagens e gravação de entrevistas fosse efetuada,
mas, evidentemente, o receio de represálias que pudessem dificultar ainda mais
as estadias dos denunciantes prescinde daquela identificação. Isto é sinal de que
se essas represálias não se efetivassem na prática corrente do interior do abrigo,
elas, ao menos, se faziam presentes enquanto ameaças.
As tentativas de controlar os gestos e fazeres de indivíduos dotados de
vontade falham nos trâmites da vida vernácula, nas “tretas do cotidiano” conforme
Michel de Certeau (1998), para quem, no diálogo com as condições socialmente
impostas, os indivíduos vão arquitetando táticas criativas para o exercício da
liberdade e a articulação de novos procedimentos que possibilitem a continuidade
e a facilitação de suas condições objetivas de existência. Desta forma, as
proposições elaboradas por aquele autor nos parecem relevantes para pensarmos
as narrativas dos imigrantes haitianos tanto no que concerne ao conteúdo quanto
à forma em que estas se apresentaram naquele momento.

95
O “silêncio denunciador” que os haitianos fizeram questão de destacar
quando falavam, e, ao mesmo tempo, afirmavam que não poderiam fazê-lo, se
constitui em eloquente ação enunciativa que une obediência e subversão,
ocorrências que nem sempre se apresentam com a mesma sutileza descrita, mas
que têm por base, e ao mesmo passo, um processo de aceitação/negação como
propõe Michel de Certeau. Assim, é possível também identificar em episódios que
poderiam ser analisados meramente sob a ótica da negação, essa complexa
trama entre aceitação e rechaço.
No dia 26 de março de 2013, um grupo de haitianos realizou um protesto
em razão das más condições de alimentação no interior daquele abrigo. Apesar
de ser uma reclamação antiga, não havia registro de uma rejeição organizada das
marmitas oferecidas e muito menos do ato conjunto de atirá-las ao chão50. Na
cobertura realizada pela mídia, a ocorrência ganhou nuances que iam desde a
desconsideração pela atenção concedida pelo governo brasileiro aos haitianos na
comparação com os brasileiros51, até o questionamento a respeito dos montantes
pagos às empresas por aquela alimentação.
O que nenhuma dessas coberturas questionou foi a relação entre aquela
manifestação (sua forma e condução) e a presença de uma câmera fotográfica
registrando aquelas ações, pois o olhar e o gesto dos manifestantes foram
conduzidos na direção do fotógrafo52. Se as reclamações tantas vezes repetidas
por essas pessoas não se fizeram ouvir, talvez a melhor maneira de agir seria
fazer uso dos discursos desfavoráveis que tão amplamente circulam pelas mídias,
e transformá-los em algo que produza uma alteração na forma de tratamento que
eles vinham recebendo. Nesse sentido, as imagens de pessoas em condições
precárias de estadia, atirando alimentos ao lixo, poderiam se tornar bases para a
melhoria das condições gerais do abrigo em Brasileia, como um lembrete de que
ali continuavam existindo seres humanos.

50
Ver Haitianos reclamam da comida servida e jogam no lixo. Disponível em
<http://www.ac24horas. com/ 2014/03/27/imigrantes-reclamam-da-comida-e-jogam-marmitas-
fora/>. Acesso em 06/05/2014.
51
Ver Imigrantes haitianos e senegaleses revoltados com má qualidade da refeição
jogam marmitas fora enquanto isso existem brasileiros ou melhor, acreanos sem ter o que
comer! Disponível em <http:/ /www.ecosdanoticia.com.br/policia/ 2014/03/imigrantes-haitianos-e-
senegaleses-revoltados-com-ma-qualidade-da-refeicao-jogam-marmitas-fora.html>. Acesso em
06/05/2014.
52
De acordo com as reportagens, as fotografias foram tiradas por um transeunte e
difundidas através do whatsapp.

96
Fotografia 1

Fonte: <http://www.oaltoacre.com/imigrantes-reclamam-e-jogam-comida-fora-devido-a- ma-qualidade/>.


Acesso em 06/05/2014

As imagens que preencheram as mídias locais são dessas pessoas, mas a


voz que se faz ouvir é a dos “outros”, dai a repercussão causada pelo registro do
episódio. Esse “outro” foi utilizado como instrumento de enunciação e burla. A
fotografia analisada e trabalhada pelos repórteres; os textos produzidos e,
posteriormente, difundidos pelos veículos de comunicação travam uma batalha
para produzir aquilo que seria a “verdade dos fatos”. No entanto, subjacente a
essa “verdade” produzida, existem outras se articulando, se produzindo e se
difundindo “comensalmente”, em um diálogo nem sempre pacífico. É uma lógica
que se impõe descortinando a violência da “verdade” unilateral das instituições do
saber.
Em A invenção do cotidiano: artes do fazer, Michel De Certeau apresenta
um questionamento das noções de verdade e da objetividade das instituições do
saber a partir das práticas de sobrevivência adotadas por sujeitos que figuram em
mundo ordinário, construindo uma cultura ordinária. Sujeitos até então vistos (por
essas mesmas instituições de saber) como meros consumidores de uma cultura
dominante, hierarquicamente localizada em uma posição de superioridade.
Com o objetivo de analisar as construções elaboradas (e, portanto, ativas)
no anonimato para aquilo que é consumido, Certeau traz à baila os desvios, a
burla, a recusa, não apenas como ponto de negação, mas também (e
fundamentalmente) como processos de aceite, reprodução e tradução tendo
como locais de partida, as experiências vivenciadas por homens e mulheres em
seus espaços de convivência e/ou relações sociais diárias.

97
O autor discute diversos aspectos da cultura ordinária e mergulha no
universo da pluralidade, que apenas pode ser estudado através de instrumentos
apropriados e tão variados quanto as realidades analisadas. As artes de fazer, por
exemplo, são exploradas a partir de suas sutilezas, das astúcias evocadas em
suas (delas) produções cotidianas, que resultam em micro/liberdades,
micro/resistências e micro/diferenças, cujas homogeneizações (fórmulas
explicativas) terminam por ocultar.
Ao refletirmos a partir das colocações do autor, percebemos mais
claramente como os sujeitos e o próprio espaço amazônico foram e são
inventados (GONDIN, 1994) em função de um modo de escrever sobre eles. O
discurso da geografia, da história, da literatura, etc. Criam, com base na palavra
escrita, o universo (ou o corpo?) amazônico, fundamentadas em suas (delas)
formas de ler o que julgam ver. E veem, pois observam a partir de outras leituras
e experiências, não necessariamente vivenciadas no ambiente que está sendo
descrito, mas que, por uma presunção de autoridade e exercício de poder,
termina por se firmar como “expressão da realidade”.
Todavia, escapam a essas interpretações, as tramas e práticas de tradução
elencadas por aqueles que ocupam uma posição menos nobre nessa descrição
imprecisa. Também inseridos na realidade vernácula, os imigrantes haitianos
aceitam a autoridade de seus “representantes” ao mesmo tempo em que
desconhecem os nomes desses mesmos “representantes” e questionam a
efetividade das medidas tomadas pelos “líderes” quanto às melhorias das
condições gerais de atendimento no interior do abrigo. Simultaneamente, eles
afirmam não poder falar sem a autorização e vão realizando suas denúncias para
que estas sejam enunciadas por quem supostamente não esteja submetido a
essa autoridade.
Agindo assim, eles expõem as complexas e tensas redes de articulação de
suas existências/permanências no “espaço amazônico”, em trânsitos para outras
localidades. Nesses processos de exposição surge aquilo que Certeau classifica
como as:

secretas porosidades [que] modificam os contratos linguísticos, isto é, os acordos


tão difíceis de calcular entre o direito (visível) e o avesso (opaco) da credibilidade
entre aquilo que as autoridades articulam e aquilo que delas é aceito, entre a

98
comunicação que permitem e a legitimidade que pressupõem, entre aquilo que
elas tornam possível e aquilo que as torna críveis (CERTEAU, 1995, p.40)

Os haitianos, imersos na “dependência” inerente ao abrigo, não chegam a


abrir mão da mediação realizada pelos “representantes” frente às autoridades
brasileiras; reconhecem-na como necessária, porém, simultaneamente percebem-
na como tolhedora e autoritária, daí o desvio através dos interlocutores para que
suas enunciações tornem-se audíveis. “como se esses textos se esforçassem por
esconder sob o símbolo, por dizer, não dizendo, foi a isso que chamei prática do
desvio, e é nisso que o descontínuo se aplica” (GLISSANT, 2011, p.71-72). Sem
desobedecer à ordem, buscam a subversão, utilizando-se de uma tática de
tradução, instrumentalizam o “outro” para que possam se afirmar sem serem, por
isso, ameaçados.
Corroborando as proposições de Hannah Arendt (1989), visualizamos
nessas práticas a união entre práxis e léxis no processo de identificação dos
sujeitos. Ativos e enunciativos, eles afirmam sua condição humana, pois somente
“no completo silêncio e na total passividade pode alguém ocultar quem é”
(ARENDT, 1989, p.192). Essa afirmação, porque ação e discurso socialmente
edificados se constitue em ato político, uma vez que lança todos os interlocutores
em um mesmo campo, o da humanidade, donde se torna possível falar das
especificidades pessoais desveladas pelos agentes em suas próprias ações.
Desse modo, a existência do “outro” é condição imprescindível à ação política, já
que é em conjunto e no espaço dessa convivência entre seres humanos (plurais)
que estes se dizem e se orientam no mundo.
O “diverso” como “lei da terra”,53 figura nos escritos de Hannah Arendt
enquanto base ética a serviço da afirmação individual perante os grupos e nos
grupos. Na prática dos refugiados haitianos visualizamos a emergência dessa
pluralidade, pois, como nos indica a autora, é nas e pelas negociações
organizadas pelos indivíduos que estes vão performando suas identidades em
movimento ininterrupto. Essas identidades (pessoais e coletivas) apontam para
um determinado modo de orientação no mundo; são a expressão interpretativa do
vivido a partir do agir dos sujeitos em sociedade. Falar através dos desvios

53
ARENDT, 1889, p.15.

99
possíveis permite que os refugiados haitianos digam e exijam o necessário sem o
risco de serem penalizados.
Outra dessas expressões de negação/aceitação pudemos inferir dos
posicionamentos assumidos por Kenny Cavé, haitiano de 29 anos, que estudou
direito, psicologia e que, no período em que nos cedeu entrevista, exercia a
profissão de pizza iolo em uma conhecida pizzaria de Rio Branco. Kenny Cavé e
sua esposa, que estava no sexto mês de gestação, ocupavam duas das vagas do
abrigo improvisado no Parque de Exposição “Marechal Castelo Branco”, na
capital do Acre, para onde foram deslocados, em virtude da desativação do
refúgio que funcionava (também de forma improvisada) em Brasileia, há quase
três anos. Ele nos concedeu entrevista no interior do abrigo.

Agora temos os problemas sociais, políticos, mas estava ruim mesmo! A


gente que vem aqui no Brasil, porque há alguns que já têm famílias aqui,
que se chama do Haiti para cá no Brasil porque há trabalho e lá não há,
mas também um problema que há, a maioria dessa gente não tem
nenhuma qualificação. Esse é o problema! Por isso que se vão trabalhar,
vão ser explorados, tudo isso. Eu estou aqui, não porque tenho
problema, não porque não posso trabalhar no meu país, não! Já eu
estudei na França, estudei Psicologia e Direito. Eu estou aqui porque
tenho um objetivo, eu estava no Peru faz dois anos, eu era professor na,
na Universidade, em, Peru, em Lima, Universidade de São Marcos e eu
queria saber, queria ver o caminho aqui, que cruzam os haitianos,
também os senegaleses para virem aqui para o Brasil e também queria
ver porquê, qual é a razão para que todos os haitianos querem vir aqui
no Brasil. Porque houve um terremoto faz três ou quatro anos no Haiti,
havia nais ou menos trezentos mil mortos, o país há, havia muitos,
muitos problemas, mas agora queremos compreender, temos trabalho,
trabalhando muito para mudar tudo isso, mas falta muito também, falta
muito! (KENNY CAVÉ. Entrevista, Rio Branco, 21/04/2014)

Kenny Cavé cita as dificuldades que, no geral, são mencionadas como


fatores de repulsão dos haitianos e, no mesmo sentido, aponta o chamado dos
familiares que já estão no Brasil, como fator preponderante para a procura por
este país. Ao apresentar aquilo que ele chama de “problema”, a falta de
qualificação de grande parte dos imigrantes, ele se classifica enquanto exceção,
melhor dizendo, como alguém que possui qualificação e que estaria, portanto,
sendo prejudicado.
Para ele, exploração e falta de qualificação caminham juntas. Quanto
menor a qualificação, maiores são as condições de que essas pessoas sejam
submetidas a condições degradantes. Se esquecendo de que ele não está
exercendo nenhuma das profissões para as quais se preparou Kenny Cavé,

100
apesar de sua formação, se torna mais uma pessoa explorada na rota brasileira
da imigração, o que contradiz os argumentos apresentados por ele.
Assim, Kenny Cavé assume o discurso corrente nas secretarias de estado
e reproduzidos pelas práticas de auxílio humanitárias dispensadas aos haitianos,
nas quais, todos os imigrantes haitianos (para o entrevistado a exceção seriam os
qualificados) devem ser integrados à economia brasileira como mão de obra
barata. Destarte, a curiosidade que, de acordo com ele, o teria levado a seguir
para o Brasil, desvela o outro lado desta questão. Ao buscar a resposta para a
pergunta “qual é a razão para que todos os haitianos querem vir aqui no Brasil”,
Kenny Cavé sugere outra muito mais complexa, a saber, “o que o Brasil quer com
isso”?
De outro modo, essa mesma fala pode ser pensada enquanto
manifestação de uma “dupla consciência” (GILROY, 2001) vivenciada e enunciada
pela negação/aceitação como defende Michel de Certeau (1995;1998). Para esse
autor, O exercício da burla é uma dessas manifestações artísticas ordinárias em
que as formas de subversão se apresentam não apenas como rejeição do que é
consumido, mas através dos usos (das traduções) que se dá àquilo que se
consome.
Na esteira de Michel de Certeau, pensamos a poética dessa produção de
significados a partir da qual o autor busca evidenciar as práticas cotidianas, essas
(re)invenções ordinárias inseridas em uma cultura igualmente ordinária. O
rechaço e a aceitação não figuram nessas práticas apenas como faces da mesma
moeda, mas como componentes de cada um dos elementos da composição
social e essa conformação também pode ser identificada nas falas de Kenny
Cavé.

Olha, sim! As pessoas que estão na habitação, estão fazendo o que


podem com o que tem para ajudar os imigrantes! Mas, tem algumas
coisas que não vão muito bem. Mas, o problema é que a gente aqui tem
muitos problemas sanitários e também para dormir, o espaço é um
pouco, é aberto demais para dormir. É por isso que a maioria da gente
que está aqui tem problema de, tem gripe, febre, há como dizem, uma,
tem uma, uma, há epidemia no abrigo! Aqui, o que se passa, há algo
que, que eles não falam disso, não falam, não fazem nada para isso. Há
gente, há muita gente e a maioria senegaleses têm tuberculose. Olha, ai
está a forma, é um perigo para nós e também para eles, porque estão
em contato permanente com eles. Também podem pegar a tuberculose e
vão depois às suas casas e vão contaminar suas famílias também e
suas famílias têm que sair nas, nas ruas e nas ruas o que há? Há gente!

101
Então o problema é muito grande. Então há coisas que não estão bem.
Há os problemas sanitários, mas não há médicos suficientes, não há
nenhuma permanência em psicologia. Não há nada para buscar porque,
porque há uma epidemia: gripe, dor de cabeça, febre. A maioria, noventa
e nove por cento, tem o mesmo sintoma, então que diz. E há gente
também que tem, todos os dias tem que comer arroz, arroz, arroz, arroz;
arroz com carne de vaca, arroz com carne de vaca, arroz com carne de
vaca. Quer dizer, tanta coisa que (pausa) outra vez, quero saber qual é o
objetivo do estado do Brasil. Qual é o objetivo? Também o Brasil é pobre,
também o Brasil tem, como têm o Haiti, seus problemas sociais e
políticos, também o Brasil tem seus problemas sociais (KENNY CAVÈ.
Entrevista, Rio Branco, 21/04/2014)

A posição simpática em relação ao discurso difundido por instituições de


saber associadas a instâncias de poder, não impede que o entrevistado transite
pelo outro polo, o dos caracterizados, por esses mesmos discursos, como
subalternos, dominados e explorados. Conforme sugere Michel de Certeau
(1998), em referência aos estudos elaborados por Sigmund Freud, o relato está
indissociavelmente vinculado às práticas sociais, e é a partir dessa
indissociabilidade, que esse relato pode atuar enquanto agente na busca da
superação da compartimentação fundada no indivíduo.
No relato de Kenny Cavé, ocorre uma reinterpretação de um discurso
orientado para isolar, por barreiras sanitárias, os imigrantes dos, e supostamente,
para a proteção dos brasileiros. Esse mesmo discurso traduzido e difundido é
utilizado como tática de aceleração dos processos de documentação e circulação
dos haitianos pelo território nacional brasileiro. Com esse intuito, há uma
reprodução do discurso original, por um lado, desvinculando os haitianos dos
elementos causadores de doenças (discurso agora direcionado aos senegaleses),
e, por outro, a utilização do “perigo das doenças” como justificativa para requerer
maior celeridade na legalização da situação dos imigrantes.
Desde o final de 2010, quando o ingresso de haitianos no Brasil passou a
crescer, houve grande investida de diferentes sujeitos (pessoas e instituições)
com o propósito de associá-los à prática de crimes, e, principalmente, à
proliferação de doenças54. Enunciados claramente imbuídos de um discurso que

54
ALBUQUERQUE (2013) discute essa questão em “Diáspora de afrocaribenhos para a
Amazônia Acreana”, 2013, p. 5-6: “Assim como na retórica da ilegalidade, o que ganha corpo é a
produção de um imaginário de desconfiança e recusa do “outro”, aquele que passa a ser visto
como “perigoso” à comunidade local, “protegida” pela fronteira da nação. No cerne dessa lógica, o
que menos importa é a legitimidade ou a “veracidade” do que é dito, mas o sentido que ganha em
uma situação na qual esse “outro” - transmutado na condição de bactéria ou vírus mortal –
representa “insegurança”, impondo que “as autoridades tomem providências”.

102
legitimaria uma série de práticas de segregação e exclusão circularam e circulam
pelas redes sociais e noticiários (eletrônicos e impressos) locais. A circulação
dessa informação tem como objetivo a diminuição da condição humana dos
imigrantes, fator preponderante para a redução do valor pago por sua mão de
obra.
Na narrativa de Kenny Cavé, as doenças não vêm com os haitianos, elas
são consequência das próprias condições de acolhimento e tratamento no interior
do abrigo. Ao se referir a essas moléstias pela descrição dos sintomas
apresentados por haitianos, senegaleses, dominicanos e brasileiros, ele exige
melhoria nas condições sanitárias do refúgio e maior celeridade na concessão
dos documentos necessários para que eles sigam viagem. A permanência das
condições descritas e também daquelas pessoas segregadas ali, seria, de acordo
com o entrevistado, um perigo tanto para os abrigados quanto para aqueles que
lhes prestam auxílio. Seria necessária uma intervenção urgente sobre aquele
ambiente ou garantir, da maneira mais célere possível, o deslocamento desses
indivíduos para outros “destinos”, se possível, para outras regiões do país. O
mesmo discurso criado para segregar, estava sendo utilizado como justificativa
para a circulação das pessoas e melhoria dos espaços de acolhimento.
Na narrativa (socialmente) produzida por Kenny Cavé, figuram, por um
lado, a demarcação hierarquizada entre haitianos (qualificados e não qualificados)
e senegaleses (portadores de doenças). Por outro lado, ocorre a percepção de
que todos estavam submetidos às mesmas condições, que deveriam ser
alteradas para o bem comum. Essa aparente contradição é indicativa das formas
através das quais os sujeitos vão produzindo as “maneiras de fazer” cotidianas.
Maneiras que, como escreve Michel de Certeau, ao ser analisadas, evidenciam as
relações (sempre sociais) nelas existentes e pontuam a incoerência plural que
ocorre no âmbito da individualidade e suas formas de ocultamento por um certo
modelo de racionalidade, que prima pela universalidade, mesmo quando o
multifacetado se mostra com toda a força.
Em meio a essa “incoerência”, Kenny Cavé novamente se questiona
quanto aos reais objetivos do Brasil.

Mas o que eu não entendo por que o Brasil recebe tanta gente, qual é o
objetivo? É que, eu quero saber! Que tem o Estado e mais adiante, mas

103
quanto mais há pessoas em um país que não sabem ler, não sabem
escrever, por favor, é muito difícil para se adaptar na sociedade que tem
um caminho para seguir. E creio que os, o povo do Brasil, eles também,
eles também não compreendem porque isso. Mas eu (pausa) quero
saber, gostaria de saber qual é o objetivo, qual é o objetivo para atender
tanta gente. Creio que seja melhor para o Brasil, para o Brasil, para fazer
uma imigração selecionada como estão fazendo todos os países,
europeus, Canadá, porque mais adiante vai haver um problema entre
brasileiros e também, os imigrantes que não têm nenhuma qualificação.
Mas economicamente creio que se, se, há, há, se custa muito. Para mim,
acho que, para, o governo tem que investir mais, por mais dinheiro para
assegurar as fronteiras, por quê? Porque está fazendo isso, está pondo
muito dinheiro no abrigo para atender gente e, que para pagar avião,
carro para irem até São Paulo, mas a maioria da gente que está indo a
São Paulo, não tem nenhum para atendê-los. Há muitos nas, nas ruas
em São Paulo e os primeiros, em sua maioria não têm nenhuma
possibilidade. Pelo que é um problema social muito grave, pois o Estado
tem que fazer algo (KENNY CAVÉ. Entrevista, Rio Branco, 21/04/2014)

Ao se questionar sobre os reais objetivos do Estado brasileiro em receber


“tanta gente”, o narrador lança o olhar em direção ao futuro, inscrevendo haitianos
e brasileiros, respectivamente, como fornecedores de mão de obra e de matérias-
primas na atual Divisão Internacional do Trabalho. Semelhantemente, ao
comparar o modelo brasileiro de imigração com o modo “selecionado” adotado por
Estados Unidos e Canadá, ele expõe tanto o fato de que vivemos em uma
sociedade organizada em função da escrita, quanto o de que os indivíduos que
obtém destaque, de acordo com os critérios estabelecidos por essa mesma
sociedade, têm ou deveriam ter seus lugares cativos, principalmente, nos locais
em que o desenvolvimento econômico se pauta pela produção de bens de
consumo e de produtos industrializados.
A dúvida que se instala na cabeça de Kenny Cavé, e, de acordo com ele,
na de todos os brasileiros, se deve aos recursos investidos tanto na manutenção,
quanto no transporte dessas pessoas para outras regiões do Brasil. Investimento
que só faria sentido a partir de um projeto orientado pelo próprio Estado, que
reproduz internamente uma divisão do trabalho entre as regiões que o compõem,
divisão representada pelos eixos norte-nordeste e sudeste-sul.
A afirmativa de Kenny Cavé de que “mais adiante vai haver um problema
entre brasileiros e também, os imigrantes que não têm nenhuma qualificação”,
não pode obscurecer a ocorrência dessas questões no momento presente, basta
observar as tensões que figuram nos enunciados proferidos pelo entrevistado em
relação aos “outros” imigrantes ou alguns dos vários comentários postados logo

104
abaixo das reportagens sobre a presença haitiana no Brasil. Veiculadas pelos
meios eletrônicos, essas opiniões difundem um discurso produzido visando a
desvalorização da mão de obra haitiana (e isso se faz pela desvalorização de sua
humanidade) e também da brasileira, daí a “necessidade” de que ambos não
compreendam o que está acontecendo, como bem acentua Kenny Cavé.
Transformados em concorrentes, imigrantes haitianos, senegaleses e
dominicanos, disputam entre si, oportunidades de trabalho em setores insalubres
e perigosos, cujas vagas estão por preencher exatamente por conta desses riscos
e/ou pela longa jornada de trabalho. Fatores protegidos pela legislação brasileira,
mas que podem facilmente ser desobedecidos através de negociações
enganosas realizadas entre patrões e um contingente de trabalhadores que
desconhece a língua, e, na comparação com o que ganhavam em seus países de
origem, podem interpretar como “justas” aquelas ofertas.
Quando questionado a esse respeito, Kenny Cavé acrescentou ao
panorama descrito, uma certa conivência do Estado brasileiro em relação a essas
práticas.

Acho que sim, veja, pelos brasileiros, há um problema de verdade! Eles


têm alguns trabalhos que já não querem fazer. A gente, a gente do Brasil,
sim, mas assim, se querem tanta gente para fazer o que não querem
fazer os brasileiros, creio que o melhor é fazer uma, uma imigração
selecionada, pois sim, mas olha, isso é uma vergonha! Se estão sem
paradeiro, ficam sem paradeiro, porque não têm nenhuma qualificação e
quando vai andar no Brasil, vai à padaria e diz assim que “quero ir fazer
pão”! Mas se quero fazer pão, tenho que aprender a fazer pão,
entendeu? E saber quanto recebe uma pessoa para poder trabalhar, mas
quando o dono vai verificar que essa pessoa não tem nenhuma
qualificação vai pagar quanto quer! É que esta pessoa não, não estará
pronto para, para negociar com o preço do trabalho e vai ser explorada.
Mas para quem isso é bom? Vamos dizer, a nível de imigração, para os
dirigentes! Brasil, é um bom destino, mas quando vemos os Estados
Unidos, França que é uma terra de, uma terra que sabem com seus
dirigentes, não creem que é um bom rumo ir para a França, de parte da
França, mas o Brasil está fazendo algo que é muito bom, mas tem que
identificar, tem que buscar o que necessita o país, o que necessita o
povo do Brasil e o que necessita ajuda e ai poderá fazer uma imigração
selecionada mas este é o problema (KENNY CAVÈ, Entrevista, Rio
Branco, 21/04/2014).

Nessa fala se evidencia uma relação entre qualificação e exploração, desta


feita, em uma construção um pouco melhor articulada que une política
assistencial (pública e privada) e um projeto de desenvolvimento econômico
promovido pelos “dirigentes” do país. Nesta linha de pensamento, o narrador faz

105
referência às formas através das quais vão sendo produzidos os “bons” e os
“maus destinos”. Formas de apresentação que orientam práticas adotadas tanto
nos países de egresso quanto no de ingresso (sem contar o caminho entre um e
outro).
Essa é uma argumentação interessante que nos leva novamente ao
questionamento da informação amplamente veiculada de que os haitianos vêm
para o Brasil em razão do grande cismo de janeiro de 2012. Esse processo
migratório, na realidade, faz parte de um amplo movimento de reorganização dos
sistemas produtivos capitalistas e o desejo de emigrar é também produzido nos
locais que se apresentam como possíveis “destinos” para os expropriados
internacionais, pois é nessas localidades onde se decide que tipos de
trabalhadores são necessários, decisão pautada pelo modelo de desenvolvimento
econômico dessas regiões e países.
Aos olhos de quem “chega” (os imigrantes haitianos), “o Brasil está fazendo
algo que é muito bom”, já que os salários, mesmo aquém dos regulamentados
pela lei brasileira, continuam acima dos ganhos auferidos no Haiti. As “boas
notícias” seguem e produzem, nas duas direções, entre Haiti e Brasil, uma intensa
movimentação bancária. Daqui para lá, uma parte dos recursos angariados por
quem conseguiu trabalho, vai servir de “comprovação” de que aquilo que se dizia
a respeito do Brasil era “verdade”. De lá para cá, os recursos transferidos e as
pessoas que se deslocam, servem como “prova” de que ainda se tem esperança
de que aquele Brasil do qual ouviram falar, “existe” em algum lugar.
À imagem do Brasil continua sendo tecida uma ideia de “bom destino”, sem
possibilitar um diálogo entre “o que necessita o país, o que necessitam seus
habitantes e o que necessitam os que buscam abrigo em suas fronteiras”. Como o
entrevistado faz questão de destacar, “este é o problema”.

3.1 Narrativas em trânsito: refúgios e fronteiras entre o visível e o invisível

Nas duas primeiras semanas de abril de 2014, em meio a uma crise de


desabastecimento provocada pela cheia do Rio Madeira que ocasionou o
fechamento da BR 364 entre os estados de Rondônia e Acre, houve uma
aceleração do envio de imigrantes do Acre para outros estados da federação.

106
Essas pessoas embarcavam, principalmente com destino a São Paulo, utilizando-
se dos mesmos aviões que traziam ao Acre produtos de Primeira necessidade,
transporte organizado pelo Governo estadual, através da articulação entre
Secretaria de Direitos Humanos do estado e Força Aérea Brasileira.
A chegada sistemática dessas pessoas àquele estado da federação,
intensificada pela reabertura da referida estrada e as críticas feitas pela Secretária
de Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo, Eloíza Arruda, quanto à
maneira como aquele processo vinha sendo conduzido, trouxeram novamente à
pauta de discussão nacional a questão da imigração haitiana para o Brasil55.
Subjacente às discussões a respeito do tema, a indisposição institucional entre os
governos do Acre e de São Paulo, colocam no centro das justificativas de parte a
parte, a visibilidade de homens, mulheres e crianças que, de uma forma ou de
outra, estão sendo integrados ao mercado de trabalho brasileiro e os
concernentes interesses que fomentam esse processo migratório.
Há muito, o governo do Acre, tem combatido a tese de que o estado sirva
como porta de entrada para armas e drogas no Brasil, opinião defendida pelo
Governo Federal Brasileiro em relação às áreas amazônicas que fazem fronteira
com outros países. No caso da imigração haitiana, uma negativa semelhante foi
mantida, se não nas vozes de secretarias e instituições estatais, pelo menos nas
ações praticadas por esses entes governamentais. A manutenção por mais de
três anos de uma espécie de “barreira sanitária” organizada para receber
imigrantes haitianos nos municípios de Brasileia, Assis Brasil e Epitaciolândia, nos
fornecem indicações da tentativa de manter essas pessoas longe do campo de
visão, seja das cidades mais populosas do Acre ou das áreas mais centrais do
Brasil.
A insustentabilidade da situação naqueles três municípios, por conta do
fechamento da BR 364, do consequente “represamento” do fluxo migratório e das
crescentes ameaças e denúncias realizadas junto a instituições internacionais

55
A este respeito ver as reportagens Secretária de de Justiça de SP diz que Acre foi
'irresponsável' com haitianos. Disponível em <http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2014/04/secretaria-de-justica-de-sp-diz-que-acre-foi-irresponsavel-com
haitianos.html>. Acesso em 09/04/2014; Depois de Eloíza, agora é Alckmin que chama
Governador do Acre de “irresponsável”. Disponível em
<http://www.jornalrondoniavip.com.br/noticia/depois-de-eloiza-agora-e-alckmin-que-chamagoverna
dor -do-acre-de-irresponsavel>. Acesso em 09/04/2014.

107
como a OEA e a ONU por conta da situação degradante experimentada por
imigrantes no abrigo brasileense, fizeram com que o governo do Acre decretasse
a desativação do referido abrigo. A criação de um novo “refúgio” em Rio Branco e
a sistematização do deslocamento dessas pessoas faziam parte da estratégia
organizada para “solucionar” a questão.
É nesse ponto que a negativa de que o Acre seja “porta de entrada para
ilícitos” é reelaborada para justificar o encaminhamento dessas pessoas para São
Paulo e outras regiões do Brasil, mesmo sem qualquer comunicação institucional
com as autoridades dos estados de “destino”. Em uma associação clara entre
imigração e ilegalidade, o governo estadual acreano tem insistido no tema de que
o Acre é “apenas” porta de entrada para os haitianos no Brasil56 e de que o
encaminhamento é uma maneira de deixar as coisas seguirem seu curso
“natural”. De outra feita, as críticas endereçadas ao Acre pelo governo de São
Paulo, eram apresentadas como manifestação de preconceito, pelo fato dos
imigrantes serem negros e pobres.
Em reportagem veiculada pelo jornal Estadão, em sua versão eletrônica, do
dia 24 de abril de 2014, podemos identificar alguns desses elementos,
principalmente no trecho que apresenta uma postagem feita na página pessoal do
Facebook, do Governador do Estado do Acre, Sebastião Viana.

Imagem 1

56
A este respeito ver AC 'exporta' haitianos e vira porta de entrada da África no Brasil.
Disponível em http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2014/04/28/ ac-
%E2%80%98exporta%E2%80%99-haitianos-e-vira-porta-de-entrada-da-africa-no-brasil/>. Acesso
em 09/05/2014.

108
Fonte: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,apos-exportar-haitianos-tiao-viana-critica-postura-da-
elite-paulista,1158220,0.htm>. Acesso em 09/06/2014

É interessante pontuar que a crítica lançada pelo autor da postagem ao


“andar de cima” das elites paulistas, também desvenda parte do discurso pessoal
e institucional do governador do Acre. O pronome possessivo “nosso” utilizado
para delimitar um território que pertenceria aos acreanos, também proscreve
aqueles que não pertenceriam “legitimamente” ao estado do Acre. Além disso, o
autor do texto se utiliza da mesma crítica anteriormente dirigida a ele pelo fato de
defender a saída dessas pessoas do estado.
Se a expectativa e o incentivo para que essas pessoas deixassem o Acre,
na opinião do governador, não podem ser consideradas preconceituosas ou
práticas de higienização, as de São Paulo sim, por não querer recebê-los, afinal já
se teriam passado “mais de 3 anos de solidariedade” e ajuda “humanitária”. Não
constam dessas afirmativas a insistente negativa por parte do governo estadual
acreano (também nesses mais de 3 anos) para desativar o abrigo de Brasileia e
organizar um refúgio com melhores condições no município de Rio Branco, capital
do Acre.
Obviamente, com o acesso aos recursos disponíveis na capital do Acreana,
também estaria presente a questão da visibilidade, dai a insistência na
manutenção do abrigo de Brasileia e na aparente vinculação das tensões ali
vivenciadas a alguns “problemas fronteiriços”. Para o governo acreano, ajuda
humanitária seria um fato concorrente da invisibilidade. Enquanto os imigrantes
estivessem em Assis Brasil, Brasileia ou Epitaciolândia, as informações dando
conta das dificuldades vivenciadas por aquelas pessoas soariam como
acontecimentos em algum ponto distante (fronteira) muito diferente dos
significados que tais tensões assumiriam caso ocorressem na capital do Acre.
No que tange ao território brasileiro, o Acre também figura como essa zona
fronteiriça. Nesse caso, o mesmo discurso que no âmbito estadual funcionava
para os municípios de Basileia, Assis Brasil e Epitaciolândia, serve para o estado
do Acre em relação aos estados da região sudeste e sul do país. Daí as reiteradas
tentativas de manter os haitianos no Acre, local para onde, de tempos em tempos,
se dirigiriam empresários do eixo sudeste-sul, em busca de mão de obra para
seus empreendimentos.

109
Ao reproduzir internamente a divisão internacional do trabalho, o Estado
brasileiro dá mostras de seu ideal de futuro, futuro cujas práticas soam como a
repetição da história a que se referia Karl Marx, em seu 18 Brumário, não como
tragédia, mas como farsa. Mais grave é o fato de que essa repetição ou
reprodução se dá também em outros níveis, passando do macro ao micro,
tornando o sonho57 (citado, mas pouco compreendido) de Martin Luther King
muito mais distante.
No dizer de Christopher Hill, o “emprego linguístico, naturalmente,
relaciona-se com a prática política” (HILL, 1990, p.34) e isso serve tanto para
quem acusa quanto para quem tenta se defender. Nesse sentido, o racismo
alegado de parte a parte se torna uma espécie de abstração que se sobrepõem,
reduzindo discursivamente as práticas reais e cotidianas de segregação e
exclusão através daquilo que representantes da ONG internacional Conectas já
haviam detectado em agosto de 2013, e, acertadamente denominado de “jogo de
palavras”58.
No dia 27/04 de 2014, ocorreu mais uma etapa desse “jogo” quando
circulou pelos veículos de imprensa uma nota assinada por Nilson Mourão,
Secretário Estadual de Direitos Humanos do Acre, respondendo às afirmações
proferidas por Eloisa Arruda, também secretária de Estado em São Paulo59. No
referido texto o Secretário acreano afirma que

Por suas declarações infelizes à coluna Painel da Folha de S.Paulo, na


edição de 26 de abril de 2014, a secretária de Estado de Direitos
Humanos de São Paulo, Eloisa Arruda, será acionada judicialmente. Ela
declarou que o governador do Acre, Tião Viana, agiu como ‘coiote’.
‘Coiote’ é traficante de seres humanos, que ganha dinheiro com o tráfico
e a exploração de imigrantes. Declaração tão grave como essa não pode
ser ignorada. A secretária é órfã de qualificação e moral para o agredir o
governador de um Estado que, durante mais de três anos, vem dando
atenção humanitária a mais de 20 mil estrangeiros que ingressaram no
Brasil pela nossa fronteira.
Entendemos que as declarações partiram de uma assessora do governo
do PSDB paulista, com atuação apagada, mas que tornou-se conhecida
nacionalmente por sua incompetência ao ter que lidar com apenas 400

57
Trecho do discurso proferido pelo pastor Martin Luther King Júnior realizado em 28 de
agosto de 1963, em Washington, D.C., nos EUA.
58
Ver ONG denuncia situação de imigrantes haitianos que vivem no Acre à OEA.
Disponível em <http://www.ac24horas.com/2013/08/23/ong-denuncia-situacao-de-imigrantes-
haitianos-no-acre-a-oea/>. Acesso em 13/05/2014.
59
Ver Governador Sebastião Viana quer processar Secretária de Justiça de SP.
Disponível em <http://www.ac24horas.com/2014/04/27/sebastiao-viana-quer-processar-secretaria-
de-justica-de-sp/>. Acesso em 13/05/2014.

110
imigrantes. Se a secretária quiser ajuda do governo do Acre para
aprender a fazer alguma coisa pelos imigrantes, estamos à disposição.
Mas segue a primeira regra: reclamar menos e trabalhar mais.
Lamentamos que a neta de imigrantes nordestinos tenha negado as suas
origens. Está agora na Casa Grande. Deveria ler o seu conterrâneo
Gilberto Freire.
Nilson Mourão
Secretário de Estado de Direitos Humanos

No texto assinado pelo secretário, o desentendimento entre os dois


governos estaduais (PT e PSDB) ocorre em função de uma “orfandade” qualitativa
da secretária daquele estado. Essa ausência de qualificação, figura enquanto
produtora de uma “verdade” em que, do outro lado, estariam aqueles que
representariam o avesso da falta de qualidade. Interessante dessa argumentação
é que nela, o Acre como “porta de entrada”, desaparece, uma vez que o governo
estadual estaria há “mais de três anos” “dando atenção humanitária a mais de 20
mil estrangeiros que ingressaram o Brasil pela nossa fronteira”.
Essa “informação” poderia ser amplamente debatida, especialmente, a
partir de duas possibilidades. A primeira delas seria um acompanhamento
atualizado das condições em que estão cada um dos haitianos que ingressaram
no Brasil desde o final de 2010. A segunda, pela permanência (assessorada)
dessas mais de vinte mil pessoas no estado do Acre até a presente data. Como
sabemos, nenhuma dessas situações ocorre, o que lança por terra o argumento
do secretário. Não obstante, o que menos interessa é a comprovação ou não
daquilo que está sendo afirmado, mas o efeito simbólico dessas afirmações.
Nessa construção, o Acre vai sendo produzido como “mais humano” e
“preparado” do que São Paulo no que diz respeito à imigração, resta saber se as
opiniões dos milhares de homens e mulheres lançados à condição de ilegais pela
política nacional concordam com essa tese. Como se o chicote que desce sobre o
dorso daquele que está amarrado ao tronco representasse mais ou menos a
violência da escravidão em decorrência do braço mais áspero ou mais brando do
feitor. A “escravidão adocicada”60 de Gilberto Freire como citada por Nilson
Mourão, não torna menos distantes a “Casa Grande” e a “Senzala”. Apesar de
não sabermos muito bem se em São Paulo e/ou no Acre estão localizadas as

60
Expressão utilizada pelo historiador Durval Muniz, em palestra conferida na Universidade
Federal do Acre, em novembro de 2013.

111
“Casas Grandes” desse Brasil, podemos localizar muito facilmente onde estão as
senzalas: nos “depósitos” de homens e mulheres organizados aqui e lá.
A oferta de auxílio feita pelo secretário acreano à secretária de São Paulo
se pautaria pela experiência acumulada durante os “mais de três anos” de
atendimento dessas pessoas no Acre. No entanto, as condições em que esse
atendimento se deu (em abrigos precariamente improvisados por todo o período)
possibilitam dizer que a grande experiência acumulada foi a de tratar como
provisório ou emergencial um movimento migratório que tende a perdurar. Em
entrevista publicada no sítio AC 24 Horas, em 11/05/2014, Nilson Mourão termina
desdizendo a questão da experiência que elencara como modelo a ser seguido
pelo governo paulista. Naquele texto apresentado como fala do secretário, entre
outras coisas, ele teria afirmado: “Trabalhamos por intuição, nenhum de nós tem
experiência migratória”61.
A experiência migratória a que se referia o secretário indica uma dupla
negativa, a de não terem participado de processos migratórios e a de não
saberem como lidar com esses mesmos processos. A referida “intuição”, nesse
sentido, justificaria então as práticas de segregação e banimento adotadas pelo
governo estadual operando sob amparo administrativo da “emergência” e da
“calamidade”, termos significativos quanto à maneira de perceber a presença
haitiana no Acre.
Em Recente desdobramento do encaminhamento organizado de imigrantes
do Acre para outras regiões do Brasil, circulou a possibilidade de que governador
Sebastião Viana fosse denunciado junto ao Tribunal Penal Internacional por
deportação forçada e injustificada de pessoas no interior do território nacional62.
No teor da possível acusação, o Governador do Acre teria incorrido no artigo 7.º,
do Estatuto daquele tribunal. Interessante frisar, tanto no posicionamento de
algum possível propositor da ação, quanto da parte denunciada, a recusa da
presença dos imigrantes nos estados envolvidos na disputa. São Paulo
argumenta que os imigrantes são encaminhados contra a vontade e o governo do
Acre afirma que apenas está atendendo ao desejo dos haitianos. No primeiro

61
Disponível em <http://www.ac24horas.com/2014/05/11/sebastiao-viana-pode-ser-
denunciado-em-corte-internacional/>. Acesso em 14/05/2014.
62
Disponível em <http://www.ac24horas.com/2014/05/11/sebastiao-viana-pode-ser-
denunciado-em-corte-internacional/>. Acesso em 14/05/2014.

112
caso, os imigrantes vão para São Paulo “contra a vontade”, no segundo, a
“vontade” seria a de deixar o território acreano.
Em meio a essas disputas verbais, haitianos, senegaleses e dominicanos
vão direcionando seus olhares para outras fronteiras e territórios. Se não querem
ir ou permanecer em determinados locais é porque não encontraram o que vêm
buscando desde seus países de nascimento. Os jogos verbais realizados por
representantes governamentais e institucionais visam ocultar a ausência de
justiça social e tratamento isonômico por onde quer que eles tenham passado e
isso também serve para o caso brasileiro. Assim, podemos nos perguntar: se São
Paulo é “menos humano que o Acre”, então por que encaminhar os haitianos para
lá? Se o Acre é mais humano, então por que eles não desejam ficar?
No bojo das discussões que se travaram em nível nacional a respeito desta
última “chegada” dos haitianos à São Paulo, vozes que até então não se fizeram
ouvir no Acre criticando o atendimento desumano àquelas pessoas começaram a
emergir. Apesar de ser uma questão que envolve temas como os da dignidade
humana e do combate ao racismo, que já vêm se desdobrando há mais de três
anos, somente neste momento é que algumas autoridades religiosas e políticas
manifestaram seu apoio à causa da imigração, talvez em virtude da repercussão
que esses eventos causaram após a querele entre os governos acreano e
paulista.
Convém lembrar que episódios parecidos, mas com repercussões bem
mais modestas, já haviam sido protagonizados pelos governos estaduais do Acre
e Rondônia. Também naquele momento, e apenas naquele momento,
personagens que até então haviam se omitido proferiram uma ou duas palavras
em relação ao assunto. O que estranhamos, tanto naquele momento quanto no
atua, é o silêncio das ONGs e associações acreanas de direitos negros ou que se
afirmam enquanto entidades de promoção da “igualdade racial”, estas entidades
continuam em silêncio a esse respeito. Uma maneira de explicar essa omissão,
talvez seja determinada interpretação sobre a questão da discriminação assumida
por representantes dessas entidades, interpretação que trata e tenta minimizar as
práticas discriminatórias apenas quando relacionadas a indivíduos pertencentes à
nação, o que excluiria os imigrantes, negros de outras nacionalidades.

113
Ao que tudo indica, no bojo das ações afirmativas e políticas de
preferências raciais tão propaladas no Brasil dos últimos vinte anos, reina uma
prática em que negros de outras nações são menos negros que os “nacionais” no
que concerne ao acesso a direitos e à proteção de instituições e organizações.
Por outro lado, no que diz respeito ao descaso a que estão sujeitos, os negros “de
lá” parecem ser mais negros que os “de cá”.
Inseridos em um sistema internacional de formação e exploração de mão
de obra, haitianos, senegaleses e dominicanos percorrem vias legais e ilegais que
integram esse mesmo sistema e, em muitos casos, também reproduzem, uns em
relação aos outros, as práticas discriminatórias que são utilizadas exatamente na
tentativa de mantê-los nesta condição.
Ao ser questionado se o Brasil estaria realmente ajudando o Haiti com essa
maneira de proceder, Keni Cavé respondeu:

Mas creio que há, há, vamos dizer assim, ele está interessado em
ajudar, mas, em parte sim, por quê? Porque quando está aqui um
haitiano que tem um trabalho e manda dinheiro para sua família está
lbom, mas um haitiano que está aqui só pode haver, mais ou menos, três
ou quatro pessoas na sua conta. De outra parte, a maneira de se
organizar tudo, não está boa, porque há bastante gente que morre no
caminho, que são roubadas no caminho, há violência sexual no caminho.
É muito, porque a maioria da gente, haitianos que estão aqui, não vem
direto do Haiti ao Brasil, do Haiti até São Paulo, não! O caminho é: Haiti,
Santo Domingo, há uma parada em uma hora no Panamá, depende de
que companhia, se é COPA, há uma parada em Panamá, se é AVIANCA,
há uma parada em, em Colômbia, se é LAN, há uma parada, parada no
Chile. Mas uma vez que chegam de, vamos dizer, do Haiti, Santo
Domingo, República Dominicana, Equador, Peru e Brasil. Eu creio que
do caminho, a parte mais difícil para eles é no Peru. Nas fronteiras que
há no Peru, os haitianos têm que cruzar duas fronteiras, que são duas
portas de morte para eles! O que se fazem pelas polícias dos peruanos
em Tumbes, que também é caminho, maios ou menos quando vão
chegar a, todas ficam onde vamos passar de Tumbes até Cusco. Há
muitos, muitos, muitos problemas e quando chega ai! Iñapari Também!
Puerto Maldonado também! Há bastante problemas! Há bastante
problemas! Creio que é melhor, para passar, para passar as coisas de
outra maneira, para que se o Brasil quer, quer receber gente, quer
alguma ajuda, mas querem uma imigração para fazer o que querem
fazer os brasileiros, tem que fazer para que a gente chegue aqui no
Brasil direto! Assim será melhor, para os haitianos e também para o povo
do Brasil! (KENNY CAVÈ. Entrevista, Rio Branco, 21/04/2014)

Para discorrer sobre a “ajuda” prestada pelo Brasil ao Haiti, o depoente faz
referência à “forma de se organizar tudo” que, de acordo com ele, não estaria
boa. Esta fala é importante por desvelar a farsa em que tem se constituído todo o
discurso de ajuda humanitária ao Haiti. Se o objetivo fosse realmente tirá-lo da

114
atual situação de miséria e caso fosse necessária a imigração, esta poderia ser
realizada de forma direta, no entanto, se assim ocorresse, um lucrativo negócio,
que articula agências de viagens, companhias de aviação dos estados nacionais e
os demais componentes humanos da imigração “ilegal” para o Brasil, seria
perdido.
Vir direto “do Haiti ao Brasil, do Haiti até São Paulo” tiraria de cena grande
parte desses elementos que veriam diminuídas parcelas consideráveis de seus
lucros. Por outro lado, e em continuidade, empresários que curiosamente não
encontram mão de obra brasileira que possa ser utilizada em seus negócios,
perderiam importante fonte dessa valiosa, mas barata, mercadoria. Como não se
pode “vir direto”, o meio encontrado por aqueles que veem nos recursos que são
enviados por familiares do Brasil para o Haiti a coragem para seguir os mesmos
trajetos, apesar dos perigos a que possam se expor, é a via indireta, chamada
“ilegal”. Para tanto, outros montantes de recursos devem ser angariados para
custear a viagem e o ciclo se repete.
As violências sofridas no percurso e a própria classificação dos imigrantes
como ilegais geram condições para que se instalem práticas exploratórias,
baseadas na desvalorização da humanidade desses sujeitos. Porém, essas ações
não devem ser pensadas apenas como imposições vindas de fora e realizadas
por grupos e indivíduos que desejam explorar os haitianos, algumas delas são
assumidas e outras são reproduzidas transformando, por exemplo, senegaleses
em bodes expiatórios para as dificuldades vivenciadas no abrigo de Rio Branco.

Mas o que eu acho é que, uma vez que as pessoas estão aqui, no
refúgio, no abrigo é um problema que há dois povos, mais ou menos, eu
posso dizer mais ou menos quatro nacionalidades diferentes aqui. E as
quatro nacionalidades são, a maioria, primeiro os haitianos, segundo, os
senegaleses, terceiro, terceiro creio que há os dominicanos e há alguns
camaroneses. E o problema aqui, para mim, o Brasil não está, não está
pronto para, para isto, para atender tanta gente e que não tem nenhuma
qualificação e também havendo no abrigo há um problema de, de cultura.
A cultura, as culturas que têm os, os, as, as quatro nacionalidades são,
como vamos? São muito diferentes! Olha, então há um problema entre
os haitianos e os senegaleses. Os haitianos dizem que os senegaleses
não têm, não querem se banhar, não querem limpar nada. E de verdade
quanto ao banheiro, por isso que o abrigo, vamos dizer, em nível
sanitário, é muito degrado; é muito, muito, muito feio. E os haitianos,
cada dia, cada dia é assim, dizem que a culpa é dos senegaleses é pela
maneira feia pela cultura, sobre a cultura, que os haitianos não
conseguem se adaptar. (KENNY CAVÈ, Entrevista, Rio Branco,
21/04/2014)

115
O ordenamento que vai de haitianos a camaroneses, indica não apenas o
número de indivíduos pertencentes a cada nacionalidade e sua respectiva
proporção no interior do abrigo. Ele circunscreve os elementos de uma tensão
crescente no interior daquele espaço de convivência, principalmente envolvendo
os grupos majoritários (senegaleses e haitianos). O “problema de cultura” descrito
por Kenny Cavé pode ser analisado como uma versão menor do que acontecia
entre haitianos e brasileiros no município de Brasileia quando o abrigo de lá ainda
estava em funcionamento.
Sob a alegação de que aqueles serviços foram criados para atender às
necessidades dos brasileiros, os munícipes reclamavam que os haitianos
ocupavam espaços públicos, enchiam os postos de saúde, filas dos bancos e
agências dos correios. Do outro lado, os haitianos que necessitavam faziam uso
daqueles serviços e, para os que o possuíam, seus visto humanitários lhes dava
esse direito. Quando o número de senegaleses passou a crescer já naquele
município, os primeiros desentendimentos e brigas começaram a ocorrer63.
Haitianos começavam a identificar senegaleses como obstáculos ao acesso de
serviços e auxílio.
O pano de fundo para essa disputa por espaço eram as “diferenças
culturais”, as mesmas que são apontadas por Kenny Cavé enquanto causas das
tensões no interior do abrigo de Rio Branco. A ausência das condições mínimas,
necessárias para o atendimento daquelas pessoas, acaba sendo deixada para um
segundo plano em virtude da reivindicação de privilégios oferecidos ou negados
em razão dos “traços culturais”, apresentados aí, como inerentes às nações e aos
indivíduos nelas inseridos. Ocorre, nesse ponto, a não percepção de que a nação,
como propôs Benedict Andersen, é uma “comunidade imaginada”, conservando-
se uma velha lógica que justificou e justifica variadas formas de segregação. Isso,
apesar de receber outro nome (diferenças culturais), é a manifestação pós-
moderna do racismo à moda antiga.
O fato de que todos estão sujeitos às mesmas condições de
precariedade é obscurecido pelo “problema da cultura”, que gera tensões e

63
Ver Polícia prende dois senegaleses após briga com haitianos na fila da receita
federal. Disponível em <http://www.contilnetnoticias.com.br/index.php/noticias-policiais/9-
noticias/3538-policia-prende-dois-sene galeses-apos-briga-com-haitianos-na-fila-da-receita-
federal>. Acesso em 10/05/2014

116
conflitos entre esses sujeitos, mas que também serve como instrumento de
manutenção e reprodução da ordem no interior do abrigo. Manutenção, pois os
refugiados não conseguem se identificar como reivindicantes de uma causa
comum e direcionam suas críticas aos indivíduos de outras nacionalidades,
suavizando o papel do Brasil nisso tudo. Reprodução, porque, ao discriminar um
grupo de indivíduos que, no universo geral brasileiro, já experimentam (enquanto
imigrantes ilegais) uma situação discriminatória, reduz-se ainda mais o valor
humano atribuído àquelas pessoas e esta, como dissemos, é a base para
variadas formas de exploração.
Se refletirmos sobre essas práticas no interior dos abrigos para imigrantes
como metonímias do que ocorre nos municípios e estados brasileiros, é possível
fazer uma crítica semelhante. Munícipes em situação precária desprezando
outros seres humanos sob a justificativa de que “não existe emprego nem para
nós”64 ou disputas institucionais que se arrastam por dias intermináveis tratando
homens, mulheres e crianças como meras cifras, terminam por camuflar a
ocorrência de um sistema hediondo de exploração de seres humanos de todas as
cores, vítimas e algozes de sua própria exploração.
Em mais um trecho de entrevista Kenny Cavé fala dessas contradições e,
desta feita, se utiliza da afirmativa de que o “Brasil é um país feito por imigrantes”
para criticar as formas de tratamento dispensadas aos haitianos de modo geral.
Por outro lado, ele reafirma um suposto prejuízo em razão de que sua
“qualificação” não lhe tem rendido nenhuma espécie de privilégio no processo
migratório, discriminando, desta forma, os imigrantes “desqualificados”, haitianos
ou não.

Não sei, mas creio que é o melhor para a segurança das fronteiras, e,
para, para se ter outra maneira para que a gente tenha uma partida mais
fácil do Haiti. Mas, olhe, no Haiti, há muita, muita gente, para fazer, para
trabalhar, gente para fazer a construção, para trabalhar em, na
restauração também, no turismo, há muitos haitianos que são, que têm
uma qualificação e muito, muito, muito, muito boa! E eles não têm sorte
para ir até o Brasil. Algumas vezes porque não têm dinheiro para vir ou
temos França, Canadá e Estados Unidos que ofereçam oportunidades
para essa gente. Mas creio o que têm que fazer igual aos Estados
Unidos e Canadá para receber os que têm qualificação, porque no
Canadá existem muitos haitianos que têm qualificação, mas, eles vão até
o Canadá direto, sem problema, porque é uma imigração só para quem

64
Frase recorrente nos comentários postados abaixo de reportagens que tratam da questão
haitiana no Brasil.

117
tem qualificação. O que está fazendo o Brasil, é uma coisa, não é má,
mas eu creio que antes, o Brasil é um país que se construiu por
imigrantes, sim! Mas o Brasil tem que mudar de forma, porque esta
forma, faz mais ou menos, que, três ou quatro, três ou dois séculos, já,
mas têm que mudar! Tem que fazer outra coisa! Sim pois o Brasil é um
bom destino, é que lhe falta, falta alguma coisa. Falta algo, tem que fazer
algo para mudar tudo isso! (KENNY CAVÈ. Entrevista, Rio Branco,
21/04/2014)

Kenny Cavé se utiliza do discurso produzido no sentido de barrar a entrada


de imigrantes para pleitear o acesso direto do Haiti ao Brasil. No entanto, essa
imigração, para ele, deveria seguir os moldes estadunidenses e canadenses, o
que implicaria na promoção da imigração de indivíduos com formação acadêmica
e especialização laboral. O que o entrevistado não consegue visualizar é que
naqueles casos, assim como já ocorre no Brasil, pratica-se simultaneamente ao
fechamento das fronteiras aos imigrantes “ilegais”, um processo de expropriação
e exploração daqueles que tentam e/ou conseguem entrar nesses países
utilizando-se de meios legalmente vedados.
Note-se que a própria proibição e a vigilância é utilizada na edificação de
estratégias de controle da mão de obra e justificação dos baixos salários pagos
aos que estão na condição “ilegal”. Ilegalidade e legalidade figuram então como
integrantes de uma grande estratégia exploratória em que, de um lado, se abre as
fronteiras aos considerados “qualificados” e, de outro, as fronteiras são
oficialmente fechadas aos “desqualificados” para serem extraoficialmente abertas
aos mesmos.
Nas palavras de Kenny Cavé, o Brasil construído por imigrantes de todas
as partes não mudou suas práticas no decorrer dos séculos. E mesmo com essa
repetição, o país continua sendo produzido como um “bom destino”. Aquele algo
que “lhe falta” é justamente o que permite que esse sistema exploratório se
perpetue. Talvez por isso continue faltando, essa é uma “falta” planejada e não
fruto do acaso. Daí o fato de que, a despeito do desejo de nosso entrevistado, é
essa estratégia que permite que haitianos, senegaleses, dominicanos, com ou
sem “qualificação”, continuem sendo incorporados ao mundo do trabalho no Brasil
como “a carne mais barata do mercado”65.

65
Refrão da canção “A carne”, de autoria de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti.

118
Considerações Finais

É difícil concluir um estudo que aborda os movimentos humanos,


sobretudo quando, diferentemente da física, inexistem leis que se apliquem
sempre e em todo lugar para descrevê-los. O trânsito de haitianos pela Amazônia
Sul-Ocidental, efetivado durante o próprio caminhar, é, ele mesmo, produtor e
produto de diferentes descrições que falam não apenas dos caminhos
percorridos, mas dos sujeitos que os traçaram. Esses sujeitos (re)descrevem a si
em sendo descritos pelos outros, elaborando a razão de suas identidades a partir
das escolhas e afetos encadeados no imprevisível espaço e tempo amazônicos.
Desse modo, retomamos as análises de Paul Ricoeur, para tentar falar do ponto
em que estamos, e, uma vez que a caminhada continua, usar o ponto final como
se fossem reticências.
Ao refletir sobre as narrativas identitárias produzidas por e sobre haitianos
que ingressaram o território Brasileiro, trouxemos um pouco dos elementos que
transitam entre a produção da mesmidade e da alteridade. Nas explicações,
descrições e questionamentos dos sujeitos apresentados, encontramos traços da
presença re-significada das vozes e dizeres de diferentes interlocutores que,
nesse re-significar, também produzem a si próprios. Nas reportagens, matérias e
postagens analisadas, pudemos visualizar não apenas as imagens produzidas a

119
respeito de haitianos nessa parte da Amazônia, mas também visões e projeções
identitárias dos sujeitos que as elaboraram.
As conclusões ora apresentadas se inscrevem nessa mesma lógica, pois,
no contato com o objeto de pesquisa e norteados por uma intencionalidade,
apresentamos não apenas a descrição de alguns aspectos relativos ao objeto
pesquisado, mas as concepções produzidas nesse contato dialógico que cria
novos significados também para quem pesquisa. Em outros termos, o ser-no-
mundo (dasein) heideggeriano, que rompe as barreiras entre o interno e o
externo, continua produzindo e se produzindo histórica e socialmente.
Nesse processo de co-produção, produzimos ou entramos em contato com
narrativas que relacionavam trabalho e amizade nos encontros e desencontros
estabelecidos nos caminhos que unem e separam Haiti e Acre, a partir das quais
pudemos observar algumas das implicações das formas de acolhida
experimentadas por haitianos na Amazônia acreana e o papel desse tratamento
na constituição de narrativas, que foram elaboradas como elementos de
integração desses indivíduos no território brasileiro.
Percebemos que, no diálogo com a perspectiva do labor, alguns desses
sujeitos reorganizaram uma série de elementos para driblar os argumentos
elaborados para desvalorizar suas humanidades. Este é o caso de Leonel
Joseph, que elenca a superação das dificuldades experimentadas no percurso do
Haiti ao Acre como “prova contundente” da força e obstinação de haitianos para
progredir e colaborar com o progresso da “comunidade” que os acolheu. Com
base na análise dessa narrativa, pudemos inferir uma tradução dos termos
criados visando sua desumanização para transformá-los em ponto, a partir do
qual, pode-se exigir integração e igualdade.
Nessa mesma linha, e acompanhando perspectivas pontuadas por Stuart
Hall, observamos declarações de crenças religiosas sendo apresentadas como
elementos facilitadores de acolhidas e aquisição de emprego. “Adaptabilidade[s]
identitária[s]” (HALL, 2003, p. 66) assumidas por mulheres e homens provenientes
do Haiti, para se identificarem e pleitear direitos. Nas falas de Guinot Gerlin, por
exemplo, pudemos identificar a presença dessa reivindicação religiosa como
tática de acolhida, mas também como manifestação de “dupla consciência”
(GILROY, 2001), posto que o narrador se reconhece enquanto herdeiro de

120
culturas africanas, e, ao mesmo tempo, visualiza nessa ancestralidade as marcas
demoníacas elaboradas durante o processo colonizador, utilizadas posteriormente
para legitimar variadas formas de exploração sobre os “herdeiros da África”,
dispersos em incontáveis diásporas hoje lidas no contexto da globalização.
Do conjunto de narrativas construídas por esses sujeitos pudemos
identificar uma coletânea de formas de identificação que tendem para o rizomático
(GLISSANT, 2005), mas que recorrem à raiz única orientada em função do
pertencimento à humanidade, enquanto exigência de equidade e respeito. A
aparente submissão e obediência aos trâmites e exigências impostos aos
haitianos (estrangeiros), não pode ocultar as pequenas brechas abertas por entre
essas mesmas imposições, seja por suas palavras (em espanhol, creole, francês
ou na junção de todas elas), como nos permitiu visualizar Fernand Jean Pierre,
seja por suas incômodas presenças reivindicativas a questionar essa “outra”
humanidade. A presença vívida desses corpos negros e questionadores,
transmutados em metonímias do Haiti no Brasil, expuseram “incoerências de
discursos cronológicos” (ANTONACCI, 2013, p.15), que tratam milhares de seres
humanos como excluídos, para, nesse processo, poderem incluí-los como
explorados na edificação do “mundo moderno”.
A “cordialidade” brasileira posta à prova pela intrigante presença desse
“outro”, nos possibilitou, durante a pesquisa, o contato com falas de haitianos no
Acre, bem como com outras representações produzidas sobre esses sujeitos.
Representações a partir das quais, pudemos produzir uma reflexão, destacando o
papel desempenhado pelos interlocutores nos processos de elaboração das
narrativas identitárias, tanto dos “chegantes” quanto daqueles que os
recepcionavam. Neste sentido, fizemos uma análise do termo “coiote”, presente
nas representações de Tervenkus Petit, para evidenciar as fórmulas alinhavadas
por instituições e indivíduos no intuito de explorar haitianos no trânsito para e no
Brasil, expondo como essas experiências, interpretadas e narradas, interferem
nas formas de identificação dos interlocutores.
A exploração “[d]a marca que a escravidão deixou” (JAMES, 2000, p.50) é
característica prevalente também nas diásporas desses tempos de globalização,
porém, é a partir da apropriação e tradução dos discursos orientados para a
manutenção das formas de desumanização que se inscrevem as táticas

121
elaboradas pelos sujeitos, na busca pela permanência enquanto seres humanos.
A perturbadora pergunta “você que faz isso comigo, o que você é?” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p.157-94), lançada pela experiência de haitianos(as),
durante mais de três anos vivenciando condições degradantes em abrigos
construídos em Brasileia e Epitaciolândia, reivindica o repensar das práticas de
quem os trata desse modo.
Enunciações e silêncios insistentemente destacados nas “artes do fazer”
(CERTEAU, 1998), produzidas pelos praticantes dos abrigos que ousaram dizer,
sem fazê-lo e questionar a hierarquia, sem abrir mão de suas possibilidades de
lhes garantir atendimento e celeridade na solução de problemas. Através dessas
“prática[s] do desvio” (Glissant, 2011, p.72) aqueles sujeitos utilizavam-se do(s)
outro(s) como instrumentos de enunciação e burla, re-significando dizeres na
interpretação do vivido.
Das disputas envolvendo estados, instituições e pessoas pelos corpos de
sujeitos provenientes do Haiti, vimos emergir discursos e práticas visando dar
legitimidade aos contendores, seja no rechaço ou na recepção e tratamento
dispensado a essas pessoas. Em diversos desses casos, esses sujeitos foram
tratados como cifras ou massa sem vontade, pelos mais variados interlocutores,
e, a partir do diálogo com esses mesmos discursos e práticas, esses indivíduos
mostraram-se “irresignavelmente humanos” (JAMES, 2000, p.26), reproduzindo,
redirecionando e/ou rechaçando aquilo que visava diminuir suas humanidades.
Exemplos dessas contradições apresentaram-se na narrativa de Kenny
Cavé, que reproduz o discurso discriminatório, originalmente voltado aos
haitianos, direcionando-o aos senegaleses que dividem espaços com haitianos no
interior do abrigo de Rio Branco. Esse sujeito, ao mesmo tempo em que propunha
a imigração seletiva pensando em sua condição individual, também pleiteava a
celeridade nos trâmites e o melhoramento das condições do abrigo, pensando no
bem comum.
Outra evidência das contradições e táticas elaboradas por haitianos no
trânsito pela Amazônia Sul-Ocidental foram os usos que alguns desses sujeitos
fizeram dos discursos elaborados para justificar o rechaço de seus corpos negros
nas fronteiras de um Brasil de “democracia racial”. Do mútuo descontentamento
oficialmente alegado pelos governos do Acre e São Paulo, por conta da presença

122
haitiana em seus territórios, pudemos observar sujeitos transferindo seus
“destinos” para outras paragens, utilizando-se inclusive desse malquerer
institucional para facilitar-lhes o trânsito. Nesse sentido, “o Acre como porta de
entrada” era utilizado para que o movimento fosse acelerado; o “preconceito” das
“elites paulistas”, enunciado para legitimar o rechaço acreano aos haitianos, era
utilizado na justificação da acolhida em São Paulo. Da disputa entre os governos
estaduais que discutiam quem seria mais ou menos humano, haitianos puderam
reivindicar e ver melhoradas as condições de acolhida e estadia nos abrigos no
Acre e em São Paulo.
Conscientes de que as fontes utilizadas e de que os sujeitos que puderam
narrar um pouco de suas experiências, no âmbito deste estudo, representam uma
pequena parcela dos elementos envolvidos na diáspora de afro-caribenhos nesta
parte da Amazônia, destacamos os limites que não puderam ser transpostos na
realização da pesquisa. Exemplo disso é o da presença feminina, apenas
rasamente exposto, se comparado às diversas nuances que essa presença pode
desvelar. Neste caso, ocorreu uma omissão proposital uma vez que a riqueza
atinente a esta temática exigiria um estudo específico para abordá-la
adequadamente, espaço que não dispomos nesta breve dissertação.
Acompanhando as proposições de Michel-Rolph Trouillot, percebemos, neste
ponto, um dos “silenciamentos” atinentes à produção da história, por outro lado,
ao destacá-lo, chamamos atenção para que outros pesquisadores possam se
debruçar sobre ele e se pronunciar a respeito.
A observação e análise dessas contradições tornaram possível refletir
sobre os posicionamentos de brasileiros acreanos, residentes nos municípios de
Assis Brasil, Brasileia e Epitaciolândia, em relação aos haitianos “abrigados”
naquelas localidades. A interpretação do outro como “estrangeiro”, o rechaço à
sua “incômoda” presença, oculta semelhanças no que tange a experiências de
abandono, pobreza, etc., mascaradas pela percepção do “outro” como aquele que
vem ocupar espaços e concorrer com os pobres “nacionais”. Estudos como o que
ora apresentamos, podem colaborar para a mútua compreensão entre os que
“chegam” e os que “estão”, e, a partir daí, contribuir na busca de objetivos
comuns.

123
FONTES
Entrevistados

Tervenkus Petit, 37 anos, casado com a haitiana Ãnia Silvalien, com quem teve
dois filhos (o mais novo nascido no Brasil), um de oito anos e o outro seis meses
à época, nos falou, em entrevista, de suas expectativas; da recepção oferecida
por instituições do Brasil e da relação estabelecida com o território e as pessoas
desde sua “chegada” ao Acre.
Guinot Gerlin, haitiano, 36 anos, casado e pai de uma filha que ainda vive no Haiti
junto da mãe. Ele também viveu na República Dominicana, onde estudou e
trabalhou por vários anos.
Fernando Jean Pierre, haitiano, 24 anos, agricultor, que no momento se
apresentava como auxiliar de pedreiro, apresentou uma narrativa em que o “nós”
e o “eles” são reconfigurados para marcar diferenças em relação a uma certa
situação de estabilidade do enunciador.
Kesnel Theodule, haitiano, trabalhador agrícola de 23 anos, que em janeiro de
2012 se identificava como pedreiro, em uma conversa que tivemos e gravamos
durante um almoço em uma pensão nas proximidades da praça Hugo Poli, no
centro de Brasileia.

Jornais páginas da internet

AC 'exporta' haitianos e vira porta de entrada da África no Brasil. Disponível


em http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2014/04/28/ac-
%E2%80%98exporta%E2%80%99-haitianos-e-vira-porta-de-entrada-da-africa-no-
brasil/>. Acesso em 09/05/2014.

124
Depois de Eloíza, agora é Alckmin que chama Governador do Acre de
“irresponsável”. Disponível em <http://www.jornalrondoniavip.com.br/noticia/
depois-de-eloiza-agora-e-alckmin-que-chama-governador-do-acre-de-irresponsa
vel>. Acesso em 09/04/2014.

Haitianos reclamam da comida servida e jogam no lixo. Disponível em


<http://www.ac24horas. com/ 2014/03/27/imigrantes-reclamam-da-comida-e-
jogam-marmitas-fora/>. Acesso em 06/05/2014.

Haitianos amargam fome, sede e a desesperança no Peru. Disponível em


<http: //agazeta.net/plantao/noticias/7996-haitianos-amargam-fome-sede-e-a-
desesperanca-no-peru.html>. Acesso em 06/03/2014.

Governador Sebastião Viana quer processar Secretária de Justiça de SP.


Disponível em <http://www.ac24horas.com/2014/04/27/sebastiao-viana-quer-
processar-secretaria-de-justica-de-sp/>. Acesso em 13/05/2014.

Imigrantes haitianos e senegaleses revoltados com má qualidade da


refeição jogam marmitas fora enquanto isso existem brasileiros ou melhor,
acreanos sem ter o que comer! Disponível em <http:/
/www.ecosdanoticia.com.br/policia/ 2014/03/imigrantes-haitianos-e-senegaleses-
revoltados-com-ma-qualidade-da-refeicao-jogam-marmitas-fora.html>. Acesso em
06/05/2014.

ONG denuncia situação de imigrantes haitianos que vivem no Acre à OEA.


Disponível em <http://www.ac24horas.com/2013/08/23/ong-denuncia-situacao-de-
imigrantes-haitianos-no-acre-a-oea/>. Acesso em 13/05/2014.

Polícia prende dois senegaleses após briga com haitianos na fila da receita
federal. Disponível em <http://www.contilnetnoticias.com.br/index.php/noticias-
policiais/9-noticias/3538-policia-prende-dois-sene galeses-apos-briga-com-
haitianos-na-fila-da-receita-federal>. Acesso em 10/05/2014.

Sebastião Viana pode ser denunciado em corte internacional. Disponível em


<http://www.ac24horas.com/2014/05/11/sebastiao-viana-pode-ser-denunciado-em
-corte-internacional/>. Acesso em 14/05/2014.

Secretária de de Justiça de SP diz que Acre foi 'irresponsável' com


haitianos. Disponível em <http://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2014/04/secretaria-de-justica-de-sp-diz-que-acre-foi-irresponsavel-
com haitianos.html>. Acesso em 09/04/2014.

125
Referências

ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. Petrópolis: Vozes, 1978.

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido


Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte,


Editora UFMG, 2004.

ALBUQUERQUE, G. R. Diáspora de afrocaribenhos para a Amazônia Acreana.


Rio Branco: 2013.

ALBUQUERQUE, G. R. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. Rio Branco:


EDUFAC, 2005.

ANDERSEN, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão


do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANTONACCI, M. A. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: Educ,


2013.

ARENDT, H. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 4. ed. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 1989.

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo. 7ª


reimpressão, São Paulo: Cia das Letras, 2007.

126
ARENDT, H. Sobre a violência. Tradução de André de Macedo Duarte. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

BAUDELAIRE, C. Sobre a Modernidade: São Paulo: Paz e Terra, 1997.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora Jorge


Zahar, 1998.

BAUMAN, Z. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política vol.1, 3


ed. Brasiliense: São Paulo, 1987.

BHABHA, H. K. O Local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia


das Letras, 1998.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em 5 de outubro de 1988.

BUTLER, J. Actos performativos y construción del género: um ensayo sobre


fenomenología y teoria feminista. 2009. Disponível em <www.debatefeminista.
com/PDF/articulos/actosp433.pdf>. Acesso em 06/03/2014.

CALDEIRA, T. 1991. Memória e relato: A Escuta do outro. In: Revista do Arquivo


Municipal - Memória e Ação Cultural v. 200, São Paulo: DPH.

CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginaria da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1982.

CERTEAU, M. A Cultura no plural. Trad. Enid Abreu. Campinas-SP: Papirus,


1995.

CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano: artes do fazer. 3 ed. Trad. Ephrain


Ferreira Alves. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998.

CHAUI, M. Conformismo e resistência — aspectos da cultura popular no


Brasil. 4. ed., São Paulo, Brasiliense, 1986.

DAMATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema


brasileiro. 6 ed., Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

EAGLETON, T. A ideia de cultura. São Paulo: editora UNESP, 2011.

ELIADE, M. Mito e Realidade. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

127
FANON, F. Os Condenados da Terra. Trad. Alice A. rocha & Lucy Magalhães.
Juiz de Fora-MG: Editora UFJF, 2006.

FISCHER, E. A Necessidade da Arte. 6.ed. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Editora, 1977.

GALEANO, E. A história do Haiti é a história do racismo na civilização


ocidental. 2010. Disponível em: <http://developmentissues.wordpress.com/2010
/01/ 19/racism-haiti/>. Acesso em: 28/02/2014.

GILROY, P. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla Consciência. Trad. Patrícia


Farias. São Paulo:Editora 34, 2001.

GLISSANT, E. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora


UFJF, 2005.

GLISSANT, E. Poética da Relação. Trad. Manuela Mendonça. Portugal: Porto


Editora, 2011.

GODOY, A. S. M. A escravidão no direito grego clássico. Disponível em


<http://www.arnaldogodoy.adv.br/publica/escravidao.htm>. Acesso em 17/12/2013.

GONDIN, N. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco zero, 1994.

HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do


nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº2, p. 15-46, jul./dez.
1997.

HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de janeiro: DP&A,


2006.

HALL, S. Da Diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo


Horizonte:Editora da UFMG, 2003.

HARDMAN, F. F. A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a


literatura moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

HARENDT, H. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 4. Ed. São Paulo:


Companhia das letras, 1989.

HARVEY, D. Condição Pós Moderna. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria


Stela Gonçalves, São Paulo: Edições Loyola, 1993.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo I. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 12. ed.


Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2002.

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26 ed. Companhia das Letras: São Paulo,


1995.

128
HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

JAMES, C. L. R. Os Jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a Revolução de


São Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2000.

JENKINS, K. A Nova História Cultural. São Pauso: Marins Fontes, 2001.

KRANTZ, F. (org.). A outra história: ideologia e protesto popular nos séculos XVII
a XIX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.

MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Maria Lúcia


Como. Paz e Terra. 7ª ed., 2001.

MOURA, C. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

PERROT, M. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1988.

PESAVENTO, S. J. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.


PRATT, M. L. Os Olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Trad.
Jézio Gutierre. Bauru: EDUSC, 1999.

RICOEUR, P. A Identidade Narrativa e o Problema da Identidade pessoal.


Trad. Carlos João Correia. Arquipélago, n.º 7, p.177-194, 2000.

RICOEUR, P. Identidade Narrativa I. Trad. Constansa Marcondes Cesar. Papirus


Editora: São Paulo, 1994.

SARLO, B. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa


Freire D'aguiar. São paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the past: Power and the production of


history. Boston: Beacon Press, 1995.

129

Você também pode gostar