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lsnara Pereira Ivo

Eduardo França Paiva


Marcia Amantino
Religiões e religiosidades,
escravidão e mestiçagens
lsnara Pereira Ivo
Eduardo França Paiva
Marcia Amantino
(ORGANIZADORES)

Religiões e religiosidades,
escravidão e mestiçagens

,
a
.......

1ntermeios
CASA DE ARTES ELIVROS Governo do Estadoda Bahia
Editora lntenneios
Rua Cunha Gago, 420 I casa 1 - Pinheiros
CEP 05421-001- São Paulo- SP- Brasil
Sumário
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RELIGIOES E RELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGENS

© lsnara Pereira Ivo 1 Eduardo França Paiva 1 Marcia Amantino

1" ediçao: outubro de 2016



Editoração eletrónica, produção Intermeias- Casa de Artes e Livros
Revisão Guilherme Mazzafera e Silva Vilhena
Imagem da capa Conquista y redución de los índios de las montanas de
Paraca y Pantasma, con la representación de espacios
sagrados indígenas y cristianos. Sigla XVII.
Museo de América, Madrid.
Capa Livia Consentino Lopes Pereira

CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University) Apresentação
Daniel Ferrer (ITEMICNRS)
7
Lucrécia D'Aiessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amália P inheiro (PUCSP)
Primeira Parte
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
llana Wainer (USP) 13 "Historia de una gran seiiora christiana" - conversões, batismos,
Walter Fagundes Morales (UESCINEPAB) religiosidade no mundo católico e a h istoricidade dos conceitos
lzabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS) Eduardo França Paiva
Celso Cruz (UFS)- in memoriam
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP) 29 "Catolicismo à Africana": Costumes e vivências religiosas mestiças na
África Ocidental e Centro O cidental no século XVIII
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP
Suely Creuza Cordeiro de Almeida
1961 Ivo, lsnara Pereira, Org.; Paiva, Eduardo França , Org.; Amantino, Marcia, Org.
Religiões e religiosidades, escravidão e mestiçagens I Organização de
lsnara Pereira Ivo, Eduardo França Paiva e Marcia Amantino- São Paulo: 41 Hechicería colonial, justicia capitular y m estizajes. Santiago dei Estero
Intermeias; Vitória da Conquista : Edições UE SB, 2016.
(gobernación d el Tucumán, Virreinato dei Perú) en el sigla XVIII
240 p. ; 16 x 23 em.
Judith Farberman
Simpósio Internacional do Grupo Escravidão e Mestiçagens,
VI. Vitória da Conquista (BA), 2012.
ISBN 978-85-8499-067-2 61 Um "universo" embaraçoso de relações: homen s livres, nobreza negra,
1. História. 2. História do Brasil. 3. História Social. 4. Mobilidade Cultural.
escravas, mulatinhos, crioulos e cabrinhas - Salvador no século XIX
5. Sociabilidade. 6. Dinâmicas de Mestiçagen s. 7. Religião. 8. Escravidão. Maria de Deus Manso
9 . Religiosidade. 10. Mestiçagem. I. Titulo . 11. Ivo , lsnara Pereir a,
Organizadora. 111 . Paiva, Eduardo França, Organizador. IV. Amantino, Marcia,
Organizadora. V. Almeida, Suely Creuza Cordeiro de. VI. Faberman, Jud ith.
VIl. Manso, Maria de Deus. VIII. Sá, Eliane Garcindo de. IX. Almeida, Marcos
Segunda parte
Antonio de. X. Engemann, Carlos. XI. Guzmán, Florencia. XII. Freire, Jones.
XIII. Silva, Edivânia Gomes da. XIV. Edições UESB. XV. Intermeias- Casa
de Artes e Livros. 77 San Martín de Porres: a construção de um espaço mestiço na sociedade
CDU 93(81) vice-reinal do Peru at ravés da prática religiosa
CDD 981
Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino Eliane Garcindo de Sá
97 Ser escravo nos conventos franciscanos
Marcos Antonio de Almeida Apresentação
115 Escravidão, mestiçagens e o projeto cristão dos jesuítas na Argentina
colonial e no Rio de Janeiro, séculos XVI-XVIII
Marcia Amantino

141 Para a Paz e para o Bem: os sacramentos do batismo e do matrimônio


e a população escrava em Fazendas da Companhia de Jesus no Brasil e
na Argentina (século XVIII)
Carlos Engemann

163 Esclavitud, mestizaje y religiosidad en tiempos de reformas. Un análisis


histórico sobre la Visita del Obispo de Tucumán en 1768 (Argentina)
Florencia Guzmán

183 Devoções e Recolhimento feminino nos sertões do Brasil Setecentista Cumpriram-se em 2016 onze anos de criação do Simpósio Escravidão:
Isnara Pereira Ivo sociedades, culturas, economia e trabalho, sediado no Departamento de
História da UFMG. Rapidamente o simpósio acabou por ser conhecido
203 Batismos mestiços: mestiçagens na freguesia de Nossa Senhora das e reconhecido academicamente como Grupo Escravidão e Mestiçagens,
Neves do Sertão do Macaé (RJ), século XIX transformado em Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e Mestiçagens-
Jonis Freire RGPEM, em 2015. E é sobre este alicerce que as pesquisas de seus afiliados vêm
se desenvolvendo, sempre buscando discutir conceitos que giram em torno da
227 Estereótipo e silenciamento em sites de igrejas cristãs: a interdição da história da escravidão e das mestiçagens. Isto não significa, entretanto, que os
imagem do mestiço participantes comunguem da mesma perspectiva teórico-metodológica e se
Edvânia Gomes da Silva dediquem ao mesmo recorte espaço-temporal. Pelo contrário, o que atraiu e
continua atraindo os pesquisadores para o grupo é exatamente a possibilidade
diversa de diálogo e de trocas acadêmicas a partir dos objetos comuns de
pesquisa.
Além disto, o grupo tem procurado produzir histórias em perspectiva
comparada, entendendo que o fazer histórico necessita de consonância com
outras localidades, temporalidades e, acima de tudo, com outras historiografias.
São as conexões, em maior ou menor escala, que dão sentido às análises
desenvolvidas pelos pesquisadores.
Este quarto livro do grupo é resultado do VI Simpósio, ocorrido em
Vitória da Conquista, Bahia, em 2012. O principal objetivo deste encontro foi
analisar religiôes e religiosidades em ambientes de escravidão e de mestiçagens,
evocando conceitos fundamentais para a verticalização dos estudos sobre esta
temática, tais como trânsitos e trocas culturais, sociabilidades, convivências
e coexistências, superposições, negociações, mundialização e, como nova
perspectiva, o conceito de "dinâmicas de mestiçagens':
8 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 9

Assim como nos Simpósios anteriores, o de Vitória da Conquista contou maneira de vivenciar a fé foi levada por estes cristãos europeus para o Velho
com a participação de pesquisadores que, mesmo não sendo especialistas da continente e mesmo para outras partes do império lusitano.
temática central, aceitaram (re)pensar seus tradicionais objetos de pesquisa a Já a historiadora argentina Judith Farberman analisa a sociedade já
partir da escravidão, das mestiçagens, das religiões e/ou das religiosidades em bastante mestiçada da cidade de Santiago dei Estero, na Argentina, e os
perspectiva comparada. Novamente, tivemos a oportunidade de estabelecer contatos mantidos com os pueblos de indios ao longo dos séculos XVII e XVIII,
diálogos inovadores e instigantes. A nosso juízo, alcançamos plenamente os demonstrando, ainda, o acentuado declínio econômico vivenciado na região.
objetivos do encontro e do grupo e o leitor poderá encontrar os resultados Talvez por isto, pela grande dependência do trabalho de indígenas aldeados
dessas reflexões compartilhadas já incorporados aos textos aqui incluídos. e pela crise de valores que vivia a população, inúmeros foram os casos de
Diferentemente dos livros anteriores, nos quais os capítulos foram feitiçaria arrolados na documentação colonial, quase sempre ligados às
ordenados por períodos históricos, aqui eles foram organizados de outra mulheres índias. Onze desses processos são tratados pela autora como veículos
maneira. Optamos por agrupá-los a partir das abordagens dos objetos de para se chegar ao entendimento sobre a maneira como aquela sociedade lidava
estudo realizadas pelos autores, considerando o uso dos conceitos, bem como com essas práticas, sobre o que acreditavam ser feitiçaria e sobre o que faziam
os olhares de cada um sobre as relações entre sociedades e práticas religiosas. com as acusadas desse delito. Fechando esta parte do livro, a portuguesa
Assim, a primeira parte do livro engloba os textos que remetem às diferentes Maria de Deus Beites Manso, ao analisar um testamento da família Kopke,
maneiras encontradas pelas populações coloniais, tanto das Américas quanto originariamente produtora de vinho do Porto e, posteriormente, traficante de
noutros lugares, para conviver com dogmas cristãos, fomentando, muitas escravos e senhora de engenho na Bahia do século XIX, retrata trajetórias de
vezes, sociabilidades específicas e dinâmicas de mestiçagens. vida de livres e escravos e as relações daí advindas.
Utilizando conceitos de trânsito e mobilidade culturais, sociabilidade e A segunda parte do livro abarca discussões sobre algumas práticas
dinâmicas de mestiçagens - biológicas e culturais - e demonstrando por que católicas vivenciadas nas Américas. Em todos os textos se podem perceber
o conceito de sincretismo não responde mais aos impasses colocados pelas os limites destas mesmas doutrinas, o quanto foi necessária a realização de
recentes pesquisas que envolvem as relações religiosas na época moderna, adaptações locais e como se deram as relações entre os diferentes agentes
Eduardo França Paiva propõe pensar o universo religioso em perspectiva católicos e as sociedades coloniais.
comparada, associando uma rainha do Rosário das Minas Gerais setecentistas Analisando depoimentos presentes no Proceso Diocesano e em parte do
a uma senhora chinesa do século XVII, convertida ao catolicismo pelos jesuítas. Proceso de Beatificação de San Martín de Porres, um santo mulato nascido em
Os conceitos empregados nesta análise, de acordo com o autor, podem trazer Lima, no Peru, no século XVI, Eliane Garcindo de Sá apresenta um retrato
aportes inovadores aos estudos sobre as práticas cotidianas dos diversos agentes daquela sociedade e de como ela se relacionava com a ideia da existência de
que produziram essas histórias. Ele propõe, ainda, o regate na documentação um santo mestiço. A mestiçagem estava marcada não somente pela cor de
coeva de conceitos que foram empregados pelas próprias populações (tais sua pele, mas também por suas práticas curativas oriundas do conhecimento
como mistura, mestiço e híbrido), que, em alguns casos, caíram em desuso ao de barbeiro e de herbolário, assim como do conhecimento adquirido pelos
longo do tempo. A partir daí, Paiva indica a possibilidade de conversões plenas contatos com negros e índios.
ao catolicismo entre populações que tinham outras origens religiosas e revê, Utilizando duas fontes produzidas pela necessidade de controle do
sob outros conceitos, a corriqueira adoção simultânea de práticas religiosas de cotidiano nos conventos franciscanos, as Atas Capitulares e o Livro dos
distintas matrizes. Guardiães, Marcos Antonio de Almeida analisa a presença de escravos
Os textos que seguem procuram analisar questões muito próximas à (oriundos de doações, compras e mesmo de negociações ilícitas) no convento
temática das religiosidades mestiças, enfocando áreas da África e da América de Salvador, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. O autor demonstra, ainda,
espanhola. Suely Creusa Cordeiro de Almeida apresenta casos de cristãos o convívio entre os religiosos e seus escravos, bem como as redefinições sociais
europeus, moradores de terras africanas e que, em virtude de variados tipos surgidas a partir do que ele identifica como contradições entre a Fraternidade
de contato com aquelas populações, acabaram por absorver formas locais de Universal pregada pelos franciscanos e a escravidão.
manifestações religiosas, inclusive o cristianismo aí praticado. A autora sugere O texto seguinte, de Marcia Amantino, analisa as questões que se referem
que houve uma "mestiçagem às avessas': na medida em que parte desta nova à formação da mão de obra cativa dos jesuítas, entre os séculos XVI e XVIII, e
10 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira IvoIEduardo França Paiva IMarcia Amantino(orgs.) 11

aos mecanismos utilizados para manterem elevados contingentes de escravos


em suas propriedades no Rio de Janeiro e em três colégios da Província Jesuítica Jonis Freire analisa os registros de batismos da Freguesia de Nossa
~o Paraguai, a saber, Santiago dei Estero, Tucumán e La Rioja. A partir das Senhora das Neves do Sertão de Macaé, situada na Província do Rio de Janeiro,
listagens de escravos sequestrados nos momentos das expulsões dos inacianos ao longo do século XIX, procurando identificar as diferentes mestiçagens
das Américas portuguesa e espanhola, a autora constata que a maior parte ocorridas entre aquela população. Curiosamente, demonstrou que as cores e/
desta população era formada por mestiços. A mestiçagem foi, portanto, uma ou qualidades dos batizandos não eram sempre as mesmas de seus pais e que
d~s ~as~s .para que a Companhia de Jesus conseguisse manter seus projetos estas estavam ligadas a questões de identidades culturais, sociais e jurídicas
ImssiOnanos. dos envolvidos. Desta forma, conclui o autor, o mosaico de cores/qualidades
Dando continuidade às análises sobre a Companhia de Jesus, Carlos apresentadas marcava o lugar social daqueles ind ivíduos.
~ngemann reflete acerca do conteúdo da pregação dos jesuítas e do possível Finalizando o quarto livro do Grupo Escravidão e Mestiçagem,
Impacto desta pregação sobre comportamentos e práticas cotidianas de Edvania Gomes da Silva analisa três sites de igrejas e/ou movimentos que se
senhores e de escravos. Analisa especificamente os sacramentos d o batismo autodenominam cristãos pentecostais: a Igreja Universal do Reino de Deus, a
e d~ casame~~o, utilizando documentos produzidos para a normatização da Igreja Internacional da Graça de Deus e a Renovação Carismática Católica. Seu
IgreJa (ConCiho de Trento, Catecismo Romano, concílios provinciais de Lima, objetivo é o de identificar elementos usados pelos d iscursos dessas igrejas ou
Mé~ico e Bahia, além de textos de clérigos da Companhia) e os registros de movimentos religiosos, a fim de verificar de que forma a imagem do mestiço é
batismo de escravos da estância Caroya, na Argentina. Para os sacramentos de (re)construída pelo movimento pentecostal.
matrimônios, utiliza, também, as listas de escravos apresentadas nos autos de Assim, apresentamos com orgulho este quarto livro do Grupo Escravidão
sequestras de bens dos jesuítas no Brasil e na Argentina. e Mestiçagens e convidamos os interessad os a conhecerem um pouco mais sobre
Flore~cia Guzmán, outra historiadora argentina, utiliza as visitas do bispo o trabalho que vimos realizando. Esperamos que as reflexões aqui apresentadas
de Tucuman, Don Manuel Abad Illana, às cidades da Governação de Tucumán se multipliquem sob a forma de novos desafios, de novas pesquisas e de novas
e às reduções indígenas situadas nas fronteiras orientais desta região, em 1765 respostas a uma temática que tem, cada vez mais, conquistado a atenção dos
e em 1768. Esta documentação permitiu à autora identificar uma sociedade pesquisadores.
que vivenciava naqueles anos uma grande transformação causada, dentre
outros fatores, pela expulsão dos jesuítas, ocorrida em 1767, e pela aplicação Eduardo França Paiva
das reformas burbônicas, motivos de distúrbios sociais. Por meio dos relatos Isnara Pereira Ivo
reali ~ados pelo bispo, Florencia Guszmán identifica, também , alguns casos de Marcia Amantino
mestiçagens entre as populações livres e/ou escravas.
Isnara Pereira Ivo analisa, para os sertões da Bahia e do norte de Minas
Gerais, as devoções à Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens e à Nossa
Senhora da Vitória, assim como a criação do Recolhimento de Mulheres Casa
de Oração Vale de Lágrimas, vinculando-as às trajetórias de três homens -
um romano, um pardo e um negro português - , responsáveis pelas conquistas
e controle administrativo destas localidades, durante o século XVIII. A
~utora de_monst~a co~o a trajetória de vida destas personagens estava ligada
a ocupaçao da area, a abertura dos caminhos, ao aprisionamento de índios
~ à b~sca e exploração de metais e pedras preciosas às margens dos rios que
mterhgavam as capitanias da Bahia e de Minas Gerais. Ainda assim, esses
ho~~ns e suas famílias mestiças foram reprodutores dos dogmas e crenças
cato.hcas e foram responsáveis pela criação de igrejas e recolhimentos
femminos na região.
"Historio de una gran senora ch ristiana"
conversões, batismos, religiosidade no
mundo católico e a historicidade
dos conceitos

EDUARDO FRANÇA PAIVA

SINCR ETISMO: O CONCEITO

O universo religioso de escravos, libertos e não brancos nascidos livres


nas Minas Gerais (estenda-se a indagação às áreas escravistas americanas
e, talvez, ao mundo ibero-americano) pode ser devidamente estudado e
compreendido se permanece inscrito na perspectiva dualista, polarizada e
antagônica do esquema imposição da religião do colonizador x sincretismo
religioso e resistente dos dominados? A resposta, já de certa forma prenunciada
na pergunta, é não! A religiosidade construída, vivenciada e expressada por
esses grupos foi algo muito mais complexo do que essa equação simplificadora
e já algo "caduca" pode suscitar.
O conceito de sincretismo inscreve-se, a meu ver, nesse quadro
antigo e precisa ser revisado. Fruto de uma "leitura" particular do anterior
racialismo que decretara a degenerescência cultural brasileira e das jovens
nações americanas e das mestiçagens, que a partir de Casa Grande & Senzala
(FREYRE, 1 " EDIÇÃO, 1933) foram positivadas, o sincretismo aparece como
conceito que evoca reinterpretação, amálgama, superposição, mescla, fusão
e resistência, usado por distintos autores e em épocas diferentes, afastando-
se de suas origens (misturas culturais, aculturações), mas, ao mesmo tempo,
continuando vinculado a elas. '

I Serge Gruzinski, em 1999, já expressava sua desconfiança com relação à continuidade do uso
do conceito de "sincretismo". Ver as críticas feitas pelo autor em GRUZINSKI, Serge. La pansée
métisse. Paris: Fayard, 1999, p. 40-42.
14 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTI ÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 15

Melville Herskovits (que foi aluno de Franz Boas) associou o conceito à corriqueiramente até hoje e na problemática perspectiva descrita acima. Isso
reinterpretação e à aculturação em The Myth of the Negro Past. 2 O sincretismo ocorre nos livros didáticos de História dos ensinos Fundamental e Médio
também apareceu aplicado ao universo da religião (que sumariava, na até a produção universitária, além de ser termo usual de jornalistas, artistas,
verdade, as dinâmicas sociais dessas jovens nações) em Artur Ramos 3 e em religiosos, políticos e militantes de movimentos sociais.
Roger Bastide, em 1939,4 para, em seguida, ser genericamente aplicado por O emprego do conceito, no entanto, gera problemas que precisam ser mais
estudiosos das religiões e das culturas, voltando, inclusive, com o passar dos bem observados pelos historiadores e, a meu juízo, evitados. Primeiramente,
anos, a ser tomado como sinônimo de mestiçagem.s deve-se atentar para o fato de, ao usá-lo, imprimir uma racionalidade e um
No sentido de resistência dos "negros", o conceito foi apropriado por pragmatismo às religiões, crenças e práticas ditas sincréticas, que nem sempre
antropólogos, sociólogos e historiadores que adotavam perspectiva marxista, tiveram essas características, nem se constituíram com objetivo único ou
que o colocaram em oposição ao racialismo geneticista e à miscigenação/ mesmo principal de ocultar dos "dominantes" sua verdadeira fé. Em paralelo,
mestiçagem culturalista de Freyre (BoAs, 2010;6 HERSKOVITS, 1941), o que atribui-se às religiões tradicionais africanas pureza, unicidade e imutabilidade
se encaixava bem nos esquemas explicativos que dominaram o pensamento que historicamente não existiram. Mais ainda: generalizar o conceito aos
brasileiro entre os anos 40 e 80 do século XX. Sincretismo, então, nomeava o "negros" do Brasil escravista significa acreditar que esse enorme e, na verdade,
fenômeno no seio do qual os "negros" "enganavam" os brancos (visão simplista plural contingente humano se converteu falsamente à religião dos "opressores",
das sociedades escravistas), "fingindo" se converterem à religião dos senhores/ o que não se passou, pelo menos de maneira absoluta, enganando esses
dominantes/ brancos, quando, na verdade, a usavam como fachada para cultuar "brancos"/proprietários (desconhecendo-se a enorme quantidade de senhores
seus antigos deuses africanos (visão simplista de cultura: estanque, imutável, ex-escravos e não brancos nascidos livres existentes a partir do século XVIII)
inflexível, isto é, pura x mestiça), estabelecendo correspondências entre eles e e missionários, tomados como ingênuos, parvos e ignorantes. Claro que esse
os santos do panteão católico. juízo de valor subjaz muito mais nos discursos antropológicos, sociológicos e
Há enorme diferença entre constatar essa ocorrência e generalizar a atitude historiográficos elaborados a posteriori que no discurso de negros, crioulos e
para todos os "negros': exclusivamente (não se precisando o envolvimento de mestiços de todas as "qualidades" que viveram nessa época e que os deixaram
crioulos, de mestiços e da enorme população forra e não branca nascida livre), registrados em grande quantidade de documentos. Mas isso importou pouco
como se todos esses "negros" fossem africanos e tivessem a mesma religião. quando se pretendeu transformar o sincretismo religioso em uma forma
Não obstante todos esses limites e imprecisões, o conceito é empregado de resistência dos "negros" ao sistema escravista como um todo. Foi essa a
perspectiva política que preponderou até os anos 1980 do século passado,
marcando boa parte dos estudos sobre escravidão realizados até esse período,
2. HERSKOVITS, Melville J. The Myth of the Negro Past. New York: Harper & Brothers Publishers, incluindo alguns realizados por mim.
1941. http://archive.org/stream/mythofthenegropa0335 15mbp#page/n5/mode/2up
3. Apêndice publicado na 2• edição (1940) de RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Etnografia ÜUTRAS FORMAS DE VER, NOVAS PERGUNTAS
religiosa. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951. [!• edição de 1934, na Civilização
Brasileira, e 2• edição de 1940, na Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional]
4. Segundo Arhur Ramos, no apêndice publicado na 2• edição de 1940, p. 367, o quadro de Se, por um lado, "sincretismo" tem caído em desuso, por outro, conceitos
sincretismo religioso que ele elaborara é o que havia sido reproduzido em 1939 por Roger Bastide, como os de trânsito e mobilidade culturais, sociabilidade e dinâmicas de
então professor na Universidade de São Paulo. mestiçagens (biológicas e culturais) podem ajudar a pensar melhor essas
S. Para o tema do sincretismo em geral e em particular na bibliografia brasileira ver FERRETTI,
crenças e práticas do passado. 7 De uma forma geral, todos eles enfocam
Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
São Luis: FAPEMA, 1995. [http://books.google.es/books?id=VO I LzDo6Vh8C&pg=PAS3&lpg=P
A53&dq=roger+bastide+sincretismo&source=bl&ots=FretsBhsWi&sig=nihixMSVumTWUuNv
IVsiBT_kH9k&sa=X&ei=zsQwUPvFHY-JhQe Vs YDJCg&redir_esc=y#v=onepage&q=roger%20 7. Defini e explorei esses conceitos em PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma
bastide%20sincretismo&f=false] história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de
6. BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. (trad.) Petrópolis: Vozes, 2010. [ 1• edição de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada
1938) Ver também CASTRO, Celso. (org.) Franz Boas. Antropologia Cultural. (trad.) 6 ed. Rio de ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012 e
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. Idem, "Histórias comparadas, histórias conectadas: escravidão e mestiçagem no mundo ibérico".
16 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 17

privilegiadamente não o produto final mestiço ou pretensamente sincrético, católicos fervorosos. Muitos outros já nasceram no seio de famílias católicas.
mas o processo de conformação das práticas, a atuação dos diversos agentes Outros tantos, sem qualquer problema de cunho moral e religioso, adotaram
históricos (as negociações e os conflitos produzidos por eles), que tinham simultaneamente o catolicismo e outras práticas religiosas (aliás, isso continua
origens, "qualidades" (índio, branco, preto, negro, crioulo, mestiço, mulato, comum hoje). É importante lembrar que muitos "brancos" (europeus, filhos de
pardo, cabra, caboclo, curiboca etc.), "condições" (livre, escravo e liberto) casais europeus e descendentes de europeus), a priori católicos, incorporaram
distintas e as historicidades do ocorrido, assim como das leituras desse crenças e práticas religiosas indígenas, africanas e americanas no seu dia a dia,
ocorrido realizadas posteriormente, incluindo as historiográficas. invertendo o sentido de uma imposição católica de cima para baixo, como
Além desses conceitos modernos, mesmo que muito operativos, geralmente se imagina e se projeta sobre as sociedades do passado escravista e
definições produzidas no passado e empregadas por autoridades e pela mestiço nas Américas, particularmente no Brasil.
população precisam também ser consideradas e retomadas. Entre elas, algumas Não houve impedimentos culturais e políticos intransponíveis entre a
são particularmente importantes aqui, justamente porque se contrapõem população não branca para que se passasse a acreditar e a praticar a fé católica,
ao que, posteriormente, entendeu-se como sincretismo. Neste caso estão as não obstante, claro, a obstinada resistência de aceitar parcial ou completamente
definições coevas de "mistura': "mestiço" e "híbrido': Mesmo que tenham a religião pregada por missionários, padres e autoridades régias. Diante desse
estado muito mais vinculadas aos tipos humanos resultados das mesclas quadro, que já foi muitas vezes chamado de "alienação" ou associado à ausência
biológicas intensamente processadas, elas também podem ser esclarecedoras de "consciência de classe", deve-se indagar: a pretensa impossibilidade de os
sobre os universos culturais produzidos por eles. Portanto, mais que o "oprimidos" aceitarem a religião dos "opressores': perspectiva que deu base
conceito de sincretismo, esses outros conceitos e definições me parecem ser ao emprego do conceito de sincretismo, não estaria muito mais associada a
mais adequados para serem operados hoje pelos que se dedicam a estudar entendimentos antropológicos, sociológicos e historiográficos posteriores do
aquelas sociedades do passado e, particularmente, as práticas religiosas ou que às práticas adotadas pelas populações no passado?
religiosidades daí surgidas. Pensar em dinâmicas de mestiçagens pode nos auxiliar na melhor
Nos domínios católicos portugueses e espanhóis na América e em outras compreensão dessa complexa história, em toda sua longa extensão e
regiões onde missionários de Roma intervieram forte e profundamente, diversidade. Além de permitir, como já expliquei, a análise sobre os agentes que
a evangelização das populações locais - nativos e migrados - foi objetivo jamais foram definidos como "mestiços" (poderíamos chamá-los de agentes
constante, que perpassou as políticas de ocupação, povoamento e exploração ou de grupos "matrizes"), o conceito permite-nos falar das religiões "matrizes"
desses territórios. Visto desde hoje, pode-se dizer que eles foram alcançados, ou pretensamente "puras" - as dimensões dos discursos e representações, vale
ainda que nuançados pela manutenção de velhas crenças e pelo surgimento lembrar, compõem a própria realidade histórica. Refiro-me, neste caso, ao
de outras, frutos das intersecções culturais fortemente ocorridas, gerando catolicismo, ao islamismo, às religiões tradicionais africanas e indígenas, que
misturas, mas, também, coexistências, superposições, convivências, tudo ao se opunham às religiões e às religiosidades misturadas ou mestiças ou, ainda,
(( . ))
mesmo tempo. amencanas.
Em contextos que produziram essas dinâmicas de mestiçagens - que O conceito de dinâmicas de mestiçagens nos ajuda, também, a mergulhar
englobaram todas as dimensões já mencionadas - cabe perguntar se houve nesse universo complexo, móvel, multifacetado, polissêmico e mesclado das
conversões plenas ao catolicismo entre a população não branca (índios, religiões e das religiosidades nas Américas e, particularmente, no Brasil,
negros, crioulos, mestiços), escravos, libertos e nascidos livres, tanto os formado entre os séculos XVI e XIX. Ele pode, ainda, nos impulsionar a
nascidos nas conquistas, quanto os trazidos de fora, como, por exemplo, da estabelecer conexões com territórios mais longínquos e aparentemente muito
África? A resposta é positiva. Houve e foram muitos os casos, isto é, nem todos diferentes, como a China dos missionários jesuítas, e a comparar as mesclas
os não brancos fingiram a conversão; muitos se tornaram exclusivamente de culturas processadas, as formas de evangelização, seus triunfos e malogros
ocorridos nesses mundos. Vejamos um caso exemplar de conversão ao
catolicismo de uma família chinesa do século XVII e as conexões possíveis
In: Idem & IVO, Isnara Pereira. (Orgs.) Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo:
com o caso de uma ex-escrava, proveniente de Angola, que se transformou em
Annablume; Belo Horizonte: PPGH- UFMG, 2008, p. 13-25. Minas Gerais em devota dos santos católicos e rainha de Nossa Senhora do
18 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 19

Rosário, verdadeira mediadora cultural entre universos localizados em ambos experiencias, que es este medio muy oportuno para ganar à muchas personas
os lados do Oceano Atlântico. para nuestra Santa Religion." 12 E assim foi! Persuadiu o marido, "que estava
aun sepultado en las Tenieblas de la Idolatria': 13 a aceitar o batismo. Pouco
DONA CANDIDA Hru E JOANNA FORRA depois, quando tinha 30 anos de idade, ficou viúva e viu-se em "un estado
de libertad:''4 Viveu mais 43 anos como viúva virtuosa, "una fiel Copia de las
Em 1691 se publicou em Madri o livro escrito pelo jesuíta Felipe Cuplet, Santas Viudas, de que San Pablo hizo tan excelentes ideas en dos, o tres de sus
missionário na China, sobre a vida de uma senhora chinesa, neta de um Colao, Epístolas': 15 sublinhava o autor da biografia de Doíi.a Candida, que, obviamente,
posto que correspondia, segundo o autor, ao de "los primeros Ministros de procurava aproximar essa história individual e familiar à de Saulo, convertido,
Estado, y los grandes Oficiales de la Corte dei Emperador:'s Este homem morto e canonizado Paulo, nome dado ao patriarca chinês.
importante, natural da província de Nan Kim, cidade de Xam hai, se conve~te_ra Como o avô, Doíi.a Candida foi grande defensora e colaboradora dos
ao catolicismo nos primeiros anos do século XVII, recebendo o nome cnstao jesuítas na China, provendo-os de condições materiais de vida e de trabalho,
Pablo Siu, dada a semelhança de sua conversão à de São Paulo. Como na o que incluiu dinheiro e bens materiais doados, além de oferecer-lhes suporte
história do santo que de perseguidor passou a missionário cristão, Pablo moral e religioso, um exemplo a ser seguido por outras mulheres chinesas,
Siu transformou-se em árduo defensor da Igreja e dos missionários jesuítas como era vista pelos missionários. O autor do livro, o padre Cuplet, foi seu
"matemáticos" depois da grande perseguição de 1615, na China, chegando confessor nos últimos anos de vida e, portanto, foi-lhe muito próximo. Claro
a introduzi-los na corte imperial. Segundo Felipe Cuplet, ele "contibuyà no que na ótica desse missionário, Doíi.a Candida Hiu era a encarnação da virtude
9
poco para el estabelecimiento de la Religión Christiana en la Chi~a". . cristã e católica:
Foi no seio da família cristã de Pablo Siu que sua neta, Dona Cand1da,
nasceu, ainda na primeira metade do século XVII, sendo batizada com o nome La mugeres tienen la misma piedad, mas hazen estos exercícios ('se disciplinava
da santa de seu dia de nascimento. Seus pais também eram cristãos e sua mãe asperamente'] en sus casas particulares; y e! d ia antes de su Comunion, ayunan,
a instruiu nos preceitos desta religião, ensinando-a, desde muito nova, a rezar toman disciplina, o practican alguna otra mortificacion. Mas devocion suele
0 Rosário frequentemente. Doíi.a Candida foi a caçula de oito netos de Pablo admirarse en estes nuevos Christianos, en estas ocasiones, que en muchos
Siu, "la última, en orden de nacimiento; mas la primera, en la virtud, y en el de los Christianos antiguos. Dona Candida Hiu era tan fervorosa en estos
merito': 10 Escreveu o jesuíta Cuplet que "ya avia algunos aíi.os, que Pablo Siu exercidos de piedad, que fue menester que la prohibisse su confesor estas
era Christiano, quando le nacià esta Nieta, que avia de ser la heredera de su austeridades por sus achaques en edad tan anciana. 16
zelo, y de su piedad. Quando recibià el bautismo, no tenia mas que un hijo, que
fue el Padre desta Seflora:''' Para o padre Cuplet, mais que uma senhora chinesa católica e virtuosa,
Com educação cristã esmerada, a predileta do avô convertido, Doíi.a Doíi.a Candida era o modelo universal de mulher convertida ao catolicismo
Candida se casou muito nova com um cavaleiro poderoso e não cristão, e não é improvável que esta fosse realmente a avaliação da própria senhora
chamado Hiu. O papa havia permitido que isso ocorresse na China - "à los Hiu sobre si. Minoria entre os conterrâneos, suas posses materiais certamente
nuevos Christianos estas alianças con los Infieles; y se ha conocido por largas a ajudaram a manter a opção religiosa de seu avô e a sustentar sua crença.
Embora seja especulação, não se pode duvidar que sua fé fosse autêntica,
8. H ISTO RIA DE VNA GRAN SENORA, CHRISTIANA DE LA C HINA, LLAMADA DONA exclusiva e veemente naquele contexto desfavorável. Afinal, não foi mais ou
CANDIDA HIÜ. DONDE, CON LA OCASION QVE SE ofrece, se explican los vsos destos menos esse o ambiente e essas as intenções de mártires da religião de Roma?
Pueblos, e! estabelecimiento de la Religion, los procederes de los Missioneros, y los exercícios
de piedad de los nuevos Christianos, y otras curiosidades, dignas de saberse. ESCRITA POR EL
R. P. FELIPE CVPLET, DE LA Compafiia de Jesus, Missionero de la China. CON LICENCIA. EN 12. Id., p. 12-13.
MADRID: En la Imprenta de Antonio Roman. Aíi.o 1691, p. 2. 13. Id., p. 13.
9. Jd., p. 2. 14. Jd. , p. 17.
10. Id. , p. 7. 15. Id., ibid.
11. Jd., p. 6. 16. Id., p. 36-37.
20 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira IvoIEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 21

A receita do missionário confessor para a santidade das mulheres, na negros': 18 continente no qual, aliás, conversões e reconversões religiosas eram
China e em qualquer outra parte, era, finalmente, um resumo das virtudes por comuns havia séculos (ressalte-se que essa mesma observação pode ser feita
ele atribuídas à neta do Colao convertido. Padre Cuplet inseriu na biografia de para os europeus que imigraram para as Américas e para os que nasceram no
Dona Candida seu parecer fidelíssimo. Novo Mundo ). Trata-se já de nome cristão, recebido provavelmente com seu
Cualquier Senora debe ser santa; pero mas las mayores. Quien mas recibe, batismo, embora não se saiba quando isso ocorreu. Se tudo tivesse sido feito
ha de volver mas. Pide mas recompensa el mayor beneficio. Ha de mostrarse conforme os preceitos e leis de Roma, ela teria sido batizada ainda na África,
mas obligado, el que se ve mas favorecido. embora nem sempre ocorresse dessa forma. Isso acabava gerando dúvidas
entre os religiosos instalados nas Américas, que, muitas vezes, optaram pelo
Las mayores Sefioras han de vivir con mas Santidad, y han de esparcir mas batismo dos "boçais" depois que eles chegavam aos portos ou até mesmo às
brillantes rayos de Christianas virtudes. Son las Lumbreras de mas Grandeza regiões do interior, fazendo-o, inclusive, sub conditione, isto é, dizendo d urante
dei Cielo de la Iglesia. Por eso deben alum brar mas, y lucir mas en ella. Han o ato sacramental que ele só teria valor se não houvesse um batismo anterior. 19
de emular à los Grandes Astros: pues Dios las coloco acà en la Tierra, como Depois de chegar ao Brasil, a preta Angola foi levada para as Minas
à los Astros Grandes allà en el Cielo:'' 7 Gerais, mais precisamente para a Vila de São José dei Rei (hoje, Tiradentes),
e tornou-se escrava de Francisca Gomes, de quem herdou o sobrenome. Sua
conversão forçada, sua inserção no mundo da Igreja e seu envolvimento
íntimo com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São
José del Rei certamente contribuíram para a mobilidade e ascensão social

18. Expressão antiga, de uso frequente entre cronistas, viajantes, geógrafos e escritores nos
séculos XIV e XV, é aparentem ente anterior, empregada já, talvez, no século XII. Ver entre os que
a empregaram AFRICANO, Juan León. Descripción general dei África y de las cosas peregrinas que
allí hay. (trad.) Granada: Fundación El Legado Andalusí, 2004, p. 88-93; ALMADA, André Alvares
d'. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo- Verde fei to pelo Capitão André Álvares d'Almada Ano
de 1594. Lisboa: Edito rial do Ministério da Educação, 1995, p. 90; AZURARA, Gomes Eanes de.
Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. Mira-Sintra- Mem Martins: Publicações Europa-
América, 1989, p. 10 1 ("... Guiné, que é a terra dos negros"), 109, 132, 133, 165 ("é chamada terra
dos Negros, o u terra de Guiné, por cujo azo os homens e mulheres dela são chamados Guinéus,
que quer tanto dizer como negros") , 204; BATT UTA, Ibn. A través dei Islam. (trad.) Madrid:
Alianza Literaria, 2006, p. 803; DA ÁSIA DE JOÃO DE BARROS E.DE DJOGO DE COUTO. Nova
Retrato de Dona Candida Hiu. HISTORIA DEVNA GRAN SENORA, edição oferecida a Sua Magestade D. Maria I. Rainha Fidelíssima &c. &c. &c. Lisboa: Na Regia
CHRISTIANA DE LA CHINA, LLAMADA DONA CANDIDA Hlu, p. 1 Officina Typografica, 1778, p. 70; IDRlSY. La premiere géographie de lóccident. (trad.) Présentation,
notes, index, chronologie et bibliographie par Henri Bresc et Annliese Nef. Traduction du
chevalier Jaubert, revue par Annliese Nef. Paris: Flammarion, 1999, p.79; KHALDQN, Ibn .
Como pensar o caso de Dona Candida Hiu conectando-o ao de Joanna Discours sur l'Histoire universe/le. Al-Muqaddirna. (trad.) Arles: Actes Sud, 2007, p. 92; PROCESO
forra, que viveu do outro lado do planeta, um século depois? As proximidades de beatificación y canonización de san Pedro Claver. Bogotá: CEJA-Centro Editorial Javeriano,
não são evidentes. Elas são mais resultados do exercício historiográfico 2002, p. 21 7; SAN DOVAL, Alonso de. Un tratado sobre la esclavitud. (Introducción, transàipción
realizado a posteriori que práticas que se refletiam mutuamente em épocas e y traducción de Enriqueta Vila Vilar). Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 74; VIAGEM De um·
piloto português do século XVI à costa de África e a São Tomé. Introdução, tradução e notas por
espaços coincidentes o u quase... Arlindo Manuel Caldeira. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Joanna, natural de Angola, veio escravizada para o Brasil em meados Portugueses, 2000, p. 88; VIAGENS De Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. (trad.) Lisboa:
do século XVIII. Provavelmente não era esse o nome que tinha no "país dos Academia Portuguesa da História, 1988, p. 26 ("terre de negri" e "paexe di negri"), 115 ("terra de
negros" e "país dos Negros"), 124.
19. Sobre essa temática ver o esclarecedor livro escrito pelo jesuíta SANDOVA L, op. cit., p. 363-
17. Id., ~ 2 e v. 503.
lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 23
22 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

própria Joanna alcançara a libertação por meio da coartação, pois ressaltava


experimentadas por ela naquela sociedade escravista. Joanna se casou com que havia pago o "preço justo" por sua alforria à antiga e já falecida senhora,
Antonio Simoens, ele também um preto forro, enviuvou e e não chegou a ter Francisca Gomes. Assim, ela deixava registrado um padrão que se repetiu
filhos, nem legítimos, nem naturais, antes do casamento. No fim de sua vida muitas vezes naquela sociedade: antigas coartadas que se tornavam libertas e
ela morava em um pequeno rancho de capim na "paragem chamada Caetitu proprietárias de escravos (e foram muitas) tenderam a repetir o processo mas
da vizinhança da Vila de São José da Comarca do Rio das Mortes':zo tarde e coartavam seus escravos e escravas, costume ainda não adequadamente
Em 1761, logo antes de falecer, Joanna ditou seu testamento, como os que estudado. Aliás, práticas costumeiras entre os proprietários mais ricos e
possuíam algo material e espiritual a legar costumavam fazer naqueles tempos; e brancos também marcavam o dia a dia das relações senhores/escravos entre os
muitos ex -escravos e, principalmente, ex-escravas assim procederam, bem com mais pobres. Por isso é que se encontram com regularidade na documentação
outros tantos(as) não brancos(as) nascidos(as) livres. Conforme um modelo casos em que antigos cativos continuavam servindo os ex-proprietários e
geral de testamento seguido pelos escrivães, mas adaptado às perspectiv~s, Joanna ajudou a engrossar este grupo. Ela registrou no testamento que em
condições e demandas de cada testador, Joanna declarou os bens que possma. sua "companhia se achava uma crioula Joanna Gomes [o mesmo nome e
Eram bens modestos, mesmo depois de incorporados os do marido já falecido. sobrenome da proprietária, observe-se] a qual lhe dei já há anos a Liberdade
Além do rancho em que vivia e dos "trastes de caza de pouco ou nenhum com a condição que me servirá enquanto eu for viva': E completava, declarando
valor': Joanna possuía "um par de brincos pequenos de aljôfar" e era senhora deixar alforriado o filho dessa escrava, o mulatinho chamado Manoel, "pelo
de três escravos - Miguel Mina, Dorotheia Angola e o filho dela, o crioulinho muito amor que lhe tenho e pelo amor de Deus e pelos bons serviços que da
Antônio. A renda com a qual contava provinha dos trabalhos efetuados pelos mãe tenho recebido':
cativos e, também, do dinheiro relativo aos pagamentos que recebia de Roza Dando prosseguimento aos ditames testamentais, a preta forra de Angola
Mina, uma outra escrava, a quem havia passado um "papel" de coartaçã0. 2 1 A declarou sua fé na Igreja e sua sujeição fiel à religião católica. E como não
possuía herdeiros forçados decidiu instituir a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos da Vila de São José dei Rei como sua testamenteira e
20. Museu Regional de São João dei Rei/IBRAM. Inventários post-mortem. Caixa 98. 1761.
Inventário post-mortem de Joanna Gomes. São José Del Rei.
21. Trata-se de uma prática costumeira, que existiu em várias áreas escravistas da América, mas GONÇALVES, Jener Cristiano. Justiça e Direitos Costumeiros: Apelos Judiciais de Escravos, Forros e
que se intensificou entre os habitantes da capitania de Minas Gerais. A partir de acordos .fir,m ados Livres em Minas Gerais (17 I6-1815). Dissertação (mestrado em História)- FAFICH-UFMG, 2006;
diretamente entre proprietários e escravos, esses últimos passavam a buscar, por me10 de mumeras RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos tribunais de Mariana, Minas
atividades e ocupações, as oitavas de ouro em pó e outros recursos necessários para saldarem as Gerais, no século XIX. Dissertação (mestrado em História)- FAFICH- UFMG, 2004; SOUZA, Laura
prestações da liberdade. A coartação era, portanto, o acordo que per~itia ao escravo ou,à escrava de Mello e. "Coartação - problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII': In:
parcelar o valor total de sua alforria e saldar as prestações semestrais ou anuats em tres, quatr~ SILVA, M. B. N. da. (org.) Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000,
ou cinco anos. O arranjo, na maioria das vezes, era informal, mas em mUltos outros casos fot p. 275-295; Idem, Norma e conflito; aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte:
registrado em documento, que era chamado de Carta de Corte ou "papel': como Joanna definiu Editora UFMG, 1999, p. 151 -174; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos; engenhos e escravos
em seu testamento. Nele constavam as bases desses acordos, o grau de autonomia do coartado na sociedade colonial- 1550-1835. (trad.) São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988, p. 214.
ou coartada e o prazo para que a dívida fosse extinta e a Carta de Alforria fosse passada ao(à) Alguns princípios norteadores da prática da coartação podem ser encontrados em SUESS, Paulo.
liberto(a). Milhares de homens cativos e, principalmente, de mulheres cativas se beneficiaram dessa (ed.) Manoel Ribeiro da Rocha. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
prática. Por meio dela e de outras possibilidades de libertação muito c?_muns nas .Minas Ger~is, libertado. Discurso sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Petrópolis, São Paulo: Vozes,
uma realidade bastante diversa, dinâmica e complexa formou -se na regtao. Estudet as coartaçoes CEHILA, 1992. Para a América espanhola ver ANDRÉS-GALLEGO, José. La esclavitud en la
em PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia; Minas Gerais, 1716-1789. América espaííola. Madrid: Ediciones Encuentro/Fundación Ignacio Larramendi, 2005, p. 62-70;
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001; Idem , Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII; AYALA, Don Manuel Josef de. Diccionario de gobierno y legis/acion de Indias. Madrid: Compafiia
estratégias de resistência através dos testamentos. 3 ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: Ibero-Americana de Publicaciones, S. A. 1929,2 t., p. 92-94; BERNAND, Carmen. l'.'egros esc/avos
PPGH-UFMG, 2009. Ver também FERREIRA, Roberto Guedes. Egressos do catzvezro: trabalho, y libres en las ciudades hispanoamericanas. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2001; LUCENA
família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/ SALMORAL, Manuel. La esclavitud en la América espaííola. Warszawa (Varsovia): CESLA, 2002,
FAPERJ, 2008, p. 203-206; GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade. Estudo sobre a p. 222-231; ORTIZ, Fernando. Los negros esc/avos. La Habana: Edito rial de Ciencias Sociales, 1987,
prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Horizonte: :ino Traço•.~011, p. .143-148; p. 285-290; SCOTT, Rebecca J, Emancipação escrava em Cuba; a transição para o trabalho livre -
Idem, "Cartas de liberdade: registros de alforrias em Mariana no seculo XVIII . In Anazs do VII 1860-1899. (trad.) Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/Ed. UNICAMP, 1991.
Seminário sobre a economia mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995, p. 197-218, v.1;

\.
24 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara PereiraIvo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 25

herdeira universal. Para o Rosário, após serem pagas suas dívidas, deixava os CoNCLUSÕEs
demais bens, isto é, o negro Miguel (identificado como Congo no inventário
post-mortem) e a negra Dorotheia. A Irmandade não tardou a dar execução aos Os dois casos explorados neste texto impõem uma mesma indagação,
legados de Joanna, o fazendo logo que lhe "sucedeu falecer repentinamente na guardadas todas as diferenças que os envolvem: o que significou a conversão
noite de segunda feira [... ] do presente mês de abril", de 1761. ao catolicismo para esses personagens, cujas origens, ainda que mais remotas,
Mas toda a generosidade e fé demonstradas por Joanna associavam-se das gerações anteriores, lastreavam-se em tradições religiosas e culturais
não apenas ao perfil de boa cristã, que buscava, antes de morrer, produzir eminentemente não católicas, nem mesmo cristãs? Há mais perguntas! O que
méritos suficientes para que a alma fosse salva no Juízo Final e fosse conduzida teria significado SER CATÓLICO para essas pessoas e para os agrupamentos
ao Paraíso, para gozar a vida eterna ao lado do Pai, como os fiéis costumavam sociais aos quais elas pertenciam? O que significou nascer no seio de uma
acreditar e deixar registrada a intenção em seus testamentos. Havia um motivo família cujo patriarca se convertera, fazendo de seus descendentes fervorosos
a mais, que esclarecia mais sobre a trajetória da preta forra. Ela, durante anos, fiéis, mas vivendo em domínios de outras religiões majoritárias e oficiais?
tinha sido a rainha do Rosário, posto muito importante entre os associados e Em que medida a conversão opcional, a incorporação das práticas religiosas
que lhe conferia visibilidade e prestígio para além da Irmandade. De capturada familiares ou o batismo forçado determinaram a crença autêntica e plena no
na África a rainha liberta da Virgem do Rosário, devoção popular, cultural catolicismo ou induziram a simulações da fidelidade declarada? Respostas
e politicamente relevante naquela sociedade, Joanna ascendera econômica para essas perguntas são muito difíceis, mas isso não deve impedir a
e socialmente ancorada na religião dos portugueses. No testamento não problematização historiográfica do tema. Possivelmente, são essas indagações
apareceu qualquer indício de que sua fé fosse simulada ou que não fosse plena, que possibilitarão indicações e subsídios oferecidos pelas fontes.
não obstante os reinados do Rosário e do Congo, por vezes confundidos, Dona Candida e Joanna Forra sumariam outros tantos casos e, também,
estarem historiograficamente associados à manutenção de crenças religiosas formas de inserção social, de ascensão social, de proteção grupal e familiar.
africanas antigas, o que me parece, hoje, exigir mais pesquisas e reflexões por Elas significaram, ainda, a produção de eficientes mecanismos que garantiam
parte dos estudiosos. contatos, diálogos, coexistências e convivências entre diferentes e diferenças,
O fato é que antes de falecer Joanna, como os demais fieis e devotos, a construção de padrões culturais e a transformação de personagens comuns
preocupou-se em traçar seu perfil de católica virtuosa, buscando a salvação de (mulheres, principalmente) em pessoas referenciais em seus grupos de
sua alma, a construção de uma memória a ser legada à posteridade e, também, · convívio, em seu tempo e nos espaços que ocuparam.
uma boa morte. Ela não abdicou de seu passado de rainha e não hesitou ao Não creio que o conceito de sincretismo consiga abarcar toda a diversi-
exigir os privilégios da realeza católica já no início de seu testamento: dade cultural e biológica que envolveu as vidas da chinesa Dona Candida e
de Joanna, preta de Angola, nem as riquezas sociais expostas pelas relações
Meu corpo será amortalhado no hábito da Santa Irmandade da Caridade estabelecidas por elas com seus pares, bem como com gente que não integrava
da Matriz desta vila e será acompanhado pelo meu Reverendo vigário e seus universos relacionais. Já tomá-las como produtos de dinâmicas de
cinco Reverendos Padres mais, a quem se pagará a Esmola costumada e mestiçagens (biológicas e culturais) nos permite compreender melhor os
será também acompanhado pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário processos de conversões, manifestações de fé, práticas religiosas, crenças plenas
dos Pretos desta vila da qual Irmandade sou Irmão e será sepultado o meu e/ou compartilhadas, retirando-as da dimensão simplória da resistência per si
corpo dentro da Capela da mesma Senhora do Rosário, no lugar que me ou do simulacro coletivo calculado, o que historiograficamente foi, em épocas
pertencer como Rainha que servi na Irmandade vários anos e no dia do meu ainda recentes, algo conveniente e, por isso, perspectiva com grande potencial
falecimento ou enterramento se dirão pela minha alma seis missas de corpo de convencimento.
presente pelas quais se dará a esmola costumada.22
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22. MRJIBRAM - INV. caixa 98, (20/05/1 761). que allí hay. (trad.) Granada: Fundación El Legado Andalusí, 2004.
lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 27
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1987. [Naturaleza, policía sagrada i profana, costumbres i ritos, disciplina no século XVIII 1
i catecismo evangélico de todos los etíopes, por el padre Afonso de Sandoval,
natural de Toledo, de la Compafíía de ]esús, rector del Colegio de Cartagena de
SUELY CREUSA CORDEIRO DE ALMEIDA
la Indias, terminado de escrever no início de 1623, publicado em Sevilla, em
1627, por Francisco de Lyra e conhecida mais comumente sob o título De
instauranda Aethipum salute, como o próprio Sandoval a batiza na dedicatória
que faz.]
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade
colonial- 1550-1835. (trad.) São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988.
SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba; a transição para o trabalho Nessa pequena introdução, buscamos explicar como interpretamos e
livre- 1860-1899. (trad.) Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/Ed. UNICAMP, nos apropriamos da polêmica categoria da mestiçagem. Nosso olhar para a
1991. sociedade que se formou na América portuguesa apoia-se nas reflexões de
Serge Gruzinski. Segund o o historiador, a mestiçagem deve ser observada
SOUZA, Laura de Mello e. "Coartação - problemática e episódios referentes a através das lentes da mundialização provocada pela expansão das navegações
Minas Gerais no século XVIII': In: SILVA, M. B. N. da. (org.) Brasil: colonização ibéricas entre meados dos séculos XV e XVI. Esse fenômeno moderno produ ziu
e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 275-295. mundos mesclados, criando imprevisibilidades e complexidades vividas por
_ _ _ . Norma e conflito; aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo indígenas, africanos e europeus. Estes tiveram que reaprender por analogias
Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 151-174. e a reinventar novas formas identitárias. Partindo do princípio de que nesse
mundo colonial mesclado nada é inconciliável nem irreversível, concluímos
SUESS, Paulo. (ed.) Manoel Ribeiro da Rocha. Etíope resgatado, empenhado,
que o processo de formação dessas sociedades foi gestado a partir dos jogos
sustentado, corrigido, instruído e libertado. Discurso sobre a libertação dos
estabelecidos entre diferentes agentes sociais, portadores de valores e recursos
escravos no Brasil de 1758. Petrópolis, São Paulo: Vozes, CEHILA, 1992.
diferenciados. Assim, os cativos africanos realizaram suas estratégias e fizeram
VIAGEM De um piloto português do século XVI à costa de Ajrica e a São Tomé. suas escolhas conforme seus valores e bagagem cultural, apesar de disporem
Introdução, tradução e notas por Arlindo Manuel Caldeira. Lisboa: Comissão de um número bem menor de recursos para a ação do que os europeus e, até
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. mesmo, das populações autóctones (GouvÊA; FRÁGoso, 2010). Não podemos
esquecer que independente de cor da pele, da qualidade e da condição, estar
VIAGENS De Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. (trad.) Lisboa: Academia
em terra estranha fez diferença para quem viveu o processo (BLUTEAU, 1728,
Portuguesa da História, 1988.
p. 448 e 449). Nesse trabalho, refletiremos sobre a experiência europeia dos
ditos cristãos católicos em terras da África, e como leram e se apropriaram da
bagagem cultural local. Pensamos ser possível uma "mestiçagem às avessas':

I. A pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq e da FACEPE. Agradecemos ao professor


Marcos Antonio de Almeida a leitura criteriosa desse trabalho. Responsabilizamos-nos, no
entanto, por qualquer imprecisão.
30 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 31

quando os "brancos católicos" passaram a viver elementos das religiões locais, ao mesmo tempo, os fascinava. Os contatos e intercâmbios são construídos
incorporando-os às suas vidas e, posteriormente, levando-os para Portugal ou na ambivalência. Muitas vezes foram violentos, marcados pelo desejo de
outra qualquer possessão ultramarina. Talvez o leitor encontre pertinência no dominação e pela ambição. "Mas, a brutalidade não impede os artefatos de
que exporemos ou então se surpreenderá com algumas ideias presentes neste circular, os corpos de se entrelaçar, as palavras de se misturar (MARTIN, op.
texto, entretanto, as fontes consultadas nos têm levado a esse ponto. cit., 201 O)': A dominação consiste em impor o pensamento do dominador sem,
Utilizar a categoria da mestiçagem é adentrar em um espaço no qual a portanto, excluir a redefinição do dominado, esse processo foi e não deixará
mescla como aporte metodológico deve levar o pesquisador a escolher um de ser uma relação. Os encontros provocados por migrações ou intercâmbios
campo de análise, ou seja, a que campo da mestiçagem o investigador se entre índios, europeus e escravos se constituíram como um novo terreno para
propõe a inquirir. A mestiçagem se tornou um fazer social tal qual a política a construção de um "mundo novo", com paradigmas antigos e assimétricos.
e a economia, ou seja, ela é uma parte constitutiva da construção social. Neste Todavia, há um tipo de reciprocidade, num longo e lento processo histórico,
sentido, é legitimo que quando se envereda por uma investigação, escolhendo no qual todos são transformados.
a mestiçagem como ferramenta para analisar o social, que se escolha em meio
a seu universo de possibilidades, um campo de verticalização para a pesquisa. Em um pano de fundo de incompreensão e de humildade, de cumplicidade
A mestiçagem, para falar dela a partir da modernidade, é um fenômeno a e solidariedade, nos mal-entendidos e nos pouco entendidos cada um
mais além daqueles já consagrados pela utilização dos historiadores como: constrói as suas referências onde o outro necessariamente entra, e todas essas
ocidentalização, globalização e crioulização, apontados como resultados dos referendas dos uns e dos outros delimitam juntas o universo mestiço que eles
sistemas que envolveram "dominados" e "dominadores" e que resultaram em terão daqui por diante de compartilhar ( IBIDEM, 2010, p.17).
resistências e acomodações, espaços de liberdades e controle dos poderes. Tais
imbricações complexas nos obrigam a ampliar o espectro da reflexão histórica
sobre a mestiçagem no processo de colonização moderna, pois esta corrobora Dessas misturas, emerge a invenção de uma sociedade na qual todos
o fato de compreender que: precisam sobreviver por opção, por acaso ou por coesão. Constrói-se a
sociedade, mas é preciso dar-lhe sentido, que varia segundo os grupos que a
As sociedades escravocratas foram formadas em suas estruturas mestiças imaginam, mas que não podem ser isolados, haja vista que os mesmos são os
fazendo parte das misturas senhores e escravos. No entanto, a inclinação para motores de novas for.mas de ver e viver.
uma suposta pureza ou autenticidade característica das ciências sociais em
uma determinada época do ocidente tornaram difíceis as reflexões sobre a EXPERIÊNCIAS MESTIÇAS
mestiçagem (MARTIN, 2010, p. 17).
O Jus Patronatus (Direito de Padroado) é uma prática do Direito
Germânico, segundo a qual os fundadores de igrejas possuíam com as mesmas
No entanto, não devemos entender essas sociedades como espúrias, direitos e deveres. O dever consistia em prover o que fosse necessário para
ou empobrecidas, mas, pelo contrário, como espaços em que as dinâmicas o sustento do culto, da manutenção do templo ao sustento do clero. Um
recriaram e reinventaram ações inéditas tendo-se constantemente necessidade dúplice direito consistia na indicação dos ministros das igrejas, que seriam
de "nomear o novo': Um exemplo dessa dificuldade está na definição do lugar confirmados por quem pudesse dar-lhes a jurisdição, e no de receber os
dos indivíduos nascidos na América, resultado de uma mestiçagem biológica dízimos das circunscrições eclesiásticas que tivessem uma igreja titular. A
e cultural, para os quais não havia uma prévia definição nos mundos de onde origem do padroado remonta à Idade Média e está ligada ao sistema feudal e
vieram seus ascendentes (PAIVA, 2012). às ordens militares.
As sociedades nascidas da moderna globalização, inaugurada no século Papas do século XV concederam o padroado como privilégio aos reis
XVI, promoveram encontros e desencontros entre o Velho Mundo e o Novo de Portugal, bem como às terras conquistadas, impondo-lhes, contudo, a
Mundo. O que os unia enquanto seres humanos não era o problema, o desafio obrigação de levar até elas a fé católica. Foi o Papa Calisto III, pela bula Inter
consistia nas diferenças que os distanciavam. O que os distinguia assustava e, Coetera (13/03/ 1456), que concedeu ao Vigário de Tomar, nullius dioecesis,
32 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 33

ou seja, jurisdição espiritual sobre as conquistas portuguesas. Esta jurisdição Na sé dessa cidade se acha m de presente, deão, chambre, e dois cônegos
consistia em poder confirmar os eleitos para os benefícios eclesiásticos nas bra ncos. Se acham acerdiagos, mestre escola e três cônegos pretos. Mais pardos
novas terras; determinar penas canônicas tais como interditos, excomunhões e pretos esperam ser providos nas cadeiras vagas. Já expus na presença de V.
e deposições; visitar ou mandar visitar as referidas igrejas; enviar bispos para Exc. a total ignorância do oficio sacerdotal d os quais todos os clérigos pretos
conferir crismas, ordenações, consagrações de altares etc., isso até q~e os sofrem e, os que mais serviam a religião. E que para cativar o seu péssimo
bispados fossem criados. O padroado abrangia as igrejas do norte da Africa procedimento têm ent ranhável ódio aos brancos. Esse comportamento tem
que estariam submetidas ao Rei, grão-mestre da Ordem de Cristo a partir de sido a causa dos repetidos levantes que tem destruído as religiões até ao
1514 (RÊGO-FIGUEIRÔA; OLIVAL, op. cit., 2011). 2 As Dioceses de São Tomé presente. Devendo-se ter um pa rticular cuidado pela grande falta de brancos,
e Príncipe, de Santiago de Cabo Verde e de Guiné-Bissau foram criadas por e a liberdade em que se acham os n egros por ter emprego que se lhes tem
Clemente VII, em 1533, resultado do desdobramento da Arquidiocese de
confiado. Persuado-me que aumentando o partido dos negros na catedral
Funchal. Elas abrangiam, além das ilhas, o enclave entre a Guiné e a conquista
com ausência de alguns brancos que nela existem, tomarão os pretos ali todas
de Angola. Assim, elas estavam atreladas a essas dioceses e às suas respectivas
as jurisdições e governo espiritual. Têm dado para seu partido um vantajoso
circunscrições espirituais, respeitando os direitos e deveres outorgados pelo
passo por que os moradores brancos cada dia são menos.3
padroado português, bem como contribuindo para o processo de ~vange~ização
e vivência cotidiana do catolicismo tridentino nas possessões de Africa. E desse
O Ouvidor, em sua narrativa, deixa evidente que o clero da localidade é
território espiritual que agora iremos tratar, particularmente dos problemas
de cor, ávido por ampliar poder e jurisdição, aspiração que acarretava lutas,
enfrentados pelo catolicismo vivido nas conquistas, espaços nos quais as trocas
levantes e intrigas. É claro que essa violência e péssimo procedimento eram
culturais redefiniram o cotidiano e as formas organizacionais das instituições
emoldurados por rituais católicos com as práticas das religiões locais, haja vista
para lá transplantadas.
que a ignorância do aparato doutrinário do clero de cor era apontada como um
As condições do rebanho do Senhor nas conquistas portuguesas sempre
elemento crucial para a corrupção das práticas do çatolicismo tridentino. Vale
acompanharam o ritmo local. A documentação consultada nos arquivos
salientar que a situação vivida, no que tange ao cristianismo romano nas Ilhas
portugueses testemunha os complexos meandros de intervenções múltiplas
de São Tomé e Príncipe, não era das piores, pois era um espaço geográfico
entre "os de dentro" e "os de fora", e não nega essa afirmativa os depoimentos
plenamente ocupado pela coroa portuguesa, o mesmo não se d ava em outras
que foram possíveis de amealhar nos arquivos à disposição do pesquisador. fá
áreas continentais da África.
se disse que as elites locais, formadas nas Ilhas de São Tomé e Príncipe, eram
A situação das religiões na Guiné, numa povoação chamada Geba,
constituídas por homens negros e pardos que enriqueceram com o comércio de
apresenta-se ainda mais preocupante para as autoridades reinóis envolvidas
escravos, fosse pela compra e venda de peças, fosse participando dos negócios
com um projeto de cristianização. O Capitão-Mor da fortaleza de São Brás,
dos fretes ou da armação de navios. Uma população majoritariamente de cor
Paulo José Alves, escrevendo a partir de Guiné-Bissau, para o Secretário de
passou a assumir os negócios político-administrativos, o senado da câmara,
Estado e dos Negócios da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro
tendo acesso também aos provimentos eclesiásticos. Essa população foi muitas
faz urna meticulosa descrição das vivências espirituais do "rebanho católico"
vezes designada, eufemisticamente, de "brancos da terrà' (IBIDEM, 2011. p.
naquelas conquistas. As preocupações do dito Capitão se revelam no seguinte
125). Assim, não é de estranhar o depoimento do Ouvidor Caetano Bernardo
depoimento:
Pimentel Castro de Mesquita, em 1773, a Martinho de Melo e Castro, que,
como católico zeloso, julgava proteger a fé dos desmandos locais. Diz ele:
•.Jutr.Js in formações posso dar a \ '. tx" pdo que vim a conhecer daqueles
países e seus indevidos ritos e co ~tl!mes, 1~0 d.::c11rso de 13 anos que servi a
w.:~ n r aj e~tad e nu m esmo t ontinente, sã(, as segui nles: A povoação de Geba
2. A ordem de nosso senhor Jesus Cristo foi criada em 1319, da desagregação dos Templários. e di ~iJ n te d.: Bissau pelo~ r ios de cimJ. üf1 légua~ c ~ituada ente o gentio em
Sua sede era em Tomar e tinha jurisdição canônica por concessão pontifícia sobre as terras
conquistadas até a criação dos bispados. Em 1514, o poder de Tomar passa para as mãos dos reis
portugueses, constituindo-se o padroado régio.
34 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 35

desamparo, sem fortaleza nem ta banca ou estacada de fo rtificação e, sendo a africanos (HEYWOOD, 2008, p. 109). Para o governador da região, a realização
população de cristãos seguem muitos ri tos de gentilismo pelo que os mesmos desse encontro de costumes não seria nada agradável ou compreensivo, pois
gentios os provocam a que os sigam, pois os mesmos gentios estão vendo que classifica os entambes como um indício de barbárie, praticados pelos negros,
os cristãos tem pouca força para irem contra eles e fazem mil insultos todos e nos quais o governador podia observar, para seu horror, a participação dos
os dias aos ditos cristãos. Eles governam mais a povoação que os mesmos brancos, cujo comparecimento a esses eventos ele atribuía a uma falta de razão
cristãos e, por esta mesma causa, os ditos cristãos são bastante inobedientes e de discernimento. 7 O primeiro Bando proibindo a prática dos entambes
aos comandantes da Praça de Bissau a quem são subordinados.• data de 1765. Segundo esse documento, esta proihição estava associada à Lei
Pragmática de 1749 e de 1759, que proibiam os lutos excessivos praticados por
Não é de estranhar que cristãos, grupo minoritário, vivendo em terra súditos. Dom Francisco articula o ritual a costumes herdados dos escravos e
estranha e inóspita, sejam abduzidos pelos costumes e rituais locais. Assim, em que, segundo o governador:
terras africanas, numa povoação chamada Geba, seria muito difícil resistir e/
ou não vivenciar as experiências religiosas das populações locais, e ainda mais Contraria a pureza de nossa religião [... ] não é possível que haja maior
quando as dioceses são carentes de tudo. Não havia igrejas, curas de almas e loucura, como a de fechadas as janelas e portas, cobertas as pessoas, de muitas
muito menos bispos em terras africanas por longos períodos. O depoimento batas negras, sem outra forma que a do artífice do tear; circundada a cabeça
do Capitão-Mor nos leva a pensar que as experiências vividas marcaram com uma corda, chorarem em altos e desagradáveis gritos, por muitos dias e
cristãos, gentios e mesclaram os rituais de ambos os grupos. Esse processo não por muitos meses, renovados os choros em certas horas, recebendo as visitas
deixou, inclusive, de alçar velas e atravessar os mares para as mais variadas na mesma bárbara confusão. Açompanham os corpos escandalosamente a
possessões portuguesas. Os indivíduos se transformaram nos recipientes que sepultura, com muitas negras chorando e persistindo em confusas lágrimas
preservaram e levaram o novo, ou seja, a mescla, para outras partes do globo. [... ]ou com torpes e repugnantes ações de lascívia[ ... ] cujo venerado obséquio
Seguindo em direção ao sul, especificamente à cidade de Luanda, capital do seu chamado entambe produz muita desordem e é inimigo da pureza da
de Angola, na segunda metade do século XVIII, Dom Francisco Inocêncio religião.
de Souza Coutinho, que era comendador da Ordem de Cristo, fazia parte
do Conselho de sua majestade, além de ser Governador e Capitão General Elias Alexandre (1937), militar baiano e radicado em Santa Catarina,
de Angola, tendo como objetivo expresso cumprir com as ordens reais, e no que serviu em Luanda no século XVIII e autor de uma "História de Angola",
sentido de afiançar a propagação e a exaltação da chamada santa fé católica, também descreve os entambes:
tencionava garantir a extirpação do que ele nomeia de vícios gentílicos. Suas
ações aparentaram ser uma tentativa evidente de coibir costumes locais que São insuportáveis por tristes e afetados. Os lamentos são cantados pelas ruas,
estavam fora dos padrões católicos.5 exprimidos no idioma do país por boca dos escravos dos defuntos. Estes
Para afirmar a pureza dos costumes, Dom Francisco Inocêncio de Souza como máquinas ambulantes, avisam pelo triste canto a parentela dispersa na
Coutinho proíbe a realização dos entambes, rituais mesclados que se davam cidade, e se o morto é cidadão excede a música e dois coros. Os semblantes
por ocasião da morte em Luanda e em Benguela.6 Os enlumbes seriam funerais de natureza carrancudos, se afeiam ainda mais, com os soluções, que servem
complexos, elaborados de forma a coexistirem com os rituais católicos e de estribilho no fim de cada cantoria, com tudo, as lágrimas não umedecem
o exterior dos olhos, a tristeza é estudada. Os entambes são celebrados com
um oitavário de abom ináveis superstições, que finda santamente com uma
4. AHU - Guiné- Caixa 10, Doc.6-a 1770/ 1795. ''Noticia apresentada pelo Capitão - Mo r da m issa aplicada pela alma do defunto. Este ato religioso, celebrado no templo,
fortaleza de S. Brás, Paulo José A lves, ao M inistro e Secretario de Estado dos Negócios da Marinha e
Ultramar. Martinho de M elo e Castro sobre Bissau e ou tros lugares da Guiné".
com modéstia e tristeza, é depois em casa seguido por um batuque extenso,
5. AHU- Angola - Cx 53, doc. 01, 10. 01. 1769. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras
barbaridades. Segundo Bluteau ( 1728), bando significa pregão, quando se declara publicamente
um decreto ou lei ao som de caixa. 7. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Op. Cit., Cx 53, doc. 01 , 10. 01.
6. Idem. 1769.
36 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS 1snara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I MarciaAmantino (orgs.) 37

que rompe e desgasta o enojo dos parentes. Os chinguilamentos se misturam primeiramente nos auditórios da capital, pois o Bando deveria ter o seu
com os atos do cristianismo onde desaparece a fé misteriosa e revelada, devido cumprimento. 11
para se unir a efeitos incertos, falsos, sobrenaturais. Os destinos fechados Neste sentido, a redação do Bando insiste e determina que jamais se
com o selo do silencio eterno, são anunciados por agouros ridículos, e pelos possa em algum lugar daquele reino admitir os ditos rituais infernais e que
nojentos efeitos dos seus milongos (feitiços, remédios de ervanário). Os seus toda e qualquer pessoa que tiver notícia deve prontamente denunciá-los aos
gangas aceitam essas misturas, os párocos são inclinados às indulgências, e ministros eclesiais e seculares para procederem com a denúncia na forma da
bispos que resistiram só conseguiram irritar os caprichosos (CORRÊA, 1937, lei. Aquele que fizesse o contrário, ocultando os entambes, deveria ser preso
p. 83-88). e processado como se tivesse, ele mesmo, cometido os atos de celebrações
gentílicas. Os capitães-mores deveriam ainda vigiar continuadamente o
As religiões e os hábitos se misturaram evidenciando-se nos rituais, cumprimento dessas ordens, não permitindo os entambes e, ainda mais, nas
através dos cultos das religiões locais, que por sua vez, se inseriram nos rituais casas ou senzalas onde o tal entambe fosse praticado todos os participantes
católicos vividos no cotidiano das conquistas, como revelam os depoimentos seriam levados presos para cumprir pena nas obras reais que estivessem sendo
acima citados. Essa experiência de Luanda pode ser inferida também para a realizadas, conforme determinavam os bandos de 1765 e 1769. 12
América portuguesa, guardadas as especificidades locais. Mas a cultura local se mesclava continuamente, e isso era notório para
Mas voltemos aos reclamos do Governador. Ele classifica a realização além dos rituais de morte. Outra forma de hibridização concernia aos rituais
dos entambes como verdadeiro centro de desordem pública, de roubos e de casamento. O Governador os descreve sendo iniciados por uma figura
superstições escandalosas; "diz que lhe parece que a experiência em abusos "coberta de pele de bicho, e de guizos, sinalizando para outras cerimônias que
vividos pelos pais de família" seria o suficiente para proscrever das suas casas não declara por decência;' atribuindo essas práticas como dignas das "Libatas
o tão desordenado costume. 8 dos potentados dos sertões e de nenhum modo de uma capital de reino
As proibições da realização de tais eventos não foram suficientes para conquistado gloriosamente para o cristianismo:' 13 Essas e outras cerimônias
arrefecer os ânimos dos frequentadores. Estes burlavam a lei, ato bem mais podem ser inferidas pelas narrativas de Elias Alexandre, quando descreve
criminoso, na visão do governador, pois saindo da capital para realizar o tal os cerimoniais de casamento em Luanda, e que estes se davam em algumas
entambe nos arrimos, locais favorecidos pelas distâncias, e que resultavam em ocasiões entre brancos e negros, aproximando e mesclando os eventos culturais
proteção àqueles que transgrediam as leis inclusive para os escravos das ditas e rituais.
fazendas. 9 A leitura do Bando proclamado por Dom Francisco de Souza Coutinho
Em janeiro de 1769, Dom Francisco requer que se imponham penas revela a sua perplexidade diante de uma prática pagã antiga supostamente
dobradas aos frequentadores dos entambes, pois se tratava de práticas suplantada pela evangelização. Ele constata que, ao contrário, teria havido uma
contrárias às determinações do Bando de 1765, e o governador acreditava que mistura dos rituais religiosos cristãos ibéricos com elementos da cultura dos
a severidade das leis deveria ser exercida contra as casas onde se realizavam povos conquistados, como o entambe exemplifica. Sigamos mais um exemplo:
tais eventos. 10 Para o governante de São Paulo de Assunção de Luanda, o Ele descreve as práticas dos povos da região em momentos extremos, em
Bando deveria ser publicado todos os meses pelos capitães-mores e cabos, que a fé deveria promover a preservação da vida. Segue sua narração de forma
em todo lugar público onde houvesse aglomerações, tomando o cuidado de livre:
traduzi-lo na língua local, a ambuda, com a finalidade de ninguém alegar Souza Coutinho menciona que foi exposto à veneração pública um ídolo
desconhecer ou ignorar as determinações, devendo inclusive ser divulgadas com o nome de Bumba que fez com que a população deixasse de cumprir
os preceitos dos dias santos que deveriam ser consagrados a Deus, assim

8. Idem. 11. Id.


9. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Op.Cit., idem. Arrimos eram 12. Id.
propriedades agrícolas ao redor de Luanda. 13. AH U- Angola - Cx. 49 - Doc. 4, 09.01.1765. Bando de Francisco de Souza Coutinho,
10. ld. Governad or de Angola.
38 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 39

como, também, os veneradores passaram a guardar o dia imediato à lua nova


miscigenação cultural. A cultura surgida em Angola, em especial nos espaços
anatematizando, ou seja, amaldiçoando, com superstições, as negras que
onde havia uma imposição da máquina administrativa portuguesa, englobando
participavam das adorações e dizendo que estas deveriam morrer e procurar
neste contexto o aparato religioso, era mestiça. Criou-se um conglomerado
ressuscitar. Todos esses atos considerados ilícitos seriam praticados nos
de elementos da cultura portuguesa católica, com elementos da cultura local
mesmos dias sagrados em que a Igreja com todos os seus fiéis veneravam os
dos mais variados matizes e temas. Se, por um lado, os encontros culturais
sagrados mistérios da salvação.
impuseram um "jeito português de ser': como se vestir à europeia, ou até falar
Todos esses argumentos são apresentados na documentação oficial para
a língua portuguesa, a cultura colonial lusa se encarregou de se apropriar
demonstrar o mais claro possível que era crucial a interferência do monarca,
da cultura quibundo e se transformou em algo que não estava previsto nem
por meio de seus governadores laicos, mas também a ajuda dos eclesiásticos,
pela Coroa e nem pela Igreja. O lento e irreversível processo de mestiçagem
pois com a exposição de poder da Igreja, todos deveriam dar conta de coibir,
entre os "conquistadores" e os "conquistados". Dessa forma, acreditamos que
com a força necessária, o que o governador considerava serem atos bárbaros e
as expressões religiosas desse grupo mestiço eram marcadas por sínteses
costumes diabólicos. Ele ordenou então, de imediato, que se destruíssem todos
ritualísticas amalgamadas por leituras e cosmovisões da cristandade lusa
os locais, os objetos, e todos os ídolos, "fosse do Bumba ou de qualquer outra
passíveis de serem lidas e reinterpretadas pelas religiões locais e vice-versa
ilusão destes miseráveis'~ "Pois para ele deveriam ser remetidos para as obras
(SousA, 1996, p. 34).
reais, todos os que, sendo de dia ou de noite, realizassem o que ele entendia por
invocações ao demônio" ou fizessem sacrifícios aos mortos de algum animal,
ou a guarda de dias imediatos à lua nova, não sendo este dia santo decretado
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pela Igreja. As ordens foram dadas aos capitães-mores e aos cabos, e cabia
a estes fazer com que fossem cumpridas. Ficou ainda o aviso de que não se
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português & latino: áulico, anatômico,
omitissem em obedecê-las. 14 Porém, todo esse esforço e cuidado se mostraram
architectonico... Coimbra: Collégio das Artes da Companhia de Jesus, 1728.
ineficientes, pois demonstraram obter pouco cumprimento e ressonância nos
indivíduos de origem europeia e africana, tanto em Luanda quanto no interior. CORRÊA, Elias Alexandre Silva. História de Angola: Lisboa, 1937.
Afinal em 1780 se observavam os brancos do interior praticando rituais GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (Org.) Na Trama das Redes:
ditos pagãos, participando de entambes, adivinhações e adoração a ídolos, e política e negócios no império português, séculos XVI- XVIII. São Paulo:
a presença de práticas africanas junto ao centro dos rituais da Igreja ainda Civilização Brasileira, 2010.
nos idos de 1790 foi desafiadora. Neste momento, o exercício de rituais afro-
cristãos comandava os sacramentos na região, tais como: funerais, casamentos GRUZINSKI, O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 .
e a própria comunhão (HEYWOOD, 2010, p. 110). HEYWOOD. Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto,
Assim, os rituais em torno dos enterros, fossem dos africanos e seus 2008.
descendentes ou não, estavam cercados de múltiplos significados. O desejo
de encontrar os ancestrais e o medo de não merecer um bom lugar no além- MARTIN, Denis-Constant. ''A herança musical da escravidão'~ Revista Tempo,
vida levavam ao cuidado para deixar bem claro o que se queria nas realizações v.14, n.28, Jan-Jun de 2010.
das cerimônias finais. No entanto, como verificamos através das fontes, PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas
o cotidiano se encarregava de misturar as crenças. Os lusos chegados aos portuguesa e espanhola entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem
enclaves portugueses na África misturavam ritos, doutrinas e teologia cristã, e mundo do trabalho). Tese para o concurso de professor titular em História do
as cosmologias das experiências religiosas locais, tudo se imbricava e circulava Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de
num processo quase infinito, mesclando-se. Além da miscigenação racial, a Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.
RÊGO-FIGUEIRÔA, João de; OLIVAL, Fernanda. "Cor da Pele, distinções
e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII)".
14. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Op. cit., idem.
Revista Tempo. n. 30, 2011.
40 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

SOUSA, Ana Madalena Rosa Barros Trigo de. D. Francisco de Sousa Coutinho Hechicería colonial, iusticia capitular
em Angola: reinterpretação de um governo 1764-1772. (Dissertação em
História) Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1996. y mestizaies. Santiago del Estero
(gobernación del Tucumán, Virreinato
del Perú} en el siglo XVIII

JUDITH fARBERMAN

LAS HECHICERAS SANTIAGUENAS

Santiago dei Estero fue la primera fundación estable en el actual


territorio argentino. Levantada en 1553 luego de tres intentos fallidos,
conoció el privilegio de ser sede dei gobernador y de la diócesis dei
Tucumán. La elección dei sitio donde fue emplazada no era en absoluto
casual: las fuentes tempranas coinciden sobre la nutrida población indígena
que habitaba las llanuras a orillas de los ríos Dulce y Salado, que recorren
en paralelo la región. Estas poblaciones - designadas inicialmente como
"juríes", luego como "tonocotés" y desde el siglo XVII simplemente como
"índios" - contaban con abundantes reservas de alimentos y estaban bien
dispuestas a concertar alianzas político militares con los recién llegados. Por
esas razones (aunque no sin dificultades, dada la resistencia indígena en las
tierras altas) fue desde Santiago que la conquista se extendió hacia el resto
del Tucumán, valiéndole a la flamante fundación la honorable etiqueta de
"Madre de ciudades':
A pesar de su impulso inicial, Santiago del Estero y los pueblos de
índios que la sostenían conocerían una penosa y precoz decadencia. Por
eso, durante buena parte dei siglo XVII y sobre todo dei siguiente- aiíos que
servirán de escenario a nuestro relato- podemos imaginar a la ciudad del río
Dulce como un emplazamiento relativamente marginal de la gobernación
dei Tucumán y mucho más del virreinato dei Perú. Una remota periferia
colonial, cuyos miembros notables habrían ya perdido la memoria de
tiempos mejores y más bien se empeiíaban en preservar sus bienes - índios
42 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 43

encomendados incluídos- de las tribus "infieles" que los amenazaban desde no se trataba de un problema menor - más allá de que los episodios de
el Chaco, en las puertas mismas dei río Salada. 1 hechicería no siempre se judicializaran y sus huellas materiales en los archivos
Quizás por su mala ventura o por depender demasiado estrechamente de nos resulten desvaídas - sino de una amenaza siempre presente para élites y
los indígenas sometidos, en Santiago dei Estero se juzgaron desde temprano sectores subalternos.
numerosos casos de hechicería, expresión tanto de la difidencia hispana hacia lQué entendían por hechicería - el término que suele figurar en la carátula
los índios como de las crisis internas de las reducciones. Nos lo advierten de los expedientes - las justicias santiagueftas del siglo XVIII? Por cierto, la
algunos documentos - como la carta del gobernador Ramírez de Velasco, asociación con las religiones indígenas en vías de demonización (característica
orgulloso de haber quemado a cuarenta hechiceros "viejos de más de sesenta de los primeros tiempos) parece encóntrarse ausente en el pensamiento de los
anos y algunos de más de ochentà'2 - y hasta los mismos juicios de residencia jueces capitulares dieciochescos. En rigor, lo que ellos juzgaban era un conjunto
del sigla XVII (habitualmente parcos) en los que no faltan quejas de los vecinos de prácticas empíricas, individuales o colectivas, orientadas al maleficio o
sobre la negligencia de autoridades poco atentas a las amenazas mágicas. 3 dano personal. Aunque, como se tratará más adelante, el pacto diabólico puede
Sin embargo, lo más llamativo es que las persecuciones, aunque con asomar en la confesión de alguno de los acusados, no parece ser éste el centro
diferentes intensidades, hayan perdurado hasta bien entrado el siglo XVIII. de la preocupación de los tribunales más crédulos. 5
Aunque en el archivo provincial hemos localizado solamente once expedientes Por este motivo, la mayor parte de los procesos se iniciaba a partir
judiciales contra hechiceros - que constituirán el corpus documental de este de la muerte misteriosa o de la enfermedad - no importaba si de un
trabajo - sabemos gracias a informaciones complementarias que existieron notable vecino o de un humilde esclavo- que se resistía a ser entendida en
otros numerosos episodios y hasta algunas razzias sistemáticaS.4 En suma, términos "naturales'~ En presencia de estos sucesos, una denuncia anônima
(que decía representar el "clamor "popular") o la iniciativa de las justicias
- que emprendían una investigación de oficio - iniciaban la máquina de
1. Desde fine s d ei siglo XVII la vasta regián chaquena, limítrofe con las gobernaciones del
Tucumán, Paraguay y Buenos Aires se convirtiá en una fro ntera candente. Los guaycurúes Ias sumarias, las confesiones y las sentencias. En todo caso, las sospechas
llegaron casi a las puertas de la ciudad d e Santiago del Estero y, salvo algunos paréntesis de paz, los colectivas apuntaban hacia un grupo muy preciso de sujetos: mujeres,
pueblos de indios y las estancias dei Salado quedaron baj o la amenaza permanente de los "infieles", generalmente índias de encomienda.6 Este nítido perfil representaba
especialmen te de los de nacián abipo na. Ver LU CAIOU, Carina. Abipones en la frontera dei Chaco.
Una etnografía histórica sobre e/ siglo XVIII. Buenos Aires: Sociedad Argentina d e Antropología, 2011.
2. Carta a S.M. dei gobernador dei Tucumán Juan Ramírez de Velasco, pp. 177- 194, Santiago como efecto d e epidemias en e! primer caso y con una situacián fronteriza crítica en e! segundo y
dei Estero, 10 de diciembre de 1586, LEVILLIER Roberto. Gobernacián dei Tucumán. Papeles de en e! tercero.
gobernadores dei siglo XVI, Madrid: Imprenta de Juan Pueyo, 1920, p. 182. S. Aunque pod emos encontrar también una mixtura de ambas cosas, tal como lo sugiere la
3. Así por ejemplo, en e! juicio contra e! gobernador Peredo uno de los testigos sostenía que "en evocacián d e! jesuita Pedro Lozano que asociá "gentilidad'; idolatrías y hechicería y d efendiá
e! río dei Salado donde este testigo ha asistido havido algunos delitos que an cometido de echizero la campana de Alonso de Alfaro. En sus palabras, "esta perversa canalla [de los hechiceros] fue
que corre comunente que Jes un indio llamado Bernabé de la encomienda de don Juan de Zurita y siempre muy válida entre las naciones de esta gobernacián dei Tucumán y aún con estar hoy casi
no ha visto que las justicias que corren o deben correr la campana no lo han remediado." Archivo todos estinguidos, no obstante quedan vestigios de lo que sería en la gentilidad, p ues hay todavía
General de Indias/ AGI. Escribanía de Cámara 874 A, 1674. Autos fechos en la ciudad de Santiago no pocos que después d e haber abrazad o la ley de C risto profesan estrecha familiaridad con e!
del Estero por Dn Diego Ibafu:=z de Faría fiscal de la Real Audiencia de Buenos Aires contra Dn d emonio, con cuyo magisterio salen eminentes en e! arte mágico; unos para transformarse en
Angel d e Peredo, gobernador que fue de la provinda de Tucumán, sus ttes, ministros y oficiales en varias fieras, para vengarse en tal figura de su enemigo, o tros para acometer enormes m aleficios
la residencia. f. 148. en despiques de su odio rabioso; y don se sabe cundir más este contagio es en lo s p ueblos
4. Como en todas partes, la persecucián de hechiceros reconociá en Santiago dei Estero un ritmo de Santiago dei Estero, cuyo teniente general don Alonso de Alfaro no ha m uchos anos q ue
variable que atribuimos sobre todo ai ceio de determinados funcionados. Además de las citadas persiguió a muchos y condená a varios ai bracero para que las llamas abrasasen esta peste y se
acciones de Ramírez d e Velasco, conservamos algunos procesos dei siglo XVIII - que luego se puri fic ase el aire de tan fatal contagio". LOZANO, Ped ro. Historia de la conquista dei Paraguay,
comentarán - debidos ai ceio de don Alonso de Alfaro. Por fin, aunque parece tratarse de una Río de la Plata y Tucumán. Buenos Aires, Buenos Aires: Casa Editora Imprenta Popular, 1874 ( 1
iniciativa exclusiva d ei cabildo de Santiago, fue también grande e! empeno puesto en la "caza" de ed. 1745), p. 430.
176 1, que superá la jurisdiccián santiaguena. En contraste, tanto la ausencia de procesos como 6. En los once procesos santiaguenos disponibles en e! archivo provincial fuero n acusadas 18
la incredulidad demostrada por las justicias en otros, revelan períodos menos propicios para la mujeres ( 16 de las cuales eran indias) y solamente 3 hombres (dos indios y un "zambo de índio").
atencián de denuncias o el emprendimiento de investigaciones de oficio. Cabe notar que las tres Aunque no los estamos considerando en este artículo, otros ocho casos juzgad os en San M iguel d e
grandes persecuciones que senalamos coincidieron con un momento d e gran mortandad indígena Tucumán seguían e! mismo patrón, aunque son más numerosas las m ujeres mulatas. Estos datos
44 REliGIÕES EREliGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 45

una relativa novedad, ya que la comparación con los fragmentarias datos representaban una minoría entre las acusadas, mientras que espaiíolas y
disponibles para los siglos XVI y XVII nos permitida inferir un proceso mestizas sólo figuraban entre las víctimas de los hechizos o entre las clientas
gradual de feminización dei delito y de despojo de sus aristas religiosas. habituales de las hechiceras. 7
tPodría inferirse de este cambio un deslizamiento hacia el estereotipo Esta contradicción podría resolverse desdeiíando las clasificaciones
europeo de la hechicería? Aunque no podemos descartar! o completamente, coloniales y enfatizando en la cultura mestiza que acomunaba a todas las
más plausible nos parece atender a razones de orden estrictamente local. reas que declararon. En todo caso, lo que sigue siendo destacable es que esta
Santiago del Estero - donde la hechicería fue perseguida de manera cultura mestiza tu viera en Santiago tanto de "in di o" y que - como en la cercana
mucho más implacable que en el resto dei Tucumán - fue precozmente jurisdicción de San Miguel de Tucumán estudiada por EsteJa Noli- impregnara
adquiriendo los contornos de las sociedades de emigración. Los padrones la misma lengua en que comunicaban los esclavos negros, el vestido de los
de encomienda - únicas fuentes demográficas tempranas que poseemos - mestizos africanos, los hábitos y costumbres de la mezclada población de las
- nos recuerdan con sus numerosos tributarias ausentes la movilidad campaiías. 8 Una peculiaridad que se expresaba en múltiples dimensiones,
masculina y también sus secuelas: el imponente número de mujeres solas, más aliá de las clasificaciones y nomenclaturas por todos aceptadas y que
las m ás de ellas con hijos, y necesitadas de mantenerse por sus propios seguían situando en lo índio una alteridad que siglos de convivencia no habían
medios. No es casual que justamente en este grupo - "índias" sin tutela terminado de resolver.
masculina, que se reconocen generalmente como hilanderas o tejedoras - Entre otras cosas, en Santiago "lo mestizo era índio" porque la población,
se h alle el m ayor número de acusadas. La importancia productiva de las especialmente la rural, se expresaba con mayor fluidez en quichua que
mujeres en la región - donde la especialización textil se mantuvo desde los en castellano, las actividades de recolección seguían siendo vitales en e!
primeros tiempos de la colonia hasta el siglo XX - así como cierto poder calendario campesino, la algarroba se mantenía como base alimentaria de
doméstico femenino en ausencia de los hombres, quizás contribuyeron los santiagueiíos y la "minga" - el trabajo comunitario que se premiaba con
también a poner en la mira de testigos y jueces a los miembros de este abundantes convites - favorecía a círculos que superaban con mucho a los
grupo. legítimos moradores de las reducciones. Respecto de las actividades que
Otros atributos acompanaban el perfil típico: la presunta hechicera solía nos ataiíen más específicamente, solía ser indígena la materia médica de los
coincidir con la vecina conflictiva, la de moral sexualligera, la que escondía hechizos y, a veces, también lo eran los maestros dei arte mágico. Más aún,
peligrosos secretos ... Y muy particularmente coincidía con un oficio: e! de hasta las élites descubrían en Santiago dei Estero su rostro "aindiado': como lo
la "médica" itinerante, capaz de ofrecer a sus clientes el servido de curar, entendió un gobernador dei Tucumán en su pasaje por la ciudad:
enamorar y, de ser preciso, maleficiar. Como sea, la "mala fama" que construían
actividades y cualidades personales era la nota que acomunaba a las acusadas Es digno de considerar con lástima y dolor la poca o ninguna crianza que
y que las volvía "temidas y respetadas" en los ámbitos en que circulaban y que, los espafloles que habitan en sus haciendas de campo dan a sus hijos pues
como en breve comprobaremos, rebasaban los límites de los pueblos de índios muchos aú n de los principales no saben leer ni escribir y apen as hablan el
para atravesar ríos, bosques y monta.ií.as. idi oma castellano, hallándose más expertos en el de los indios, de quienes
Mantenimiento de la idenlidad india dei hechicero y viraje hacia una
feminización de la actividad ... tCómo se condecía este proceso con la gradual
complejidad socioétnica que la sociedad santiaguena había ido adquiriendo 7. Del censo de 1778 sólo conocemos una síntesis publicada en LARROUY, Antonio. Documentos
de/ Archivo de lndias para la historia de/ Tucumán, vol.II. Buenos Aires: Lib. E. Privai, 1927. s/ p.
durante su experiencia colonial? De hecho, en 1778 la mitad de la población de
Es el único padrón colonial existente que abarca a todas las cabeceras tucumanas y que consigna
nuestra cabecera pertenecía a las "castas" de origen africano: las dos repúblicas la totalidad de las castas.
habían sido desbordadas por e! mestizaje pero Ias mulatas y las pardas sólo 8. NOLI, Estela. Indios ladinos, criollos aindiados. Procesos de mestizaje y memoria étnica en
Tucum án (siglo XVJT). Rosario: Prohistoria, 2012. Según esta autora, "este mestizaje se explica
por la ruralización del grupo hispano criollo y las relacio nes fl uidas de vecindad con los pueblos
cercanos, ai trasladarse San Miguel de lbatín a la Toma" (p. 14). En un proceso de mestizaje
se enc.yentran en detalle en FARBERMAN, )udith. Las salamancas de Lorenza. Magia, hechicería y recíproco, los actores construyeron un mundo ladino y mestizo, en el que resultaba muy difícil y
ctiranderismo en e/ Tucumán colonial. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005, p. 114- 115. artificial separar "lo indio':
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lo aprenden por la continua comunicación por ellos y poco o ningún trato lCómo podía escaparse de la implacable lluvia de cargos acumulados
con gente política con otros muchos inconvenientes que resultan de vivir en las sumarias? Una estrategia muy recurrente entre las acusadas fue la de
sin sociabilidad con cuia representación se servirá V.M. mandar como más repartir sus presuntas culpas, presentes y pasadas, con otras personas a las
convenga a su Real Servicio. 9 que se tildaba de hechiceras. Así, una vez agotado el espacio de la primera
confesión (en el que todo se negaba), aparecían numerosos los maestros, los
Estas élites rústicas - desprovistas de un adiestramiento jurídico cómplices, los discípulos y, eventualmente, hasta los contrabrujos. Y junto con
específico y guiadas por su "leal saber y entender" y su desconfianza hacia la todos ellos se desvelaban también las rencillas comunitarias, los resentimientos
"gente de haja esferà' - fueron las que desde el cabildo santiagueiio juzgaron y enconos interpersonales que habían motivado los daiios ahora reconocidos
a las "hechiceras" del siglo XVIII. Y lo hicieron con una autonomía casi total: o adjudicados a terceros. Sólo el uso del tormento acercaba al estrado al
sólo así se comprende el profuso empleo del tormento y la nula intervención invitado de honor de la hechicera, el Demonio mismo, presente en las más
de la justicia eclesiástica y dei tribunal superior de la Audiencia de Charcas. desesperadas de las confesiones. 11
Es justamente la cuestión del aprendizaje la que mejor nos permite
APRENDIZAJES MESTIZOS situamos en un ámbito mestizo, aunque siempre con impronta indígena. Si
para los testigos la hechicería era fundamentalmente un arte heredado (los
Como es sabido, el sistema penal de Antiguo Régimen presuponía antecedentes familiares pesaban de manera determinante en la construcción
la culpabilidad dei acusado, de quien se procuraba a toda costa obtener el del estereotipo), en sus narraciones sobre el aprendizaje los reos apelaron a otro
reconocimiento del delito. 10 Aunque algunas "pruebas materiales" - como los tipo de relaciones. Así por ejemplo, la mulata Francisca seiialó que "estando en
dispositivos mágicos o "encantos" - tenían cierta incidencia en el desarrollo de el Tucumán comunicó con un pardo llamado Domingo que andaba de médico
los procesos, la prueba determinante era la confesión. De este modo, todo el [... ] y (éste) le persuadió a que aprendiese dho arte animándola no tuviese
procedimiento judicial se orientaba a que los reos se adjudicaran los crímenes miedo" 12 y la índia Juana Pasteles identificó su maestra en una tal Juanita,
que los testigos (generalmente haciéndose eco de rumores) les atribuían. En índia conocida en Tucumán que, tras llevarla ai monte y darle "una piedra por
estas confesiones distorsionadas por el miedo - y a menudo por el dolor físico Vacanquí': le ofreció "sacarle un chivato". 13 También dos de los escasos varones
- las historias y las memorias atesoradas por las sumarias se entrecruzaban con juzgados - Antonio Lluschon y Martín Sacri.~tán, índios de Guaiiagasta -
versiones alternativas, sumaban nuevos personajes y, en el intento de adecuarse reconocieron haber recibido ofertas de iniciación lejos de su tierra. A Martín
a lo que el juez quería oír, se poblaban de detalles de excepcional riqueza para Sacristán (que asumió ser hechicero desde sus aiios mozos) le había enseiiado
el historiador. En este sentido, la rusticidad de los jueces santiagueiios impidió "un mulato de Córdoba llamado Bartolo en el paraje de Ingiguasse" mientras
el "dictado" de las respuestas, tan habitual en los procesos inquisitoriales: los que Antonio Lluschon había sido invitado por un índio de nombre Villa Carne
cuestionarios seguían muy de cerca las declaraciones testificales o intentaban que le propuso acercarse sin temor a "un chivato con una bolsa colgada por el
profundizar en las respuestas de las reas.

9. AGI, Ch arcas 21 O. EI gobernador de Tucumán informa a V.M. el estado de Ia ciudad de Santiago 11. Aunque en algunos cuestionarios se les preguntó a las reas acerca de si mantenían
dei Estero, y da cuenta de haber mandado a los feudatarios de ella no vivan en los pueblos de sus "pacto implícito o explícito con el demonio, la insistencia de los jueces terminaría por apuntar
encomiendas sino en la ciudad y que edifiquen en ella casas, pena de perdimiento de sus feudos, f.1. prioritariamente a la confesión de las operaciones rituales y de los procedimientos empíricos que
10. En palabras de Francisco Tomás y Valiente: "todo el andamiaje está entramado en ordena Ia generaban tal o cual dano concreto. Si además obtenían de la hechicera e! "encantÓ" o dispositivo
consecución de la prueba perfecta: la confesión dei acusado. Pues, en efecto, si ésta no se produce mágico con e! que se suponía que ella mantenía enfermas a sus víctimas, o lograban rescatar los
espontáneamente, la existencia de indícios contra un sospechoso permitía ai juez someterlo a polvos o yuyos que servían de antídoto, tanto mejor. Así pues, el papel de! demonio se limitaba
tortura, habida cuenta de que sólo se consideraba desvelada la verdad cuando el atormentado a! de gran instigador mientras que las disquisiciones teológicas quedaban fuera dei alcance y real
confesaba su culpabilidad en el acto dei tormento y ratificaba su confesión después de la tortura, interés de las justicias.
pero no si el torturado sostenía antes, durante y después dei tormento su inocencia". TOMÁS 12. Archivo Histórico de Santiago de! Estero, AHSDE, Tribunales, leg. 5, expediente 93. Alonso
Y VALIENTE, Francisco. E/ derecho penal de la monarquía absoluta. Siglos XVI-XVII-XVIII. de Alfaro, Auto sobre asunto criminal. 1720, f. 16.
Madrid: Tecnos, 1969, p. 171. 13. AHSDE, Trib.14, 1145. Causa contra Juana Pasteles seguida por homicidio. 1715, f. 12.
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pecho" y pletórica de hierbas "para contrastar las voluntades de las mujeres y EL CAMINO HACIA LAS SALAMANCAS
tenerlas a su voluntad': 14
Esta asociación entre el eventual maestro que "tienta" ai temeroso Hasta donde sabemos, ei término salamanca es mencionado en un único
iniciado, el demonio bajo la apariencia dei chivato y los amuletos y la entrega expediente colonial, e! ya citad o de 1761. En las confesiones de las indias
de hierbas y otros insumos para hechizar regresa en varias de las confesiones: Lorenza y Pancha - acusadas de enfermar por arte mágico a una criada dei
una suerte de cadena en la que el aprendiz es adiestrado por un tercero que, a alcaide indígena y denunciante dei hechizo - fueron descriptos tres encuentros
su vez, es el mediador dei Demonio. En todo caso, la mediación humana para diferentes entres localidad es concretas: Brea Pampa, Ambargasta, y Los Sauces,
acceder al verdadero maestro de los hechiceros parece imprescindible y, en las d os primeras en Santiago y la otra cerca de San Miguel de Tucumán. En
una economía campesina como aquélla de la que participaban los acusados, la estas salamancas dijeron haber aprendido la hechicería Lorenza y Pancha, en
figura dei chivato parecía una de las más a propósito para el ocultamiento en compafl.ía de "los demonios" y de otros iniciados (hacia quienes la justicia
el rebafw familiar. extendió su campana persecutoria, instruyendo una nueva sumaria).
Hasta ahora nos hemos topado con una representación clásica dei A Brea Pampa se refirió Lorenza en su segunda confesión, cuando el rigor
demonio (la dei chivato) y hasta las andinas piedras vacanquí - demonizadas dei tormento pudo más que su obstinado silencio. Según sostuvo entonces,
hasta el hartazgo en los confesionarios y catecismos dirigidos a los párrocos había escapado de la prisión junto con Pancha, ambas volando y conducidas
de indios - encajan bien en el imaginaria europeo de la hechicería (y en por e! Demonio, para sumarse a toda una corte de hechiceros - de cinco
sus adaptaciones americanas). No faltan otras representaciones, igualmente mujeres y un hombre - todos responsables dei martírio de la criada María
ceiiidas a la demonología europea, que sólo surgen en los relatos obtenidos Antonia. 17 Lorenza declará que los complotados "dentraron a la salamanca y
bajo tortura. Por ejemplo, la misma mulata Francisca, inquirida sobre si tenía consertaron allí el haser daiío a todos los qe pudiesen y todos estos qe !leva
"pacto explícito con el Demonio", sostuvo que éste la acompafl.aba a todas nominados son hechiseros", ampliando así el potencial universo de víctimas y
partes, tenía relaciones sexuales con ella y la persuadía para que no confesara victimarios. Cabe destacar que, salvo Marcos Azuela - zambo y único varón
sus crímenes mientras que Juana Pasteles había sellado su pacto de la manera de la comitiva - las mujeres seiíaladas eran indias del pueblo de Tuama, muy
más tradicional, con ei "ósculo infame". 15 Sin embargo, el aprendizaje del arte cercano a Brea Pampa, lugar que "está del Pueblo de Tuama cosa de una Legua
podía alcanzar una dimensión mucho más inquietante que la descripta en las pa fuera [ ... ] qe tiene un jarillar o monte espeso y qe hablan con un hombre
confesiones hasta ahora resefl.adas, en las que hemos visto circular recetas, ge parece espaõ.ol mui feo y con la cara mui peluda y qe este les ensefl.a qe con
hierbas y piedras en intercambios restringidos y encuentros eventuales. En el tierra o hormiga y otra qualquiera cosa qe les pida les dara para qe maten o
proceso más tardío de los que hemos hallado, el iniciado en 1761 contra las hagan dano': 18
indias Lorenza y Pancha, se esboza una figura bastante más compleja que la
del pacto entre dos (o entre tres, si se cuenta al demonio): la de la salamanca o
escuela de hechiceros.16 Seguir el rastro de la construcción de este estereotipo
es el objetivo de lo que sigue.
17. Esta "china" de Tuama atravesó una enfermedad de varias fases. La denuncia contra Lorenza
y Pancha se debió a su súbita mudez - que no le impedía seguir acusando con gestos elocuentes
- e inmovilidad de las extremidades. El alcaide forzó a las indias a curaria y éstas consiguieron
que despidiera huesos y lanas por la boca y una arana "por las partes ocultas': Como la curación
no resultó eficaz, el alcaide llevó la denuncia ai cabildo de la ciudad, donde María Antonia fue
alojada en la casa de un vecino y, frecuentada por los notables y su servidumbre, parió un sapo.
14. AHSDE, Trib.l: 10. Contra Martín, sacristán de Guanigasta. 1732, f. 10 y 11. Después de ese hecho sorprendente tuvieron lugar nuevas curaciones, a cargo de Marcos Azuela,
15. AH SDE Trib.5: 93, 1720, f. 16 y AHSDE Trib. 14: 11 45, 1715, f. 13. Según confesó Juana elevado por las justicias a "maestro de hechiceros': Aunque las fr iegas y masajes dei zambo le
Pasteles "se le paró dho chivato y !lego esta confesante a vesarle el ravo, como su maestra Ie advirtió. propo rcionaron a la enferma cierto alivio, sólo con la muerte de sus "médicos" consiguió reco brar
Preguntadole q si le besaria hincada a que le dixo que sentada lo podía haser como asilo ejecutto su salud definitivamente. Así pues, María Antonia acompafló el proceso como una suerte de
y entonces le dijo la dha su maestra ia no es menester otras cosas" f. 13. "prueba viviente" de la capacidad de dano de los hechiceros.
16. AHSDE, Trib. 13: 1025, Criminal contra Lorenza y Pancha, indias de Tuama. 1761. 18. AHSDE, Trib.13:1025 (1761), f. 154.
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara PereiraIvo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 51
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En la ratificación del día siguiente, Lorenza negó su paso por Brea vieron un vivorón qe sacaba la Lengua viendo a todos, y qe este le d io a

Pampa. t9 En cambio, sostuvo haber aprendido en la salamanca de AO:bargasta la muger un papel con unos polvos el qe estaba liado con hilo colorado y
- distante de su pueblo de origen - y a instancias de otros personaJeS de los cabellos y le encargó a esta declarante dha mujer qe aquellos Polvos era pa. el
efecto de matar, dandoles en comida o bebida, y qe. havíabayle y can to, con
que, significativamente, indicó su calidad de mestizos
Arpa y Guitarra y qe. Dha muger le dixo a esta declarante, qe. aquel vivorón
que la Ensefió un mestizo llamado Juan Joseph Vivas, y en esa ocasión dentro pedía le diese de su sangre a lo qe esta declarante no quiso y qe entonzes,
un hijo de éste llamado Joseph Vivas y que entonces vinieron dos vestidos a enojado el vivorón se suspendió [f. 60 J como qe se sen taba, y dha mujer d ixo
lo espano! mui grandes eran los Demonios, y dos Chibatos, los que heran de al vivorón no sea qe. de miedo nos descubra y ssí yo te traere la sangre de aliá,
color e! uno pardo y el ot ro negro, los qualesablaron con Juan Joseph Vivas Y y qe entonzes se salieron y esta declarante, y qe nunca le dió su sangre, por qe
les dijo q aesta Declar.te que bían [lban] la llevaban para Aprender el Arte, y su marido no le d ió Lugar...
que a Juan Joseph Vibas le dieron los dos Demonios cavellos en un papelon y
Vivas se los dió a esta Declarte para q con ellos matase y quede estos cavellos lQué sacar en limpio de este conjunto de confesiones? Por empezar,
le dio a su tía para q muriese los q dio en Agua y lo restante de los Cavellos q es relevante el hecho de que fueran Lorenza y Pancha - y no las justicias -
quedaron quiso echar y el dho Vivas le dijo q no los echase, q se los diese para quienes introdujeran la cuestián de las salamancas y de sus multiformes
darselos a su Dueõo los q esta Declar.te se los entregó, q eran de color pardo... demonios. Probablemente procuraran repartir las culpas (y en el caso de
Lorenza vengarse de quien la había denunciado, el alcaide indígena, tío de
Por último, las referendas a Los Sauces le pertenecen a Pancha, que dos de las presuntas hechiceras) y reorientar la investigacián judicial hacia
declará sin tormentos. 2o A aquella salamanca habría concurrido dos veces, la otras personas. Por cierto, dejando de lado a las jóvenes sobrinas dei alcaide,
primera de ellas - seis anos atrás - a partir de un encuentro casual: "viendo Lorenza había seflalado entre sus cámplices a mujeres que cargaban con el
hiba mucha gente diciendo havía fandango siguió esta declarante, y llegado a estigma de la mala fama y a un hombre - el zambo Marcos Azuela - portador
dho parage dizeqe le propusieron, qe ya que estaba allí qe aprendiese, qe como dei ambíguo prestigio de los curanderos. 22 Así pues, los nombres no habían
se havía de saber, tan lexos de su tierra y que no conosiá a ninguno de los sido elegidos al azar y quizás por eso la justicia capitular creyá en las palabras
de Lorenza y se aprestá a darles caza a los supuestos iniciados (agregando al
sujetos qe concurrieron''Y .
En la segunda ocasián, ya nadie había tenido que tomarse el trabaJO listado original a la mujer, las hijas y las nietas dei zambo, ahora contagiados
de convenceria para sumarse al misterioso fandango. En cambio, una mujer por quien devino - en una libre interpretacián de la confesián de la rea -
gorda - quizás la portera de la salamanca - le hizo algunas saludables "maestro de hechiceras").
En segundo lugar, resalta el carácter secreto y festivo de los cónclaves, que
recomendaciones
recuerda al Sabbat europeo. Secreto porque los complotados preparaban allí
qe aunqe viese qualquiera cosas no tuviese miedo ni nombrase e! nombre de sus venganzas y habían entregado su alma al diablo para hacerlas eficaces (o su
Jesús, María y Jph, por qe se perdería y no sabría donde estaba, qe vio mucha
gente todos en cueros y esta también, qe antes de entrar se desnudaron y
22. De las mujeres senaladas por Lorenza, Gabriela era sindicada de haber "asimplado" a su
marido con arte mágico mientras que Lucía le había proporcionado a la enferma un agua de
19. Las ratificaciones de la confesión tenían lugar 24 horas después de aquélla y era condición porotillos gradas a la cual había expulsado huesos y cabellos. Josefa era hija de Pancha y en su
para su validez prescindir de los tormentos. En general, las reas confirmabam cuanto habían dicho, confesión se cuidó de aclarar que veía muy poco a su madre. En cuanto a Marcos Azuela, las
opiniones se hallaban divididas. Las indias de Tuama involucradas por Lorenza reconocieron a
corrigiendo o agregando detalles. ,
20. Las justicias beneficiaron a Pancha con este tratamiento especial al constatar que se dormta Marcos como médico pero no como hechicero. Por e! contrario, en los alrededores de Tilingo -
durante Jos tormentos. Esta capacidad para resistir ai dolor fue leída en clave de pacto con e! pueblo de indios y lugar de residencia dei zambo - los espanoles que testificaron coincidieron en
Demonio y luego atribuída al "encanto" que la india llevaba cosido en el interior de su falda Yque la mala fama de toda la família, esposa, hijas y nietas menores incluídas. Sin embargo, no todas Ias
mujeres de Azuela pudieron ser rastreadas por las justicias a pesar de la solicitud de colaboración
se encontrá después de su muerte.
a autoridades de otras jurisdicciones.
21. AHSDE Trib. 13: 1025 (1761), f. 158.
52 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 53

sangre ai Viborón que lo representaba) y festivo, porque todo transcurría entre SALAMANCAS REMOTAS Y RECIENTES
música y baile, a la vez que la desnudez producía un "efecto de igualdad" entre
participantes de calidades sociales diferentes (nótese la presencia de mestizos Las resonancias de las evocaciones de Lorenza y Pancha llegan hasta el
en la salamanca de Los Sauces y de! portero hispano en Brea Pampa). En este presente. En efecto, la leyenda de la salamanca se encuentra entre las más
sentido, la distancia geográfica de las salamancas de Ambargasta y Los Sauces populares dei noroeste argentino y de la Patagonia, es objeto de variadas
ayudaría a preservar el secreto - sus acólitos son personajes anónimos, los producciones artísticas y los folcloristas han recogido innumerables versiones
acontecimientos relatados pertenecían al pasado - mientras que la de Brea orales.26 Los núcleos principales de la leyenda mantienen aquéllos que las
Pampa parecía más a propósito para tomar venganza de vecinos concretos .H acusadas de Tuama desgranaron en sus confesiones: - un espacio mágico
Sin embargo, el lector habrá notado que, dejando de lado el carácter con localización geográfica concreta, el aprendizaje como obj etivo principal
colectivo dei encuentro salamanquero, el aire de família de estas confesiones de los concurrentes, el pacto diabólico y la presencia física d ei demonio
con las que citamos antes es evidente. El nexo se encuentra en la presencia de (Zupay), música y baile amenizando la reunión, el requisito de la desnudez
mediadores - el hombre espano! de Brea Pampa, los mestizos Joseph Vivas y para quien ingresa. También suelen mencionarse la existencia de "porteros" y,
su hijo, la mujer gorda de Los Sauces - que alentaban a las personas comunes muy especialmente, se insiste en que el aprendiz debe tener mucho coraje. En
y corrientes a tomarse revancha de sus ofensores aprendiendo el arte mágico y efecto, no cualquiera es capaz de vender su alma renegando de su fe y de darle
haciéndose de los necesarios ingredientes. Un arte empírico y a la vez diabólico a la espalda a su comunidad a cambio de un saber (la brujería, pero también
que, de contar con el coraje suficiente para aceptar la oferta, elevada a los otros que hacen al arte de la seducción, como la ejecución de instrumentos y
iniciados por encima de los comunes mortales. De alguna manera, en todos la dan za) ni de entrar en contacto con los animales inmundos que recorren
los procesos - y también en los que mencionamos antes - surgen piezas sueltas la piei desnuda del iniciado cuando ingresa al antro mágico. La suer te dei
que bien podrían confluir en el puzzle de las salamancas. arrepentido, o de quien revele el secreto, suele coincidir con la que la mujer
Sin embargo, algunos indicios parecen más consistentes que otros en la gorda de Los Sauces le indicara a Pancha: su destino es "perderse" y enloquecer.
intuición de las escuelas de hechiceros. Así pues, a la luz de las confesiones de Existe cierto consenso entre los folcloristas acerca dei origen hispano de
Lorenza y Pancha, resulta significativo que la índia Pascuala Asogasta fuera la leyenda, que remite a la cueva de Salamanca, evocada en un entremés de
sospechosa por desaparecer subrepticiamente en el monte - el espacio liminal Cervantes y en una célebre obra dei novohispano Antonio Ruiz de Alarcón Y
en el que se ocultaban las salamancas - y concurrir a juntas "para aprender y
bailar".24 O que las índias Luisa y Antuca, madre e hija, hubieran provocado el
terror de dos músicos que las habían visto caminando desnudas en dirección 26. Hemos preferido reproducir un testimonio inédito, extraído de la Encuesta Nacional de
a una barranca que miraba al río (un buen escondrijo para una salamanca Folclore de !922 que recoge varias decenas de versiones de la "leyenda de la salamanca": "A las
de agua). 25 De esta suerte las salamancas, aquellos espacios suspendidos en la orillas dei río en aquella barranca [. .. ] hay una cueva grande, que tiene muchos metros de largo
y una puerta chica por donde se entra. Cualquiera no conoce esta puerta, pero de noche se sabe
geografía cotidiana de las personas pero sólo accesibles para algunas de ellas,
dónde es porque la indica una luz colorada que se corre po r ela ire y se posa en un sauce que está en
merodean buena parte de los procesos coloniales aunque no se las nombre con la puerta de la "salamanca". Esta luz jamás se apaga aunque corra viento o llueva. Aliá solo entran
todas las letras. las personas corajudas que tienen tratados con el "maldito" (Diablo) y por consiguiente no creen
en Di os ni en la virgen. El cobarde no debe entrar. Hay que entrar desnudo [ .. .]. En la puerta está
un cocodrilo, que es e! maldito m ismo, y el que pregunta a los que van si creen en Dios. AI entrar se
ve allí animales de todas clases: chivos muy grandes, carneros, toros, víboras, "ampalaguas'; sapos,
escuerzos, aranas y m uchos más [ ... ]. Mas aliá se baila con m úsicas muy lindas. Q uien entra aliá
aprende lo que quiera, a bailar y zapatear, a tocar la música, a domar y hacer brujerías': Instituto
23. Po r algún mo tivo, quizás para distanciarse de las restantes indias de Tuama y delegar en Nacional de Antropologia, Encuesta Nacional de Folclore, Caja 2, Carpeta 53, Aristóbulo Bustos
Azuela e! primer lugar entre los hechiceros, en su ratificació n Lorenza negó haber aprendido en Navarro, Lezcanos. "La salamanca': Informante: Lo renza de Salvatierra, 85 anos. Hemos realizado
Brea Pampa. un análisis exhaustivo de esta riquísim a fue nte en FARBERMAN, Judith. Magia, brujería y cultura
24. AHSDE, Trib.9 bis:703 ( 1728). Pascuala, india de Asogasta. Sobre homicídio con arte de popular. De la colonia ai siglo XX. Buenos Aires: Sudamericana, 201 O, p. 87- 13 1.
hechicería. f. 53. 27. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de, La cueva de Salamanca, dispo nible on line en cervantes.
25. AHSDE, Trib.1 O: 806 ( !729). Toloza Juan contra Luisa, índia. Sobre injurias. uah .es/teatro/Entremes/entre_7,html (l 0 ed. 161 5). RUIZ DE ALARCON Y MENDOZA, Juan .
54 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnaraPereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 55

Además dei nombre, también el pacto diabólico, la cueva y el aprendizaje veloz de su prisión - cuando Juana contaba ya 50 anos -, enmarcada en la razzia de
parecen calcados de las versiones !iterarias, que bien podrían haber cruzado don Alonso de Alfaro sobre la que es menester detenernos un momento.J0
el océano ... Claro que, si los estudiantes salmantinos dei siglo XVII accedían AI igual que Lorenza y Pancha, también Juana Pasteles estaba adscripta
a una variante culta y libresca de la magia (la quiromancia, la astrología y la al pueblo y encomienda de Tuama y, como ellas, abandonaba a menudo su
nigromancia), los salamanqueros dei norte argentino se apropiaban de un lugar de residencia. En estos viajes - que la conducían a las inmediaciones
saber práctico cuya posesión está destinada a provocar por igual admiración de San Miguel de Tucumán, a la frontera con el Chaco y a otros sítios que no
y temor. identificá en su confesión - Juana había multiplicado sus relaciones con otros
Recientemente, y apartándose dei problema de los orígenes, José Luis índios e índias, algunos de las cuales hábiles hechiceros. Por supuesto que
Grosso ha propuesto la naturaleza mestiza de la salamanca, rescatando en estas peligrosas relaciones fueron reveladas a partir de su segunda confesión
particular la incorporación de elementos de origen africano al estereotipo. 28 y mediante la aplicación de tormentos, cuando ella misma se reconoció
Según el autor, no es casual que los custodios de las salamancas sean negros, hechicera y procurá satisfacer las preguntas dei juez acerca de su iniciación y
que el mismo Diablo tienda ser representado como negro y que el malambo de sus víctimas pasadas y presentes.
(danza de origen afro) figure entre las destrezas que pueden aprenderse en Ya se evocó el recuerdo de juventud de Juana en el Tucumán, donde su
el espacio mágico. Aunque el trabajo de Grosso no ha desdeiíado las fuentes maestra Juanita le había enseiíado "a bailar, donde hubo un arpa en casa de
históricas - en las cuales, como comprobarnos hasta ahora, lo índio está mejor Lasarte': Había sido en aquel fandango campesino - notemos que regresa
representado que lo negro - el grueso de su evidencia proviene dei trabajo de una vez más la asociación entre la danza y la hechicería - donde recibiera el
campo antropológico realizado en la década de 1990. vacanquí para ser utilizado "cuando los hombres no la quisiesen" y le fuera
lEs posible tender un puente entre las salamancas coloniales de Lorenza prese~tado el chivato. Juana rehusó las ofertas de aprender a coser y a tocar
y de Pancha y las actuales, un puente que vaya más aliá de las semejanzas la guitarra (aprendizajes también contenidos en el pacto) pero aceptó dei
formales entre componentes de un mismo estereotipo? Como es sabido, las d~~onio unas hierbas con las que experimentá en el cuerpo de sus primeras
mismas formas pueden ocultar significados diferentes y es nuestra aspiración viCtlmas. Una de ellas -el índio Pedro - fue mortal, mientras que otro índio
historizarlos. Creemos que ese puente puede construirse y que uno de los r._ un_a muj.e~ cons igu ier~n s~lvarse gr~cias a la perícia de unos enigmáticos
expedientes santiagueiíos contribuye a transitado y, al mismo tiempo, a mdws med1cos de Ama1cha sobre qUienes no se aportan más detalles.
conjeturar otros nexos, aquéllos que conducen a las primeras etapas de la Estos maestros y aquellas víctimas pertenecían a la etapa de iniciación
evangelización cuando la hechicería era aún pensada como un rótulo aplicable de Juana, quizás coincidente con su adolescencia. En cambio, su comadre
a las devaluadas religiones indígenas. 29 María y Juan, el hijo de ésta, índios de Matará (en las fronteras con el Chaco)
El lector ya tiene alguna noticia dei expediente al que nos referimos, eran socios más recientes, con los cuales seguía "manteniendo comunicación':
puesto que el nombre de Juana Pasteles y el de su maestra Juanita fueron Había sido su comadre quien le proporcionara a Juana un brebaje para ultimar
mencionados páginas atrás. En cambio, no nos detuvimos en las circunstancias al e_sposo que 1.~ "mar~irizaba y maltrataba" y merced al mal arte de aquella
muJer y de su hiJO segUian padeciendo el cacique dei pueblo de Mopa (también
sobre el río Salado) y otra india de Matará.
La cueva de Salamanca. Barcelona: Linkgua ediciones 2007 ( l. ed. 1628). Entre los folcloristas lQué había sido dei chivato que en su juventud no se le apartaba? En
que sostienen los orígenes hispanos de las salamancas latinoamericanas (y en particular dei la segunda confesión, y presionada por la insistencia dei juez, Juana volvió a
norte argentino) se encuentran COLUCCIO Félix; COLUCCIO, Susana., Diccionario Jolklórico
argentino. Buenos Aires: Corregidor, 2006 y FORTUNY, Pablo, Supersticiones calchaquíes, Buenos
Aires: Huemul, 1965. Este último autor, sin embargo, no descarta la posible derivación dei término
de la voz quichua sallac manca (olla maligna). 30. Don Alonso de Al faro llevó a cabo dos campanas contra hechiceros: una en 1715 y Ia otra
28. GROSSO, José Luis, Indios muertos, Negros invisibles. Hegemonia, identidad y aftoranza. entre 1720 Y 1721. De la primera campana nos han llegado tres procesos aunque sabemos que se
Córdoba: Brujas 2008, p. 181- 192. efec.tuó por lo menos uno más contra una india de nombre Elvira. De la segunda, conservamos
29. GRIFFITHS, Nicholas. La cruz y la serpiente. Lima: Fondo editorial PUCP, 1998, p. 93- 130, y un umco expediente santiagueno (no obstante se manifieste en ese proceso que eran numerosas
ESTENSSORO FUCHS, Juan Carlos. Del Paganismo a la Santidad. La incorporación de los indios las arrestadas en e! cárcel pública) y una sumaria general contra seis mujeres de Ia jurisdicción de
dei Perú ai catolicismo. Lima: Institut Francais d ' Etudes Andines, 1998. San Miguel de Tucumán.
56
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introducir al demonio pero esta vez bajo u na nueva y reveladora apariencia prál.:ticas de los "índios nuevos" y ese producto colonial por excelencia que
que lo retrataba en "figura de índio': Era él quien se le,ha~ía ac,; rca~o mient.ras era el fandango salamanquero con sus instrumentos musicales europeos y sus
recogía leõa en el monte y que amigablemente le hab1a d1cho aq~1 andab~1s y demonios de catecismo?
estuvo hablando con ella y que viendo esta confesante llevar al dKho Ind10 a Las fuentes tempranas - dei sigla XVI y XVII para el Tucumán y dei
su casa le dijo que no, porque allí tenía su caballo, que aquí ando por enseõar XVIII para el Chaco - que nos informao sobre estas reuniones en el monte son
a que seáis hechicera y diciendo esto le dio coro y le recibió esta confesante Y numerosas y suelen apuntar en dos direcciones. Por un lado, en una perspectiva
llevó a su casa:' 31 común a vecinos y funcionarias coloniales, se alarman de la ausencia de
La mención del coro - al igual que la dei cebil y la del chamico, presentes "polida" de los indígenas y de la consecuente escasa productividad de su
en otros tramas de la confesión de Juana Pasteles - es altamente significativa trabajo. 34 En este sentid o, la recolección de la algarroba - con cuyas vainas se
por tratarse de un alucinógeno de importante circulación y uso inmemorial preparaba la embriagante aloja pero también se alimentaba por varios meses a
entre los indígenas del noroeste argentino y del Chaco. 32 Estas consumos, una población sobreexplotada - era entendida como una actividad al mismo
demonizados en las crónicas tempranas por sus vínculos con las religiones tiempo necesaria y peligrosa. 35 Por otro lado, para el personal eclesiástico era
antiguas y sus especialistas rituales, regresaban en las palabras desesperadas el demonio mismo el que presidía las juntas, impidiendo el adoctrinam iento
de Juana Pasteles, quien cerraba el círculo al precisar el momento y ellugar en de los infieles y la sincera conversión de los "cristianos nuevos': 36 Unos y otros,
el que "comunicabà ' con los demás hechiceros. Era en el monte~ muy. cerca sin embargo, percibían la ligazón entre el tiempo de la algarroba y los rituales
de su casa "donde se suelen juntar por tiempo de algarroba y en diChas JUntas que las libaciones acompaõaban y bajo cuyos auspícios las naciones indígenas
y borracheras se les aparece el demonio en figura de índio y puesto un cuchillo entablaban (aún en tiempos coloniales) alianzas políticas y militares. 37
bailao, cog1.endo brasas en 1as rocas." 33
Este último tramo d e la confesión resultó tan críptico para las justicias que
34. Por ejemplo, una de las razones aducid as por d gobernador de Tucumán Francisco de Barraza
el am anuense interrumpió la transcripción de sus detalles por "no ser esenciales
y Cárdenas para mudar la ciudad de Esteco desde su emplazamiento en el norte dei río Salado hacia
ni de útil". El ejercicio de traducción se había complicado y no solame~te por la poco distante villa de Madrid era que "en la comarca de la dicha ciudad de esteco (los indios) están
"la quichua" y por la incoherencia cada vez mayor dei d esgarrado discurso metidos entre montes y algarrobales se ocupan en borracheras lo más del aiio sin que los sacerdotes
de Juana, salpicado de súplicas y ayes de dolor. Lo que se había agotado era les puedan doctrina como conviene y viven en mucha ofensa de nuestro seiior y se hieren y matan
aquel terreno común construido sobre el antiguo sistema de creencias Y las y hacen otros excesos". Biblioteca Nacional, Colección Gaspar García Viiias, n•4020 ( 1605) f. 10.
35. CASTRO OLANETA, Isabel. "Transformaciones }'continuidades de sociedades indígenas en
más recientes y demonizadas formas de concebidas. El "diálogo" - forzado Y el sistema colonial. El pueblo de ind ios de Quilino a principios del siglo XVII': In: FARBERMAN,
desigual pero diálogo al fin - se había roto porque Juana había ingresado en un Judith; GIL MONT ERO, Raquel. Los pueb/os de indios de/ Tucumá n colonial: pervivencia y
imaginaria incomprensible para las justicias hispanas. , desestructuración. Berna!: Universidad Nacional de Q uilmes- Universidad Nacional de Jujuy,
Sin embargo, este discurso oscuro ilumina y esclarece nuestra busqueda 2002, p. 173-202; FARBERMAN, Recolección econom ía campesina y representaciones de los
montaraces en Santiago dei Estero, siglos XVI a XIX. Prohistoria, Rosario, W 1O, 2006, p. 11-26.
acerca de la construcción del mestizo estereotipo de la salamanca. tNo estaba
36. Una mención entre muchas, en este caso para la jurisdicción de Santiago del Estero: "Estavan
acaso describiendo Juana una suerte de "p rotosalamancà '? Más aún t no una vez muchos indios congregados en una borrachera y una india con curiosidad de ver lo que
representa esta "junta y borracherà ' el eslabón faltan te entre las repudiadas entre ello.; pasava se puso en asecho y dio ai demonio vestido de blanco de pies a cavesa, muy
regvsijado bebiendo con ellos )' cn medio, como precidiendo en aquella bestial junta, buelta la
índia a su casa la fue siguiendo cl demonio y hallándola sola la saludó con su acostumbrada frace,
estás aquí, y tuvo con ella muchas acciones lascivas': MAEDER, Ernesto ).A. (comp.) Cartas anuas
3 1. AHSDE, Trib. 14: 1145 ( 1715), f. 13. d.: !a prm illcia de/ Paraguay. 1637- 1639, Bueno> Aires: FECIC, 1984, p. 34.
32. Sobre alucinógenos en el NOA ver Pi: REZ GOLLÁN, José Antonio; GORDI L~O., lnés. 37. Re..:kntemente, desde la arqueología de nuestra region se están recuperando materiales
"Vilca Uturuncu. Hacia una arqueología del uso de alucinógenos en las socied ades preh1spamcas que ' ' tgieren las modalidades de consumo de la aloja de algarroba en el monte santiaguei1o. Aún
de ]os Andes dei Sur". Cuicuilco, México, n. I : I, p. 99- 140, 1994. Cabe destacar que )uana Pasteles di!r;~n t e !a colonia temprana, se registran re.:ipientes de uso colectivo- probablemente empleados
dice recibir el coro y llevarlo a su casa pero no refiere el uso que le d io. En cambio con el chamico c11 !n, h!'aciones - y que acompanan a otrt'S pequenos para consumos cotidianos e individuales.
sostuvo liquid ar a un indio de Guaipe, en venganza por matarle una temera y un~ l~chera Y 1A fiOti.DA, Constanza. "Espacio, cultura material )' proccsos sociales en la llan ura santiagueii<
enfermar a una in dia de Matará. El cebil es propuesto como remedio para curar a esta ultima. ;1;, "' ~k· ., ::n·•l<-tivo para pensar a las poblacione.' dr l ~ rPt,ió;1': [n: A AVV Arqucología yetnoh :,te ria
33. AHSDE, Trib. 14: 1145 (1 715), f. 14. t'·~ ~" ,,., : "" •~ te 'lfiental ele los f.., ,r.es dt' Atger.t!:u , í' o:<,ü ;' 1\:: u. S. S. de Jujuy. 2013. E·1 p •.::n ~a.
lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 59
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
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En contraste, como se recordará, de las salamancas de Lorenza y Pancha


Juana Pasteles fue juzgada en 1715 - más d~ un siglo y medi?. .después no sólo participaban índios y los mediadores suelen ser siempre sujetos
de la fundación de Santiago del Estero - y sm embargo las .J~ntas Y mestizos, algunos de ellos "vestidos a lo espaftol': La música que embriaga a los
borracheras" volvían a escena, ahora relatadas por una de sus participantes. salamanqueros es ejecutada con instrumentos europeos y también es europea
Y, nuevamente, retornaba su asociación con la hechicería, igual. que en los la representación del demonio en sus diferentes apariencias.
documentos eclesiásticos, que no trepidaban en tildar de hech1ceros a los tEs posible leer este conjunto de confesiones como una secuencia? tSe
chamanes indígenas. tSe refería Juana a un chamán i,?dígena, cap~z d~ ,~ocar trataba acaso de rituales que preservaban la memoria de otros mucho más
e1 fuego sin quemarse, cuando se refería al demonio en figura de mdw que antiguos, clandestinos luego de la conquista? Es ésta nuestra hipótesis: la
comunicaba con ella y con sus secuaces? Es una hipótesis difícil de pro bar pero postulación de la salamanca como producto de la imaginación mestiza
no inverosímil. En cambio, es un dato cierto la apropiación por parte de Juana nutrida por la resignificación de los rituales religiosos tradicionales ligados a la
de aquel difundido discurso eclesiástico .que. pr~dic.a~a la identificación entre recolección de la algarroba. Esta postulación implica aceptar la internalización
los antiguos complejos festivos y la hech1cena ~1abohca. . de la demonización de aquellos rituales por parte de la población rural. Más
Si todas estas pistas nos conducen hae1a la coloma te~prana ~ nos allá de su nombre y de la analogía con la leyenda que conducía a la remota
remontao a tiempos prehispánicos, otros indícios nos permlt~ r~.flexwnar ciudad hispana, y a la par que los pueblos de índios se volvían espacios
sobre las más tardías salamancas de Lorenza y Pancha. La asoCiacwn ~on el mestizos, también lo hicieron los condaves de los brujos, custodios de aquella
baile, presente también en otras confesiones (no olvidemos .~ue su pn~e~a memoria demonizada.
maestra le había enseftado a Juana "a bailar en Chiquiligasta , el aprend1zaJe
y el intercambio de insumos), la "comunicación" entre los hechicer~s Y .el
monte cobijando las actividades secretas son algunos pu~tos en co~un. Sm REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
embargo, también son significativas las diferencias, expres1vas de cuanta agua
había corrido bajo puente en aquel medio siglo que separaba una Y otras CASTRO OLANETA, Isabel. "Transformaciones y continuidades de
confesiones. Las juntas de Juana (y sus relaciones ~entro y fuer~ de ellas) eran sociedades indígenas en el sistema colonial. El pueblo de índios de Quilino a
casi exclusivamente de y entre índios y hasta el m1smo demomo - al. ~enos princípios del siglo XVII': In: FARBERMAN, Judith; GIL MONTERO, Raquel.
en una de sus apariencias - era un indio. tNo evocan acaso sus des~n~cwn.es Los pueblos de indios dei Tucumán colonial: pervivencia y desestructuración.
las imágenes que el padre Paucke nos legó de las juntas de aquellos mdws aun Bernal: Universidad Nacional de Quilmes- Universidad Nacional de Jujuy,
más "nuevos': los mocovíes del Gran Chaco? 2002, p. 173-202
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\t.~::r.·~~
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economia diversificada, com um mercado interno em contínuo crescii~ento
región". In: Arqueología y etnohistoria de la vertiente oriental de los Andes de
Argentina, Bolívia y Perú. S. S. de Jujuy. 2013. En prensa enquanto a diminuição do número d e escravo s na continuidade da alforri~
TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. El derecho penal de la monarquía absoluta.
Siglos XVI-XVII-XVIII. Madrid: Tecnos, 1969.
I. O trabalho conta com o apoio da FCT. Q uero agradecer os contributos e sugestões aos colegas
Eduardo França Patva, Isnara Ivo, Marcia Amantino e Manuel Lobato.
62 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva1MarciaAmantino (orgs.)
63

fez com que estes últimos experimentassem tirar benefício da estrutura


socioeconômica em algumas capitanias. Para Eduardo França Paiva as alforrias esf?nMtaneidade marcou a vida colonial e projetou as relações sociais 2 Para
Kat1a attoso, na Bahia a ·
não são o fruto de uma crise, mas resultado da mesma dinâmica assumida pela
economia e pelo sistema gerado n a região. Para o historiador a alforria torno u-
reprodução do modelo
.
t · 1
pa narca característico da vida rural brasileira
se num meio útil de controle social, um mecanismo que impedia algumas
discórdias. Contudo, talvez as mulheres forras em Minas, mais numerosas do per_de ~qui a rigidez, é substit uído por formas de organizações familiares
que os homens, tenham alcançado maior independência do que eles, com o mais Simples, mais flexíveis, m ais adaptadas à cidade M .
- b . . · as nem por 1sso
objetivo de assegurarem a sua sobrevivência. Focando-se nelas, logo a História sao a andonadas as praticas sociais herdadas da família de tipo patriarcal.
captou novos sujeitos, as classes subalternas, a gente pouco importante. Gente A presença dos agregados é disso exemplo vivo Esta 1cami'li"a b .
" · ' a1ana mostra
que contribuiu para a construção das sociedades coloniais e converteu-se em traços . modernos" em suas estruturas, e arcaicos em seus fundamentos e em
sujeito histórico. suas atitudes. ( M ATTOSO, 1988, p. 126 )
li. Da convivência entre civilizações diferentes emergiram criações
mestiças, contrariando a ideia progressiva do aperfeiçoamento das sociedades, Para ~ maioria das mulheres, o Império colonial podia ser um recurso na
para existências onde tudo se mescla, onde nada é linear (GRUZINSKI, 2000, busca de nqueza e promoção social e até de "autonom· , . d d
d H· ' ' Ia , m epen entemente
p. 52). No caso da América ibérica reconhecemos comumente singularidades a cor. a algum tempo, estudamos a história d e Teresa de Jesus J viúva de
resultantes de um processo de mestiçagens que concorreram para a formação Manuel Fernandez da Costa,, nascido em Itapicuru de Cima - s'alvador -,
de uma sociedade complexa no seu funcionamento e categorização. Sargento-m or, ~ornem de negocias, senhor de engenho e traficante de escravos
Paralelamente à questão da mestiçagem, junta-se o relacionamento entre a qual, com mais de 50 an os de idade, resolveu casar em 1750 com F . ,
M 1d s·1 · ' , rancisco
os grupos sociais, a ação das instituições que a dirigem e as experiências _anue a 1 va, pnmo do seu falecido marido, jovem, branco e seu servidor
do quotidiano. Se do reino emanavam mecanismos institucionais, evitando Am~~ que os .?Ih~s se opus~:sem à união, não a conseguiram impedir. Talvez:
a todo o custo escapar à "impureza': aqui, fruto da distância, da coabitação a u~Iao f~sse m ais tolerada na região onde vivia, afastada da metrô ole e se
diferenciada e da subsistência individual e coletiva, nasceram vivências que, fazia sentir a escassez do elemento branco (ScoTT 2012 p 71) S p 1'• .
d· · · . , , · . e a co o ma
hoje, a História deve continuar a discutir. po ra constitui~ um umverso de maiores possibilidades para a mulher b
O jeito cruzado que se irá espalhar pelo Império colonial torna delicada o mesmo se aphca às mulheres "não brancas, escravas, forras e nascidas~~~~:·
a classificação d as distintas sociedades, assim como o estabelecimento de q~e ~t~aram_ forte~ente n as sociedades em q ue se inseriram, construindo sua~
hierarquias e categorizações rígidas. Tanto na América colonial como em outras histonas de mserçao e de m obilidade no cotidiano do universo colonial" (Ivo
2012, p. 271). )
sociedades emergiram mudanças que resultaram do cruzamento/recreação
entre as culturas "invasoras" e as gentes locais. Por exemplo, em determinadas . , Para Schwartz e outros historiadores, como Katia Mattoso, o número de
regiões, era possível encontrar famílias organizadas por representantes das mdigenas que cercava os colonizadores portugueses no Brasil tornava todo
três classes, formadas, geralmente, por um pai livre, uma mãe forra - o que europeu num potencial gentil-homem (SCHWARTZ 1992 p 2 12) 4 p M
D I p · 1· ' , · . ara ary
não significava ser livre - e um ou mais filhos ainda cativos do ex-senhor da e nore, no Itoral, procuravam-se genros nascidos no Velho Mundo:
m ãe (PAIVA, 1993, p. 18) , m as em outras áreas, não.
A teia relaciona! criada durante o período colonial e nos anos subsequentes
gerou desiguais formas de coexistência e combinou um imaginário coletivo. Por
~~pit~~~aa;do França Paiva refere-se a Minas, mas uemos que a situação se estendia a outras
isso, emergiram díspares planos articulados pelos grupos m ais desfavorecidos
da socied ade, que, em nosso entender, não significam não branco. Apareceram 3. Ler: MARINAS, M• Isabel Viforcos Marinas e LOPES R 1
Brasil Colonial: El Caso Del Recogimiento de la santa ca' a ~salva~~re~o (O:gS.) "Mu~eres en ~1
pequenos agregados de cativos que desejaram promoção social e é possível, de la depositada Teresa de Jesus': Histórias com ar . s ~ _a . Isencordia de Bah m Atraves
ainda, que tenham exercido atividades socioeconômicas análogas aos m ais E~afia, ~ortugal y América. Siglos XV-XIX. Uni:ersit~~~sd:~~~~0:1~:~iru;~~~s~~~~~:i;ina 1en
ricos e, talvez de modo conjunto, em alguns casos, não tenham sido incomuns y umamdades Alfonso Vélez Pliego, 2007, p. 339-365. s ocia es
as relações afetivas e casamentos entre livres pobres e forros. Uma certa 4. Ler: MATTOSO. Katia de Q ue· ' B h · ' l ·
Janeiro: Nova Fronteira, 1992. Iros. a ra, secu o XIX: Uma provmcia no Império. Rio de
64 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira IvoIEduardo França PaivaI Marcia Amantino (orgs.) 65

O "mendigo de mais alto nascimento era preferido aos mais ricos nativos" em Penafiel, em 1779, e casada com o oficial de origem baiana Luís Paulino
(PRIORE, 2005, p. 183). No entanto, o casamento de Teresa de Jesus fracassou Pinto da França. À semelhança de Maria Bárbara, temos outros exemplos pelo
e esta foi enclausurada como porcionista do Recolhimento da Santa Casa da Império colonial, alguns deles já estudados por Charles Boxer: D.a Brites de
Misericórdia da Bahia. Insatisfeita com a situação, pede o divórcio e tenta sair Albuquerque, mulher do 1o donatário da capitania de Pernambuco, conhecida
do recolhimento. A condição de reclusa arrastou-se por cerca de dez anos e pela Governadora, ou Maria da Cruz, viúva abastada no interior da Bahia e
só conseguiu sair, devido à intervenção do Rei, já que o Vice-rei e o Provedor em Minas Gerias, uma das cabeças dos motins do sertão, em 1736-37 (BoxER,
impugnaram a sua saída, entregando a sua tutela ao filho. As autoridades 1977, p. 69). 6
régias portuguesas e o Provedor da Santa Casa não só estavam satisfeitos com III. Mergulhada neste universo complexo de relações e de procederes
a quantia de dinheiro que o marido pagava ao Recolhimento como desejavam epocais, a curiosidade levou-me a travar conhecimento, há cerca de quatro
que a circunstância servisse de exemplo a outras mulheres brancas, talvez, anos, com um negro baiano que se dizia descendente dos Kopke (Cokpe), os
numa tentativa de acautelar uniões com tão acentuada diferença de idade e quais, segundo a tradição familiar, seriam oriundos da Itália. 7 Esta casualidade
de condição socioeco nômica. Pois cabia à mulher manter as regras morais permitiu-me obter o paradeiro da documentação ligada à família Kopke que,
impostas pela sociedade. no século XVIII, fora viver na Bahia. De produtores de vinho do Porto em
O Cristianismo desde muito cedo impôs uma ordem subalterna à mulher, Portugal encontramo-los, aqui, como traficantes de escravos e senhores de
representação que se manteve até ao século XX, cruzou o Atlântico e marcou as engenho. 8
mulheres brancas, negras e índias que habitavam o território do Brasil (SouzA, As informações que recolhemos saíram da leitura dos testamentos
2011 , p. 16). Também uma série de regulamentações morais demarcavam os deixados por membros desta família de apelido Kopke. Eram descrições
limites entre o que era aceitável e o que não o era. Todo o poder decisório estava pessoais que, ali, se conservavam, aparentemente sem grande interesse para
entregue aos chefes de família (GONÇALVES, 2006, p. 63 ). Ainda que as mulheres a História politica ou econômica, mas ricas para a "história individual': O
de sectores inferiores gozassem de maior liberdade, eram identicamente registo aí "oculto" narra e redimensiona histórias de povos, de épocas e de
vulneráveis. O homem podia misturar-se sem colocar em causa o seu estatuto 9
países. Não são heróis no sentido lato do termo, mas personagens anonimas
social nem a vida doméstica, enquanto a mulher de sociedade corria o risco que, independentemente da sua condição econômica, ajudam a descrever
de se ve r desprestigiada e de perder a sua "honra" (GusMÁN, 2010, p. 2l).ô A a sociedade colonial. Assim, gente livre e escrava tornou-se participante
Igreja contribuiu para o controle do comportamento feminino, fortalecendo, do porvir histórico. Por isso, nesta sociedade, em que as estratégias de
na prática, o modelo patriarcal e a relação assimétrica entre os sexos. Grandes enriquecimento, ascensão e mobilidade social são diversificadas, não podemos
barreiras separavam o mundo feminino do masculino, apoiadas nas leis, nos apartar os senhores dos escravos. Não apenas os portugueses empobrecidos
costumes arreigados, na educação formal e informal e até na ciência, segundo que aqui chegaram conseguiam acumular pecúlio, mas também os libertos,
as convicções da época. A ciência justificava e fortalecia a ideia de que a mulheres e homens que se "movimentavam" através dos laços matrimoniais,
m ulher deveria manter-se confinada ao lar, evitar esforços tanto físicos como da participação em irmandades, do trabalho e de legados recebidos em
mentais, já q ue eram con sideradas seres frágeis, inferiores, que, se expostos à testamentos de senhores ou parentes: "Uma das formas mais bem-sucedidas
mesnJa ed ucação dada aos homem, seriam prejudicadas no exercício d o;; seus de ascensão social para um escravo ou descendente de escravo era, sem dúvida,
devert~S de esp osa e mãe. No enta nto, fruto de dete rminadas circunstâncias, o reconhecimento da paternidade de filhos ilegítimos por parte de homens
igualmente enco ntramos mulheres que desafiaram a moral vigente e/ou
tiveram um a ação ativa na governança de suas casas: sej a a já falada Teresa
de Jesus ou, por exemplo, Maria Bárbara Garcez Pinto de Madureira, nascida 6. Le r o estudo m ais recente d e ANASTASIA, Carla Maria junho; BOTELHO, Angela Via nna. D.
Maria da Cruz e a Sedição d e 1736. Belo Horizonte: A utên tica, 201 2.
7. Fa mília a ristocrática, d e ascendência alemã da cidade d e Hamburgo e sediada no Porto (desde
5. A auto ra anahsa a sociedad e C<•lonial espanhola, m as encontramos paralelo com a A·••ái, d 1638). em Portugal, ded icando-se à pro dução e com ercialização do vinho do Porto.
por!ugu c~a. Na página 138 escreve que, em geral, os espanhóis mais h umildes caS'I\'.m: .:·"'11 8. O meu agradecimento ao Diego Kopke, Bahia, pelas inform ações.
1nestiças, o s m ula tos com índias c os mt sti~o<; com espan ho las e índ 1as. í'r•''n mimos ' l•:<' •'Stas 9. PAI VA, Edua rdo Fra nça. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, I 7 16- 1789.
espa:· h01:Js pe rte nccs5em a grupos ~o c a~ o;tbalternos. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2001, p. 84.
66 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo FrançaPaiva IMarcia Amantino (orgs.) 67

da elite" (ALVES, 2010, p. 153). Lembre-se que em outras regiões do império Atendendo à distância física entre a colônia e a metrópole e ao convívio
português, a ascensão social era, essencialmente, feita, através da conversão, da população índia e n egra com os colonos portugueses, fizeram com que
da cristianização, aspecto muito mais manifesto do que o cruzamento racial. o "catolicismo oficial" fosse "abastardado" por outras crenças religiosas,
Se o casamento era um meio válido, sobretudo entre os brancos, compondo uma amálgama de crenças. Segundo Riolando Azzi, "a Igreja é
de se legitimarem na sociedade e de aprovarem a sua descendência, no modificada pelas tradições locais que se fundem às tradições religiosas [... ]
entanto, havia uma quantidade de homens brancos solteiros no Brasil, constituem um misto de religião e de cultura local" (Azz1, s.d., p. 101). Nesse
os quais, possivelmente devido à falta de mulheres brancas, recorriam à sentido, a sociedade adapta a religião oficial e cria modelos próprios pa ra o
mancebia ocasional ou aparentemente assumida. Ainda que não casassem, procedimento religioso.
freq uentemente legitimavam os filhos, autonomamente da cor da mãe. Se Como meio de controle dos procedimentos e moral da sociedade do
muitos dos nascimentos sobrevinham de relações furtuitas, também é verdade Brasil colônia, a Inquisição revelou-se um instrumento importante. Ao
que outros eram o resultado de largos anos de mancebia, em que sobressaíam contrário da Índia portuguesa, com o tribunal de Goa, o Brasil não teve
laços de afeto. 10 Desde muito cedo as mulheres negras foram populares como um "tribunal inquisitorial': mas durante todo o século XVII estabeleceu-
referência de beleza, capazes de provocar, ao mesmo tempo, desejos e relações se na Bahia um "tribunal da fé" que preparou variadas visitas. A Inquisição
duráveis, além da exploração sexual (ALVES, 2010, p. 4). penetrou profundamente na sociedade colonial graças a "um corpo fiel de
No Reino, a Igreja Católica e a Monarquia, através dos seus diferentes funcionários conhecidos pelos nomes de comissários e familiares do Santo
agentes, tentavam intervir nos vários aspectos da vida privada, procurando Ofício" (BENNASSAR, 2000, p. 229).
a normalização dos comportamentos, como o reforço das formalidades As irmandades dos homens de cor tinham como função orientar o
ligadas ao casamento e os relacionamentos entre os sexos, cujos limites foram procedimento da população africana e crioula, mantendo-a dentro dos limites
delineados no Concílio de Trento. Tais determinações fizeram princípios nas da ortodoxia católica e das normas prescritas pela Igreja (SILVA, 1993, p. 228).
colônias. No Brasil, o marco para o enquadramento das decisões tridentinas As misericórdias preenchiam um papel de associações religiosas protetoras da
foi a promulgação das Constituições Primeiras do Estado da Bahia, as quais vida espiritual dos irmãos e, também, regulavam o comportam ento dos seus
vigoraram inalteráveis até 1822. Os assuntos de conteúdo moral estavam membros.
essencialmente ligados aos atos designados "delitos da carne": concubinagem, Os casos aqui apresentados reportam-se a um período que assinalou duas
adultério, sodomia, bigamia, entre outros, os quais eram levados ao marcas fundamentais na história de Portugal e do Brasil: a independência do
conhecimento das autoridades episcopais através da denúncia judicial Brasil, que em 1822 sai do espaço colonial português para constituir-se como
(GOLDSH!MDT, 1998, p. 28). Numa época em que a religião católica era o império, e a mudança constitucional, que torna o Brasil numa república, em
principal regulador da mentalidade e da moral das gentes, as Constituições 1889. Este quadro histórico inspirou gradualmente a sociedade e lentamente
disciplinavam a vida em sociedade. No Brasil colonial, ditavam as normas modificou a conduta e a atuação das Instituições coloniais. Sendo de opinião que
de conduta e competia-lhes propagarem as normas do bom comportamento as transformações socias demoram algum tempo a enraizar-se, temos de olhar
social, pois cabia à Igreja uma função estruturante, que prestava consistência o processo numa perspetiva global e comparativa. Ainda que o peso da Igreja
à própria vida. 11 católica tenha diminuído na sociedade, a Igreja não foi proscrita e a separação
entre a Igreja e o Estado só acontecerá em 1891, no final do Império. 12 As
características do catolicismo tradicional persistiram mas, simultaneamente, o
clero católico fomentou reformas tanto na formação intelectual e moral de seus
10. Adriana Dantas refere que o casamento entre mulatos, pardos etc. podia ser igualmente uma sacerdotes quanto na forma como os fiéis distinguiam as diferentes celebrações
promoção social. Ver: ALVES, Adriana Dantas Reis. As mulheres negras por cima. O caso de Luzia que completavam o seu calendário anual. Este procedimento ficou conhecido
jeje. Escravidão, família e mobilidade social - Bahia, c. 1780 - c. 1830. Tese de Doutorado. Niterói:
Universidade Federal Flum inense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de
Hi stória, 2010, p. 149-150. 12. Ler: SANTOS, Israel Silva dos. Igreja Católica na Bahia. A Reestruturação do Arcebispado
11. Ler: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial. Vol I: 1808-1831. Rio de Primaz ( 1890- 1930). Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Faculdade
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. de Filosofia e Ciêcias Humanas, 2006.
68 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo FrançaPaivaIMarciaAmantino (orgs.) 69

como romanização do catolicismo brasileiro (CouTo, 2013, p. 2). Paralelamente, Joaquim José Kopke era natural do Porto e proprietário do engenho
o século XIX foi um período de efervescência religiosa na Província da Bahia, do Jacaré, na Freguesia de São Sebastião das Cabeceiras do Passé. No seu
especialmente em Salvador. Agora, três grupos importunavam as autoridades testamento, em 1811, reconheceu como filhos naturais, Casimira José Kopke
eclesiásticas: os adeptos das religiões de matriz africana, os espíritas (finais do e Maria da Apresentação, nascidos de Vitória Maria da Conceição, uma ex-
século) e os protestantes. 13 escrava, depois de ter enviuvado. ' 6 No seu testamento instituía como herdeiros
Se, habitualmente, o português é visto como tendo sido um dos europeus o filho legítimo, a escrava Vitória e os ilegítimos. Declarou que, cumpridos
que mais se misturou com o outro, os Kopke, originários da Alemanha e quiçá os legados, o que restaria da sua terça seria dividido entre Eduardo Joaquim
cautelosos relativamente à sua real proveniência, parece que, em Portugal, já e sua mãe Vitória. Deixava, também, todos os móveis e roupas da casa a
tinham mergulhado no que Gilberto Freyre rotulou de luso-tropicalismo. 14 Vitória, exceto as pratas da casa, que poderiam ser necessárias para outros
Para Mary Del Priore, ao desregramento que se vivia no Brasil nem os ingleses fins. Libertou ainda o escravo Francisco Mulato e sua irmã Cândida, dando-
escapavam (2005, p. 184). Na Bahia, para além de se aplicarem a afazeres lhe 25 mil réis de esmola. Nomeava seu filho legítimo testamenteiro e tutor dos
distintos dos que anteriormente os ocupavam no Reino, mostraram convivências filhos menores, com a obrigação de os amparar e defender de qualquer pleito
calorosas com o outro, o escravo: Joaquim José Kopke, senhor de engenho, João que surgisse contra a sua filiação ou herança e de lhes facultar os alimentos
da Cruz, o traficante de escravos, e duas mulheres, uma viúva e outra solteira. enquanto fossem menores. 17 Depois da sua morte, ocorreu grande contenda
De fato, estas personagens percorrem sua trajetória por distintos lugares, no na divisão dos bens que se arrastaria por um período longo, pois José Joaquim
decorrer do século XIX, século atravessado por mudanças políticas, econômicas Kopke tentou afastar Vitória e seus irmãos da herança. 18 No entanto, Vitória
e sociais. Certamente, parte das suas ações resultam destas reorganizações. reagiu e conseguiu fazer valer os seus direitos, isto é, que a vontade do cap itão
O caminho particular de cada um dos protagonistas destaca a dinâmica da fosse cumprida. Em 1825 encontramos Vitória como tutora e administradora
família e da sociedade na América portuguesa (NETTO, 2011 p. 165). 15 À
medida que a escravatura terminava, encontramos indivíduos mestiços como
artesãos, operários, mestres, empreiteiros, construtores e ferreiros. Alguns
destes operários qualificados já possuíam as suas próprias ferramentas e eram
proprietários de oficinas (CASTELLUCI, 2010, p. 109). A ideia de que o negro,
depois da abolição da escravatura - 1888 - ficou totalmente à deriva, banido 16. Pelo inventário dos bens da esposa o Eduardo Mulatinho já constava no rol dos bens que esta
tinha deixado, com 3 anos, avaliado em 30 mil reis. Também assinalamos q ue Vitória, ao contrário
do mercado de trabalho e privado de dar a sua contribuição para a construção da maio ria das escravas, só teve filhos do mesmo homem, fa to que talvez tenha gerado uma relação
nacional, não equivale inteiramente à natureza dos fatos. Contudo, se alguns mais afetiva entre o casal. Queremos deixar uma nota para a term inologia usada para com os dois
ficaram marginalizados, houve aqueles que, sem renunciarem à sua identidade tipos de escravos referidos:
racial, também ascenderam social e culturalmente, sobressaindo em profissões I. Serviço de casa: uso de mulatinha ( mesmo Vitória e o filho ) e os restantes crioulos, mulatinhos
e cabrinha. Em nenhum d os casos aparecem as qualidades dos indivíd uos nem a condição. A
de prestígio (DOMINGOS, 2010, p. 136).
constituição Imperial de 1824 revogou o dispositivo colonial de "mancha de sangue", e, talvez,
tenha influenciad o as mudanças que qualificam os ind ivíduos e o u as relações que a ex-escrava
mantinha com o pai dos filhos delineando as cond ições sociojurídicas, as distinções e qualidades
13. Ler: COUTO, Edilece; SEIXAS, Mariana. Percepções Protestantes da Festa do Senhor do dos filhos. Ver: NETTO, Rangel Cerceau. "Fam ílias Mestiças e as representações identitárias: entre
Bonfim, Em Salvador-BA, no Século XIX, p.l , (percepções protestantes da fes ta do senhor... - abhr as maneiras de viver e as formas de pensar em Minas Gerais, no século XV III': In: PAIVA , Eduardo
www.abhr.org.br!plura/ojs!index.../471 ) -File Format: PD F/Adobe Acrobat - E Souza - 2012. França; AM ANTINO, Marcia; IVO, Isnara Pereira. (Orgs.). Escra vidão e mestiçagens: ambientes,
Acesso em 22/3/20 13. paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011, p. 169 e 176.
14. Sobre a sociedade mineira, próximo da época que aqui trazemos, aconselhamos a leitura 2. Escravos de serviço da eixada (total de 24): Beta de nação conga, moça m ulher; Toana nação
de LIBBY, Douglas Cole. ''A Empira e as Cores: Representações Identitárias nas Minas Gerais dos Nagou, moça mulher; Do mingas crioula, fi lha da anterior e Maria mulher do escravo Feliciano;
Séculos XVIII e XIX': In: PAIVA, Eduard o França; IVO, Isnara Pereira; MARTINS, Ilto n Cesar Delfina, Nação Mina, Ana Nação Nagu, Branca crioula, Maria Nação Angola; Theodora Nação
(Orgs.). Escravidão, Mestiçagens, Populações e Identidades Culturais. São Paulo: Annablume, 2010, Nagou. Em alguma documentação aparecem outros nomes: Cassiano José Kopke, Mar ia da
p. 4 1-62. Apresentação e Eduardo Toaquim Copke, portanto teria 3 fi lhos.
15. O autor também nos dá a conhecer a história individual da escrava Thereza como prova 17. APEB, Estante 9/cx 3788; doc. li, tis 5 e seguintes.
dessa d inâmica da família. 18. APEB, Estante 9/cx 3788; doc. ll, tis 27.
70 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 71

das pessoas e bens de seus filhos 19 e, no mesmo ano, o Juiz determina que do seu testamento de 1866, ficamos sabendo que era homem solteiro e que
os bens sejam partidos. 20 Possivelmente, por obstinação do filho legítimo, os teve uma filha, Joana do Nascimento Kopke, de Constância do Nascimento,
bens continuavam por dividir. Em 1826, Vitória fez um pedido ao Juiz e Pai livre e de nação jeje. Joana residia em Salvador e foi reconhecida publicamente
dos Orfãos para que procedesse a uma inquirição sobre o comportamento como filha legítima e universal herdeira de todos os bens, com reserva da sua
do "enteado", o qual, devido ao consumo excessivo de álcool, dilapidava a terça. 26
herança. 21 Sem solução imediata, o contratempo arrastou-se e José Joaquim só João de Abreu Kopke era proprietário do patacho Constança que fazia
aceitava dividir os bens se Vitória pagasse as dívidas do falecido pai que eram viagens entre Salvador e África. Dizia possuir, igualmente, na costa de África,
superiores à terça. O caso seria resolvido com a venda do engenho, depois colônia portuguesa (provavelmente se refere a Cabo Verde) várias casas e um
da sua morte. Vitória recebeu a sua parte na herança, mas pagou a dívida barracão de madeira na praia, algumas dívidas e escravos. Todos os bens e
gradualmente e o processo só terminou em 1851.22 Portanto, parece-nos que tratos estavam entregues à mãe de sua filha, debaixo da inspecção de Francisco
a ex-escrava ganhou "prestígio" na sociedade baiana: ficou como tutora dos Silva, Manuel Joaquim de Almeida e Guilherme Martins do Nascimento.
filhos, saldou as dívidas do "marido" e casou um dos seus filhos, em 1862, Pelo teor do testamento percebemos que ele desejava assumir a "negra jeje"
com Constança do Amor Divino Sá Barreto, mulher branca e de elite, filha (Constança) como mulher e, sobretudo, que esta se responsabilizasse pela
do tenente-coronel, Sá Barreto.U Em boa verdade diga-se que Salvador da educação da filha, gosto jamais alcançado. No testamento diz deixar metade da
Bahia foi a maior cidade do Brasil até ao século XIX e que algumas das suas sua terça a Constança, caso esta viesse viver em Salvador. Parte dos bens que
freguesias eram habitadas maioritariamente por negros, mestiços escravos, sobrevivessem à sua morte seriam destinados para a educação da filha. Joana,
libertos e nascidos livres. 24 Logo, as "relações menos convencionais" eram também referida como "Nobreza Preta': passou pelo colégio da Piedade como
encaradas com cada vez maior espontaneidade. A mestiçagem e as mutações pensionista em 1860 (ensino e pensão) e pelo Colégio de Santa Clara (ensino
que a sociedade vinha enfrentando levaram a que, na segunda metade do de aulas de desenho e piano). A sua passagem pelo convento insere-se numa
século XIX, apesar de alguns preconceitos, se assista à ascensão social do época em que as instituições religiosas se encontravam em ruína financeira.
mestiço (PRIORE, 2005, p. 218). Em 1854 deu-se início à reforma das ordens religiosas e às demais instituições
O outro caso reporta-se a João da Cruz Kopke Júnior, natural do Porto, da Igreja no país. Na maioria dos conventos reinavam a indisciplina, a falta d e
filho de João de Abreu Kopke que embarcou para o Brasil em 1834.25 Através administração, o desbarato dos bens e a intriga (NASCIMENTO, 1994, p. 367).
Em meados do século XIX a maioria das ordens religiosas femininas estava
a ser espoliada pela venda do seu património e o poder central fez-se sentir
19. APEB, Estante 9/cx 3788; doc. 11, fls 4v. 5 - Vitória assina em 1821 o termo de tutela dos com maior rigor e determinaçãoY Em 1868, Joana, com 18 anos de idade,
filh os, na presença do escrivão dos órfãos, Felician o Teixeira da Matta; fi. 7- 12: confirmam o foi pedida em casamento por José Pinto de Domingues (NASCIMENTO, 1994,
testemunho de Vitória.
20. APEB, Arquivos Judiciários I 04/1673/2143/03 - 1825., fi I e seguintes
p. 397). O status social que adquiriu permitiu a Joana que no seu nome não
21. APEB, Série Justificação, secção Judiciária 78/2773/07, 1826, foi. I. constasse a cor da pele- embora tivesse sido chamada de Nobreza Preta. 28
22. APEB, Tribunal de Justiça, Inventário Arquivos Judiciários 04/1 356/ 1825/33, 1834. Em 1891, depois da abolição da escravatura, D. Joana Baptista Kopke
23. O filho em questão é Eduardo Joaquim, çhamado de Eduardo Mulatinho - APEB, Série: viúva e sem filhos deixou os seus bens à irmã Maria Theodora dos Reis
Inventário, 5/ 1695/2 165/24, fls, no 15. A título de exemplo, para uma visão parcial, aconselhamos a
Kopke, os quais, depois da sua morte, foram entregues à sua escrava Camila
leitura do artigo de Jonis Freire, "Família, parentesco espiritual e estabilidade fam iliar entre cativos
pertencentes a grandes posses de Minas Gerias - séc- XIX': Afro-Ásia, Salvador, CEAO, no 46, Bernarda Kopke, que foi alforriada. Portanto, trata-se de uma condição quiçá
2012, p. 9-60.
24. PAIVA, Eduardo França. Territórios Mestiços e Urbe Escravista Colonial Ibero-Americana".
In: PAIVA, Eduardo França, AMANTINO, Marcia e IVO, lsnara Pereira (Orgs.). op. cit., 2011.
26. O tutor era João Caetano de Araújo Gama
p. 20-2 1. Schwartz mostra que em princípios do séc. XIX, os cativos na Bahia eram cerca de um
27. NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e Religião. As enclausuradas Clarissas do
terço dos mil habitantes da capitania, atingindo até 70% nas regiões de engenho. SCHWARTZ, Convento do Desterro da Bahia: 1677-1890. Bahia: Conselho Estadual de Cultura, 1994. p. 379.
Stuart. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade colon ial. São Paulo: Companhia das 28. Scott e Hébrard referem o mesmo para uma filha de Vincent e de uma mulher de cor,
Letras, 1988. p. 280. Elisabeth. In: SCOTT, Rebecca, Hf.BRARD, Jean M, "Rosalie Nação Poulard: Liberdade, Direito e
25. APB, Inventário Instante 6, Caixa 2566, m. 3066, doc. I, fi. L Dignidade na era da Revolução Haitiana'~ Afro-Asia, n• 46, p. 61-95, Salvador: CEAO/ UFB, 2012.
72 REliGIÕESEREliGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnaraPereira IvoIEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 73

incomum, dado que a escravatura já havia sido abolida e a escrava alforriada APEB, Tribunal de Justiça, Inventário Arquivos Judiciários 04/1 356/ 1825/ 33,
só anos depois. Decerto, m uitas d estas situações também fi caram a dever aos 1834.
laços de am izade consequentes de lon gos an os de convivên cia e d e graus de APEB, Série: Inventário, 5/1 695/2165/24, fls, no 15.
parentesco, como era o apadr inhamento de batismo do escravo por pessoas
de condição social elevad a, sem ter de passar por ligações amorosas (FREYRE, APB, Inventário Instante 6, Caixa 2566, m. 3066, doc. 1.
2012, p. 39). APB, Inventário Instante 6, Caixa 2566, m. 3066, doc. 1.
IV. Os episódios que enumeramos são fragmentários e a reconstituição
das trajetórias de vida só é exequível n a encruzilhad a de outras narrações REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
e quando lidas n os respetivos contextos sociais, políticos, econômicos e
culturais. Todos nasceram numa sociedade escravocrata, na qual as vidas ALVES, Adriana Dantas Reis. A s mulheres negras por cima. O caso de Luzia
se assentavam na exclusão e hierarquização sociais. Mas a Bahia do século jeje. Escravidão, família e mobilidade social - Bah ia, c. 1780 - c. 1830. Tese de
XIX n ão é mais a Bahia dos séculos precedentes. Trata-se de uma região que Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências
há muito fora destronada enquanto centro de produção de riqueza no Brasil Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2010.
independente. Embora o açúcar continuasse a ser um dos principais produtos ANASTASIA, Carla Maria Junho; BOTELHO. Ângela Viann a. D. M aria da
cultivados, outras regiões tinham já assumido a liderança econômica. A Cruz e a Sedição de 1736. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
privação de mulheres brancas e as uniões entre diferentes grupos criaram
AZZI, Riolando. Elementos para a história do catolicismo popular. REB.
um processo de mescla que podia passar pela vida em comum e procriação
Petrópolis: Vozes, s.d .
entre pessoas de culturas distintas.29 Não estamos em presença de um processo
linear, mas d e um sistema cheio de nuances, quase sempre traçado com base BENNASSAR, Bartolomé; MARIN, Richard. História do Brasil. Lisboa: Editora
em conveniências recíprocas: ''As dinâmicas de miscigenação conectaram Teorema, 2000.
boa parte do mundo na urbe american a, fundindo pessoas, objetos e culturas Boxer, C.R. A Mulher na Expansão Ultramarina Ibérica. Lisboa: Livros
proven ientes de todo o planeta" (PArvA, 2011 , p. 11). Horizonte, 1977.
De fato, a Bahia é um dos espaços de grandes marcas de mistura b iológica
e cultural. Os exemplos aqui discutidos mostram-nos como o escravo se tornou CASTELLUCI, Aldrin A. S. "Classe e cor na formação do Centro Operário da
um agente construtor do complexo conjunto cultural, inscr ito em intrincadas Bahia (1890-1930)': Afro-Ásia, no 41, p . 85-13 1, Salvador: CEAO/UFB, 2010.
relações sociais, nas quais as gentes conviviam em embaraçosas "experiências DOMINGOS, Petrônio. "Lino Guedes: de filho de ex-escravo a 'elite de cor":
de complementaridade, mesmo que conflituosas" (PAIVA, 2006, p. 84-85). Afro-Ásia, no 41, p. 133- 166, Salvador: CEAO/UFB, 2010.
FREIRE, Jonis. "Família, parentesco espiritual e estabilidade fam iliar entre
cativos pertencentes a grandes posses de Minas Gerias - séc. XIX': Af ro-Ásia,
fONTES
no 46, p. 9-59, Salvador: CEAO /UFB, 2012.

APEB, Estante 9/cx 3788; doc. 11. KRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial, vol I: 1808-
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Corpo no Brasil. Sâo Paulo: Editora da Unesp, 20 11, p. 79. Paiva destaca a q uestão americana, mas
no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2011 .
em n os~o entender o processo é global, o que não implica singularidades.
74 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnaraPereira Ivo IEduardo França PaivaIMarciaAmantino (orgs.) 75

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69-106.
San Martín de Porres: a construção de um
espaço mestiço na sociedade vice-reinei
do Peru através da prática religiosa

ELIANE GARCINDO DE SÁ

PRÓLOGO

O mulato Martín de Porres dedicou-se à vida religiosa, na qualidade de


danado na Ordem dos Dominicanos, na cidade de Lima, onde nasceu em 1579.
Através de sua prática na vida religiosa, foi reconhecido pela sociedade vice-
reina!, ainda em vida, como santo. Frei Martín nunca reivindicou ultrapassar os
limites impostos pela sua qualidade para acesso dentro da Ordem como o fez,
por exemplo, o Frei Francisco de Santa Fé, também mulato. Admitiu sempre
a sua condição de mulato e, segundo consta, ofereceu -se para ser escravizado
para solver problemas financeiros no convento de Nossa Senhora do Rosário.
Endossou a referência pela qual foi identificado por alguns religiosos e repetia
que era, sim, um perro mulato. Contudo, sua prática religiosa, sua atuação
como enfermeiro e curador de enfermos, para o que usava práticas trazidas
de sua experiência como barbeiro, como de seu conhecimento do herbolário
e métodos populares entre negros, mulatos, índios e mestiços, permitiram-
lhe uma circulação social ampliada na sociedade limense, estendendo sua
ação de cura sobre as mais diversas camadas dessa sociedade. Dentro e
fora do convento a santidade do mulato se impunha no convívio cotidiano.
Nosso objetivo nessa oportunidade é, através da sistematização da análise
dos depoimentos dos testemunhos do Proceso Diocesano, parte do Proceso de
Beatificacion de San Martín, 1 configurar um quadro do espaço construído

I. O Proceso Sumario, assim como o Proceso Apostólico, foi consultado no Arquivo Arcebispal de
Lima. Uma vez que nosso objetivo se concentra na primeira fase do processo, em que depõem os
testemunhos mais próximos e imediatos à vida e morte de frei Martín nos servimos diretamente
78 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 79

pelas práticas do santo curador mulato, reiteradamente citadas no processo. Martín não deixou escritos e não há registro de qualquer proselitismo
Particularmente é de nosso interesse observar as descrições dos testemunhos sistemático ou sistematizad o de princípio e /ou doutrina que tivesse
sobre atuação do Frei, identificando os aspectos dessas práticas que foram formulado. O que marca e forja a representação da imagem de santidade é
consolidando, ao mesmo tempo, a santidade de um mulato e a legitimação seu protagonismo, sobretudo sua prática e alguma observação ou comentário
de elementos mestiços como referência dessa santidade. Ou seja, a trajetória feito, relatado como enunciado por terceiro, como formulação representativa
de San Martín na conquista de um espaço mestiço. Esse espaço seria a do comportamento assinalado e referente às práticas das virtudes.
constituição, construção de uma representação, um espaço de representação,
de trânsito possível numa sociedade que naturalizava diferenças como critérios A C ONSTRUÇÃO DA BIOGRAFIA DO SANTO COMO CONSTITUIÇÃO DE
de escalas e prestígio social, assim como de impedimento, legitimidade, ESPAÇO DE MESTIÇAGEM
ilegitimidade para determinados lugares, através de indicação de qualidade e
condição estabelecidas a priori. A constituição de uma sociedade misturada, Martín de Porras, San Martín de Porres, nasceu em Lima, em 1579, de pai
compósita, forjou condições de mestiçagem, em que diferentes elementos de espanhol e mãe negra liberta. Na certidão de batismo consta apenas o nome da
sistemas de interpretações, representações, sentidos e valores se combinaram mãe e pai desconhecido. Em que pese essa situação, consta que o pai teve atuação
em estruturas, proporções e desenhos multifacetados e prismáticos, que na vida de Martín durante a infância, mas tudo leva a crer que, sobretudo pelo
permitiam o reconhecimento e ao mesmo tempo a estranheza, o conforto da fenótipo mulato muito próximo do negro, o que o d istinguia da irmã, "mulata
familiaridade e o desconforto do desconhecido. clarà', Martín não tenha sido assimilado mais intensamente no seio da família
Essa experiência histórica pode ser observada no cotidiano dos atores paterna. Deixando a filha Juana em Guayaquil, em mãos do parente Diego
sociais. Particularmente o caso de Martín de Porres pode estimular uma Marcos de Miranda, Juan Porras voltou a Lima com Martín, e o entregou a Isabel
reflexão sobre a proposta de interpretar a sociedade chamada colonial na García Michel mujer honesta y buena Cristiana. 2 Segundo os dados correntes,
América. Acompanhamos uma narrativa de uma história particular de entre 1587 e 1594 Martín deve ter vivido nessa casa em Malambo, parte do
inserção e participação social de um ator, em princípio desqualificado para bairro de San Lázaro, nas condições do cotidiano da Lima "negra", "pecadora"
ocupar um lugar legítimo nessa sociedade, lugar no século ao qual ele mesmo e "santa", a que se referem tantos textos da época. Em Malambo viviam homens
parece não almejar. Seu protagonismo o leva a atingir o ápice modelar dessa brancos, espanhóis pobres, índios e negros em "corralones", terrenos cercados
mesma sociedade: é reconhecido como santo. guardados por cachorros, em choças. Talvez tenha aprendido a ler e escrever
Estamos considerando diversos estudos, comentários e biografias relativas por essa época. Ingressou, segundo os registros biográficos reiteradamente
a San Martín de Porres que compõem as referências bibliográficas, algumas citados, junto ao cirurgião Marcelo de Ribera com quem aprendeu do ofício,
indicadas no decorrer do texto. Destacamos especialmente algumas durante a mas há também referências a contatos, menos prováveis ou significativos, com
exposição, indicando em cada situação as justificativas para as escolhas. um conhecedor de plantas em Guayaquil, onde esteve com o pai por algum
Os registros testemunhais do Proceso Sumario (PROCESO DE BEATI- tempo e com o farmacêutico Mateo Pastor, em Lima. Também teria aprendido
FICACIÓN, so) constituem o eixo de análise, fornecendo referência e paradigmas o ofício de barbeiro. Esta seria a trajetória e formação de quem se tornou
que serão explicitados no decorrer do texto. versado no herbolário popular, o que, então, significava o conhecimento dos
usos das espécies e das práticas de aplicação das ervas e formas de tratamento
tanto "indígenas': como "africanas" e "espanholas': 3
do Proceso Diocesano e o fazemos aqui através da publicação acima citada, fruto da transcrição
das fo tocópias dos originais do referido Proceso, com Introdução de Fray Tomas S. Perancho e
apresentação de Fray Norbert, O.P. Esse volume contém o Proceso Diocesano, o documento
encaminhado pelo Procurador Geral da Ordem dos Predicadores, Fray Antonio Estrada O.P. para 2. Seguimos, em geral, as referências biográficas de José Antonio del Busto Dhuturburu (2001 )
a Sagrada Congregacão de Ritos em Roma, documentos declaratórios produzidos entre 15 de Sua obra sistematiza a produção biográfica sobre Martín de Porres e o faz com ampla indicação de
maio a 14 de julho de I 660, declarações de 1664; os documentos encaminhados por Fray Lorenzo informações, citação e referência de fontes, seguindo as direções de argumentação a que se determina.
Munoz e a declaração de Juan de Parra, de 1771 . Essa documentação constituiu a base para a Faremos observação oportuna quando o cotejo com outras abordagens impuser essa necessidade.
abertura do Processo Apostólico, fase seguinte par beati ficação e posterior canonização. 3. Sobre as práticas de cura de Martín ver especialmente, Fernando lwasaki Cauti (2010).
80 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira IvoIEduardo FrançaPaivaIMarcia Amantino (orgs.) 81

Registros posteriormente citados assinalam que desde muito cedo En 2 de junio de 1603 hizo donación de sí a este convento para todos los
Martín demonstrava um perfil religioso, caridoso e abnegado, que se associou días de su vida e] Hermano Martín de Porras, mulato, hijo de Juan de Po rras,
crescentemente ao exercício do ofício guardando essas características, inclusive natural de Burgos, y de Ana Velásquez, negra libre; nació en esta ciudad y
após ingressar no convento em 1594. prometió este día obediencia para toda su vida a los Priores y Prelados de este
Essa imagem das características da infância e juventude de Martín, convento, en manos dei Padre Fray Alonso de Sea, suprior de é! y junta mente
provavelmente forjada a posteriori, está em consonância com as representações hizo voto de castidade y pobreza, por que así fue su voluntad, siendo Prior de
das virtudes da santidade evidenciadas pela continuidade da prática do este convento e! muy Reverendo Padre de la Serna, Maestro de lo Novicios, y
ofício de barbeiro, exercida de maneira informal, embora sob controle e e! Padre Fray Luis Cornejo y otros muchos religiosos y firmólo de su n ombre
acompanhamento de profissionais, como acima se mencionou, antes da Fray Alonso de Sea Hermano Martín de Suprior Porras. (VARGAS UGART E,
ingressar na vida conventual. Bustus Dhuturburu observa que ainda que 1961, CAP V, p. 38). 4
Martín não tivesse título outorgado, não teria sido autodidata, mas a aquisição
de sua autêntica profissionalização ocorreria no convento. A abertura dos '1\.utos e Diligencias .. :· do processo de beatificação nomeia
Martín conviveu com as camadas menos favorecidas da sociedade o "Venerable Hermano Fr. Martín de Porras, Religioso donado que fue dei
vice-reina!, com contingentes étnicos e sociais variados e misturados em dicho convento .. :' (PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p. 15). A indicação do nome
uma cidade na qual as tentativas de separar esses contingentes, seja por do pai nesse documento, em contraste com a ausência na certidão de batismo,
medidas normativas direcionadas à população genericamente negra, mulata . já sugere que este tenha reconhecido Martín, posteriormente. Consta, ainda,
ou zambahiga, seja pela criação física do cercado de Lima que visava a que Juan de Porras teria feito solicitação para que Martín passasse a ser
isolar os indígenas, jamais chegou a realizar o intento de separar os espaços irmão leigo, a que o próprio Martín se teria recusado. Se verídico ou não esse
físicos de circulação e muitas vezes de fixação de seus habitantes da forma acontecimento confirmaria a tônica da narrativa do protagonismo de Martín
asséptica que pode transparecer como utopia nas circunstâncias da Lima de de Porres, em sua aceitação plena de sua condição e qualidade, conforme se
trânsito e convergência demográfica dos séculos XVI E XVII. As condições poderá observar na sequência expositiva.
de constituição de Malambo e San Lázaro, como se registrou anteriormente, Os registros apontam que frei Martín de Porras, depo is chamado Porres,
demonstram a convivência entre grupos e etnias diversos. viveu no convento, na condição de irmão donado até sua "santa" e "feliz" morte
A entrada de Martín no Convento Grande de Nossa do Rosário se dá em em 1639 aos quase 60 anos de idade. Antes da profissão religiosa, em 1603,
1594 por influências várias. As alegadas justificativas da escolha na constituição Martin viveu no convento, onde ingressara em 1594, como observa Bustos
de uma hagiografia vão desde influências pessoais, proselitismo de religiosos, Dhuturburu (2001 , p. 58, tradução nossa) "pobre e obscuramente': o que
interferência ou manifestação da Virgem, mas não há como responder à justificaria a ausência de informações particularizadas sobre esse período. O s
questão senão pela suposição. registros apontam que exerceu sempre o ofício de barbeiro e teria alcançado a
Não se pode, no entanto, imaginar que Martín desconhecesse as condições função de enfermeiro menor.
sob as quais ingressava no convento: entrava na qualidade de aspirante, sem A função de barbeiro foi condição relevante na biografia de Martín,
possibilidade de alcançar o sacerdócio. Como bastardo e mulato não poderia ser, apontando a prática de cuidados aos doentes e o dom de cura. Entre outros
ao menos, irmão leigo. Tendo a Igreja aceitado a capacitação de índios, negros e atributos que se apresentam na construção da santidade de Martín essa é uma
mulatos, ingressos como "profatre laico", "danados': "oblatos" ou "conmisos", para referência marcante.
proferir votos de obediência, pobreza e castidade os "danados" passam a poder Não se pode precisar em que momento se forja a figura de santidade
usar o tratamento de Frei, sem, entretanto, receber o sacramento da Ordem. de Martín, mas fato é que, segundo as inúmeras biografias e, sobretudo
Assim, Martín faz profissão religiosa em 1603. Será conhecido como Frei Martín. observados os depoimentos de coletados no Proceso Sumario de beatificação,
O registro da profissão esclarece, de forma cabal, as qualidades e condições essa santidade se manifesta e é socialmente reconhecida durante a vida do frei,
com que se apresenta Martín de Porras na vida religiosa. Está anotado no Libro
de las Profesiones de los Hijos de este Convento de Nuestra Sefzora dei Rosario de
esta ciudad de Los Reyes: 4. Ver DH UTURBURU, 2001, p. 59.
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira IvoIEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 83
82

havendo, de acordo com os depoimentos dos testemunhos uma expectativa reforçam essas informações, com as descrições das manifestações de regozijo
de confirmação dessa santidade por ocasião de sua morte. É recorrente nas pela noticia da autorização d a abertura do processo de beatificação.
hagiografias um quad ro modelar de práticas e virtudes, assim como de sinais Alguns depoimentos evidenciam a visibilid ad e que o frei tinha fora
de evidência da santidade, o que inclui o que o poderíamos, talvez, apontar do convento e em outros conventos religiosos, onde sua vida d espertava
como "comportamento" do corpo do finado santo. A expectativa descrita ~ela curiosidade. A fonte "medular" (DHUTURBURU, 200 1 , p. 11 ) para o estudo da
testemunha se funda na estrutura desse quad ro de evidências que deven am biografia de Martín de Porres é o Proceso de Beatificación, já citado e indicado.
ser observadas no corpo, após a morte de um santo, como exalar odor suave As biografias que surgem ainda no século XV11, incluindo a produzida por
e agradável, por vezes com notas de flores, e ausência de enrijecimento, o que Frei Bernardo Medina (1663), talvez a mais citada, ele mesmo depoente no
tornaria o corpo "tratável". 5 Proceso Sumario, são sobreposições dos dados referidos e constantes nesse
A santidade de Martín se manifesta nu m contexto de intensa religiosidade Proceso Diocesano. Ao longo do processo de construção da hagiografia, entre
e em paralelo àquelas de Santa Rosa, criolla limenha, San Juan Macias, o XVII, passando pelo XIX, em que Martín se torna beato, por meados do
Francisco Solano, San Toríbio de Megrovejo, entre os canonizados, que XX, quando é canonizado em 1962, e incluindo publicações e republicações
conviveram na Lima vice-reinal e cujos processos de beatificação correram já nesse século XXI, o que se observa é que esses depoimentos constituem a
na mesma ocasião, alguns concomitantemente. Sem contar com tantos beatos, base de historietas construídas sobre os fatos narrados pelos depoentes, que se
santos e visionários, incluindo alumbradas, não reconhecidos pelas instituições apresentam, com adaptações e reinterpretações, de acordo com os diferentes
eclesiásticas, mas sim pela sociedade ou por determinados setores ou grupos objetivos de divulgação e compati bilização das circunstâncias, como a
mais específicos ou particulares. 6 narrativa da santa vida d e Martín de Porres. Numa biografia reconhecida e
Os depoimentos, seja pela presença de alguns depoentes, seja pelo teor apresentada como oficial pela Ordem Dominicana, cuja versão original, I
d as info rmações que fornecem, indicam que o frei se inseriu numa rede de Fioretti del Beato Martino, publicad a em inglês, na sua primeira edição em
extensão social significativa e importante, seja pela qualidade de personalidades 1963, após a canonização de Martín, St. Martin de Porres Apostle o f Charity, a
mencionadas, seja pela quantidade de pessoas citadas. As narrativas do funeral autora faz as seguintes considerações:

These .fioretti are neither a chronological nor a criticai story of the life of
s. Transcrevemos um dos depoimentos que expressa a expectativa da manifestação da santidade Martin de Porres. They are episodes taken from the testimony given during
na ocasião da morte de Martin de Porres:, "Lo sexto, en dicha muerte vio este testigo como a las
the process of beatification. The persons who gave the testimony had known
tres 0 cuatro de la maõana, habiendo fa llecido a prima noche, estando como de costumbre a la
iglesia que es el sitio donde se ponen los religiosos luego que mueren, hasta ~ue ~e I e hacen las Martin during his life time and they were asked to state under oath what
exequias y llevan a la sepultura, y estándolo acompaõando y velándole los demas rehgwsos d~ este they knew about h im . It is certain, therefore, that these witnesses faithfully
convento, se llegó este testigo ai cuerpo, y tocándole se halló tan duro y intratable que, adm trado presented the facts as they knew them. The events were too extraordinary to
y llevado de amor que !e tenía ai dicho hermano fray Martín, sobre conoci mient~ de su vtrtud Y
buena vida, !e dixo en presencia de todos y en voz alta que oyeron muchos: ? ;.Como, Hermano, be forgotten, especially sin ce so little t ime had elapsed since they happened.
vino tan yerto e intratable, a tempo q ue se acerca el dia y está la ciudad toda prevenida a v~ros Y The sole justification for the presentation ofthese extraord inary details of the
alabar a Dios en vos? Pedidle ponga este cuerpo tratable, para q ue le demos muchas gractas ~:n life o f Martin de Porres - inexplicable from any natural point o f view - is the
ello". Caso raro, a penas se pasó un cuarto de hora, cuando de reconocimos más tratable y dócil
person who em erges from the sworn testimony o f the witnesses. The inclusion
e! cuerpo que cuando estaba vivo, y le levantamos y sentamos como cualquier hombre vivo. Con
q ue, entrando la ciudad po r la maõana en nuestra iglesia le reconocieron no sólo en la form a o f such details is natural and eve n necessary, for no portrait o f the Saint would
dicha, sino exhalando de si una fragancia tan grande q ue embelesaba a los que se acercaban, .Y be complete if these exterior manifestations of his sanctity were omitted.
Ie hacían pedazos la ropa que tenía, de manera que fue menester vestid o muchas veces y pedtr We can accept, and even enjoy, these amazing details, knowing that the
guarda especial para el cuerpo .. :' (Fray Cipriano de Medina. Proceso Sumario, P· 91 -92). ·-
authentic sanctity o f the Dominican Brother o f Lima rests on an other basis:
6. A profusão da presença de santos no universo ibérico se observa não apenas ness~ regtao,
mas se estende desde a península e alcança expressão significativa também na Nova Espanha, the constant and heroic practice of the virtues, and principally that charity,
embora, ali, apenas um santo tenha sido canonizado já no século XIX, entre nove "siervos de Dios", the virtue which unquestion ably marked his whole life. (CA VA LINI, 2000, p.
postulantes entre os séculos XVII e XVlll. Veja-se especialmente os capítulos La función socia l de VIII)
los santos e Nueva Espana, una tierra necesitada de maravilla, Antonio Rubial García, 1999.
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃOEMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 85
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Essas observações seguidas de outras considerações relativas ao culto características da construção e difusão, tanto do reconhecimento da santidade,
contemporâneo de San Martín, no contexto de sua canonização e na associação como do culto, o que se faz em etapas, tempos e dinâmicas particulares.
de su a vida com as vitimas de preconceitos raciais, do ponto de vista de Considerando nossos objetivos, de captar os primeiros depoimentos, por
uma análise historiográfica, deixam de observar parâmetros importa ntes, constituírem as informações mais imediatas, oriundas do Proceso Sumario,
mas também permitem perceber que as fontes para a análise do caso estão observamos que deve haver cautela na leitura e análise desses registros, além
sempre ancoradas nesses testemunhos, interpretados e reinterpretados através dos itens já indicados por Busto Dhuturburu ( 2001, p.l2). É preciso ter em
desses "episódios" que se criaram pelos registros, impressões e representações mente os objetivos do processo: convencer a Sagrada Congregação de Ritos
constantes no Proceso de Beatificación, (re)criados através de séculos. do mérito da causa, como já se atentou. Nesse sentido, Busto Dhuturburu faz
É preciso observar que é através do próprio Proceso e seus registros que uma observação importante e que reforça o cuidado com os registros. No caso,
são evidenciadas as alegadas bases da autêntica santidade de Martín. Portanto, a reflexão incide sobre a dimensão e abrangência do que aparece tantas vezes
os "episódios" não constituem apenas interessantes detalhes, mas são as únicas mencionado nos depoimentos acerca do que se sabia de Martín, ou seja, da
evidências que podem apontar o entendimento da vida de Martín como uma repercussão da santidade e/ ou das virtudes, o que é mencionado tantas vezes
vida santa. Os episódios são uma construção a partir dos "Autos y Diligencias, como "público y notório, pública voz y fama': Observa esse autor que o espaço
fechas de pedimento del Procurador General del Convento de Sto Domingo de urbano, a Lima em que transitava Martín era o território d a Praça de Armas
esta Ciudad sobre las info rmaciones de la santa vida y virtudes del Venerable e adjacências, entre o convento do Rosário o bairro de São Lázaro, a rua dos
Hermano Fr Martín de Porras, Religioso danado que fue del dicho Convento ..:' Mercaderes e o recolhimento de Santa Maria Madalena. Segue o autor:
(PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p. 15).
Esses episódios são retomados e se apresentam muito marcadamente Si bien Fray Martín de Porras no fue un desconocido para la capital, tampoco
na devoção introduzida nos Estados Unidos, a partir do século XIX, quando, tuvo una popularidade avassalante, total. Había gente que nunca había oído
segundo a mesma biógrafa, Frei Barotti erige uma capela em Washington como hablar de él, que jamás lo había visto. Donde verdadeiramente era figura
um centro para afro-americanos. O patrono da paróquia, San Martín de Porres, foi familiar era en el barrio se su convento. Allí su aceptación corrió entre los
escolhido "como modelo e símbolo de esperança para aqueles que sofriam como ricos y los pobres, llegó a máximo entre os enfermos y desvalidos. Por eso
vítimas de preconceitos raciais". (CAVALLIN I, 2000, p. vm, tradução nossa). su figura, más que a Lima, perteneció a la plazuela que antafio se nombrara
Estamos, pois, de volta ao possível espaço de visibilidade da expressão Maria Escobar, a la calleja dei Pescante, ai callejón de la Rinconada y essas
das relações sociais, marcadas pelas diferenças raciais, que se expressam calles que ya se llamaban, o lu ego se Jlamarían, de la Veracruz, de Matavileta y
na vida de Martín, tal como relatada através dos testemunhos, passíveis e dei Pozuelo, de los Afl igidos, de la Palma, dei Correo y de los Pueblos Azules.
possíveis à ap ropriação como fundamento de uma questão social e política Sin embargo, en el lugar donde fué más conocido y observado fue en su
posterior. Historicidades diversas, princípios e dinâmicas culturais distintas se próprio convento. Los frailes lo at isbaban de frente y reojo; más todavia·,
sustentam na construção da representação da santidade de Martín, projetada lo espiaban para conocer los secretos de su extrafia vida. Pero, a su vez, no
pelos coordenadores do Proceso que deveria evidenciar, pela formulação pocos superiores lo buscaban para pedirle consejo. Porque Fray Martín no
das perguntas, dirigidas ao propósito, o encaminhamento do processo de fue solo un barbeiro sangrador y un enfermero con mando en la rope.ría,
beatificação e canonização. sin o que, pese a sus pocas letras, también fue un hombre de consulta para los
Possivelmente, a naturalização da representação que emerge dos registros, frailes jóvenes y viejos.
depoimentos de testemunhos, produz um filtro de opacidade na compreensão Su figura, ocasionalmente, fue asimismo compatible con el paisaje de
do acontecimento. extramuros. Con su bordón a la mano y el sombrero pajizo a la espalda, se
Compreender a arquitetura da construção social da imagem do santo,
le vio animoso entres lugares camperos: capoteando becerros en Amancaes,
a inserção do sujeito, ator histórico em seu contexto, a repercussão da ação
sembrando olivares en Limatambo y visitando a p ie la pescadería de Surco.
e construção da imagem e representação que se construiu ao longo da vida
Indios y negros se beneficiaban con estas exéursiones furtivas, pues eran
e após a morte d o presumido santo exige considerar o percurso da própria
objeto de sus ensefianzas y curaciones. (DHUTURBURU, 2001, p. 13).
construção dessa arquitetura. No mínimo devemos atentar para as condições e
86 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)
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Essas considerações de Busto Dhuturburu ( 2001) merecem citação, uma de análise, é relevante para se pensar na consolidação do reconhecimento
vez que traduzem o trabalho deste autor n a historicização do protagonista e no inte~sificação. e ampliação da notícia e consolidação da representação d~
cuidado no tratamento do tema. Resultam da interpretação de informações santrdade, assrm como da divulgação, persistência e imposição do culto ao
diretas sobre Martín para situá-lo no esp aço imaginado sobre um território santo. O Proceso aponta para um momento específico, particular, relevante,
e uma geografia descrita em diversas fontes sobre a cidade e permitem a r.ev~lador de .riq~íssimos detalhes e registros, mas não pode ultrapassar seus
construção de um fio de narrativa que organiza os esparsos "flashes" da vida hmrtes constttutrvos, como uma etapa na longa construção da santidade. No
de Martín disponíveis. caso em p auta, a beatificação vai ocorrer dois séculos depois de instaurado
Observamos mais uma vez, entretanto, que estamos sempre girando em o pr?cesso e a canonização após três séculos. Mesmo assim, as informações
torno dos testemunhos do Proceso, a cujos objetivos precípuos também já nos relativas ao Proceso continuam a ter primordial relevância. 7
referimos. Esse processo é construído a partir da autoridade do Convento: A grande cur iosidade dos conventuais sobre Martín se destaca de modo
inc?nteste nos d.ep?imentos. Não se pode deixar de observar que também se
Autos y Diligencias, fechas de pedimento dei Procurador General dei regrstra uma cunosrdade por parte d e religiosos de outros conventos em relação
Convento de Sto Domingo de esta Ciudad sobre las informaciones de la a ~~rtín. A esse olhar perscrutador e recorrente sobre Martín por parte dos
santa vida y virtudes dei Venerable Hermano Fr Martín de Porras, Religioso rehgwsos no convento pode-se acrescentar uma certa atitude provocativa, por
donado que fue dei dicho Convento... (PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p. 15). vezes arrogante em ?ireção a Martín, decorrente de uma apontada e pressuposta
estranheza de sua vrda. Por que essa sensação de estranheza constante?
De modo inequívoco, todos os depoimentos convergem para o objetivo Também se registra, em algumas ocasiões, a suspeita de que as atitudes
explicitado: informar sobre a santa vida e virtudes de Martín. As informações de M~rtín fossem dissimuladas, quando deixavam transparecer humildade,
sobre o território em que transitava o frei, como todas as demais informações de~poJam~nto e o utras tantas virtudes de maneira tão radical que provocavam
também decorrem das informações do processo. Esse aspecto levantado por assrm tal trpo de reação por parte de alguns membros no convento, conforme
Bustos Dhuturburu (2001) deve ser comentado. Se o recorte reproduz as se pode perceber em alguns depoimentos.
demarcações dos depoimentos, no que diz respeito à circulação e trânsito Mesmo considerando que não seriam chamados a depor os que não
do frei, também se observa a referência a limites m ais amplos na paisagem reconhecessem as virtudes necessárias em San Martín, alguns detratores de
"extramuros'~ Deve-se também considerar que a intensa circulação que Martín parecem ter existido. Alg uns aparecem em depoimentos de testemunhas
alcançava o interior do convento funcionava como uma caixa de ressonância com o atos. propositais ~ara oportunizar a manifestação das virtudes, 0 que
de aspectos da vida conventual para o exterior, ou seja, para a cidade, o que os resguardana o responsavel pelo ato, e retiraria certa carga negativa. Isso
depoimentos deixam subentender, mas que deve ser entendido com cautela,
enquanto não se têm outros registros como contraponto.
Essas referências não são pouco importantes quando estamos observando
7. Os processos de .beatificação e canonização têm uma tramitação complexa e demorada,
a inserção desse frei mulato que vai sendo tido e percebido como um santo marcadamente a partir das regulamentações de Urbano VIII, e desenrolam uma não menos
nessa sociedade tão variada na sua composição étnica, em que nascimento e complexa articulação política inslilut:iunal entre e no seio da Igreja, como no âmbito do Estado. Em
origem constituem critério classificatório para hierarquização social. Por onde 1780, um inf?rme explicava a"Carlos III a situação das dezessete causas de veneráveis promovidas
ele passa, onde atua, com quem se relaciona e em que termos e condições são desde a Amen ca. O quadro Procesos de venerables americanos ante la Santa Sede durante el
periodo virreinal" apresentado por Garcia (I 999) aponta um total de I 9, sendo 9 no vice-reino
indicadores importantes p ara constituir nosso quadro de registros.
de ~ova Espanha e lO no Vice-reino do Peru. Destes todos apenas 2 canonizações se efetivaram
Se considerarmos, ainda, o espectro da amplitude da repercussão e no sec~lo XVII, no Peru, e 2 no XVII, também no Peru. Alguns não foram ao menos beatificados
conhecimento da atuação e reconhecimento d a santidade de Martín, em e no seculo XX, na data da elaboração do quadro, registra-se a canonização de Mariana de
relação à abrangência que alcança na cidade, talvez seja interessante observar Jesu.s, de Qmto, em 1950, e de Martín de Porres em I962. Lima, em 1962. 12 postulantes são
penmsulares, 6 cn oll.os e I mulato - San Martín. Ver especialmente Antonio Rubial Garcí, 1999, p.
também que a constituição e toda a tramitação do processo obrigatoriamente
86-~7 .. Observe-se, amda, uma distância temporal que interfere, do ponto de vista de uma análise
devem ter tido uma função importante, potencializando a ampliação desse htston ca, na _compreensão da inserção dos s~to e cultos, obrigando a uma cuidadosa delimitação
espaço. Esse aspecto, aqui apenas lembrado, não constituindo nosso foco e constderaçao de contextos, conJunturas e dtmensões de registros.
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enfatizava de todo modo, o lado positivo do frei. Outros até se apresentam ou um lugar nesse espaço. O reconhecimento desse lugar, nesse espaço se dá pela
são aprese,ntados mesmo como verificadores, indicando c~mo objetivo testar definição de um prisma de figuras. Entre as multifacetas projetadas por esse
as alegadas virtudes, o que também pode visar favorecer as tmagens, dentro do prisma vamos tentar ver as que projetam luz sobre a qualidade - mulato - d a
contexto do Proceso, seja do provocador, seja do santo. figura.
Os indícios da santidade de Martín apontados nos depoimentos para Essa visibilidade da "mulatice" e da estranheza de hábitos e práticas
formar a figura do santo são vários e se completam e articulam .n a ~o~fi.gu~ação distantes e distintas do comum, dos outros, que assim não merecem registro, é
do personagem e seu protagonismo. Aqui vamos nos restnng1r a 1dC1a do aspecto central na narrativa que vai se constituindo no desenho da(s) figura(s)
que pensamos chamar um "espaço de mestiçag:m", se~pre p~ess~pondo sua de Martín santo, sobretudo, através do tempo. É a presença dessa qualidade
complexidade de construção,, na qual _se" mamf~sta ~ mter~a~b10 en~re ~s no traçado desse desenho que parece natural na sua estranheza e, sustentando
aportes étnico-culturais a traves da atuaçao espontanea das prattcas.rela~wnats o Proceso Sumario, como componente da santidade, se impõe com força em
e articuladas resultantes do trânsito e traduções de tantas dtverstdades distintos momentos.
conviventes e que ganham forma e objetividade nas ações dos ~tores s?~iais É possível detectar nesse corpo de registros onde e corno irrompe a
em seus contextos onde se viabilizam nos corpos, nas falas, açoes, praticas, qualidade - mulato - de Martín de Porres, identificando através dela o lugar
enunciados, os possíveis resultantes da realização da vida no mundo, como reconhecido do mulato frei Martín de Porras, em que se introduz, apresenta
espaço humano, desses seres contingenciados pelos limites impostos pelas e atua através de suas práticas próprias, que agregam e reordenam na mistura
negociações de tantos possíveis e prováveis que se tensionam. Encontram -se, no as diversidades que esse ser, considerado também misturado, por descender
âmbito da sociedade que se forja na capital do vice-reino, homens e mulheres, de grupos autorreferenciados como diferentes, distintos, herdou e realizou no
elementos culturais em práticas cotidianas de experiências e representações, seu fenótipo e nas suas formas de viver e compreender o mundo. Esse é o
sejam, genericamente, espanhóis, índios e negros, redimens~onados pela "espaço da mestiçagem" na sociedade vice-reina!. Não se pretende que esse
interação entre grupos e subgrupos que aportam aos novos cOnJuntos ~~e se reconhecimento se faça com atribuição de legitimidade pela neutralização da
formam nas previsíveis e imprevisíveis teias de relacionamento as suas prattcas, diferença, elemento privilegiado na representação social em que se insere, mas,
interesses, sentidos e referências. Esses grupos que se tocam, se chocam e ou se talvez, muito pelo contrário, transformando a diferença, pela ótica vigente, em
mesclam apresentam-se uns aos outros pela simples forma e manifestação de justificativa de sua própria irnposição. 9
estar em seu contexto de inserção. Independentemente da reação positiva ou A ambiguidade da legitimidade da "rnulatice" de Martín vai se manifestar
negativa que qualquer desses elementos possa provocar entre os de~1ais, esse de distintas e elaboradas formas, não apenas nas circunstâncias históricas em
estar em relação no conjunto de práticas sociais obriga ao reconheomento de que o "acontecimento" no sentido foucaultiano se apresenta, mas por séculos,
si e de tantos outros, das formas em que se apresentam, diante da visibilidade na apropriação de sua figura e culto não só no Peru, mas ainda numa extensão
social imposta na dinâmica da vida que se opera no dia a dia, nesse caso, no do culto a partir do século XIX nos Estados Unidos, e no redirnensionarnento
desenho urbano da Lima dos finais do século XVI e avançando no XVII. dado à figura e culto pela canonização em 1962. Ora o santo expressa humildade
Esse espaço é o espaço de circulação de Martín, o mesmo que o to~na na aceitação de sua qualidade e condição, ora se transforma em símbolo da
visível. A visibilidade que alcança é fruto de sua prática religiosa, exerctda igualdade racial t:: justiça social, ora é um humilde mulato, ora um negro que
e reconhecida na sua condição de mulato, curador, virtuoso, ainda assim, redime preconceitos e neutraliza confrontos, mas isso já são outras histórias.
"mestiço biológico" porque é sempre o mulato, mestiço cultural, porque se
serve de recursos culturais, de saberes misturados, e mestiço religioso, porque
é assim, mulato, mestiço que é virtuoso e santo.
O mestiço, no caso em pauta o mulato, mulato Martín de Porras, o frei chamados domi nicanos, dom in i cane, cães d o senhor, em alusão a um sonho da mãe do fundador,
8
Martín de Porras, o San Martín de Porres, o "perro mulato" dos domini cane é próximo a seu nascimento, quando teria visto um cão que trazia uma tocha acesa na boca,
irradiando grande luz sobre o mundo.
9. Entre os esforços de enfren tar essa questão é obrigatória a citação de trabalhos que foram de
grande importância para as reflexões aqui propostas como as obras de Fernando Iwasaki Cautí,
8. A ordem dos predicadores foi fundada por São Domingos. Seus membros também foram 1994. p. 159·184, Celia L. Cussen, 1999 e 2006, e Rafa el Sánchez y Co ncha Barrios, 2002, p. 316.
90 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 91

Embora seja possível resgatar a voz de negros e mulatos em muitas e na relação social a partir da condição que lhe confere sua qualidade como
reivindicações, queixas, denúncias, se entre os mestizos 10 contamos com mulato.
textos de época que nos apresentam registros de reflexões provocadas por tal Essa qualidade e condição ao que parece se apresentaram em tensões
qualidade, com o, por exemplo, os produzidos pelo Inca Garcilaso de la Vega expressas nos depoimentos. Nem o frei nem aqueles que conheceram e trataram
e os atribuídos a Felipe Guaman Poma de Ayala, não conhecemos registros com o frei deixaram de reconhecer na figura que ia se constituindo como a de
similares para os mulatos. 11 um santo, p ara muitos, que ele não era um religioso pleno e um homem de
Observe-se que na configuração de uma identidade nacional peruana situação social plena. São muitas as referências constantes nos depoimentos
não se incorporou, senão muito m ais recentemente, e com muitas reservas sobre a expressão "perro mulato" com que alguns se referiam ao frei Martín. o
a presença negra e descendências. Essa situação é relevante na definição de próprio frei Martín, de acordo com depoentes, autodenominava-se assim. Se a
discursos fundadores e/ ou redefinidores, construção e resguardo de memória aplicação da expressão pode ter intenção de demarcar negativamente 0 sujeito,
e tratamento dos protagonistas de referências históricas cuja presença seja pode-se avançar na reflexão.
indelével e conflituosa diante de escolhas e projetos de mo dernização no seio Vejamos os sentidos que tomava esse uso, sempre através dos testemunhos:
da sociedade "nacional" em processo. ele indicava, de forma repetida, uma forma de humilhação cujo contraponto é
A grosso modo, pode-se observar que a permanência da figura de San ~empr: a humildade. Po~ várias vezes o termo é empregado para humilhar ou
Martín tenha se assegurado n o imaginário religioso graças à uma continuada testar - no caso a humildade do frei - e ele aceitava e agradecia a nomeação,
ausência de contextualização da construção histórica da figura de santidade, reconhecendo-se, sendo humilde, enquanto humilhado.
o que seria facilitado pela característica de atemporalidade atribuída pelo No entanto, invocando o sentido da expressão que passou a denominar
sentido religioso ao fenômeno da santidade. Essas circunstâncias permitiram os m.embros da ~rdem, c.omo dominicano - do mini cane - o desejo de ser um
ou facilitaram e de certa forma levaram à diluição do papel da qualidade seguidor fiel de Sao Dommgos p oderia justificar a aceitação de ser chamado de
mestiça como fator de relevância na constituição da figura do santo em seu perro mulato -o que implicava humildade e a viabilidade de que também um
tempo, mesmo estando ela no centro, no cerne da arquitetura da construção mulato pudesse ser um cão do senhor, legitimando a presença desse mulato
da imagem da santidade desse santo. entre os demais dominicanos.
A p artir d a leitura do Proceso Sumario, fonte citada e principal de A consideração da recorrente expressão "perro mulato" permite avançar
inúmeros estudos sobre o caso, nosso propósito é trazer a questão da qualidade no trato do tema. Segundo os registros, Martín reagia positivamente e até se
- mulato - do limbo para o foco central como tema. Uma vez que a qualidade autoaplicava a expressão, conferindo-lhe um sentido próprio. Assim, ser u m
e condição de mulato do frei é admitida de forma constante e indubitável na perro ~ulat? era admitir o p ertencimento ao corpo religioso, ressignificando a
construção da representação do santo, trabalh amos sobre esse eixo. expressao, d istorcendo o sentido negativo e redimensio nando a participação de
Uma vez que essa qualidade definiu uma condição específica para a um mulato, que, embora apenas um "donado" terminava por ser reconhecido
inserção de Martín no contexto da vida religiosa, não tomamos qualidade e como ~m c.ão do s_enhor, um cão mulato, mesclado, mestiço. O registro seguinte
condição como elementos naturais, mas como referências historicamente podena ate sugenr um pouco mais que humildade por parte do santo:
definidas.
O m arco de delimitação da qualidade de Martin de Porras está definido Y así mismo supo este testigo cómo estando enfermo en cama de achaque
pela forma de inserção na Ordem dos Predicadores. Martín é um "religioso de un mal que le había dado en una pierna, el P. fray Pedro de Montesdoca,
donado", não é um religioso pleno, impedido por sua origem mesclada de religioso del d icho Orden de nuestro Padre Santo Domingo, entró a servirle
sangue de negro. Assim, tem uma p articipação definida na vida conventual e! dicho hermano fray Martín, y por no sé que nifleria que sucedió en
la celda, se enojo com él e! dicho fray Pedro Montesdoca y lo deshonró,
diciéndole que era un perro mulato y otras malas razones, a lo cual se habia
lO. Como mestizos são designados os fil hos de índio(a)s e espanholas(óis).
I 1. Algumas reflexões sobre a questão podem ser encontradas em: SÁ, Eliane Garcindo. Mestiço;
salido riendo de la celda el dicho Hermano fray Martín. (PROCESO DE
entre o mito, a utopia e a história - reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, BEATIFICACIÓN, p. 84).
2013.
92 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva 1Marcia Amantino (orgs.)
93

Os depoimentos ressaltam que a qualidade mulata de Martin nunca O depoimento do frei Cipriano de Medina aponta para os paradoxos
foi desconsiderada diante dos limites que lhe impunha sua condição. dessas relações, na circunstância em que o frei é instado a atender ao Arcebispo
Nesse sentido, o reconhecimento dessa condição constituía evidência de do México Don Feliciano de Veja, atuando através do dom da cura, em que
humildade e legitimava a presença e a atuação de Martín. Vejamos como tanto diversificava as formas de tratamento:
essa situação transparece no exemplo do testemunho de frei Fernando de
Aragonés: Y habiendo en la pieza donde estaba recumbente e! dicho Senor Arzobispo,
em presencia de toda su família y otros le comenzó a reprender porque no
De la segunda y demás preguntas dei interrogatório que le fueron leídas d ixo lo había visitado. Y arrojándosele e! dicho fray Martín en tierra sin hablarle
que este testigo, como tiene dicho, conoció ai os d icho venerable hermano palabra, como es costumbre en la religión en esta forma, !e hizo senal para
fray Martin de Porras desde que tom ó e! hábito hasta que murió, que fue ron que se levantase y mandá se llegase a la cama, y que le diese la mano. A
veinte anos y los catorce de ellos !e asistió este testigo, siendo su companero, que respondió: "? Para qué quiere un Príncipe la mano de un pobre m ulato
como enfermero mayor que era este testigo en la enfermeria de la Casa donado?" Y el dicho Senor Arzobispo le d ixo: "?No os ha mandado el Prelado
Grande de esta ciudad, y el dicho venerable hermano fray Martín de Porras hagáis lo que yo os dixere?" Y respodió: "Sí, Senor:' "Pues poned Ia mano en
era ropero y cirujano, con que ocurrían de dia y de noche a las faenas que este lado donde tengo el dolor:· Y luego ai punto se sintió sin el dicho dolor
se ofrecían a los enfermos. Y lo que experimento este testigo en su trato y poniéndo)e la mano e) dicho fray Martín. (PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p.
mucha virtud, que era gran siervo de Dios tenido por santo de todos, porque 91).
así lo decían sus obras, hu milde y sincero, y todo tiempo de su vida lo pasó
sirviendo y aseando a los enfermos y todo no hacía por amor de Dios, y así en Em outra circunstância, outro relato:
todo lo alabava. Y, si alguno !e decía algo qur pudiese desvanecerle, Ie pedia
que no dixese tal, porque e! era el peor dei mundo y por sus pecados merecia Con grandes afectos y fe que tenía le cogió la capa que traía puesta y se la
ser tizón de! infierno. puso em el lado dei dolor que padecía, y ai punto se le quitó el dolor y quedó
Y asi mismo era tan grande su caridad que no hubo cosa imaginable a lo libre dei Y con aquel gusto y admiracíon le dixo la dicha Dona Francisca
que se p udiese entender que no la executase su afecto todo e! d ia y toda la ai dicho Hermano: '1\y P. fray Martín, qué siervo de Dios es': A lo cual !e
noche, exercitándose en ella, sirviendo de sangrar y curar a los enfermos, respondió el dich o Hermano: "Dios lo hizo, hermana, que yo soy um mulato
dando limosnas a espanoles, índios y negros, que a todos los quería y amaba e) mayor pecador. (PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p. 103).
y curaba con singular amor y caridad. Casó huerfanas, visitó pobres, y a
muchos religiosos necesitados remediaba sus neccesidades, así de hábitos Ai nda outro:
como de los demás que les faltaba, ninguno llegó a pedirle por Di os que fuese
desconsolado. Y como todos !e conocían ai dicho venerable hermano fray [... ] Como para seiialarle el lugar dei dolor, e! dicho P. Sacristán le cogió la
Martín de Porras por razón de las calidades referidas, algunos hombres ricos mano que tenia desembarazada e! dicho venerable bermano fray Martín de
!e daban dineros, para dar de limosna por su amo, y así lo tenía para todas Porras y se la puso en aquella parte dolorida diciéndole con la voz desmayada
estas cosas que há referido este testigo, como lo vió en el tiempo referido. como ya casi difunto: '1\quí': y luego exclamá diciendo: Bendito sea Dios,
(PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p. 123- 124). ya estoy bueno, ya se me quito el dolor; no es menester ya rescaldo" Martín
avergonzóse tanto, efecto próprio dei vedadero humilde, a lo que reconoció
Outra situação também parece indicar a constante tensão decorrente da este testigo, que lleno de confusión y como sentido de él clavó los ojos en
qualidade de mulato de Martín, em relação a seus atributos pessoais, através tierra el dicbo venerable Hermano fray Martín de Porras y prorrumpió
dos quais se impunha sua inserção no contexto religioso e social. Nessa diciendo: " Así se burla de un pobre mulato': Y sin decir ou tra cosa se salió
circunstância, segundo o narrador era o próprio frei Martín que não deixava de la dicha ce)da )'se fue a tocar el Alba ... (PROCESO DE BEATIFICACIÓN, p.
que se esquecessem de sua qualidade e condição. 108-109).
94 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 95

PARA ALÉM DA QUALIDADE, O ESPAÇO DA MESTIÇAGEM CAVALLINI, Giuliana. St. Martin de Porres apostle of charity. Tradução para o
inglês de Caroline Holland USA: Tan Books and Publishers, 2000, p.viii.
No caso de frei Martín de Porres, a qualidade do mulato se confundia CUSSEN, Celia L. Frau Martin de Porres and the religious imagination of creole
com a qualidade do santo, pelo viés d a humildade, com que aceitava a Lima. Dissertation in History presented to the Faculties of the University of
qualidade que legitimava uma diferença que restringia sua condição social e Pennsylvannia. In: Partia} fulfillment of the Requirementes for the Degree of
sua inserção religiosa. A humildade, que aliada à caridade e ao dom da cura, Doctor o f Philosophy, 1996. Disponível em: htps:/ I order. proquest.com/ AO_
como a tantos outros atributos, foi criando e constituindo a santidade, mas esse HTML/pqdtibeCCkpOrdReview.jsp Acesso em 05/10/ 2011..
santo era mulato e demarcava na sociedade um espaço de reconhecimento e
legitimidade da mestiçagem. Presença contingente e componente de espaço _ __ . "El Barroco por dentro y por fuera: redes de devoción en Lima
peculiar e limitado. Não se pode supor que esse espaço abrigasse a todos os colonial': In: Anuario Colombiano de Historia Social y de La Cultura. Colombia:
mulatos. Esse era humilde e santo porque reconhecia sua condição. 1999, n. 26,p. 2 15-225.
Não se deve esquecer que Frei Francisco de Santa Fé, que também privou _ _ _. "Iconografias de un santo m ulato: Lima, siglos XVII-XVIII': In: Cyber
com Martín de Porres e depôs como testemunha no Proceso Sumario, também Humanitatis. Santiago: Universidad de C hile, 2006, n. 39. Disponível em
mulato, não se conformou com sua condição de donado e reivind icou o direito http:/ / www.cyberhumanitatis. uchile/ CDA/ texto _sim ple2/0, 125 S,SCID%2 53
à plenitude d a vida religiosa. Não se tem notícia do resultado da demanda, ao D20020%2526ISID%253D689.00.html. Acesso em 05/ 10/2011.
que parece, infrutífera.
Lembrando mais uma vez a situação dos mestizos a que já nos referimos, DHUTURBURU, José Antonio del Busto. San Martín de Porras (Martín de
podemos observar que a sociedade vice-reina} multiplicou espaços de trocas Porras Velâsquez). Lima: Pondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica
e misturas, tantos e tantos quanto as possibilidades que a complexa, múltipla del Perú, 2 ed., 200 l.
e desconcertante convivência entre tantos distintos grupos exigia. Tanto GARCfA, Antonio Rubial. La santidad controvertida. México: Universidad
preservou como reinventou as formas de convívio, nos limites que suportou Nacional Autônoma de México; Pondo de Cultura Econômica. 1999.
ou pode ultrapassar. À distância, vistos por nós, todos podem ser entendidos
MEDINA, O.P., Fray Bernardo. Vida de Fray Martín de Porras. Lima: 1663.
como espaços m estiços, espaços de mestiçagem.
Aos olhos desses agentes que nos seduzem do passado talvez fossem SÁ, Eliane Garcindo. Mestiço; entre o mito, a utopia e a história - reflexões
apenas espaços de vida. No caso e na circunstância de uma vida cujo sentido sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Q uartet/FAPERJ, 2013.
se orientava pela difícil tarefa da Imitação de Cristo, vivendo na fragilidade de PROCESO DE BEATIFICACIÚN DE FRAY MARTÍN DE PORRES, volume
todos nós. I, Proceso Diocesano. Afios 1660, 1664, 1671. Palen cia/ Espana: Secretariado
'Martín de Porres: s.d.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS VARGAS UGARTE, Ruben. El Beato Martín de Porras. Lima: 1961.

BARRIOS, Rafael Sánchez y Concha. "Los santos y las concepciones políticas


y sociales en El Perú virreinal". In: Hispania Sacra. Madrid: CSIC, 2002, vol.54,
n. 109, p. 316. Disponível em http:/ /hispaniasacra.revistas.csic.es. Acesso em
18/03/2011.
CAUTI, Fernando Iwasaki. "Fray Martín de Porras: santo, ensalmador
y sacamuelas". In: Colonial Latin American Review, 3:1 , 1994, p.1 59-184.
Disponível em http:!/dx.doi.org/101080/ 10609169408569827. Acesso em
12/10/20 10.
Ser escravo nos conventos franciscanos

MARCOS ANTONIO DE ALMEIDA

Etnia tem sua origem etimológica do grego, ethnikós, e significa povo. Os


conventos abrigaram diversos grupos africanos ou afrodescendentes, portanto,
povos a serem descobertos e analisados, pois esses mesmos povos criaram uma
relação social e religiosa nos claustros franciscanos se não obscura, ao menos
com múltiplas caras e cores. As igrejas franciscans também se constituíram em
espaços aglutinadores de devoções santorais. Neste sentido, a complexidade das
relações internas nas igrejas e nos claustros franciscanos nos instiga a repensar
o tema da escravidão negra numa instituição que tem, em seu fundador,
Francisco de Assis, o ideal da fraternidade universal. As cores humanas são
fatores fundamentais para um processo de busca identitária. Brancos, negros,
índios, mestiços e pardos na América Portuguesa nos inspiram a refletir sobre
as influências da espiritualidade franci scana nas construções identitárias
operadas no Brasil (GRUZINSKI, 2 004; VIANA, 2007). Até que ponto estas
construções se tornam autônomas e em que medida elas negociaram umas
com as outras para elaborarem novos paradigmas de abordagens sobre a terra
e seus habitantes? Por outro lado, se estas construções são autônomas, quais
as convicções anunciadas e negociações veladas no vai e vem dos indivíduos e
dos grupos para se situarem socialmente?
A escravidão de africanos e de seus descendentes nos conventos da
América Portuguesa era uma prática comum (WI LLEKE, 1976, p. 355-375). 1

I . Em "Senzalas e conventos'; este autor apresenta e analisa a prática da escravidão no convento


franciscano de Salvador como uma instituição cultural da qual ninguém podia d ivergir nem
escapar. Este ponto de vista histórico nos motivou a escolher outros ângulos mais críticos sobre
esse tema.
98 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França PaivaIMarciaAmantino (orgs.) 99

Utilizando a mão de obra escrava, as ordens religiosas introduziram nos deveriam ser rigidamente observadas: os escravos não podiam se ausentar do
seus claustros a propriedade privada, realidade contraditória face ao voto de convento nem entrar nos locais de trabalhos dos frades. As "oficinas" eram
pobreza por elas professado (ALGRANTI, 1993, p. 323). . . locais nos quais os frades desenvolviam alguma habilidade em benefício do
Não é fácil retraçar a prática escravocrata africana nos conventos haJa vtsta convento: a cozinha, a alfaiataria, a enfermaria etc. Os "locais privados do
que as fontes eclesiásticas quando muito a mencionam de forma transversal, convento" mais preocupantes parecem ser os corredores e as celas individuais
salvo quando se trata de um protagonismo transgressor. O convento franciscano - os quartos (ATAS CAPITULARES, p. 128, 140 e 150). Controlar a circulação
de Salvador nos legou uma série de informações sobre os seus escravos e suas (corredores) e a intimidade (quartos) dá margem a pensar num intenso vai e
formas de viver ao longo dos séculos XVII e XIX (ATAS CAPITULARES, 1970). vem de escravos e frades por ambientes até então classificados de "clausurà '
Durante muito tempo, as necessidades internas dos conventos justificaram a - espaço fechado aos frades e proibido aos estranhos. Seriam os escravos tão
escravidão e a quantidade excessiva de escravos nos conventos franciscanos. estranhos assim?!
Segundo Venâncio Willeke, "os escravos dos franciscanos" e do clero secular Uma questão que não quer calar é: como explicar a escravidão num
teriam tido um tratamento diferenciado daqueles dos senhores de engenhos convento mendicante? As Atas Capitulares são claras, a aquisição de escravos
ou dos particulares da sociedade colonial. para o serviço pessoal e comunitário era proibida. Só o ministro provincial
Pesquisando sobre os escravos conventuais da província de santo podia acordar esse privilégio, segundo as necessidades dos frades e da
Antônio do Brasil, duas fontes foram fundamentais. A primeira, as Atas comunidade (p. 107, 109). Em 14 de setembro de 1689, o capítulo provincial
Capitulares, procura adequar as decisões dos Capítulos Províncias ( 1649- determinava que se um religioso tivesse algum "negro" a seu serviço pessoal,
1893) às questões internas vividas entre os frades e a presença dos escravos no o provincial devia tirá-lo - o escravo, e colocá-lo a serviço do convento, não
convento franciscano de Salvador. Esta fonte registrou boa parte das tensões e importando o tipo de emprego realizado (p. 109).
crises existentes na comunidade, procurando, dessa forma, sanar os impasses A organização franciscana colonial se esforçava em manter as fronteiras
ocasionados pelo dia a dia entre os frades e os escravos. A segunda fonte, o entre o mundo dos escravos e o mundo dos frades. Quais seriam então as
Livro dos Guardiães da Bahia apresenta a particularidade de um cotidiano vias de contatos e aproximação entre esses dois mundos? A doença e a morte.
marcado pela mercantilização dos escravos oriundos de doações e compras, No capítulo provincial de 1761, o ministro provincial e o seu conselho -
negociações ilícitas realizadas pelos guardiães e condenada pelos Capítulos Definitório - prescreviam aos guardiães a observância de rezar pelos escravos
provinciais. defuntos; sejam os do convento ou os de fora. As missas e as orações deviam
Os Estatudos Provinciais, publicados em 1709, insistem na necessidade acontecer desde a confirmação da morte do escravo e cabia aos padres serem
de todos os conventos terem "livros" nos quais os guardiães deveriam anotar os primeiros a anunciar não somente o falecimento do escravo como também
as "coisas" mais importantes acontecidas na comunidade (EsTATUTOS, 1709). a dar todas as informações necessárias para os atos fúnebres em memória do
O nosso objetivo seria o de cruzar estas fontes franciscanas e perceber escravo. Tais orientações estão associadas à negligência dos franciscanos em
como os franciscanos e os escravos viveram e se redefiniram socialmente a face de um "costume tão santo, e tão esquecido em alguns conventos" (p. 131 e
partir das contradições existentes entre a Fraternidade Universal e a Escravidão 152).
Local. Outras informações capitulares revelam a ambiguidade da fraternidade
Já anunciamos que, até o presente, é-nos difícil estimar quantitativamente franciscana. Por exemplo, os escravos doentes recebiam os devidos cuidados
o número de escravos dos conventos franciscanos. Certamente seria menor na enfermaria conventual na qual os próprios frades eram também tratados (p.
do que os das ordens que possuíam fazendas e engenhos de açúcar, como 150). Os frades e os escravos de conventos limítrofes acorriam ao de Salvador
os jesuítas, os carmelitas e os beneditinos. Segundo as Atas Capitulares e o para ali se tratarem ou convalescerem de doenças que, infelizmente, não são
Livro dos Guardiães da Bahia, a presença de escravos nos conventos estaria mencionadas. O certo é que as despesas eram pagas pelos conventos aos quais
diretamente ligada às necessidades domésticas tal como nas Casas Grandes eles estavam vinculados. Segundo as mesmas Atas Capitulares, os escravos se
dos senhores do açúcar. Caberia aos escravos conventuais se ocuparem dos casavam frequentemente, e os guardiães os ajudavam nos preparativos e, em
trabalhos mais pesados, pois os trabalhos leves seriam realizados pelos Irmãos casos necessários, a se estabelecerem para constituir família. Tudo era colocado
não sacerdotes, mais conhecidos como Irmãos Leigos. Algumas normas à disposição dos escravos para que eles pudessem contrair o sacramento
100 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃOEMESTIÇAGENS lsnara Pereira IvoI Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 101

do matrimô nio. Esta prática generalizada nos conventos franciscanos teria engenho, ela tinha sido imediatamente reproduzida nos conventos (FREYRE,
provocado descontentamento entre alguns frades que se opunham a tais 1974). Estes últimos as con struíram ao lado do convento para facilitar
procedimentos. No capítulo provincial de 1745, esta sensibilidade para com as a circulação e a rapidez dos serviços a serem realizados, pois a tarefa de
núpcias dos escravos foi proibida, haja vista que tal prática causava transtornos provisionar o convento com água e madeira para a cozinha requeria agilidade
quando os escravos eram de conventos diferentes ou quando um dos dois e força. No capítulo provincial de dois de maio de 1683, as Atas Capitulares
pertencia a algum senhor de engenho (ATAS C APITULARES, 1970, p. 128-129).2 ordenavam que os escravos dos conventos não deviam entrar nas "oficinas':
As razões desta interdição não são claras nas Atas Capitulares, entretanto, nem em nenhum local reservado à vida da comunidade, salvo se fosse para
podemos supor que os casamentos entre escravos pertencentes a senhores levar água ou madeira para a cozinha, espaço que deveria ser imediatamente
diferentes apresentavam questões sobre o local de residência dos novos casais deixado após o serviço acabado (ATAS CAPITULARES, 1970, p. 107).
e sobre a propriedade dos futuros filhos dos escravos. Segundo o Livro dos Guardiães da Bahia, a separação entre os escravos
solteiros dos casados no interior da Senzala tornou-se necessária em função
CONVENTO GRANDE & SENZALA: ESTA SEMELHANÇA É UMA SIMPLES da privacidade dos cônjuges (MELLO SILVA, 2010). Durante o guardianato de
COINCIDÊNCIA? frei Antônio de Santa Izabel, entre os anos de 1755 e 1758, uma nova Senzala
reservada aos escravos casados foi finalmente construída; em seguida, sob o
A história da escravidão nos conventos não é, portanto, diferente das guardianato de frei Feliciano de Jesus Maria, entre os anos d e 1764 e 1768,
demais vividas nas outras instituições no Brasil (RõwER, 1941, p. 272-273; uma segunda Senzala é construída, desta vez para abrigar os escravos solteiros,
384-385; 420-421; 426-427). Os missionários franciscanos tentavam livrar os pois o número havia aumentado consideravelmente. Nesta mesma data, várias
índios d a escravidão, mas eles se interessavam muito pouco pela sorte dos reformas na senzala foram se efetivando progressivamente. O número de
negros ou dos mulatos escravos. O trabalho d os escravos era até empregado "pretas casadas" aumentou e uma nova ala n a sen zala foi edificada para abrigar
no ministério d as missões itinerantes nos Sertões, pois cabia aos escravos essas famílias. As reformas da senzala conventual instalaram várias portas e
transportar tudo o que fosse necessário para que a missão alcançasse o seu janelas distribuídas nos dormitó rios e na "casinha de ferramentas" nas quais
objetivo de evangelizar os sertões adentro: pregar, batizar e casar os fiéis as ferram entas de trabalho eram guardadas pelos próprios escravos. Mesmo
dispersos nestas vastas regiões do interior do Brasil. tendo uma localização privilegiada, não há notificação de fugas (Livro dos
As fontes apresentam , portanto, dois tipos de escravos nos conventos Guardiães da Bahia\ 1978, p. 22). No que concerne à Província da Imaculada
franciscanos: o escravo destinado aos trabalhos mais pesados e os escravos Con ceição do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, as fugas eram frequentes
a quem se reservam as tarefas mais leves. Comprados o u recebidos por (RÕWER, 194 1, p. 273).
testamentos, os escravos são utilizados para os serviços internos do convento, No que concerne ao convento de Salvador, os dados sobre os escravos
e eram eles os pedreiros, barbeiros e até mesmo artesãos de utensílios de barro são lacu nares, mas eles existem. Dessa forma, frei Antônio do Espír ito Santo
para servirem à cozinha e ao refeitório. Mariz (no 854) colocou um "moleque" ao serviço da enfermaria. Segundo
Tam bém numa casa de religiosos a Senzala era o local onde viviam Rafael Bluteau, a palavra "m oleque" tem sua origem no Brasil e signifi ca
os escravos. Espaço concebido pelo sistema escravocrata dos senhores de uma "criancinha escrava" (BLUTEAU, vol. V, p. 541, col. 2). Para H ouaiss,
etimologicamente a palavra muleke tem sua origem do Quimbundo, língua
africana e que significa "rapaz jovem" ou um "filho ainda pequeno" (HouAiss,
2001). A enfermaria do convento em questão foi construída no segundo
2. "Que vistas as desconveniencias, que tem seguido de alguns matrimo nios dos nossos
Escravos, que consentiraó, e talvez dispostos pelos mesmos Prelados Locaes sem madura reflexaó pavimento do convento e possuía em torno de vinte celas (LGB, p. 30). 4
para o futuro se manda a todos os Superiores locaes, que nem consintaó, nem déem Licença,
nem ajustem casamento algum de qualquer escravo do convento, ou sejaó ambos os contrahentes
da sua jurisdiçaó, ou hum delles seja forro, o u de diverso Senho rio, de qualquer sorte seja, o 3. A parti r de ago ra citado Lgb.
naó consintaó, sem expressa Licença do Prelado maior, e o que contrario o brar seja castigado 4. Segundo o L GB, tratava- se de um rapaz jovem capaz de trabalhar neste espaço dedicado à
severamente como desobediencia, e nos primeiros oito annos naó seja pro movido a cargo algum convalescença de frades e de escravos doentes o u em processo de cuidados médicos. A enfermaria,
da Religiaó:: local reservado, se transformou paradoxalmente em um lugar de apoio para frades e escravos.
102 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 103

Qual era a origem dos escravos conventuais africanos e de seus 1741 e 1759, 121 navios de Angola chegaram ao Recife contra 63 da Costa da
descendentes? A maior parte dos escravos parece ter sido resultado das Mina e eles trouxeram 54.861 escravos a Recife (p. 498).
doações dos fiéis em seus testamentos para os serviços aos frades em seus Os escravos são, portanto, propriedades presentes em todos os conventos.
conventos e missões. Em outros casos, eles eram comprados. O guardião de Em 1729, um comerciante de Recife deixava como "esmola" duas crianças
Salvador, frei Ubaldo de Santa Ana comprou seis "rapazes jovens" (moleques] mulatas para o convento de Recife (A.P.F.R., Liber XIV-8, Does. Avulsos, foi.
Benguelas (LGB, p. 27) e, alguns anos mais tarde, frei Manuel da Conceição da 109). Vejamos outra doação com mais pormenores do "negócio" entre Maria
Rocha adquiriu alguns escravos originários da Guiné (p. 28), sem especificar Gomes de Andrade e os franciscanos de Recife. Em 10 novembro de 1770, ela
n em a quantidade nem os preços. No guardianato seguinte, José de Santa Inês redigia o seu testamento e entre "os seus bens" estava Miguel, originário de
adquiriu sete escravos, sem também mencionar outras informações (p. 29). Angola. Ela o havia comprado quando este era ainda jovem. Maria Gomes de
Entretanto, em 1792, um "moleque" foi comprado pelo preço de 121$400 Andrade propõe ao guardião vendê-lo a convento de Recife pelo valor de vinte
(p. 105). O convento de Salvador era sem dúvida o convento que mais e quatro mil réis. A finalidade dessa proposta seria, segundo Maria Gomes,
comprava escravos como demonstra o Livro dos Guardiães. (p. 38; 40; 45). suficiente para pagar o enterro dela como também tudo o que fosse necessário
Ignora-se, por outro lado, qual era o número exato de escravos na província para as vestes funerais. Ela ainda mencionava as missas a serem celebradas para
franciscana; sabemos, porém, que o convento de Salvador, neste mesmo ela, para o seu pai e seu marido. Caso restasse ainda algum dinheiro da venda do
ano, possuía 65 frades e 90 escravos (p. 105). Em sete de setembro de 1872, escravo, ela pedia que fosse distribuído entre os necessitados da vila. Entretanto,
o Capítulo Provincial dirigia a todos os guardiães a ordem para libertar os depois de uma longa retórica sobre "bem-morrer", Maria Gomes impunha uma
escravos conventuais. Cabia, portanto, ao guardião libertá-los em nome do condição: que Miguel ficasse com ela até a sua morte e, se ele morresse antes dela,
provincial. Segundo o texto, todos os escravos de todos os conventos estavam a venda seria anulada (IBIDEM, fol. 95). Esta negociação entre Maria Gomes e o
livres, exceto, por razões de sua pouca idade, o escravo Manoel, pardo, que guardião do convento de Recife parece inabitual, pois n ós não encontramos em
pertencia ao convento de Salvador e não recebeu tal indulto. A "manumissão" nenhum outro documento franciscano um caso tão insólito. Sabemos inclusive
- alforria legal de um escravo - para liberdade do "pequeno Manoel" lhe seria que esses gêneros de doações e de contrapartidas eram comuns no Brasil
dada quando ele completasse vinte e cinco anos. A libertação dos escravos colonial (MATToso, 1982; 1992). Em 1790, a venda e libertação dos escravos dos
franciscanos aconteceria definitivamente a partir de sete de dezembro de 1872 conventos foram proibidas (ATAS CAPITULARES, p. 128).
(ATAS CAPITULARES, p. 197). Os franciscanos, em nenhum momento, se pronunciaram contra a
O comércio de escravos entre Pernambuco e a África conhece uma escravidão dos n egros ou sobre a legitimidade desta e muito menos sobre
importante mudança na primeira metade do século XVIII. Com efeito, o porto o tema da liberdade. A postura franciscana face à escravidão acompanhou
da Costa da Mina, até então o porto mais frequentado por luso-brasileiros de perto a tradição escravagista n o Brasil colonial: os africanos e seus
no tráfico de escravos, é substituído por outros portos de Angola (Loango, descendentes deviam agradecer por estarem a serviço dos homens, de seus
Benguela e Cabinda). Estes últimos ofereciam melhores condições para os senhores, e de Deus, seu Salvador. Dessa forma, era preciso respeitar a ordem
pernambucanos que trocavam escravos por tabaco. Em 1721, o porto de social sustentando a distinção entre ser livre ou ser escravo. Recomendava-se
Recife acolheu 15 navios vindos da Costa da Mina e, de 1722 a 173 1,89 navios. atenção às "necessidades" dos negros, nos momentos de sofrimento físico e
Entre os anos de 1741 e 1759, passaram pelo porto de Recife 16. 189 escravos particularmente n o momento da sua morte. Este discurso foi retomado pelos
procedentes de Costa da Mina. O governador de Pernambuco, José César eclesiásticos, sobretudo pelos jesuítas (BENCI, 1977). A h istoriografia sobre o
de Menezes (1737-1746 e em seguida 1774- 1778), informa que o número Império Português avançou nestas duas décadas e também as interpretações
de navios que chegaram entre os anos de 1759 e 1777 teve uma queda de 26 sobre a escravidão e as relações sociais étnicas (MATTOS, 2001, p. 141-162;
navios (STABEN, 2011). Segundo ainda César de Menezes, entre os anos de LARA, 2005, p. 21 -38).
A partir de um fato muito utilizado pela historiografia podemos
compreender melhor o pensamento franciscan o sobre os escravos e a escravidão:
Ali, todos experimentavam aspectos da contingência humana dos quais ninguém escapava, ne~ a guerra contra Palmares, ou ainda contra os diversos locais que formavam os
cativos nem livres. Quilombos dos Palmares. Palmares estava situado numa região fronteira entre
104 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo 1 Eduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 105

Pernambuco e o atual estado de Alagoas. Os escravos fugitivos se agrupavam


NEGROS E NEGRAS: ROSTOS E CORPOS EM MOVIMENTOS
e se fixavam nas montanhas e nas matas que circundavam estrategicamente a
área ocupada. Ali se construíram vilas e fortificações sob a vigilância contínua
Os conventos das ordens mendicantes são espaços por excelência das
para se protegerem de eventuais ataques das investidas militares articuladas
confrarias. Domingos do Loreto Couto estimava, em 1757, que havia em
para suprimir Palmares e retomar a economia ameaçada não por negros, mas
Recife sessenta e seis confrarias espalhadas pelas igrejas administradas pelo
também por outros grupos sociais indesejáveis, mulatos, mestiços, índios e
clero regular e secular. Os estudantes do colégio da Companhia de Jesus
brancos. Todas as expedições contra Palmares foram acompanhadas por
franciscanos, pois o convento de Sirinhaém se situava nessa linha fronteiriça
do Recife, por exemplo, fizeram parte da confraria de Nossa Senhora ?o_ O.
As celebrações em torno desta devoção são numerosas e as suas proossoes
(A.P.F.R., V. 2, t. 3, no. 41; Doc. Franciscano, pp. 13-15). As lembranças desse
são verdadeiros desfiles apoteóticos, animadas por músicos que marcam a
tempo fi caram arraigadas na memória dos pernambucanos. Frei Jaboatão
cadência das danças pelas ruas do Recife. Cidade repleta de igrejas, capelas
dedicou várias páginas, no Orbe Seráfico, Novo Brasílico.
e oratórios, o Recife tornar-se-ia uma cidade-palco de manifestações nada
Segundo o cronista franciscano, em 1695, o governador Caetano de
simplórias e fortemente marcada por construções identitárias. Os. seus
Mello de Castro ordenou que os franciscanos de Serinhaém acompanhassem
habitantes se empenharam em demonstrar, a partir das ruas e atraves dos
o "Exército" contra "os negros levantados" há sessenta anos protegidos
eventos devocionais, suas interpretações e pontos de vista sobre Pernambuco,
por "fortificações" numa "serrania': entre a Vila de Alagoas e a povoação
o Brasil, o Império Português e o mundo.
de Porto Calvo, fronteira com a Vila de Serinhaém, em Pernambuco. Os
Os oratórios, por exemplo, eram construídos por habitantes abastados
quilombos palmarinos se tornaram trincheiras impedindo a circulação
logo no portal de entrada de suas casas. Não ~aro, par~ e~ses esp~ços, casas
de um comércio açucareiro retomado logo após a expulsão dos holandeses
com oratórios - apresentando um estranho misto de pubhco e pnvado - os
(1654). Tais povoações marginais passaram a preocupar as autoridades, e
vizinhos convergiam e, ali, rezavam e reestabeleciam antigas relações sociais
várias investidas bélicas foram realizadas com a finalidade de enfraquecer
rompidas por um cotidiano voraz. Loreto Couto conheceu 42 oratór.ios no
as forças e audácia de "cativos, forros, crioulos, mulatos, e facinorosos" por
Recife, construídos à base de pedra e cal, porém extremamente bem cuidados
causarem danos, insultos, roubos, mortes e muitos outros "escândalos" desde
e ornamentados (CouTo, 1757, p. 159-160).
o rio São Francisco até Pernambuco. Finalmente, para Fr. Jaboatão, a "empreza
Das confrarias presentes nos conventos franciscanos, duas são as mais
arriscada" da guerra contra os moradores dos Palmares se saiu vitoriosa, pois
célebres e ocupam lugares privilegiados nas igrejas franciscanas: a Irmandade
todos "foram vencidos com grande resistência", outros foram mortos, e muitos
de São Benedito, o Negro, que remonta a século XVII, e a Irmandade de Santa
outros presos. A presença dos "Religiosos Menores" - franciscanos - consistia
em acompanhar e animar a milícia contra "aquela tão forte, como abominável
Ifigênia, do início do século XVIII. Em Salvador,. essas dua.s Ir~anda~es ?e
Negros possuíam cada uma sua capela (ou altar pnvado) no mtenor ?a IgreJa.
colônia" (JABOATÃO, vol. I, 1858, p. 114).
A particularidade era que as Irmandades de Negros no convento franoscan? de
O número elevado de escravos no convento de Salvador nos remete
Salvador eram abertas aos brancos e aos escravos do convento; todos podiam
ao estudo de Kátia Mattoso sobre a Bahia no século XIX. Durante séculos,
entrar e promover também a assistência mútua e participar da organizaçã~ e
Salvador contou com um grande número de escravos que trabalhavam para
dos cultos ao santo de devoção. A prática das eleições anuais nestas confranas
os seus senhores e senhoras como vendedores nas ruas de Salvador, o que se
dava margem a possíveis negociações de poderes entre negros, brancos e
chamava na época "escravo diarista" (MATToso, 1992, p. 169).
pardos (WILLEKE, 1976, p. 372).
A tese de Gilberto Freyre sobre a proximidade entre os escravos e os
senhores se tornou clássica para os estudos da sociedade colonial brasileira.
Nos conventos franciscanos, nós percebemos que Freyre tinha razão, pois os
frades e os escravos partilhavam os mesmos espaços conventuais (a enfermaria,
os corredores e até mesmo quartos), mas isso não quer dizer que os escravos
viviam ali comodamente. Os capítulos provinciais tentaram impor limites .
para regular os frades e os escravos.
106 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 107

São Benedito com o Menino Jesus, 40 em(Séc. XVIII),


madeira policromada. Igreja de Santo Antônio do
Recife/PE.

Santa lfigênia, 80 em, madeira policromada, capela da missão


franciscana de Jacobina/BA.

São Benedito com um pilão na mão direita, exemplo No convento franciscano de Salvador, estas duas Irmandades usufruíram
de frade trabalhador, 90 em (Séc. XVIII), madeira de uma importante notoriedade. Elas se situavam entre as Irmandades mais
policromada. Convento de Santo Antônio de lpojuca/ prestigiadas, motivo pelo qual a maioria dos negros, escravos ou livres,
PE.
aspiravam a elas se associar. Não se tratava apenas, portanto, de devoção, mas,
sobretudo, de canais de ascensão social ou ainda canais para se protegerem dos
infortúnios f~turos. Estas instituições serviam para amenizar os sofrimentos
e as violências de uma ordem social segregacionista. Em 1722, Agostinho
de Santa Maria, em sua obra intitulada Santuário Mariano, nos informa que
das 31 Irmandades da Bahia, seis pertenciam aos Negros e cinco aos homens
Pardos (Apud CARDOSO, 1973, p. 245).
108 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 109

Os dados sobre as Irmandades de São Benedito e de Santa Efigênia são se encontrava completamente curada. Segundo a narrativa da própria criança,
lacunares. Em 1686, São Benedito já era bastante festejado, com muita pompa um frade Negro desceu do céu e o teria curado. O guardião, impressionado e
na catedral da Bahia e, neste mesmo ano, os Estatutos dessa Irmandade foram maravilhado po~ esta cura, pediu ao Vigário Geral do Rio de Janeiro a abertura
aprovados pelo arcebispo e enviados a Roma para serem confirmados pela de um processo tendo por testemunhas a escrava e seu filho ( p. 826).
cúria romana (VAT, 1941 , p. 824) . Segundo frei Jaboatão, desde as primeiras Os negros, escravos ou livres, são fundamentais para a dinamização das
fundações das capitanias no Brasil, São Benedito, o Negro, era venerado relações dentro das igrejas e dos conventos franciscanos. As relações entre
por uma parcela significativa da sociedade colonial, e particularmente pelos os franciscanos passam necessariamente pelas devoções aos santos Brancos,
negros. As igrejas e os conventos franciscanos continuam sendo os espaços Negros e Pardos. Se Santo Antônio de Lisboa se tornou o santo dos portugueses,
privilegiados para o seu culto. Através do santo negro, Fr. Jaboatão informa que outros menos afortunados chamam a atenção pela adesão dos habitantes locais.
as cidades, vilas, paróquias e capelas se tornaram lugares estratégicos nos quais A Irmandade de São Benedito, o Negro ou o Africano, parece ter tolerado
as "gentes de cor" estabeleciam redes de sociabilidades: "Não há cidade, vila, os diversos grupos africanos que circulavam nos espaços franciscanos. Em
paróquia ou lugar aonde esta gente não tenha igreja sua, consagrada à Senhora 1770, o Livro de Compromisso da Irmandade de São Benedito, da igreja
com o título do Rosário, primeiro objeto e móvel das suas adorações, que nestas franciscana de Salvador, informa que todos, indistintamente, poderiam entrar
tais igrejas não dedique altar próprio ao seu São Benedito, com confraria e na Irmandade: "Os crioulos, angolas e todas as qualidades de Negros" podiam
Irmandade sua:· (JABOATÃO, Parte 11, Livro 3, no 53). Entre as igrejas, aquelas assumir a direção da Irmandade, à condição de ser Negro, de aceitar as regras,
que tinham oragos à Nossa Senhora do Rosário ou do Livramento eram as e de ter antiguidade na Irmandade (REIS, 1991, p. 56).
mais concorridas. Frei Jaboatão testemunha que os escravos dos conventos
erigem nas igrejas conventuais franciscan as altares e capelas ao santo de cor
[São Benedito] e convidavam todas as gentes da mesma cor a entrar e participar
da Irmandade (Apud VAT, 1941, p. 825). Segundo Odulfo Van der Vat, o culto
em homenagem a São Benedito precede a sua canonização e que tal devoção
e culto se espalharam particularmente no Brasil. O processo de beatificação
foi longo: em 1592 (primeiro processo para sua beatificação), 1622 (segundo
processo) e 1763 (o anúncio de sua condição de Bem -aventurado). Todavia,
a canonização popular já havia sido proclamada pelos devotos escravos (p.
826-27).
No Brasil, a primeira data de um culto a São Benedito, o Negro, remonta
a 1612, na vila do Rio de Janeiro. A base dessa devoção é atribuída a uma
"notícia" que circulou por todas as partes do Rio de Janeiro. O rumor acerca
do notável caso de cura encontrou eco e se constituiu como um elemento
importante para a canonização do santo negro franciscano que protege o
povo da sua cor. Segundo o processo apresentado no Rio de Janeiro, numa
determinada noite, uma escrava bate à porta do convento de santo Antônio do
Rio de Janeiro carregando nos braços o filho extremamente doente. Confiando
no poder miraculoso do cordão de São Francisco, a escrava envolveu o filho
no cordão, mas nenhuma cura aconteceu. O guardião aconselhou e convidou à
mãe aflita para que esta participasse de uma missa em honra de São Benedito,
o Negro. Este certamente a escutaria, pois ele também é Negro, e dotado de
um poder miraculoso. A escrava prometeu seguir as orientações do dito frade: Negra no teto da sacristia da igreja de Santo Antônio de João Pessoa, óleo sobre madeira, século
mandou rezar uma missa em honra do santo Negro e, no dia seguinte, a criança XVIII.
110 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo 1 Eduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 11 1

circulavam também os frades e todos os que compunham as comunidades


conventuais, inclusive os escravos conventuais (APISMI/ PE, 1881-1887).
De fato, São Bened ito era o carro-chefe franciscano para congregar os
negros em torno das suas igrejas e conventos. Segundo Fr. Jaboatão, o santo
franciscano negro teria disputado o altar principal com Santo Antônio, e o
primeiro teria ocupado várias vezes o altar privilegiado do santo português.
Todavia, o que intensificou a acirrada disputa teria sido o p oder revelado nos
inúmeros milagres operados pela intercessão de São Benedito na igreja de São
Francisco de Salvador, n a Bahia (JABOATÃO, Parte li, Livro 3, p. 54).

ARQUIVO FRANCISCANO

A.P.F.R. -Arquivo Provincial Franciscano do Recife, Liber XIV-8, Documentos


Avulsos, fol. 109.
A.P.F.R.- Arqu ivo Provincial Franciscano do Recife, Liber XIV-8, Documentos
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vol. LIII. no 106, 1976, p. 355-375. muito valentes. Alguns até conseguiam "com a parte de sangue de brancos
que tem nas veias e talvez de seus mesmos senhores': manter relações muito
cordiais com seus proprietários. Piorando a situação amoral em que viviam, as
mulatas conseguiam alforrias graças ao dinheiro das vendas de seus corpos. A
conclusão do jesuíta, já bastante conhecida pela historiografia, foi que o Brasil
era "Inferno dos negros, Purgatório dos brancos, e Paraíso dos mulatos e das
mulatas" (ANTONIL, 2001, p. 92).
Antonil retratou esta realidade do uso de escravos na primeira parte de
sua obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas cujo objetivo foi
explicado logo no início: tratava-se de uma espécie de manual agrícola com
informações valiosas para auxiliar quem "de novo entrar na administração de
algum engenho" oferecendo "noticias práticas, dirigidas a obrar com acerto"
(ANTONIL, 2001, p. 67). A ideia era divulgar maneiras racionais de lidar
com as questões da terra, da produção, do uso das ferramentas e, é claro, da
administração da mão de obra escrava.
116 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 117

O famoso jesuíta não estava sozinho em suas inquietações acerca da Para demonstrar as características desta população serão utilizadas as cartas
administração das propriedades. Esta era uma preocupação relativamente ânuas trocadas entre os religiosos e seus superiores ou mesmo com os reis
comum entre os inacianos e os que tinham contato com as propriedades e os inventários realizados nos momentos da expulsão deles da América
rurais da Companhia de Jesus escreveram obras que visavam a auxiliar os portuguesa em 1759 e da espanhola em 1767.
senhores e proprietários de terras na lida diária, inclusive, os seus próprios
administradores, os coadjutores temporais. De acordo com estas obras, as A ORIGEM DA MÃO DE OBRA ESCRAVA DOS INACIANOS
propriedades jesuíticas seriam, ou pelo menos deveriam ser, modelos cristãos
de administração. Enquanto os senhores não demonstrassem aos seus escravos Assim que chegaram a Salvador junto com o governador geral, Thomé
que eram cristãos respeitadores dos dogmas e tratassem os escravos como filhos de Souza, em 1549, os jesuítas perceberam que sem pessoas para realizar os
de Deus, não conseguiriam manter a disciplina e muito menos auxiliá-los para trabalhos do cotidiano, não conseguiriam cumprir com a sua principal tarefa,
que entrassem verdadeiramente no reino dos céus. Por conseguinte, ao longo a missionação e catequese dos índios. Todos os trabalhos na colônia eram
dos séculos XVII e XVIII algumas obras deste caráter foram elaboradas tanto feitos por índios escravos e por um número pequeno, porém ascendente, de
na América portuguesa quanto na espanhola e foram largamente tratadas africanos e a ordem não teria como atuar de maneira diferente para se inserir
pelas respectivas historiografias (BENCT, 1954; ANTONIL, 2001; MARQUESE, no mundo colonial. Os escravos eram necessários e, segundo Serafim Leite,
2004; VAINFAS, 1986; CHEVALIER, 1950; PAGE, 2008; MELEAN, 2004). Nóbrega tratou de "angariar tanto da Guiné como da terrá: O padre solicitou
Todavia, entre os textos teóricos a respeito do modelo cristão de escravidão então o envio de "peças da Guiné'' para somar com os três ou quatro que o
produzido pelos religiosos e a realidade havia uma grande diferença, inclusive, colégio já havia recebido de doações, lembrando ao superior que, para evitar
em terras da Companhia de Jesus. Foram constantes as denúncias acerca de confusões com os colonos, "escravos da terra [índios] não nos parece bem tê-
jesuítas que castigavam aos escravos (e também aos índios) com excessivo los" (LEITE, 2000, tomo II, p. 347).
rigor na América portuguesa e espanhola. A situação era lembrada sempre Apesar das ideias de Nóbrega a respeito de que tipo de escravos deveria
pelos reitores e superiores da ordem, pedindo para que os administradores a Companhia possuir, o fato é que continuaram utilizando a mão de obra
das propriedades não se esquecessem de que eram religiosos com a função de indígena. No ano de 1552 em carta ao padre Simão, descrevia o cotidiano
transformar aqueles seres em cristãos através do trabalho, mas com brandura dos religiosos em Salvador, explicando que com o dinheiro recebido para
e caridade (MEDINA, 2005, p. 106; PAGE, 2004, p. 204; AMANTINO, 2007, p. comprar vestimentas para os pares, compraram "outros escravos da terrá' e
335-345). que, de acordo com sua carta de 1549, eram baratos (NóBREGA, 1988, p. 84).
Esta aparente contradição entre o que era pregado por alguns jesuítas e o Continuou sua missiva mostrando como estava administrando o cativeiro
comportamento levado a cabo por grupos de padres que estavam diretamente destes:
ligados à administração dos escravos nos faz pensar em como se davam as
relações nas fazendas inacianas. Este texto busca analisar as questões que se Alguns escravos destes [do Colégio de Salvador), que fiz mercar para a casa,
referem à formação da mão de obra cativa dos jesuítas ao longo dos séculos são fêmeas, as quais eu casei com os machos e estão nas roças apartados todos
XVI ao XVIII e quais foram os mecanismos utilizados para manter elevados em suas casas, e busquei um homem leigo, que delles todos tem cuidado e
contingentes de escravos em suas propriedades no Rio de Janeiro e em três os rege e governa, e nós com elles não temos conta, e com o homem nos
colégios da Província Jesuítica do Paraguai, a saber, Santiago del Estero, entendemos, e o homem com elles ( NóBREGA, 1988, p. 137)
Tucumán e La Rioja.
A documentação coeva permite perceber que os jesuítas optaram pela
reprodução endógena de seus cativos formando, principalmente no início do Por meio das cartas trocadas entre os padres que estavam na América
estabelecimento de suas propriedades, uma mão de obra mestiça a partir de portuguesa e os seus superiores pode-se perceber que constantemente havia
casamentos entre indígenas e negros e seus descendentes. A mestiçagem foi, pedidos para que a missão de Angola enviasse novas levas de escravos para
portanto, um traço marcante desta população cativa durante todo o período realizarem as tarefas do colégio de Salvador e de suas fazendas. Seis anos
colonial, pelo menos na capitania do Rio de Janeiro e nas três áreas analisadas. depois, o padre pediu novamente o envio de duas dúzias de escravos, tanto
118 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 119

homens como mulheres. Em 1574 era o padre Provincial do Brasil, Inácio indígenas em convívio com negros e seus descendentes, iniciando assim um
Tolosa quem pedia 12 escravos homens e 12 mulheres (LEITE, 2000, tomo 11, progressivo acúmulo de cativos mestiços por parte da ordem. Diversas foram
p. 347). as origens desta população escrava, tanto na América portuguesa quanto na
Parece que apesar destes pedidos a quantidade de escravos negros espanhola, mas parece que em sua fase inicial os jesuítas, assim como outras
continuou muito aquém das necessidades. Por mais que os colégios de ordens religiosas e colonos, contaram com a força de trabalho dos índios em
Salvador, Pernambuco e depois, o do Rio de Janeiro (LEITE, 2000, tomo VI, p. suas propriedades e gradativamente foram introduzindo africanos (ABREU,
398), enviassem para o de Angola farinha e carnes e recebesse em troca alguns 2010, vol. 2, p. 36-46). Nas terras jesuíticas a presença de índios convivendo
negros africanos, este número não foi suficiente para o trabalho em suas terras. com negros era constante. Estes índios eram provenientes das missões ou
É importante, contudo, deixar claro que não havia uma única ideia aldeamentos, mas eram também "peças" doadas aos padres como esmolas,
a respeito da utilização de escravos por parte da Companhia de Jesus heranças e, em alguns casos, podia tratar até mesmo de prisioneiros de guerras
(ALENCASTRO, 2000). Alguns padres percebiam que ela era essencial para justas.
manter a autonomia e existência da missão religiosa e outros a viam como um Em 1602, o padre jesuíta Pero Rodrigues, reitor do colégio da capitania
grande e perigoso afastamento das doutrinas. Em função das disputas teóricas do Rio de Janeiro, demonstrando o quanto o colégio estava próspero, relatou
entre o padre Nóbrega, partidário da escravidão em terras bras ileiras, e de Luis que "pretos de Guiné" trabalhavam nas terras de Iguaçu ao lado de índios.
de Grã, o novo superior designado para substituí-lo, e que não via com bons Além deste trabalho nas roças os dois grupos eram utilizados também nas
olhos nem a existência de terras e muito menos de escravos, o geral da ordem, "obras e em outras cousas" (ABREU, 2010, vol. 2, p. 32).
Francisco de Borja proibiu a utilização do trabalho compulsório em terras da Na fazenda de Santa C ruz, de acordo com Benedicto Freitas (1985, p. 174
Companhia de Jesus em 1567. e 177), os jesuítas formaram sua gigantesca população escrava - por volta do
A situação deve ter ficado fora de controle porque já no ano seguinte, os ano de 1656, "pelo casamento de 40 índias com 40 africanos". Freitas continua
inacianos convocaram a Congregação Provincial e deliberaram que as fazendas seu relato explicando que com a chegada dos Carijós nas primeiras décadas
eram essenciais para a manutenção da ordem e do cristianismo nas Américas do século XVII havia começado a povoação da fazenda e eles desenvolviam
e que para mantê-las precisariam dos escravos. A Congregação autorizou aos todas as tarefas. Segundo seus argumentos, todo ano 30 a 40 casais se uniam
superiores, contrariando as ordens do superior geral, a obtenção de escravos. no matrimônio.
Oito anos depois, em 1576, em nova reunião, a Congregação Provincial A escolha por mulheres indígenas para os casamentos com os negros não
autorizou a ordem a possuir também escravos indígenas fazendo apenas a foi aleatória. Ela já havia sido utilizada por Nóbrega e é ele quem explica o
ressalva de que eles não deveriam ser administrados pelos próprios padres. motivo: "A causa por que se tomaram fêmeas é porque d'outra maneira não se
Deveria haver um administrador específico que ficaria sob a supervisão de um pode ter roças nesta terra, porque as fêmeas fazem a farinha, e todo o principal
religioso (LEITE, 2000, tomo 11, p. 350). serviço e trabalho é dellas, os machos somente roçam, e pescam e caçam, e
Em 1585, o padre José de Anchieta, em carta onde enviava informações pouco mais" (NóBREGA, 1988, p. 137- 143).
gerais sobre a Província do Brasil, relatou que nas proximidades de Salvador, Percebe-se por esta passagem que embora sendo utilizados como mão de
existiam 46 engenhos e nestes trabalhavam juntos três mil escravos da Guiné e obra escrava e de terem sido batizados e casados segundo os dogmas católicos,
cerca de 8 mil índios, entre escravos e livres. Mais à frente, ao relatar a situação estes índios não abandonavam completamente seus costumes e hábitos
dos padres que eslavam na cidade do Rio de Janeiro, informou que eles tinham seculares. As mulheres continuavam sendo responsáveis pela produção c isto,
umas terras a duas léguas da cidade (provavelmente era o engenho Velho) onde de uma forma ou de outra, era aceito pelos padres e, provavelmente, pelos
residiam mais de cem escravos e "índios da casa': Esta população era composta demais colonos.
por negros de Guiné e "índios da terra com suas mulheres e filhos': Esta mão Juridicamente, as mulheres indígenas, salvo aquelas capturadas em
de obra trabalhava não apenas no engenho, mas também prestava serviços de guerra justa, ao se casarem com negros escravos gerariam proles livres.
carpintaria, carreiras e outras funções (ANCHIETA,1988, p. 429). Entretanto, não era isto o que acabava acontecendo nos limites das fazendas. A
A Companhia de Jesus manteve em algumas regiões, e na capitania localização dos aldeamentos situados sempre muito próximos a elas facilitava
do Rio de Janeiro isto significou pelo menos até o século XVII, escravos sobremaneira a circulação .de índios e negros entre um espaço e outro e a
lsnara Pereira Ivo IEduardoFrança Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 121
120 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

e a produção elevada. Em um dos itens afirmava que era necessário elaborar


própria ideia de organização das famílias escravas em casas separadas já
uma lista de todas as famílias de índios e outra de escravos que viviam nas terras
delimitava a "liberdade", uma vez que a mulher ao morar com o marido escravo
e ao final das missas de domingo o administrador deveria fazer a chamada
ficava sujeita às mesmas regras definidas para a escravatura. O sacramento do
para verificar quem havia comparecido. Os que faltassem necessitariam de, no
casamento homogeneizava a todos como escravos, dos padres ou dos colonos.
domingo seguinte, dar explicações razoáveis e, em caso de não se justificar a
Serafim Leite, tentando explicar a formação da mão de obra da Companhia
ausência, receberiam de seis a oito açoites (CHEVALIER, 1950, p. 53 -54).
e a utilização de escravos indígenas convivendo com escravos negros, salientou
As relações sexuais entre índios e negros sempre foram proibidas pelas
que "os padres tiveram no Brasil escravos, índios e negros" e que a catequização
legislações coloniais (AMANTINO, 20 10, p. 82-100). Desde o século XVI
de ambos os grupos era feita em comum (LEITE, 2000, tomo Il, p. 345 e 353).
inúmeras foram as cédulas reais espanholas e ordens régias portuguesas
Para ele a presença dos indígenas nas fazendas inacianas teria sido uma forma
determinando esta proibição usando como argumento principal o fato de que
encontrada pelos padres para protegê-los dos interesses dos colonos. Como
estas relações eram prejudiciais aos interesses da colônia e da metrópole porque
eles já seriam escravos dos padres, não poderiam ser de outros, deixando de
geravam uma prole ainda mais difícil de controlar d o que a dos genitores. Além
ser "definitivamente... inquietados pelos moradores e [colocados] ao abrigo
disto, havia o problema legal, visto que os índios, em tese, eram livres e ao se
das agruras, vaivéns e moléstias da repartição, errando de fazenda em fazenda,
casarem com negros acabavam ficando retidos nas propriedades e tratados
com o lar desfeito" (LEITE, 2000, tomo IV, p. 175). Termina suas justificativas
como escravos. 1
lembrando que o trabalho era visto pelos inacianos como uma ''necessidade
~e~ta Ares Queija (2000, p. 77) cita um documento de 1551 voltado para
social" e um passo para a civilização. Desta maneira, os índios deveriam
a Amenca espanhola que ameaçava com a castração a todo negro que fosse
trabalhar nas aldeias e nas fazendas "que os jesuítas trataram de adquirir perto .
amancebado com uma índia. Entretanto, o problema destas uniões mistas e
delas para ocuparem os índios que a lei lhes facultava" (LEITE, 2000, tomo IV,
proibidas não foram resolvidas pela legislação. Em 24 de setembro de 1793,
p. 171). O trabalho os transformava em cristãos e em vassalos reais.
o Intendente do Paraguai denunciava os casamentos de índios com negras
A convivência entre índios e negros também pode ser percebida na
ou mulatas, escravas ou não, e a desordem que segundo ele d ecorria desta
Província Jesuítica do Paraguai. Em 1663, o visitador Andrés de Rada elaborou
situação. Citou em sua missiva o caso de um índio que havia fugido de um
uma lista de comportamentos que os administradores das haciendas deveriam
pueblo com seus filhos e se escondido em uma casa de uma espanhola. Lá,
ter. Por este documento fica claro que os índios e os escravos negros e mestiços
casou-se com uma mulata, escrava desta senhora. O Intendente não sabia o
conviviam nestas propriedades. Ainda que a documentação não deixe claro
qu~ fazer com o casal. Poderia separá-los? Analisando em uma perspectiva
que tipo de situação legal os índios possuíam, eram tratados da mesma forma
ma1s ampla o Intendente deixou claro o problema: os índios, ao desertarem d e
que os escravos negros. Ambos deveriam ser bem cuidados e doutrinados,
suas origens, ou 'seja, dos pueblos, ficavam sem pagar os tributos ao rei e, além
não deveriam trabalhar aos domingos e dias santos e deveriam receber
disto, como era mais comum eles se casarem com escravas, os filhos nascidos
atenção em casos de doença ou gravidez. Mas havia também questões mais
desta união ficavam cativos. A autoridade lembrava por fim que os senhores
específicas e que demonstram a proximidade entre os dois grupos étnicos. Em
tinham todo in teresse em abrigar em suas casas os índios fugitivos passando a
caso de punições estas não deveriam ser efetuadas pelos padres e sim pelos
ter um "esclavo disimulado': 2
mais velhos, fossem eles "morenos" ou índios; a distribuição da comida das
índias ou das negras deveria ser feita pelos seus maridos e não pelos padres
e, por último, os jesuítas não deveriam ir às casas dos escravos ou dos índios l. Regimento que sua Majestade há por bem se guarde na redução do gentio do Estado do
sozinhos. Precisariam estar sempre acompanhados de outro padre ou mesmo Maranhão para o grêm io da igreja e repartição e serviço dos índios, que, depois de reduzidos,
por um índio ou escravo de confiança (CusHNER, 1983, p. 41-43). assistem nas aldeias. Lisboa, 21 de dezem bro de 1686. Disponível em www.iuslusitaniae.fcsh.unl.
pt acessado em 28 de maio de 2008; Bando sobre não se casarem os escravos com Índios ou índias,
Essa convivência também pode ser identificada nas haciendas mexicanas. Na
em Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1696. Arquivo Nacional -Secretaria do Estado, Códice 77,
segunda metade do século XVIII, um jesuíta anônimo elaborou um manuscrito, volume 3. p. 54.
bastante parecido com as instruções dadas pelo visitador Rada, apresentando 2. Real Cédula de 26 de outubro de 154 1, dispondo que negros se casem com negras, dentro do
uma série de atitudes que deveriam ser tomadas para que os administradores possível e não com índias; Cédulas reais de 4 de maio de 1527, de 20 de julho de 1538 e de 1781
com o mesmo teor.
das haciendas, ou seja, os coadjutores temporais, conseguissem manter a ordem
122 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 123

Outro fator que quase sempre sustentou a justificativa da utilização da Em 1611 era o Padre Luis Brandão, reitor do Colégio de Luanda, que
mão de obra indígena foi o preço dos escravos africanos ser muito elevado. Em respondia ao padre Alonso de Sandoval a respeito do mesmo tema. Em sua
1594, o Provincial do Brasil afirmava que um negro de Angola valia mais de missiva demonstrava as relações que a Companhia mantinha com o tráfico,
vinte mil réis. Em 1610, o padre Jacome Monteiro explicava que para manter com a escravidão e suas ideias a respeito do que seria legítimo em termos de
um engenho de açúcar na Bahia eram necessários de 50 a 60 negros (LEITE, cativeiro:
2000, tomo VI, p. 404). Seria muito difícil para a ordem manter suas numerosas
escravarias tendo que recorrer constantemente ao mercado e, por outro lado, o Nós mesmos que vivemos aqui já faz quarenta anos e temos entre nós padres
colégio de Angola também não poderia enviar grandes quantidades de africanos muito doutos, nunca consideramos este tráfico como ilícito. Os padres do
porque era acusado todo o tempo, pelos seus inimigos, de fazer comércio, Brasil também não, e sempre houve, naquela província, padres eminentes
prática proibida pelos superiores. Apesar de alguns jesuítas defenderem uma pelo seu saber. Assim tanto nós como os padres do Brasil compramos aqueles
maior participação da Companhia nas questões ligadas ao tráfico negreiro, escravos sem escrúpulos ... Na América, todo escrúpulo é fora de propósito...
havia por outro lado, certa resistência por parte de suas autoridades. Exemplo É verdade que quando um negro é interrogado, ele sempre pretende que
dessa posição foi a do Padre Geral Acquaviva que considerou essa possibilidade foi capturado por meios ilegítimos. Mas por esta resposta ele quer obter
como comércio e gerador de lucros e, portanto, proibida a eles. sua liberdade: por isso nunca se deve fazer este tipo de pergunta aos negros
Ainda que proibidas, ou pelo menos não totalmente aceitas pela ordem, (SARAIVA, 1967, p. 1307).
os padres de Angola remetiam para os do Brasil certo número de escravos.
Todavia, não há como provar que eles efetivamente realizassem tráfico regular Apesar da possibilidade da existência de cativeiros injustos, o padre
(O'NEILL E DOMINGUES, 2001, p. 1256; ALDEN, 1996, p. 544). acreditava que eles não eram "numerosos e [seria] impossível procurar estes
As concepções que os jesuítas localizados em Angola possuíam a respeito poucos escravos ilegítimos entre os dez ou doze mil que partem a cada ano do
do envio de escravos para o Brasil eram muito claras, segundo demonstra a porto de Luanda': Assim, concluía o padre, "Não parece um serviço a Deus
carta redigida em 1593 pelo Padre B. Barreiras: perder tantas almas por causa de alguns casos de escravos ilegítimos que não
podem ser identificados." (SARAIVA, 1967, p. 1308)
Não há escândalo nenhum em padres de Angola pagarem suas dívidas em Por maneiras variadas, a Companhia de Jesus conseguiu acumular um
escravos. Porque assim como na Europa o dinheiro corrente é o ouro e prata número expressivo de escravos nas Américas. Em 1757, dois anos antes da
amoedado, e no Brasil o açúcar, assim o são em Angola e reinos vizinhos os expulsão dos jesuítas de Portugal e de seus domínios, estes religiosos, em
escravos. Pelo que, quando os padres do Brasil nos mandam o que lhe de cá um relatório ao superior da ordem, informaram que nas capitanias de São
pedimos, como é farinha [de mandioca), e madeira para portas e janelas, e Paulo, Espírito Santo, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro havia 5933 escravos
quando os donos das fazendas que vem a esta parte nos vendem biscoito, distribuídos entre os colégios, fazendas e engenhos (Catálogos breves e
vinho e outras coisas, não querem receber de nós a paga em outra moeda, trienais). Ainda que com algumas flutuações ou anos sem registros, o que
senão na que corre pela terra, que são escravos. Dos quais se carregam cada se percebe é que de uma maneira geral, os jesuítas da América portuguesa
ano para o Brasil e Índias .... nas alfândegas do Brasil, aonde estes escravos conseguiram manter relativamente estável o número de seus escravos ao longo
nossos até agora se mandavam, não pagamos direitos por privilegio de S. do século XVIII.
M., como também pelo mesmo privilégio, não pagam direitos, os padres, do
açúcar que vendem no Brasil, nem de outras coisa em Portugal':3

3. Monumenta Missionária Africana: África Ocidental. Compilação e notas de Antônio Brasio


(1469- 1599). Lisboa: Academia portuguesa da história, 1988, vol. III, p. 333· 340.
124 RELIGIÚES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França PaivaIMarciaAmantino (orgs.) 125

Tabela 1 - Mão de obra escrava por capitanias - superiores antes da expulsão de 1767, os padres n ão tenham disponibilizad o
América portuguesa, 1701 -1757 os números de cativos que possuíam, com exceção do colégio de Córdoba.
Pode-se aventar como possibilidade que eles estivessem "escondendo" esta
ANOS São Paulo Espírito Santo Pernambuco Bahia Rio de Janeiro informação para que ela não caísse em mãos de inimigos da ordem, que, a esta
altura, já estava sendo bombardeada por inúmeras críticas a respeito de sua
1701 60 200 920 758 950
suposta riqueza.
1707 52 200 200 700 900
1722 180 -- -- 876 -- Tabela 2 - Escravos dos maiores colégios, fazendas e ranchos dos jesuítas
1725 252 419 -- 1.149 1.000 na Argentina Colonial, 1710-1767
1732 -- -- -- 12 (?) 1.200
1736 357 535 104 1.057 1.500 Propriedade 17!0 1720 1740 1744 1753 1763 1767
1738 370 583 455 1.466 2.586 Córdoba 460 325 758 522 400 961 1043
1743 264 633 192 1.437 2.337 Santa 244 244
Catalina
1757 406 826 523 1.527 2.651
Buenos Aires 185 129 192 250 347 381
Fonte: Catálogos breves e trienais - 1701 -1736, Br. 6/ll
Corrientes 40 62 95 60 37

Santiago dei 80 88 150 195 158 326


As haciendas jesuíticas da América espanhola também possuíam elevados Estero
contingentes de escravos. Em 1767, havia mais de 3500 espalhados por suas La Rioja 93 89 171 ISO 262

propriedades na Argentina Colonial perfazendo um total de 30% do capital Salta 57 57 70 71 81 - 80

inaciano (MELEAU, 2004; CusHNER, 1983, p. 102) . O'NEILL E DoMINGUEZ, Santo Fé 90 65 109 100 100

(2001 , tomo Il, p. 1256) afirmam que em 1767 n o momento da expulsão dos Tucuman 17 19 42 48 64 121

jesuítas eles possuíam cerca de 17.275 escravos repartidos da seguinte maneira Assunción 239 284 400 430 570 570

pelas Províncias Jesuíticas: o Novo Reino de G ranada contava com 1774 Fonte: (CUSHNER:l983,102)
ind ivíduos; Q uito com 1364; o Paraguai com 5164; o Peru com 5524; o Chile
com 2000. Além destes escravos distribuídos pelas Províncias também havia
no colégio Máximo do México cerca de 1000 cativos; em Puebla mais 75 e em
Havana mais 374 escravos. ÜS ESCRAVO S DOS I NA CIANO S V ISTO S P ELO S I NVENTÁRIOS DE 1 7 59 E 1 7 6 7
Ignácio Telesca (2008 e 201 1), analisando apenas o que é hoje a região
do Paraguai demonstrou que o colégio desfrutava do trabalho de cerca de Na capitan ia do Rio de Janeiro, os padres da Companhia de Jesus
345 escravos em 1730 e em 1735 o número de cativos já havia atingido 636. possuíam no ano de 1759 cerca de 3. 339 escravos (autos de inventários e
No momento de sua expulsão, em 1767 eles já eram ao todo 1002, assim sequestras). Como o objetivo neste momento é a identificação de como essa
distribuídos: 388 escravos pertenciam ao colégio; 530 estavam na Estância de escravaria foi identificada pelos inventariantes, optou-se por utilizar apenas
Paraguari e 84 viviam na Estância de San Loren zo. Este autor concluiu que os inventários que traziam essa informação. Desta forma, não entraram na
mais de 20% de todos os escravos do Paraguai pertenciam aos Jesuítas. elaboração da tabela abaixo as fazendas de San ta Anna de Macaé, dos Campos
Nicholas Cush ner (1983, p. 102) , utilizan do os relatórios elaborados dos Goitacazes e de Campos Novos, cujos inventários foram realizados pelo
pelos jesuítas acerca do n úmero de escravos na região da Argentina Colonial mesmo desembargador no final do ano de 1759 e ainda não foram localizados.
iden tificou, apesar da falta de dados para alguns anos, que a Companhia de Jesus Da mesma forma, os 1016 escravos listados na fazend a de San ta Cruz também
conseguiu ao longo do século XVIII manter elevados contingentes de escravos não foram contabilizados p or que o documento não faz qualquer men ção a
em seus colégios e h aciendas. É curioso que, no ano de 1763, portanto, depois cor, qualidade ou etnia d os escravos. Por último, também não fazem parte
da expulsão dos jesuítas do império português e último relatório enviado aos desta tabela os escravos do Colégio do Rio de Janeiro porque o inventariante
126 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 127

fez tão somente uma lista com os nomes e apenas com a informação se eram Tabela 3 - Qualidades, cores e etnias dos escravos das fazendas inacianas,
ou não casados. Ao todo foram listados 41 escravos. Destes, 19 eram homens Rio de Janeiro, 1759
solteiros e 16 eram casados, mas suas mulheres não estavam no colégio. Para
quatro escravos não aparece a informação de que eram ou não casados; apenas Classificação Engenho
Novo
São CrisÍovào Engenho
Velho ·
Papucaia • Saco São Totais
Francisco
uma mulher foi identificada e estava inscrita ao lad o de seu marido.4
A primeira informação que se percebe - e que dificulta sobremaneira # % # % # % # % # % #

o trabalho - é grande ausência de dados sobre as etnias, cores ou qualidades Cabras 3 1.31 4 1.26 2 0.75 3 0.96 12

dos cativos em quase todos os inventários realizados na capitania do Rio Pardos 3 1.3 1 22 6.94 9 3.37 7 2.24 41

de Janeiro. 5 Utilizando-se apenas os inventários que traziam informações Mulatos I 0.44 I 0.32 2

(ainda que lacunares) sobre a etnia, cor e/ou procedência, identificou-se que Mestiço I 0.32 I

de um total de 1.141 escravos, 1.035 (90.7%) não tiveram estas informações Fulas I 0.32 I

anotadas pelo avaliador. Todavia, nota- se claramente outros três conjuntos de C rioulos 36 11.50 9 16.67 45

escravos distribuídos pelas fazendas e engenhos: 56 mestiços (cabras, pardos, Africanos - 5 9.26 5

mulatos, mestiços c fulas) totalizando 1.9% desta escravaria; os crioulos com Sem 222 96.94 290 9 1.48 256 95.88 265 84.66 40 74.07 1075
identificação
45 indivíduos (3.9%) e cinco africanos (0.5%).
Total 229 100 317 100 267 100 313 100 54 100 1180
É evidente que na categoria dos "sem identificação" podem estar inseridas
todas as outras, mas não houve como identificá-los. Para anos posteriores há Fontes: Autos de inventários das Fazendas da Papucaia, do Engenho Velho, de São Cristovão, de
Santa Cruz e de São Francisco Xavier.
alguns inventários que permitem, ao analisar a formação dos casais, chegar à
conclusão de que grande parte dos filhos são mestiços. Todavia, não é este o
caso destes inventários de 1759, pobres neste tipo de informação. De qualquer
A título de comparação foi feita a análise da população escrava que
maneira, percebe-se que dentro das fazendas e engenhos inacianos havia uma
pertencia a três colégios inacianos, La Rioja, San Miguel del Tucuman e
variedade de qualidades/cores entre os escravos.
Santiago dei Estero, todos na Província Jesuítica do Paraguai. A expulsão dos
jesuítas desta região deu-se em 1767 e a partir desta data, da mesma forma que
ocorreu em terras do império português, foram levantados e inventariados
todos os bens jesuíticos. As listas dos escravos destes colégios permitiram o
mesmo procedimento acima (ANDRES-GALLEGO: 1986).
O Colégio de La Rioja teve seu inventário realizado em 1768. Naquele
ano, 274 escravos estavam espalhados por seis propriedades e em suas
rancharias. Eram 146 mulheres e 128 homens. No total de sua população
escrava encontrou-se 12 mulatos zambaios (as); 5 zambos; 146 mulatos/as.
Este grupo de 163 indivíduos era formado apenas pelos mestiços/as (59,49%).
Além destes, havia também 105 negros/as (38,32%) e seis pessoas que não
tiveram suas cores/qualidades definidas (2, 19%).

4. Provavelmente as mulheres dos escravos que foram identificados como casados estariam nas
faze ndas.
S. Sobre essa discussão ver PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das
Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o
mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada ao Departamento
de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 201 2.
128 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 129

Gráfico 1 - População do Colégio de La Rioja, 1768 Em 1768, no Colégio de Santiago del Estero havia 95 escravos. Destes, 45
eram mulheres e 50 homens, entre crianças, adultos e idosos. Esta população
6 estava organizada em 23 famílias e quatro pessoas foram apresentadas sem
qualquer relação familiar. O inventariante deste colégio fez questão de
105 • Mestiços identificar inúmeras variações de qualidade/cor nos escravos, ainda que tivesse
38.32% • Negros deixado 42 pessoas sem qualquer tipo de classificação (44,21%). Percebeu que
Sem identifi:ação 9 eram negros/as (9,47%) e 44 eram mestiços/as (46,32%). Dos 42 casos sem
identificação, 34 são filhos de pais mestiços. Assim, sem identificação são
apenas 8 casos (8,42%) e o número de mestiços/as sobe para 78 (82,10%).

Gráfico 3 - População escrava do Colégio de Santiago Del Estero, 1768


Fonte: (ANDRES-GALLEGO: 1986).

O Colégio de San Miguel del Tucuman, cujo inventário também data


de 1768, apresentava nesta época 127 escravos, distribuídos da seguinte • Negras
forma: 5 eram mestiços/as (3 .94%); 20 foram identificados como crioulos/as • Mestiças
(15.75%); 18 como africanos/as (14.17%); 17 como negros/as (13.38%) e 67 • Filhosmeliças
sem identificação (52.75%). • sem identifcação

Gráfico 2 - População escrava do


Colégio de San Miguel dei Tucumán, 1768

67
Fonte: (ANDRES-G ALLEGO: 1986).

O quadro de qualidades/cores dos escravos apresentados pelo inven-


tariante do Colégio de Santiago del Estero é significativo de como os mestiços
• 42 Tri
poderiam ser vistos pela população com uma gama variada de denominações
podendo significar além de diferentes tons de pele, valorações sociais e
hierárquicas.

Fonte: (ANDRES-GALLEGO: 1986).


130 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 131

Tabela 4 - Mestiços do Colégio de Santiago dei Estero, 1768


informação voltamos ao início de nossos argumentos e das explicações dadas
por Antonil a respeito das "crias da casa':
Qualidade Quantidade
A documentação de sequestro e inventário das fazendas inacianas de
Mulato/a 17 1759 permite pensar que a reprodução endógena foi escolhida pelos jesuítas
Espanholado 1 como uma maneira de estabelecer uma escravaria organizada a partir
Mulato/a claro/a 3 das famílias formadas por índios, negros e seus descendentes. Esta opção
mulata petisa 1 gerou, evidentemente, uma população onde a maioria era mestiça. Algumas
mulatinho claro 1 vantagens econômicas eram claras para os padres neste tipo de organização
social além das relativas ao controle sobre esta população: os administradores
mulato aindiano 4
temporais não necessitavam buscar mão de obra fora de suas próprias fazendas
mulato azambado 3
e engenhos e, como consequência, a sua dependência do comércio negreiro
negro/a azambado/a 2 africano era relativamente baixa na capitania do Rio de Janeiro (PINO, 2010;
negro claro 2 CAMPOS, 2011; GRAÇA FILHO, PINTO E MALAQUIAS, 2007). Além disso, esta
negro pardo 1 opção pela reprodução endógena favorecia a existência de um grande número
zambo/a 3 de pessoas que, no futuro, abasteceriam a própria propriedade (AssuNÇÃO,
zambo/a obscuro/a 6 2004, p. 324-325).
A tabela 5 demonstra a grande presença de pessoas identificadas como
Total 44
"cria': "de peito': "filho de" ou "filha de" na escravaria inaciana do Rio de
Fonte: (ANDRES-GALLEGO: 1986).
Janeiro. Neste universo a idade máxima (quando aparece nos registros) é
de 15 ou 16 anos. Isso pode nos sugerir que a partir desta idade os jovens
já estariam prontos para os casamentos. Pelo menos foi isso que aconteceu
Se por um lado é difícil, ou melhor, quase impossível definir como foram com a tal rapariga que matou o marido a cuteladas no engenho de Santl\nna
identificados por parte dos inventariantes os escravos mestiços que viviam de Ilhéus. Ela não tinha nem 18 anos quando cometeu o assassinato e já era
nas fazendas, engenhos e haciendas da Companhia de Jesus na América casada. O mesmo padrão pode ser identificado nos inventários das fazendas
portuguesa e espanhola, pode-se perceber a enorme presença de pessoas de do Rio de Janeiro onde a idade mínima das mulheres casadas também está na
ambos os sexos com idades que variavam a "de peito" até 15/16 anos. Esta é faixa dos 17I 18 anos. 6
uma informação importante para o entendimento da composição escrava dos Parece que as mesmas ideias foram basilares para a formação da mão
inacianos e de como eles se relacionaram com o mercado local e externo de de obra nas haciendas jesuíticas da Província Jesuítica do Paraguai. Nos três
reposição desta mão de obra. colégios analisados, Santiago dei Estero, La Rioja e San Miguel del Tucuman,
a população com idades variando de 1 até 15 anos era bastante significativa.
A IMPORTÂNCIA DAS CRIAS DA CASA Santiago dei Estero, que possuía 95 escravos, apresentava um total de 45
indivíduos nesta faixa etária (47,36%); dos 274 cativos de La Rioja, 116
Ao relatar um caso onde três escravas estavam sendo enviadas para fora possuíam até 15 anos (42,33%) e San Miguel Del Tucuman, que tinha 127
do engenho de Santl\nna dos Ilhéus em 1731 em função de uma delas ter escravos, apresentava um percentual de 42,51% de sua escravaria, ou seja, 54
matado seu marido com um cutelo por causa de ciúmes, o padre Matheus indivíduos nesta faixa etária.
de Souza declarou a preferência dos jesuítas pelos escravos nascidos em suas
propriedades. Apesar do crime, tratava-se de uma rapariga "boa serviçal e
sadia" e referindo-se às três cativas, lembrava que "na verdade são crias que
sempre são melhores que os comprados" (AssUNÇÃO, 2004, p. 329). Com esta 6. É importante lembrar que estas idades foram determinadas pelos avaliadores e apresentam
uma aproximação da realidade.
132 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 133

Tabela 5 - População adulta e não adulta das fazendas, engenhos e Pelos dados acima, percebe-se que entre os escravos dos jesuítas
haciendas inadanas- Rio de Janeiro, 1759 e Argentina Colonial, 1767 havia condições para o nascimento de filhos e que muitas destas crianças
conseguiam passar pelos riscos dos primeiros meses de vida (AssuNÇÃO, 2004,
Propriedade População População % População % p. 328). Infelizmente, não há como saber quantas crianças morriam nestas
total adulta não adulta propriedades, tanto na capitania do Rio de Janeiro quanto nas da Argentina
~ 16anos < 16 anos Colonial analisadas, mas este número não deveria ser muito elevado em
São Cristóvão 31 7 179 56,46 138 43.53 função dos cuidados que as instruções, já vistas anteriormente, davam aos
Engenho Novo 208 108 51,92 100 48.07 seus administradores.
Engenho Velho 267 150 56, 18 117 43.82 A formação de famílias foi, sem dúvida, o alicerce para que nascessem
tantas crianças em cada uma destas estruturas agrárias. A falta de casamento
Papucaia 313 I SO 47,92 163 52.07
não só era um pecado grave cometido pelos escravos, mas também por parte
Santa Cruz 1016 480 47,24 536 52.75
daquele que devendo exigi-lo não o fazia, ainda mais em se tratando de uma
S Franc Xavier 54 27 50 27 50 fazenda religiosa. Benci, em sua obra Economia Cristã dos senhores no governo
Santiago de! Estero 95 50 52,63 45 47.36 dos escravos, definiu as funções do matrimônio: "não só para propagação do
La Rioja 274 158 57,66 11 6 42.33 gênero humano, senão também [... ] para remédio da concupiscência e para
S M. Tucuman 127 73 57,48 54 42.51 evitar pecados". Como os senhores não tinham como evitar os pecados de seus
Fontes: Autos de inventários das Fazendas da Papucaia, do Engenho Velho, de São C ristovão, de
escravos (até porque eles mesmos eram pecadores), era mister que os casassem
Santa Cruz e de São Francisco Xavier e ANDRES-GALLEGO: 1986. (BENCI, 1954, p. 102).
Além do caráter religioso, segundo as concepções e práticas jesuíticas,
O gráfico abaixo demonstra em termos percentuais a grande presença poucos casamentos em uma fazenda significavam uma baixa natalidade e,
de pessoas com menos de 16 anos entre os escravos dos inacianos nas consequentemente, a falta de braços para o trabalho. O padre Luis Veloso,
propriedades analisadas. administrador de um engenho na Bahia, lembrava que seu sucessor deveria
incentivar os casamentos entre os cativos "a fim de evitar mancebias e
Gráfico 4 - Percentual de população adulta e não adulta entre os escravos incentivar a concepção, pois as crianças seriam futuramente benéficas para o
dos jesuítas, Rio de Janeiro, 1759 e Argentina Colonial, 1767 engenho, como força de trabalho". Todavia, alguns inacianos tinham descaso
com a questão dos casamentos dos cativos da ordem e isto era um fator de
preocupação. Alguns administradores, ou por não terem tempo em função
100
das atividades que o engenho ou fazend a exigiam, ou por descaso mesmo, não
80 se preocupavam em manter os escravos vivendo dentro dos padrões morais
católicos e como consequência disto, muitos viviam amancebados ou visitando
60 as senzalas uns dos outros livremente (AssuNÇÃO, 2004, p. 325-331).
Para que as famílias dos escravos existissem, era necessário que o número
40
de homens c de mulheres fosse equilibrado e isto os padres conseguiam de
20 maneira quase matemática. Quando por algum motivo, a diferença entre os
sexos aumentava, eles recorriam ao mercado, solicitavam peças específicas
o ao colégio de Angola, ou trocavam escravos entre as próprias fazendas e
haciendas. O gráfico abaixo demonstra o acentuado equilíbrio sexual entre os
escravos dos inacianos.
Fontes: Autos de inventários das Fazendas da Papucaia, do Engenho Velho, de São
Cristovão, de Santa C ruz e de São Francisco Xavier e ANDRES-GALLEGO: 1986.
134 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 135

Gráfico 5 - Divisão sexual dos escravos por fazendas jesuíticas, Rio de otros que están solteros y com esta diligencia parece ser se aquieten y cumplan
Janeiro (1759) e Argentina Colonial (1767) mejor ellos com su obligación y nosotros con la nuestra:' O casamento foi
uma forma que os inacianos encontraram e souberam se aproveitar bem para
controlar seus cativos e mantê-los produzindo.
600 A formação de tantas famílias e o consequente nascimento de um número
500 significativo de crianças permitiu, como já visto, que os padres inacianos não
400
tivessem uma grande dependência do mercado de escravos africanos. Isto não
300
200 ~------------ • Homens significa que eles não recorressem a este mercado quando precisavam; apenas
100 que não eram reféns dele e de suas flutuações.
o • Mu lheres A Companhia de Jesus, por suas próprias características de organização,
In deter. que remontavam à época de Ignácio de Loyola, mantinha um intenso
intercâmbio de produtos e mercadorias entre seus colégios. A remessa
de escravos, conforme já visto, era constante, mas significava uma série de
problemas. Os padres eram acusados por seus inimigos de estarem realizando
comércio; ao chegarem às propriedades inacianas, os africanos, ainda não
Fontes: Autos de inventários das Fazendas da Papucaia, do Engenho Velho, de São Cristovão, de catequizados e sem famílias, geravam problemas internos entre a escravaria e
Santa Cruz e de São Francisco Xavier e ANDRES-GALLEGO: 1986. era necessário, então, arranjar-lhes companheiros/as.
A melhor maneira de não desencadear todos estes problemas no seio
de suas escravarias e tendo em conta que os padres já tinham numerosos
Na fazenda de São Cristóvão, na capitania do Rio de Janeiro, havia 92 contingentes de escravos e que, portanto, não precisavam dos africanos, era
famílias e estas englobavam 307 pessoas, ou seja, 93,31% de pessoas estavam vendê-los nos mercados ou enviá-los para outras regiões, obtendo dinheiro
ligadas ou já haviam tido no passado, como os viúvos, algum tipo de família. para investir em outras necessidades.
Dos 329 cativos listados, apenas 22 foram identificados sem indício de ter ou Os dados populacionais das fazendas analisadas permitem perceber
de ter tido algum laço familiar. Era uma mulher solteira e os demais idosos que o número de africanos é realmente muito baixo se comparado com os
sem parentes. É evidente que este último grupo pode se referir a viúvos, mestiços e crioulos. A fazenda que apresentou o maior número deles foi a de
aumentando ainda mais o número de pessoas presas a famílias, mas como a San Miguel dei Tucumã, com 18 indivíduos, representando apenas 14.17% de
fonte não deixou isto claro, tomou-se por base que eram pessoas sozinhas. A sua escravaria. Na capitania do Rio de Janeiro, a fazenda com a maior índice de
fazenda de Papucaia é outro exemplo desta organização social dos escravos. africanos foi a do Saco de São Francisco Xavier com cinco escravos de "nação
De um total de 313 indivíduos, 308 (98.40%) estavam inseridos em alguma das Angola" (9.25%).
78 famílias com duas ou até três gerações. Resumindo, e retomando brevemente o que já foi explicitado anterior-
Esse mesmo padrão pode ser encontrado nas outras fazendas da capitania mente, a maior parte da população cativa dos inacianos era formada por
do Rio de Janeiro, mas esta era também uma preocupação dos padres que viviam mestiços e crioulos, ou seja, pelos nascidos em suas próprias fazendas,
na América espanhola. Em 1734, o provincial Jaime Aguillar recomendou que engenhos e haciendas. A mestiçagem de seus escravos foi a base na qual
se comprasse 12 homens para servirem de pares para as 12 mulheres solteiras os jesuítas assentaram a formação e manutenção de suas propriedades.
que viviam no rancho. Em 1745, o provincial Bernard Nusdorfer ordenou Pelo menos na capitania do Rio de Janeiro, isto significou que o sucesso do
o mesmo para o colégio de Corrientes. Salientou, inclusive, que não fossem projeto colonial cristão desenvolvido pelos padres pautava-se no sucesso
dadas autorizações para que os cativos se cassassem com mulheres livres da reprodução desta mão de obra mestiça, sem a qual suas fazendas não
(CusHNER, 1983, p. 101). Carlos Mayo (2004, p. 149) cita também a visita do funcionariam. Como resultado desta mestiçagem, que era evidentemente
jesuíta José Barreda feita na residência de Montevidéu na segunda metade do sacramentada pelos casamentos, houve um constante nascimento de crianças.
século XVIII. O jesuíta teria então indicado a compra de negras "para casar los Isto significa postular que a existência de um grande número de pessoas com
136 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 137

idades abaixo de 16 anos foi essencial para o sucesso deste projeto uma vez que Doe 19465 p. 48 - Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Officinas
elas representavam uma "reserva de mão de obra" para o futuro das instalações
Graphicas da Biblioteca Nacional, 1951, v. 71.
jesuíticas. Além do que, como eram pessoas nascidas no seio de famílias
estabelecidas pelos parâmetros cristãos inacianos e que cresciam segundo Carta do padre Geral Tamburini ao padre José de Aguirre em 17 de janeiro de
estes mesmos padrões e comportamentos, davam prosseguimento ao modelo 1722. Citado por PAGE, Carlos. La estancia jesuítica de Alta Gracia. Córdoba:
de convívio que os padres almejavam para sua escravaria: homens e mulheres Universidad Catolica de Cordoba, 2004, p. 204.
cativos, cristãos e obedientes. Carta de Manoel da Nóbrega para o padre Simão, em 1549. NÓBREGA,
Essas características dos escravos estavam em consonância com Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988,
as diretrizes cristãs que os inacianos pregavam para todos os colonos: a p. 84.
escravidão de alguns grupos de índios ou de negros era necessária para manter
IANT, Cartório Jesuítico, maço 70, doc. 428. Citado por ASSUNÇÃO, Paulo
o projeto catequético, mas ela precisa existir segundo os dogmas da igreja, ou
de. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São
seja, alicerçada no casamento para evitar os pecados da carne, no batismo das
Paulo:Edusp, 2004, pp.324-325
crianças nascidas destes enlaces e na doutrina e catequese destes grupos.
IANTT, Cartório Jesuítico, maço 70, doc. N. 170. Citado por ASSUNÇÃO,
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lsnaraPereira Ivo 1 Eduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 139
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no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. persuasão, existe aquele que ouve com vistas a ser persuadido, outro que fala,
muito interessado em persuadir, e um espaço enorme entre eles. É exatamente
neste espaço que a crença, resultante da leitura feita pelo ouvinte do discurso
do falante, irá se instalar. Nesse vão, que não comporta a crença original do
convertido, mas que igualmente não contém plenamente as verdades trazidas
pelo seu interlocutor, surgirá um conjunto mestiço de saberes, composto
pelo encontro das memórias e certezas de ambos os lados. Faz-se necessário
dizer que, em geral, a fala não é portadora de toda a ortodoxia, ela mesma
é o produto de uma simbiose anterior. Aquele que se coloca na posição de
convencer, em algum momento no seu passado foi socializado com crenças
não exatamente ortodoxas, e posteriormente foi doutrinado por alguém, que,
como ele, havia sido doutrinado anteriormente, em processos sucessivos, mas
necessariamente imperfeitos.
No caso das crenças religiosas, dado que por meio delas "o homem se faz
capaz de simbolizar e de viver ritualmente o espaço imaginário e não somente
o espaço-tempo objetivo': (Sc HWARZ, 200R, p. 26) resulta que a persuasão se
transforme em um gerador de novos interlocutores que garantirão, em última
instância, que o patrimônio desta filiação religiosa possa se perpetuar no tempo
e se expandir pelo espaço, ainda que se transforme um pouco a cada vez que
é transmitido. É possível que esse processo se observe mais particularmente
nas crenças missionárias e expansionistas, como o cristianismo e o islamismo
(esse menos que aquele), que na mesma medida em que incorporam novas
populações às suas fileiras de fiéis também incorporam elementos culturais, que
142 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS 143
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

em maior ou menor grau acabam por realizar interpretações, transformações aos escravos que terem sido capturados na África e trazidos às terras onde
e adaptações no patrimônio herdado. Porém, ao fim e ao cabo, é possível que habitavam cristãos, que os instruiriam e batizariam e os tornariam herdeiros
mudança enseje a sobrevivência. Isso foi particularmente verdadeiro no caso do Reino dos Céus, era uma grande fortuna. Afirmavam em seus sermões
do cristianismo. aos escravos que o cativeiro terreno era um preço razoável a se pagar, já que
Tomado desde os primórdios pela necessidade de adaptar suas demandas, não seria comparável ao cativeiro infernal de onde teriam escapado. De certo
que in_icialmente estavam profundamente ligadas à ritualística judaica, para modo seguiam um princípio que acompanhava o pensamento católico desde o
poder mcorporar populações externas a estes costumes e liturgias, o cristianismo medievo: sacrificar o corpo em prol da alma. Doutrinariamente, este princípio,
revelou u~~ incrível capacidade de absorver elementos de outras culturas que que não chegou a figurar claramente na doutrina católica, encontra respaldo
fossem mmimamente compatíveis com o seu credo e compatibilizar outros apenas na ideia de optar-se sempre pelo mal menor, reflexão obtida de Tomás
que, a princípio, não o eram. Essa vocação à versatilidade sem sombra de de Aquino sobre Aristóteles, que classifica o mal menor, em relação ao mal
dú:'i?a foi um dos fatores determinantes para o incrível sucesso desta tradição maior, como bem. Sendo os jesuítas herdeiros do pensamento escolástico-
rehgwsa frente a outras mais bem consolidadas na Antiguidade. tomista, faz sentido que o argumento que transforma o mal menor em bem
Um dos corolários deste habitus missionário foi a virtual inexistência abundasse nos seus textos - escritos ou falados.
de bordas limítrofes de sua ação pregadora. O objetivo foi, desde o princípio, Talvez por nutrirem um projeto muito peculiar, de relações quase
que a Palavra alca~çasse todos os seres humanos do mundo. E é aí que familiares na escravidão, é que empreendiam parte de seu ministério no que
enc~ntramos o obJeto deste estudo. Na empreitada hercúlea de expandir acreditavam ser um processo de transformação destes homens e mulheres,
o numero dos que foram alcançados pela pregação de seus membros, num chegados com a pecha de gentios, em cristãos católicos e filhos de Deus,
momento particularmente difícil para sua principal vertente - o catolicismo - capazes, inclusive, de contrair parentesco espiritual e batizar seus filhos
é que veremos um grupo específico de sacerdotes tentando cumprir a meta de por penhor de sua própria fé.1 Ainda que isso implique uma integração na
levar a salvação aos confins da Terra. sociedade na escala hierárquica mais baixa possível, dotava-os de subjetividade
O anseio de conduzir o próximo, ainda que este estivesse a centenas de sacramental. Ou seja, conferia-lhes um status suficientemente capaz de serem
milhas de distância, ao Reino dos Céus moveu o coração e a mente de dezenas sujeitos do sacramento, sobre quem repousa todo o peso da eficiência do
de _missionários que buscavam levar a sua pregação para que fosse ouvida e
mesmo. 2
assim, como disse o Concílio, com ela chegasse a conversão. Mas em outro Para o catolicismo no início da era Moderna, expresso pelo Concílio de
sent_ido, ta~bém é possível pensar que a mesma salvação que chega pelo Trento, os sacramentos são "por onde começa toda verdadeira santidade, ou
ouvir tambem vem do falar. Dito de outro modo, se a salvação ao que ouve começada se aumenta, ou perdida se recobra". 3 Os sacramentos e sua obtenção
chega pela conversão derivada da pregação dos padres, aos padres esta mesma são elementos fundamentais na concepção soteriológica católica, por isso
salvação chega à medida que pregam para os pretensos conversos. Isso torna a pontilham toda a vida dos fiéis, marcando-lhes a existência e conferindo-lhe
pr~gação e a catequese, em qualquer que seja a circunstância, um processo de
um sentido transcendente. O batismo é o primeiro de todos, após o qual vêm
mao dupla, fazendo d~ pregação, em última análise, um interesse do próprio o crisma e o matrimônio ou a ordem, como sacramentos cujo efeito é uma
pregador, que por meiO dela alcança a salvação para si, garantindo um lugar "marca" indelével no espírito daquele que o recebe e por isso só podem ser
melhor para a Eternidade.
Assim, no caso que apresentamos - pregadores jesuítas e os africanos
escravizados que os ouviam - a fala constituía-se parte fundamental, em
torno da qual girava a soteriologia jesuítica da escravidão. A finalidade deste l O que se entende por "penhor da fé" é que os recém-nascidos são batizados com a garantia de
que os pais católicos vão zelar pela sua educação dentro dos preceitos.
aparato discursivo é clara: converter o africano escravizado em um cristão
co_m função es_pecífica ~ lugar determinado na sociedade corporativa na quai
2. Pela teologia sacramental católica, o sacramento tem sua eficácia pelo poder de Cristo que o
opera (ex opere operato), mas tem sua eficiência na subjetividade de quem o recebe que pode ou
fm compulsonamente mtroduzido. Por outros meios: o objetivo sempre foi não fazer pleno gozo dos benefícios implícitos no sacramento (ex opere operandi). Cf. Catecismo
transformar o outro em algo distinto do que ele é. Por isso, jesuítas como da Igreja Católica, parágrafo 1128.
3. Esta defin ição encontra-se no Proêmio da seçãoVII do Concílio de Trento, Título "Os
Sandoval e Claver, assim como Antônio Vieira e outros depois deles, pregavam
Sacramentos':
144 RELIGIOES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 145

recebidos uma única vez. A confissão/p enitência, a Eucaristia e a unção dos ainda no século xvr, entre os anos de 1582 e 1585, em dois pontos distintos
enfermos, ou a extrema-unção podem ser recebidas várias vezes na vida, pois da América espanhola, celebraram-se concílios cujo objetivo era normatizar,
são considerados remédios na manutenção do estado de Graça e sanidade da segundo as especificações tridentinas, a vida dos católicos nos seus respectivos
alma e d o corpo. do mínios.
Dados os objetivos deste trabalho, qual seja refletir acerca do conteúdo O ponto de contato entre os dois concílios provinciais do século xv r e o seu
da pregação dos jesuítas e do possível impacto desta pregação sobre semelhante do início século xvm, este o único ocorrido no Brasil, é a existência
comportamentos e práticas dos que foram alvos da fala que salva, nos de cláusulas exigindo que os escravos negros fossem batizados. Além disso,
ocuparemos com dois sacramentos específicos. Primeiro o batismo, dado estabeleciam que a compreensão da doutrina e o desejo de receber o batism o
ser este o umbral que conduz ao seio da Igreja e por isso precedido de uma seriam condição para o mesmo. Havia também em todos os três documentos a
conversão - própria ou dos p ais que, em penhor de sua fé, pedem o batismo autorização para a simplificação da doutrina em casos específicos: enfermidades
de seus filhos -; depois o matrimônio, uma vez que este está intimamente graves, ouvintes muito velhos ou muito rudes. No Concílio Provincial do
vinculado aos conceitos de moral e comportamento sexual lícito defendidos México fica claro que é proibido levar escravos comprados para as minas ou
pela Igreja tridentina. As fontes para este estudo serão, para o caso do batismo, cárceres sem antes batizá-los, ainda que fossem instruídos de forma precária.
documentos da Igreja (Concílio de Trento, Catecismo Romano, Concílios Em suma, os que eram considerados impossibilitados de compreender, ou por
provinciais de Lima, México e Bahia, além de textos de clérigos da Companhia) uma eventual falta de tempo ou por uma atávica falta de capacidade, poderiam
e os registros de batismo de escravos da estância Caroya, na Argentina. Para os receber uma versão resumida da doutrina católica antes do batismo.5
matrimônios usaremos, além destes, listas nominativas dos sequestras de bens Mas em que consistiria essa catequese dos "muito brutos" ou "rudes"? As
dos padres da Societas Jesus no Brasil e na Argentina. Constituições Primeiras mandam que se ensinem

Ü BATISMO E A CATEQUESE DE ESCRAVOS [... ] especialmente a seus escravos que são os mais necessitados desta
instrução pela sua rudeza, mandando-os à Igreja para que o pároco lhes
Durante a Idade Média o costume de batizar as crianças logo depois de ensine os Artigos da Fé, para saberem bem crer; o Padre-Nosso, e Ave Maria
nascer, fiando-se na fé de seus pais, eliminou a necessidade de uma pregação para saberem bem pedir; os Mandamentos da Lei de Deus, e da Santa Madre
que conduzisse à conversão dentro das populações já alcançadas pela Igreja, e os pecados mortais, para saberem bem obrar; as virtudes para que
Cristandade. 4 Chegou-se, pois, ao início da Era d os Descobrimentos, quando as sigam; e os sete sacramentos para que dignamente os recebam e com
novas populações que seriam incorporadas à Cristandade deveriam ser eles a Graça que dão, e as mais orações da Doutrina Cristã para que sejam
catequizadas, com um sistema catequético mais enxuto que o da Antiguidade, instruídos em tudo, o que importa para a salvação. (VIDE, 2007, p. 2-3).
que poderia demandar até três anos de dedicação como ouvinte para que se
fosse considerado apto ao batismo. Este esquema sistematiza o conteúdo da doutrina por meio de uma
O Concílio Trento e o Catecismo Romano, resultante do concílio, exposição compartimentada dos elementos da fé que foi usada até bem pouco
conferem grande importância ao batismo e à catequese pré-batismal, em tempo.6 O Catecismo Romano seguiu este modelo, assim como outros antes
especial pelos questionamentos lançados pelos reformadores. Na América, e depois dele. As partes essenciais eram o sinal da Cruz, as orações (incluindo
tanto o Terceiro Concílio Provincial de Lima quanto o Terceiro Concílio os chamados atos - como o ato de contrição), o Credo - um dos símbolos
Provincial d o México buscam aplicar as fórmulas catequéticas de Trento na com o resumo dos ensinamentos do catolicism o -, os dez mandamentos da
América espanhola, o que no caso da América portuguesa só ocorreria muito
depois com as Con stituições Primeiras do Arcebisp ado da Bahia. Ou seja,

S. Aos que estavam em perigo de morte poderia se batizar sem doutrinação alguma.
4. Aqui estamos nos remetendo ao sentido de Cristandade empregado por Francisco José da 6. O que chamamos de exposição compartimentada consiste em agrupar os saberes em
Silva Gomes. Cf. GOMES, F. J. S. "A Cristandade medieval entre o mito e a utopia" Topoi, n. 5, categorias, como artigos da fé (no que se crer), orações (o que pedir), mandamentos (o que fazer
julho-dezembro. 2002. p. 221 -231. e o que não faze r) etc.
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 147
146 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVI DÃO EMESTIÇAGENS

Alonso de Sandoval aplica de modo bastante pragmático uma pedagogia


Lei de Deus e os mandamentos da Igreja, os sacramentos, os pecados mortais baseada num deus que premia e castiga, conforme a adesão à pregação.
e veniais (interdições) e as boas obras (atos que a igreja recomendava). 7 De Claver, seu sucessor, legou ao mundo poucos escritos próprios, mas em uma
posse destes saberes, o fiel poderia ser contado entre os que estavam obrigados das raras cartas que conhecemos revelou um conteúdo possível na catequese
a cumprir os preceitos católicos. dos escravos, baseado no ideário do seu predecessor e mestre. Segundo Pedro
A partir destes fundamentos estabelecia-se a obrigatoriedade de Claver, em sua carta de 31 de maio de 1627, após cuidar dos escravos doentes,
frequentar a igreja e cumprir suas obrigações de bom católico como: participar começava os preparativos para o batismo:
de procissões, confessar-se e comungar ao menos uma vez no ano por ocasião
da Páscoa, jejuar segundo as prescrições católicas... Desse modo, o batismo,
Depois tratamos de prepará-los para o Batismo. Explicamos lhes os
como ritual de passagem, introduzia o indivíduo num universo de preceitos
admiráveis efeitos deste sacramento para o corpo e para a a lma. E quando,
e práticas que condicionariam as suas ações e crenças, ao menos esta era a
respondendo às nossas perguntas, deram mostras de terem compreendido,
esperança dos padres que oficiavam tudo.
passámos a um ensino mais completo sobre um só D eus que premeia ou
No entanto, pelos escritos de Alonso de Sandoval, parece-nos que a
castiga segundo os merecimentos de cada um, etc. Exortamo-los a fazer o
didática jesuítica era ligeiramente diferente. Tudo começava pela própria
cerimônia do batismo, que precisava ser compreendida e desejada, ou ao menos ato de contrição e a manifestar o arrependimento dos pecados que tivessem
consentida, pelo futuro cristão. Por isso era necessário fazer compreender cometido, etc.
ao seu interlocutor que sem o batismo ele seria lançado nas chamas eternas, Finalmente, quando já pareciam suficientemente preparados, falamos dos
porém uma vez que consentisse passar pelo banho ritual, seu destino seria o mistérios da Santíssima Trindade, da Encarnação e da Paixão; e, mostrando
paraíso. Uma vez logrado obter pelo medo do inferno o consentimento, cabia lhes num quadro a imagem de Cristo crucificado sobre uma pia baptismal,
mostrar que o ritual de lançar água sobre a cabeça era distinto de uma simples para a qual correm os rios de sangue provenientes das ch agas de Cristo,
limpeza ou de um banho para aplacar o calor escaldante dos trópicos. Era rezámos com eles, na sua língua, o acto de contrição. (Valtierra, 1964, p. 140-
preciso que os catecúmenos, ainda que "rudes", tomassem a água batismal 141).
como uma "agua de Dios" (SANDOVAL, 1987, p. 433).
Antes de passar adiante nos saberes, o jesuíta recomenda que se lhes Apesar de serem elementos rudimentares da fé católica, o escravo dos
pergunte tantas vezes quantas sejam necessárias, até que respondam que a escravos, como Claver se autointitulava, apostava na mudança de crença dos
água do batismo é a água de Deus, que renunciam aos seus deuses e aceitam o escravos recém-chegados para o monoteísmo. Além disso, acreditava que
deus dos brancos, que sem ela vão para o inferno, mas com ela vão para o céu ... os fazia compreender, ainda que superficialmente, quais seriam os efeitos
Para reafirmar o desejo pelo sacramento, recomenda o seguinte: espirituais e materiais do sacramento que estavam prestes a receber. Talvez
outros jesuítas não tenham tido a mesma devoção missionária p.ara com os
También se les dirá luego en este punto que la causa de ser los blancos tan
escravos que tiveram Sandoval e Clave r em seus anos de trabalho em Cartagena
estimados d e todos, es, por haber recibido esta agua con que se hicieron das Índias, mas é possível que houvesse certo padrão de evangelização na
cristianos, que sino lo fueran no hubiera quien hiciera caso de ellos. Que la Companhia de Jesus quanto aos saberes rudimentares necessários para ser
reciben ellos y serán estimados, como ellos, podrán ir a los templos y casas cristão.
de Dios, tratar y comer con los demás cristianos y cuando se mueran los Seguindo o método de Sandoval (SANDOVAL, 1987, p. 421 ), Claver
enterraran en la Iglesia si son cristianos, o si no en el muladar, donde sean apresentava um crescente de complexidade no conhecimento transmitido pela
comidos de perros. (Sandoval, 1987, p. 422) catequese. Começando pelo próprio sacramento do batismo, que é explicado a
fim de que se saiba o que vai acontecer, misticamente falando, na cerimônia -
elemento estrutural para a validade do sacramento. Segundo o testemunho de
7. Estes elementos foram relacionados baseados no Catecismo Romano e no catecismo intitulado Francisco Yolofo, escravo intérprete que trabalhou com Claver, este mandava
Doutrina Cristã do jesuíta Marcos Jorge, publicada pela primeira vez em 1561. Cf. MARTINS, que lavassem a cabeça todos os escravos que iam ser batizados. A julgar pelo que
Leopoldo Pires, OFM(ed.). Catecismo Romano. Ed. Vozes: Petrópolis, I 951, p. 21
148 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 149

escreveu Sandoval, este procedimento, aparentemente, tinha a única função a eles quando nascidos como 'criaturas'. É o que se vê quando o padre Nicolás
de servir de termo de comparação pela negativa (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, Gonzales, assim como o já citado Francisco Yolofo, em seu testemunho do zelo
2002, p. 112-118). Por outros meios, Claver fazia com que os negros lavassem a apostólico de Pedro Claver na faina de assistir os recém-chegados a Cartagena,
cabeça para lhes mostrar a diferença entre a simples lavagem e o ritual de lavar relata que o padre buscava saber se havia "nascido alguma criatura" durante
a alma com as águas do batismo, as águas de Deus. a travessia (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, 2002, p. 87 e 114). A mudança
Para que não restassem dúvidas, ainda segundo o testemunho de ontológica era extensível às crianças, na teologia tridentina co-herdeiras do
Francisco, havia um quadro com Cristo crucificado em cujos pés havia uma pecado de Adão, e portanto necessitadas do remédio do batismo. Em especial
bacia, para a qual convergiam os fios de sangue que saíam das feridas. Ao as crianças pagãs, mas também as já nascidas em famílias cristãs.
lado da bacia, no quadro, se via um padre jesuíta paramentado, diante do qual É o que vemos quando nos voltamos para os registros de batismo da
estava ajoelhado um negro, descrito pelo intérprete como muito bonito, que Estância jesuítica de Caroya, no que hoje é o município de Córdoba, Argentina.
era batizado com o sangue tirado da bacia com um jarro. Lá vemos que o padre Antônio Morales encerra o assento do batismo da
A cerimônia oficiada pelo santo reunia os futuros filhos do deus dos pequena Joana, filha de Phelipe Caroya e Magdalena Monserrate. Escreveu ele
brancos em grupos de dez homens ou dez mulheres: todos receberiam um ao final do registro: "La criatura había nacido dos días antes"(grifo nosso).8
novo nome. Assim, os de7. homens de um mesmo grupo teriam o mesmo Ou seja, quando nasceu era tão somente uma criatura, com dignidade
nome cristão, configurando dez juans, ou dez miguéis, ou ainda dez pablos; o diminuta. Não obstante isso, após receber o sacramento tornou-se membro da
mesmo se dava com as mulheres. Uma vez batizados os cativos recebiam uma Igreja, merecendo ser sepultada dentro da capela.
pequena medalha para ser levada pendurada ao pescoço por um fio: de um De modo análogo, o padre Bartholome Franco batizou privadamente e
lado a Virgem e do outro o Cristo. Esta medalha permitia ao jesuíta identificar por necessidade Maria Clara, em pleno domingo, 16 de abril de 1758. Seus
que já haviam passado pelo rito das águas (SPLENDIANI e ARISTIZABAL, 2002, pais, Agustin e Theresa, eram escravos da estância, assim como seus padrinhos
p. 112-1 18). de batismo Ignacio Carranza e Victoria sua mulher.9 Como a pequena Maria
Desse modo, o batismo se constituía como uma espécie de rito de passagem. Clara resistiu, dois domingos depois, em 30 de abril recebeu os santos óleos e
Das múltiplas funções do batismo essa nos parece ser a primeira: propor (ou o crisma, tendo por padrinhos de crisma Phelipe e Victoria, até onde sabemos,
impor, dependendo da situação) um novo processo de ressocialização ao futuro todos escravos da mesma estância. Decisão acertada a de fazer o quanto antes
cristão-católico. Ainda que mais exíguo em seu cabedal de informações, era tudo o que se julgava possível para a salvação da pequena Maria Clara, visto
tão - ou talvez até mais - extenso em termos de implicações comportamentais. que na quinta-feira seguinte, 4 de maio de 1758, descia à sepultura o corpo
Começava, como dito, por conferir um nome cristão. O novo nome expressava, inerte da criança.
sem sombra de dúvidas, uma grande esperança dos sacerdotes que pregavam e A passagem de criatura a filho de Deus operada em seus escravos
batizavam as populações não cristãs de que, como acreditavam que ocorria no representava para os padres um punhado de coisas. Em primeiro lugar, a
plano espiritual, também ocorreria no que tange às heranças e memórias dos garantia da salvação daqueles que estavam sob sua responsabilidade, como
seus pretensos discípulos: morreria o homem velho e ressurgiriam das águas propriedade coletiva da ordem. Derivando disso, a sua própria salvação,
purificadoras homens e mulheres novos, plenamente cristãos pela posse de na medida em que cumpriam sua obrigação de pregar a doutrina católica,
algumas informações incutidas com maior ou menor acuidade, dependendo particularmente cara a eles por serem membros de uma companhia de
de quem oficiava o processo. pregadores. Para Alonso de Sandoval, o primeiro passo no contato com os
A partir deste quadro funcional do batismo é possível perceber que os escravizados deveria ser perguntar-lhes o nome; um nome cristão como
padres e confrades da Societas Iesu nutriam a crença de que por meio da liturgia resposta era um indicativo de que possivelmente o interlocutor havia sido
batismal os pagãos eram constituídos cristãos e filhos de Deus. Nas palavras
de Alonso de Sandoval a passagem era de 'escravos do demônio a filhos
de Deus: No entanto, de um modo mais geral, parece que a transformação 8. Esta informação encontra-se no Libro de bautismos, casamentos y entierros de esclavos y
otros. Instituto de Estudios Americanistas. Estancia Caroya. Cordoba (AR). FI. 8V
mais genericamente aceita era de criatura a filhos de Deus. Crença esta que 9. Esta info rmação encontra-se no Libro de bautismos, casamentos y entierros de esclavos y
transparece nos registros de batismos dos recém-nascidos. Fazia-se referência otros. Instituto de Estudios Americanistas. Estancia Caroya. Cordoba (AR). FI. 2V
150 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 151

batizado, ainda que restasse aferir a validade. Como visto anteriormente, de catequese e passíveis de salvação não seriam propriedade privada, mas sim
segundo Trento e os concílios provinciais - incluindo o da Bahia - a validade coletiva, eliminando um possível conflito de funções. Embora tal perspectiva
do sacramento era assentada em dois quesitos fundamentais: a instrução e não chegue a subverter a ordem da sociedade escravista, ao menos encurtava a
o consentimento. É possível que muitos padres fizessem o mínimo possível, distância entre a realidade e o preceito, por si só já bastante considerável.
apenas o suficiente para se desobrigar da tarefa e, caso ainda acreditassem, não A bem da verdade, o fato é que os escravos das fazendas da ordem
serem acusados da danação daquelas almas no Dia do Juízo, mas esse mínimo cumpriam um duplo papel: mão de obra e rebanho. Longe de ser ambígua
não era tão simples quanto possa parecer. ou contraditória, esta moeda de duas faces estava plenamente consonante
Para a Igreja como instituição o batismo tinha uma implicação ainda com o imaginário dos padres, uma vez que era exatamente na duplicidade de
mais profunda, não tão óbvia, mas de extrema importância do ponto de vista papéis, somada à posse coletiva, que reconciliava a religião e a propriedade de
do papel institucional e da sua capacidade e legitimidade de autoridade sobre cativos. Por isso, a incidência da doutrina católica sobre este grupo de escravos
novos povos. Na medida em que o ritual do batismo introduzia o indivíduo no específico possivelmente viria a ser mais intensa que nos demais casos, já que
seio da Igreja, autorreferenciada como o novo povo eleito, também colocava se constituía condição sine qua non para um mínimo de coerência por parte
esta alma, e o corpo que a abriga, sob a jurisdição do catolicismo. Por outros dos padres inacianos.
meios, a jurisdição religiosa e moral da Igreja, pela sua própria noção de É possível que dos aspectos que refletiam esta maior incidência
direito, era restrita a si mesma, ou seja, à comunidade dos batizados. Batizar doutrinária, um dos mais indispensáveis seja o matrimônio, já que como
novos grupos, assim como novos indivíduos, equivalia, ao menos num sentido previsto pelo Concílio era a um só tempo, agregador de homens e mulheres
legalista, submetê-los à autoridade eclesiástica. Por isso era necessário instruí- em unidades familiares, afastando o risco da promiscuidade, e, exatamente por
los nos saberes fundamentais do catolicismo para que pudessem corresponder isso, o socorro providencial aos desejos carnais. Estes, uma vez domesticados
às expectativas. Daí deriva que, no caso dos escravos da Companhia, acrescia- pelo sacramento, passam a fazer parte de um universo restrito e privado,
se a jurisdição eclesiástica sobre os escravos à jurisdição de proprietários, confinado ao ambiente domiciliar, apartado das inomináveis práticas pagãs,
fazendo com que estivessem duplamente subordinados, e, por fim, alterava o ao mesmo tempo em que passam a participar do plano divino de crescimento
status de suas propriedades, de criaturas para filhos de Deus. e multiplicação do gênero humano sobre a terra.
O quadro que aqui se desenha é o de uma população batizada em sua
MATRIMÔNIO E ORDEM SOCIAL quase totalidade (ou totalidade) sujeita a pregações frequentes e, portanto,
submetida a certo controle da moral sexual. A partir daí não é absurd o pensar
Em função do balizamento gerado pela crença sobrenatural, que que a prática jesuítica, consonante com os ditames dos principais documentos
sujeitava as relações de poder entre jesuítas e seus cativos, a administração da Igreja na América, visasse a enlaçar pelo matrimônio todos os escravos em
da mão de obra escrava nesta ordem possuía características fundamentais idade para tanto e, portanto, a geração de filhos pode ter se configurado na
específicas. Uma das mais importantes é oriunda de um traço comum ao clero principal forma de expandir o plantei, ao menos a partir de certo momento.
regular: o apreço pela obediência e o cultivo de uma hierarquia estrita em suas Se assim o foi, uma questão se coloca: sendo o conjunto dos escravos de uma
comunidades. Desse modo, o conflito entre cultivar a humilde obediência aos fazenda uma população relativamente fechada, como escapar do tabu do
superiores e o hábito do senhorio privado pareceu incompatível aos religiosos. incesto? No momento em que todos fossem aparentados, os matrimônios
Ao mesmo tempo, seria impossível sustentar as casas, colégios, mosteiros e estariam impedidos.
outras dependências sem o uso do braço escravo. A solução foi a propriedade A primeira solução que se pode vislumbrar seriam as ocasionais compras
coletiva sobre os cativos, proibindo-se qué qualquer um dos padres da seletivas, visando a obter parceiros para os conjunturalmente celibatários.
Companhia os possuísse de modo privado. Além d isso, cada fazenda estava próxima a outras dos próprios jesuítas,
A propriedade coletiva cumpria ainda outro papel. Se nenhum jesuíta permitindo, em caso de exaustão das possibilidades de formação de casais sem
possuía escravos, então o dilema moral da escravidão estava, ao menos em ferir o tabu do incesto, uma circulação de indivíduos entre elas. O fato é que
parte, resolvido. Nenhum cristão - ou possível cristão - era propriedade de o tabu d o incesto pode nem ter se configurado como um problema real na
nenhum inaciano, eram todos "escravos da religião': Os escravos, que eram alvo maioria das fazendas, já que o tempo entre a montagem destas escravarias e
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 153
152

a exaustão das possibilidades de matrimônio ainda não tinha decorrido, visto africanos - 17 chamados negros angola e um chamado de negro de Guinea
terem se passado algo em torno de cinco gerações das primeiras aquisições até (ANDRÉS-GALLEGO, 1996) - , a grande maioria dos escravos dos jesuítas nas
a expulsão dos padres. fazendas argentinas também parece ter sido obtida de forma endógena. O
Assim, a partir do estudo das listas de escravos das fazendas de Santa relativo equilíbrio entre as proporções de escravos e escravas também aponta
Cruz, Santiago de Estero, San Miguel de Tucuman e La Rioja, pode ser possível para uma eventual aquisição diferenciada, visando a corrigir as desproporções
perceber o uso do sacramento do matrimônio na política de administração de modo a proporcionar a cada escravo um correlato do sexo oposto.
populacional. Da percepção deste padrão administrativo, podem ser Mais especificamente falando, em La Rioja, os escravos com menos de
apreendidos, por ilação, alguns outros elementos, que embora sejam menos 1O anos somam cerca de 30% da população. Em San Miguel de Tucumán, os
explícitos são igualmente constitutivos da relação entre os padres e seus cativos na mesma faixa etária alcançam um terço do total. E, finalmente, em
cativos. A presença das marcas e dos costumes estabelecidos no encontro Santiago são quase 40% da população escrava. Embora não possamos especular
da cosmovisão inaciana com a experiência de seus escravos se perpetuou muito mais sobre as populações das estâncias argentinas, por não sabermos se
numa identidade certamente bastante consolidada pela longa permanência havia intercâmbios de população entre elas e/ou delas com outros domínios
de políticas semelhantes, que facultou aos escravos a consolidação de práticas dos jesuítas na região, não é absurdo supor que em sua prática administrativa
constituídas pela liturgia e simbologia católica, porém com significados e não figurasse uma frequente e substancial compra de africanos no mercado
leituras próprias. atlântico. Sendo mais factível supor que o que houve foram pequenas compras
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que, para a construção da para corrigir distorções nas proporções da população adulta.
pirâmide de Santa Cruz, estamos trabalhando com o inventário de 1791, Isso porque, nas escravarias laicas, muito mais sujeitas às demandas e
por ser o mais antigo inventário com as idades de todos os escravos, já que o ofertas do mercado atlântico, a proporção de homens nos plantéis tendia a
inventário de 1759, dos autos do sequestro da fazenda, só traz as idades das ser de dois terços a três quartos do total. Isso se deve, de modo geral, a dois
crianças e jovens, omitindo a dos adultos. Desse modo, a crer na contagem do fatores: primeiro a crença de que os homens estariam mais aptos ao trabalho
escriba do inventário de 1791, a população de cativos de Santa Cruz apresentava mais duro no eito; e, segundo, a seletividade do tráfico de escravos que trazia
uma formação bastante peculiar - como é possível observar no gráfico 1 -, homens em maior número que mulheres e crianças (KARASCH, 2000, p. 45). Se
principalmente se tratando de escravos. Com uma conformação assaz diversa os jesuítas não estavam afastados do tráfico atlântico de cativos, deveriam estar
da dos grandes plantéis de escravos, a base da pirâmide referente à Santa Cruz subvertendo totalmente a sua lógica (FLORENTINO, 1997, p. 58-60), comprando
indica uma grande presença de crianças. Os nascimentos e a infância, ou seja, em proporções totalmente diferenciadas homens, mulheres e crianças. Poderia
os escravos de Oa 14 anos, eram responsáveis por 40% da população em 1791. se objetar que, para os jesuítas das quatro fazendas em questão, o trabalho
Para esse plantei é muito provável que o crescimento endógeno tenha sido masculino seria menos necessário do que para os proprietários em geral, uma
crucial para o incremento do seu nível populacional. vez que são quatro fazendas pecuaristas.
Dessa forma o tráfico teria um peso abissalmente menor para essa
fazenda específica do que para a maioria dos demais plantéis. É pouco provável
que houvesse estrangeiros em número muito significativo nessa escravaria.
Deriva daí que Santa Cruz pode ter se desenvolvido, ao menos durante os
anos próximos de 1791, como uma comunidade com ingresso restrito de
estrangeiros. Acresça-se a isso, que, se houve compras de escravos, estas não
obedeceram aos critérios comuns do tráfico. Foram adquiridos tanto homens
como mulheres, de modo a manter certo equilíbrio entre os gêneros.
As pirâmides das estâncias argentinas, expressas nos gráficos 2, 3
e 4, segundo os inventários feitos por ocasião da expulsão dos jesuítas das
terras hispano-americanas, apontam na mesma direção, embora os dados
do inventário mostrem a presença de um grupo relativamente pequeno de
154 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 155

Gráfico 1: Pirâmide etária-sexual dos Escravos da Gráfico 3: Pirâmide etária-sexual dos


Real Fazenda de Santa Cruz, 1791. Escravos da Fazenda San Miguel de Tucumán, 1768

60 OU MAIS ANOS 55 A 59 ANOS

55 A 59 ANOS 50 A 54 ANOS

50 A 54 ANOS 4S A49ANOS

45 A49 ANOS 40 A44 ANOS

40 A44 ANOS 35 A 39 ANOS

35 A39ANOS 30 A 34 ANOS
30 A 34 ANOS 2S A 29 ANOS
25 A 29ANOS
20 A 24 ANOS
20A 24 ANOS
15 A 19ANOS
15 A 19 ANOS
10A 14 ANOS
10A 14ANOS
5 A 9ANOS
5 A9ANOS
0 A4ANOS
O A4 ANOS
-10 -5 o 10 15
-10 -5 o 10
OMulherts • Homens O Mulheres • Homens

Fonte: ANDRÉS-GALLEGO, José. "Esclavos de temporalidades (el Tucumán,


Fonte: Inventário da Real Fazenda de Santa Cruz, 1791. Arquivo NacionaL R). 1768): posibilidades de una fuente d ocumental': In: Revista de História
Eclesiástica - Hispania Sacra, n. 48, 1996.

Gráfico 2: Pirâmide etária-sexual dos Gráfico 4: Pirâmide etária-sexual dos


Escravos da Fazenda La Rioja, 1768 Escravos da Fazenda Santiago del Estero, 1768

60 OU M AIS ANOS 60 OU MAIS ANOS

55 A 59 ANOS SSA 59 ANOS

SOA 54 ANOS SOA 54 ANOS

45 A49 ANOS 4SA49 ANOS

40A44 ANOS 40A44 ANOS

35 A 39 ANOS 3SA39 ANOS


30A 34 ANOS 30A 34 ANOS
25 A 29 ANOS 2SA 29ANOS
20A24 ANOS 20A 24 ANOS
15 A 19 ANOS 1SA 19ANOS
l O A 14 ANOS lO A 14 ANOS
5 A9 ANOS
5A9ANOS
O A4 ANOS
OA4ANOS
- 10 ·5 o 10 15
-15 -10 -5 o 10 15
O Mulheres •Homens
O Mulheres •Homens

Fonte: ANDR.t.S-GALLEGO, José. "Esclavos de temporalidades (el Tucumán, Fonte: ANDRÉS-GALLEGO, José. "Esclavos de temporalidades (el Tucumán ,
1768): posibilidades de una fuente documental". In: Revista de História 1768): posibilidades de una fuente documental". In: Revista de História
Eclesiástica- Hispania Sacra, n. 48, 1996. Eclesiástica- Hispania Sacra, n. 48, 1996.
156 RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃOEMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 157

No entanto, é certo que nas quatro havia o trabalho de manutenção da Outro indicativo do distanciamento do tráfi co de escravos ou de uma
fazenda em todos os seus aspectos, além de um cultivo para o abastecimento seletividade nas aquisições, ambos favorecendo a sedimentação social é o
do colégio a que pertenciam e dos aldeamentos a que estavam ligadas. Isso parentesco. A tabela 1 nos mostra que, nas fazendas jesuítas, algo em torno de
demandava uma força de trabalho, se não igual, ao menos semelhante a 70% a 90% dos escravos possuíam ou haviam possuído laço matrimonial e/ou
dos demais proprietários de escravos. Portanto, a bem de algum recurso ao gerado filhos. Estes dados estão a indicar que o papel do tráfico no incremento
tráfico de escravos, a estratégia fundamental dos jesuítas para a manutenção desta população não era, de modo algum, tão significativo quanto para as
dos níveis populacionais em seus plantéis era o incentivo ao matrimônio e à propriedades escravistas em geral, nas quais a média de escravos na mesma
reprodução endógena. condição só muito excepcionalmente se aproxima dos 70%, ficando em geral
em torno dos 40% a 50% (ENGEMANN, 2009, p. 102- 103).
Gráfico 5: Distribuição da População Escrava em A partir destes fortes indícios do distanciamento, mesmo que progressivo,
Acordo com o Gênero do tráfico de escravos, como forma de incremento da população de seus
plantéis, cabe perguntar qual seria a forma para a obtenção de escravarias
80 ~----------------------------------------------~ tão extensas como a que estamos pesquisando. A hipótese que se impõe seria
70
60
o nascimento de escravos nos próprios plantéis. Porém, em se tratando de
50
escravos dos jesuítas, há implicações a serem consideradas.
40
30 Tabela 1: Distribuição da População Escrava em
20 Acordo com a Situação Familiar
!O

o
Grandes proprietá rios Santa Cr uz (1759) La Rioja (1768) San Miguel de Tucuman Santiago de I Este ro Fazendas C asados Filhos O rfãos Viúvos
do Rio d~ Ja neiro (1758) (1768)
( Brasit/ 1830-1849)
• Homens O Mulheres
# % # % # % # %
Santa C ruz 4 17* 41,0 536** 52,8 11 l,l 52 5,1
Fonte: ANDRÉS-GA LLEGO, José. "Esclavos de temporalidades (e! Tucumán, 1768):
La Rioja 97* 35,4 92** 33,7 - - I 0,4
posibilidades de una fuente documental". In: Revista de História Eclesiástica -
Hispania Sacra, n. 48, 1996. Autos do sequestro dos bens d a fazenda de Santa Cruz, San Miguel de Tucumán 64 51,6 42 33, 1 - - 3 2,4
Arquivo Nacional da Torre d o Tom bo, Portugal. Santiago del Estero 46 47,9 39 40,6 - - 1 1,1
Fonte: ANDRÉS-GALLEGO, 1996. Traslado do inventário dos bens d o C olégio do Rio de Janeiro:
autos d o seq uestro dos bens da faze nda de Santa Cruz, Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Portugal.
Sabendo que são realidades separadas por quase um século, apenas a • Estão computadas as mulheres que têm marido fora;
título de mera comparação para avaliação dos efeitos do tráfico, tomamos as ** Estão computados os filhos das mulheres que têm marido fora.
grandes escravarias dos cafeicultores do Vale do Paraíba no início do século
XIX, antes do fim do tráfico de africanos para o Brasil. Esses números dão uma
boa ideia dos efeitos do tráfico nos plantéis de uma região plenamente inserida N A S F RON T E IRAS D E U MA MESTIÇ AGEM RELIGIOSA
no comércio de braços. O gráfico 5 nos mostra o resultado desta comparação.
É possível observar que nas propriedades jesuítas a proporção beira a 50% Segundo o antropólogo Clifford Gertz (1989) , em seu estudo sobre a
de homens e 50% de mulheres, sendo a maior desproporção encontrada em religião, a crença religiosa sempre estabelece um poder correlato a ela. Na
Santiago del Esterro, com cerca de 53% de homens para 47% de mulheres. medida em que um indivíduo acredita em algo, deve necessariamente agir
Nas escravarias dos cafeicultores fluminenses durante a vigência do tráfico a em consonância com sua crença. Daí o caráter normativo que as crenças
proporção é de algo em torno de 76% de homens para 24% de mulheres. Sem sobrenaturais possuem. Logo, deve ter havido algum tipo de conexão entre o
dúvida, efeito do tráfico. caráter normativo da crença católica - em especial num momento em que parte
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino(orgs.) 159
158 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

padres da Companhia de Jesus e para os seus escravos, o que não invalida os


substancial dos seus dogmas era questionada pelo fragmentado movimento
esforços para se compreender o diálogo realizado por ambas as p artes. Para os
reformista - como modalidade de crença sobrenatural, e as práticas próprias
jesuítas, o que importa é apartar o pecado da mancebia, daí o baixo núm ero
aos jesuítas no trato com seus próprios cativos.
de filhos registrados como ilegítimos: apenas 3 em La Rioja e 2 em San Miguel
Inicialmente, pelo lado da crença, temos uma chaga que precisa ser
de Tucumán, enquanto Santa Cruz e Santiago dei Estero não registraram
curada, o pecado, que gera a escravidão, que justifica o cativeiro e sanciona
nenhuma filiação ilegítima, embora tenham um considerável número de casais
o padecer. Esta perspectiva, presente nos sermões de vários jesuítas,10 trata
com filhos, além de viúvos com filhos, como mostrou a Tabela 1.
o cativo como um ser humano, danificado pelo pecado da sua origem - a
A partir do que foi apresentado, é possível postular que, no caso específico
maldição de Cam - e, por isso mesmo, carente de redenção. Por outro lado,
dos cativos dos padres de Santo Inácio de Loyola, o casamento e a geração de
pelo que se pode fazer a respeito, temos o lenitivo para as almas: o rito católico.
filhos fizeram parte integrante da vida. Tomando o caso de Santa Cruz como
Assim, reafirmando o que foi prescrito no Concílio de Trento e nos concílios
paroxismo desta estratégia de gestão de mão de obra, é possível observar que a
provinciais, o lócus privilegiado para este encontro entre pecado e redenção,
totalidade dos escravos foi registrada no inventário segundo a sua relação com
entre escravidão e administração, entre normatização e prática, no caso do
a experiência do matrimônio: 41 % são os escravos casados; ao que se somam
catolicismo em geral, mas mais particularmente no caso dos jesuítas, cujo
os 52% formados por seus filhos; os órfãos e os viúvos completam os 100% da
carisma era a pregação e a conversão de populações ao catolicismo, parece-
escrava ria.
nos ser os sacramentos.
Desse modo, é possível pensar que essa comunhão de símbolos (verbais
Assim, ao ministrarem os sacramentos do batismo e do matrimônio os
ou não) com o catolicismo, embora não necessariamente de sentidos, era uma
sacerdotes da Companhia de Jesus acabaram por também oferecer formas
parte fundamental na administração da vida cativa para os jesuítas, permitindo
que permitiam aos escravos introduzir a substancia das suas próprias práticas
ordenar algumas experiências fundamentais vividas pelos seus escravos. Um
sociais e religiosas e por isso aceitarem tais sacramentos e conviver com
certo controle da apreensão do vivido seria o primeiro passo para expandir o
eles de modo absolutamente sincero. A combinação de formas (litúrgicas)
alcance da capacidade de administração do mesmo.
católicas com sentidos m ais profundos de origens diversas, e quiçá mais difusa
Daí deriva que não só os escravos eram capazes de compreender o
também, criou uma paisagem fronteiriça do ponto de vista cultural, território
mundo colonial que os cercava e articular-se com ele por meio destas liturgias
extremamente fecundo para invenções e interferências. O que equivale a dizer
e simbologias apresentadas pelos padres, como poderiam tirar o máxim.o
que os jesuítas h aviam colaborado para que se instaurasse um conjunto de
de proveito de suas esquálidas possibilidades, embora o fizessem a partir
costumes, no sentido plástico e manipulável atribuído por Thompson ( 1998 ),
de formas de expressão católicas. Não apenas a geração de significados de
em suas escravarias, numa relação de mão dupla, que ao fim e ao cabo criava
usos cotidianos, mas (e principalmente) o poder de gerar sentidos para a
uma coisa nova que não era nem o que os jesuítas faziam, nem exatamente o
sua própria existência era provido, em alguma medida, por uma sin:~ologia
que os escravos criam que era feito, mas uma terceira coisa que combinava
apreendida da pregação clerical a que estavam permanentemente SUJel:os. _o
elementos de ambos os imaginários.
que não significa, como dissemos, que não houvesse uma instrumentahzaçao
Desse modo, o sincretismo de significados, mais do que a simples fusão
por parte dos escravos destes mesmos elementos.
de figuras de santos com orixás, ou vice-versa, é a criação de uma zon a
O parentesco torna-se ainda mais prenhe de significado quando ac~mpa­
fronteiriça em termos culturais e religiosos, na qual se comungam práticas e
nhado por um sentido transcendente. Aparentar-se - neste caso espec1fico a
símbolos, aos quais cada grupo que os maneja atribui significados e sentidos
consecução de uma esposa ou de um marido - era sem dúvida um ato que
próprios. A prática sacramental não possui, pois, o mesmo significado para
alcançava um número muito maior de indivíduos, já previamente articulados
em um determinado arranjo de crenças (não necessariamente religiosas) , e os
10. Entre os jesuítas que usam a maldição de Cam como forma de justificar a escravidão africana
envolvia numa nova aliança, sancionada por esta crença comum, ainda que
estão: SANDOVAL, Alonso. 1987, p. 69. VIEIRA, Antônio. "Sermão décimo quarto do Rosário". seus moldes tenham sido dados pelos seus senhores da Companhia de Jesus.
BOSI, Alfredo (org.). Essencial Padre Antônio Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 20 11, p. Aliança esta que, assim como foi produzida por um determinado contexto
183. BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, cultural e religioso, também era produtora de um novo contexto. O casamento
1977, p. 65.
160 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara PereiraIvo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 16 1

monogâmico de escravos quando sancionado pelo ritual religioso católico não SCHWARZ, Fernando. Mitos, ritos, símbolo: antropologia de lo sagrado. Buenos
apenas ajudava a apartar a condição anômica, como promovia a normatização Aires: Biblos, 2008.
do viver e o reconhecimento dos demais, especialmente os livres, para a junção
destes indivíduos que decidiram partilhar o peso dos infortúnios do cativeiro. SPLENDIANI, Ana.; ARISTIZABAL, Túlio. Processo de beati.ficación y
Certamente, nesta simbiose entre símbolos e significados, havia ganhos para canonización de san Pedro Claver. Bogotá: CE]A, 2002.
os escravos, que recebiam os incentivos dados pelos padres, como os havia THOMPSON. E. Palmer. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das
para os padres, que formatavam e aumentavam o seu plantei. Letras, 1998.
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Esclavitud, mestizaie y religiosidad en
tiempos de reformas. Un análisis histórico
sobre la Visita del Obispo de Tucumán en
17 68 (Argentina)

fLORENCIA GUZMÁN

INTRODUCCIÓN

En varias oportunidades durante el siglo XVIII los Obispos dei Tucumán


visitaron la dilatada y extendida diócesis y dejaron sendos informes sobre la
misma. El análisis de estas visitas - correspondientes a los anos 1729, 1734,1735,
1758 y 1768, , nos posibilitan adentramos en las complejas y ricas cartografías
sociales de la jurisdicción religiosa y, al mismo tiempo, tener acceso a los
discursos eclesiásticos sobre las normativas religiosas, sus aplicaciones,
adaptaciones y transgresiones, con el correr de las décadas (LARROUY, 1927).
En esta presentación, me centraré en el análisis de un documento
específico: en el informe elaborado por el obispo del Tucumán, don Manuel
Abad Illana, con posterioridad a su visita general a las ciudades de la gobernación
del Tucumán y a las reducciones de su frontera oriental, entre 1765 y 1768. 1
Este documento, además de devolvemos una información valiosa sobre la vida
política, social y cultural de este espacio particularizado del Tucumán, nos da
la posibilidad de centrar nuestro análisis en un contexto social de profundas
transformaciones. Bajo el mando de la casa de los Borbones el estado colonial
espaiíol en América fue orientándose hacia un proceso de intensos cambios
que impactarán fuertemente en las composiciones de las hegemonías locales.
La racionalidad de la 11 ustración, de la llamada segunda etapa de la modernidad

l. Informe de la visita practicada por e/ obispo Manu el Abad Illana a la província de/ Tucumán y
misiones de la frontera de/ Chaco (en adelante Visita). Córdoba dei Tucumán, 20 de junio de 1768,
Archivo General de Indias. Sección Audiencia de Buenos Aires, legajo 614 (en Larrouy, Tomo li,
Siglo XVIII, documento LIII, 1927, p. 249- 354).
164 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 165

-como la ha Ilamado Enrique Dussel- dirigirá desde Europa un panorama su prédica en las diversas comunidades -misiones guaraníes o los colegios y
colonial reformista produciendo nuevas tecnologías de poder que cristalizarán universidades (LORANDI, 2008).
en cambias sustantivos y, sobre todo, en nuevas formas de producción de
alteridades. Sobre este panorama, en 1768, cuando Abad Illana emprende la 4DÓNDE?
extensa Visita, se inició un período de grandes contlictos y disputas en toda Ia
gobernación dei Tucumán como consecuencia de la expulsión de los jesuítas, El Obispado dei Tucumán, que databa dei ano 1570, estaba conformado
ordenada el monarca Carlos III, que marcará el inicio de la aplicación de las por las siete jurisdicciones que integraban la división territorial de la província
reformas borbónicas en esta parte de América (DussEL, 2003). El hecho de del Tucumán y por cuarenta y seis curatos eclesiásticos. La sede original de dicho
pertenecer a la jerarquía de Ia Iglesia pareci era haber animado a Abad Illana a obispado, sufragáneo de la Arquidiócesis de Lima, tuvo su sede primeramente
una dura crítica en favor de los intereses ilustrados, para cuya finalidad había en Santiago dei Estero donde permaneció hasta el ano 1699 cuando se trasladá
sido designado como decimocuarto obispo dei Tucumán. a la ciudad de Córdoba. En 1806, este dilatada diócesis se dividirá en dos
obispados: el de Córdoba, integrando las províncias de Córdoba, San Juan,
DEFINIENDO EL CONTEXTO Mendoza, San Luis y La Rioja, - que a su vez conformaban la jurisdicción de la
4QUIÉN? Gobernación Intendencia de Córdoba; y, por otro lado, el Obispado de Salta,
con sede en esta ciudad que también lo componía, junto con las jurisdicciones
El Obispo Manuel Abad Illana que había nacido en Valladolid el 1 de de Tucumán, Catamarca, Jujuy y Santiago dei Estero - de manera similar que
enero de 1713 fue ordenado sacerdote en el ano 1736. Estudió Filosofía en e! en el caso anterior, estas cabeceras municipales constituían la Gobernación
Convento de San Cristóbal de Ibeas y estudios mayores en Arte y Teología en de Salta dei Tucumán. De modo tal que la provinda como el obispado dei
la Universidad de Salamanca donde se graduará como Bachiller, Licenciado Tucumán abarcaban un amplio y extenso territorio que presentaba grandes
y Maestro. Además de catedrático de esta casa de estudios, será diputado espacios sin ocupar, situación que dificultaba enormemente la comunicación
y contador de dicha universidad. En el afio 1762, el monarca Carlos III lo entre los diversos centros urbanos (AssADOURIAN, 1983; BAZÁN, 1986).
nombrará Obispo dei Tucumán y en cumplimiento de esta designación Los efectos negativos de este tipo de asentamiento se hacen sentir
emprenderá la Visita que comentamos en este texto (BRUNO 1970; LoRANDI, principalmente en el lado oriental, donde la peligrosa vecindad de grupos
2008). Del Obispado dei Tucumán se hará cargo en 1764, en el mismo afio indígenas no sometidos al domínio espano!, como era el caso de los
que Fernández Campero asume como gobernador de la provinda y también pueblos dei Chaco, les presentaron un auténtico desafío a los espanoles
-como ya se dijo- en los anos previas a la conmoción que produce la expulsión dei Tucumán; éstos debieron convivir durante los siglas XVII y XVIII con
de los jesuitas. Su pensamiento y su perfil responden con un "puritanismo una inseguridad fronteriza que dejó su huella en la evolución histórica de
moral en lo político y en lo social" en tanto era, según Lorandi, "fuertemente esta província periférica dei Virreinato peruano. Desde e! punto de vista
regalista, antijesuita y filo-jansenista" (LoRANDI, 2008, p. 31). Agrega la económico, el Tucumán dependía principalmente de la región altoperuana,
autora que los mecanismos adaptados por elllamado "despotismo ilustrado': donde se desarrollaban las grandes explotaciones mineras. La imbricación
"neoabsolutismo" o "regalismo" como se prefiere para el caso espano!, partían con la maquinaria productiva altoperuana impulsó una serie de actividades
de una nueva ciencia de gobierno, la "economía política': En ella el éxito de económicas en todas las jurisdicciones dei Tucumán. Los requerimientos
las reformas dependía de la movilización de los recursos humanos mediante mineras fomentaron la instalación de haciendas dedicadas a la cría dei ganado
la puesta al día de su educación espiritual y de su concepción temporal. Esta mular (que será esencial para el transporte de mercancías) y dei ganado
ideología renovadora que reforzaba en el orden eclesiástico el poder atribuído vacuno para su consumo en las minas. También contribuyó al desarrollo de un
a Ia autoridad real emprenderá una decidida campana contra e! poder material amplio comercio procedente de la península y ai despunte dei desarrollo textil,
de la iglesia y al mismo tiempo avanzará contra ciertas formas de promover Ia que convirtieron a la región en uno de los más importantes abastecedores de
piedad popular. En la disputa teológica entre jansenistas y jesuítas, e! Obispo estos productos ai centro minero. Hasta allí se enviaban los abastos necesarios
discutía la predilección de los Padres por los rituales, el pragmatismo y el para el laboreo de las minas y, sobre todo, nutridos contingentes indígenas
reconocimiento de las buenas obras en Ia vida cotidiana, clave dei éxito de cuya fuerza de trabajo se empleará intensivamente en el trabajo minero y en
166 RELIGIÚES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo I Eduardo FrançaPaivaIMarcia Amantino (orgs.) 167

el acarreo de mulas. Otra consecuencia de ello será la concentración en esta


área de los esclavizados - y luego de sus descendientes - introducidos por testamentos, curatos, índios (subdivididos a su vez en encomiendas, mitas, y
el puerto de Buenos Aires o provenientes desde el Perú, desde las últimas hospitales), iglesia catedral, seminario, universidad, cofradías e inquisición.
décadas del siglo XVI. La presencia de los sujetos de origen africano, tanto Según palabras dei religioso escribirá sobre aquello "juzgado d igno de ponerse
en las ciudades como en las campanas, y la relevancia de los mismos en el en noticia de Vuestra Magestad" (VISITA, p. 252). La reiterada mención a
conjunto económico-social-cultural, constituye otras de las caracterizaciones las largas distancias recorridas dentro de la gran extensión territorial que
de esta región desde los tiempos coloniales tempranos (GUZMÁN, 2010). abarcaba el obispado d e la jurisdicción provincial, le sirve ai Obispo para
enfatizar el amplísimo desplazamiento que llevó a cabo durante dos anos, que
EL DOCUMENTO le terminarán ocasionando serias trastornos de salud. Así, las 1.200 leguas
d ei recorrido completo por la província, las realizá afrontando dificultades
Como decíamos, el documento que analizamos corresponde al informe geográficas y variaciones bruscas dei clima. Pero sobre todo con una: "la
elabo~a.do por el obispo dei Tucumán, don Miguel Abad Illana, con posterioridad incomodidad del terreno". La labor pastoral desplegada se hizo con esfuerzo
a la VISita .general realizada a las ciudades de la gobernación dei Tucumán y a en los poblados indígenas "situados en los lugares más escarpad os y fríos de
~as red~cci~nes de su frontera oriental, entre 1765 y 1767 (viaje realiztldo con las Cordilleras que dividen a estas Províncias de las dei Perú" (VISITA, p. 252).
mtermitencias). En dicho documento, - cuyo original se encuentra en el archivo La contextualización del Tucumán cobra relevancia cuando el Obispo
de In dias - el obispo Illana describe un largo recorrido que se inicia en la ciudad se refiere a los efectos nocivos de la dependencia dei mercado altoperuano.
de ~órdoba el 4 de junio de 1765 y que luego continuará por las ciudades de Principalmente, ai grave conflicto que provocaba la escasez de mano de obra,
Sa~tiago dei Estero, San Miguel de Tucumán, Salta y Jujuy. Motivos de salud lo sobre todo entre los hacendados, sector en plena expansión que competía con los
oblrgaron a permanecer en esta ciudad hasta junio de 1767, cuando reanuda su jesuítas por la posesión de terrenos con buenos pastos y por el aprovechamiento
recorri.do, dirigiéndose a las jurisdicciones de La Rioja y Catamarca. Estando dei trabajo indígena. Hasta allí se acarreaban los abastos necesarios para el
en la cmdad de Velazco, y tras anoticiarse de la expulsión de los jesuítas, recibe laboreo de las minas, junto con nutridos contingentes indígenas cuya fuerza de
la orden del gobernador de Buenos Aires, don Francisco Bucareli, de regresar trabajo se empleaba intensivamente en el trabajo minero y en el acarreo de mulas.
a Salta para entrevistarse con el gobernador de Tucumán don Fernández Como ya se dijo, también, a la articulación económica con Potosí se debe la
Camper?. El encue~tro se produjo finalmente en la ciudad de Santiago, a Ia concentración en la zona dei Tucumán de un importante número de esclavizados
que llego luego de visitar las jurisdicciones de Catamarca y San Miguel durante - y luego de sus descendientes - cuya relevancia en el conjunto económico-
cuatro meses, desde de junio a septiembre de 1767. El eclesiástico finalmente social-cultural del Tucumán, constituye otras de las caracterizaciones de esta
concluyó su informe un ano después, en junio de 1768 (VISITA, p. 249-349). región desde los tiempos coloniales tempranos (GuzMÁN, 2010).
De modo que esta Visita se realiza en el medio de la expulsión de los Padres Abad Illana se encuentra así con una realidad compleja en su matriz
y, sobre to~?· de las ; icisitudes y disputas que trajo aparejada la extradición de multiétnica y multicultural, caracterizada por una estructura social estamental
la ~ompama de Jesus en toda la gobernación. Cuando esto ocurre, el Obispo y barroca, difusa y flexible, sobre la que hará comentarias fragmentarias
tema redactado parte de su Informe en el que son recurrentes las denuncias y ocasionales pero muy relevantes, tanto por lo que explicita como por lo
sobre las actitudes y acciones de la Orden que consideraba contrarias ai buen que sugiere. En algunos de ellos nos detendremos de manera particular,
?brar..Tras l~ sal~da de los Padres de] territorio americano su discurso se hizo especialmente a los referidos al trabajo, a ciertas prácticas sociales y religiosas y
mclusrve mas cntico y combativo. En el documento la distinción que podría sobre todo, a las ocasionales noticias y relaciones sobre los esclavizados y libres
hac~rse ?bedece preci~ame~te a razones de orden cronológico, ya que según de origen africano que habitaban esta zona marginal dei imperio espano!.
explrcacrones dei propro obrspo, una parte se escribió antes del extranamiento
de los Padres, Yla otra con posterioridad al mismo. Fuera del ámbito misionero SOBRE EL TRABAJO, HIDALGUÍA Y BARROQUISMO
- el grueso de la información hace referenda a las reducciones de la frontera dei
Chac? -, la narración sobre las ciudades y parroquias visitadas se subdividen En páginas anteriores se hizo referenda al proyecto reformista como un
en sers trtulos que abarcan variados temas: la disciplina eclesiástica, cuartas y signo de los tiempos y cuya caracterización estaba orientada principalmente
a la transformación de la economía y de la sociedad colonial americana. El
168 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara PereiraIvo IEduardoFrança Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 169

influjo dei Iluminismo se manifiesta en e! discurso de! Obispo en una crítica eminentemente práctico y racionalista "inspirado en un profundo sentido
continua al ocio barroco y a la consideración de vileza de los oficios mecánicos ético centrado en la búsqueda de la felicitad y e! bien común (LORANDI,
y dei trabajo rural. También, en la ferviente revalorización dei trabajo, dei 2008, p. 42). El Obispo en sus comentarias reproduce el debate que se estaba
comercio y la riqueza, valores que pasarán a competir con los viejos princípios generando en la península en torno de la dignidad dei trabajo y la condena
de! honor guerrero y seiiorial que aún predominaban entre los peninsulares y bacia la ociosidad. Lo más importante, según José Luis Romero y de acuerdo
criollos americanos. El intento de los borbones para desarticular las oligarquías a esta nueva concepción, era que no hubiera ociosos: ni los pobres que no
coloniales se focaliza en el informe en una mirada ominosa hacia los criollos supieran en qué trabajar ni los ricos que consideraban deshonroso hacerlo.
y en la búsqueda por romper el pacto entablado en la época de los Austrias. Según e! autor nada más fuera de época que el prejuicio acerca de los oficios
(ROMERO, (1976] 2001, p.l18). mecánicos y sobre e! ejercicio de los mismos (ROMERO, [1976] 2001, p.l52).
Se trataba a hora de imponer un nuevo modelo sociocultural que implicaba
el impulso regio en campos de la vida social, que hasta ese momento se habían Mucho desto se pudiera evitar si depusiéramos los espaiioles .nuestra altivez,
mantenido bajo la órbita de las corporaciones eclesiásticas y de los gobiernos y en llegando a pobres, trabajásemos como hijos de Adán. Estos son males
municipales (LORANDI, 2008). En este sentido reformista Abad Illana escribía: cuyo remedio se tiene por imposible ... (VISITA, p. 306).
Para remediar estos se había de introducir en estas partes el loable estilo de
Este abuso [las confesiones] era más frec uente en los criollos que en los que los hombres trabajen como los hijos· de Adán para ganar e! pan con e!
espaiioles. Por eso estos para explicar que algún Padre tenía este vicio, decían sudor de su rostro, pero trabajar con las manos es descrédito en los senores
que rei naba en él e! espíritu Americano (VISITA, p. 266). espanoles [ ... ]Todos los que venimos de aliá somos caballeros [ ... ] Mande
Hoy se suele dar una encomienda a un espaiiol que acaso no ha servido sino pues Vuestra Magestad que aquí se establezcan oficios mecánicos, y se
de pulpero. Muy raro nieto se conoce de aquellos que ayudaron a conquistar ejerciten por Espaiioles, porque deste modo si un Espano! tiene algún oficio,
este reino: casi todos son recién venid os de Espana, y así hay mucha menso cone! se podrá alimentar honradamente, y podrá socorrerá a otros (VISITA,
razón, y en algunos ninguna para encomendarles los indios (VISITA, p. 297) p. 305).
Dícese aquí, y es adagio muy verídico: e/ padre pu/pera, e/ hijo caballero, y e/ Tiene u n seiior espano! necesidad de uno o dos esclavos para cuya compra
nieto pordiosero. Viene un espaiiolito. Pone su pulpería de cosas comestibles no tiene dinero, y au nque trabajando él [sic] y sus hijos podían suplir la falta
y de licores: gana algunos pesos con que surte una lonj a, compra una estancia, de esclavos, no lo hacen porque sería descrédito de su hidalguía, y engaiian
o hace un grande empleo de mulas para revenderias en e! Perú. A este sucede a un miserable indio para que vaya a trabajar a su chácara. Sale la mita, y el
un hijo que triunfa como si tuviera un Mayorazgo con lo que bien o mal ganó índio se queda con suamo sin acordarse jamás de su pueblo (VISITA, p. 288).
su padre, y tras é! viene un nieto que por mucho que se esfuerce viene a pasar
en pedir limosna (VISITA, p. 304-305). ACERCA DE BAUTISMO, MATRIMONIOS Y AMANCEBAMIENTOS

La revalorización dei trabajo como fuente de dignidad aparece en el De manera particular se refiere el Obispo a los abusos y corruptelas en
pensamiento dei religioso en varias partes de su escrito. 2 Una estimación dei la implementación de los sacramentos - bautismos, penitencia y matrimonio
trabajo artesanal, la industria y el comercio tiene en Abad Illana un carácter - que observa en las iglesias y parroquias de la extendida diócesis. En varias
partes de su escrito realiza una enfática crítica hacia los espaiioles, quienes
celebraban los bautismos de sus hijos en sus viviendas "sin otro motivo que e! de
la pompa y la vanidad': La legislación tridentina establecía que este sacramento
2. La Cedula de 1783 reconocía e! derecho de hidalguía para e! productor manual, hasta entonces
sólo debía otorgarse en las iglesias correspondientes y no en sitios privados. En
sepultado en las tradicionales concepciones del honor obtenido por las armas. La Cédula admite
que a los artesanos se les puede reconocer "para el goce y prerrogativas la Hidalg uía a los que la la vida diaria esta normativa no se cumplía por el afán de los espaiioles de
tuvieran legítimamente conforme a lo declarado en mi Ordenanza de Reemplazos del Ejército de! diferenciarse dei resto de la población mezclada - esto es negros, mulatos e
tres de noviembre de 1770, aunque lo ejercieran por sus mismas personas (A lvarez, 1981, cit. por índios - , y por considerar "cosa de menos valer e! concurrir a las iglesias" estos
Lorandi, 2008, p. 42)
170 RELIGIÕESEREliGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 171

eran suministrados por un clérigo regular o secular, sea el Padre Rector de la


fuesen bautizados en la iglesia parroquial como un lugar destinado por Dios,
Compafíía o el Padre Guardián de San Francisco. El Obispo denuncia de éste
para el uso y administración de los sacramentos. Estos debían estar a cargo tan
modo las prácticas que transgredían la legislación eclesiástica y afirma además
sólo de los Párrocos y sus Ayudantes de las ciudades "porque en los campos,
que en todo el reino nadie tenía los suficientes privilegias para no llevar a sus
como se reciba el sacramento, no hay que reparar en el modo". En las campanas
hijos a la iglesia a recibir el bautismo (tan solo lo podían hacer los miembros
muy raro era el bautismo que se celebraba en las iglesias porque los vecinos
de la Monarquía y "aquí los Espaiíoles se tienen por reyes").
vivían alejados entre sí, y de las capillas, y "a muy pocos comprende la ley de
llevar allí sus chicuelos" (VISITA, p. 266).
Esto no es tolerable y mucho m enos era la raíz p or serlo la vanidad y
presunción de nuestros espanoles. Tenían por cosa d e menos valer, y agena
Por eso he mandado a todos los Párrocos que en cada pago, o término d e
de su hidalguía, el llevar sus hij os a donde son llevados los de los p obres,
s u curato, designen algún hombre honrado, de buen juicio y arregladas
indios, y mulatos, y como a los hij os destos siempre bautizaba el cura, o su
costumbres, y en defecto suyo alguna mujer tan capaz y virtuosa que se la
teniente, se d esdenaban los seno res espanoles de que po r mano destos fuesen
pueda fiar negocio tan serio para que en caso de necesidad bauticen a los
bautizados sus hijos (Visita, p. 257).
párvulos de sus vecinos y digan ai cura con la posible individualidad el día de
[T) eniendo un espaiiol cuatro reales, ya se quiere arro gar e! real privilegio de
su nacimiento" (VISITA, p. 259).
bautizar dentro de su casa a sus hijos .. . Esto no era to lerable, y mucho menos
lo era la raíz po r serlo la vanidad y presunción de n uestros espanoles (Visita,
Otro abuso recurrente denunciado por el Obispo se refiere al sacramento
p. 257). dei Matrimonio, que de manera similar a los Bautismos se celebraban en la
casa de los contrayentes. Esta práctica no estaba vedada por la iglesia, siempre
El quebrantamiento de la norma eclesiástica tenía su correlato además y cuando estas uniones no fueran secretas. Para la doctrina de Trento el
en la falta y/o el descuido del registro de los bautizados en los libros matrimonio era un sacramento que los contrayentes se administraban entre
correspondientes. Las partidas de Bautismos constituían un documento sí mediante el mutuo consentimiento el cual debían expresar en presencia de
primordial en la adscripción social de los sujetos coloniales: determinaban la un sacerdote y de testigos, luego de publicadas las respectivas amonestaciones.
filiación, la etnicidad, la calidad y el parentesco. Eran, asimismo, un registro de Aquél que quería casarse debía dirigirse al párroco para formalizar el
las prácticas maritales de la población (se explicitaba si los padres eran casados, expediente en el que declaraba la libertad de los novios para realizar la
naturales, bígamos o adulterinos por ejemplo) de importante centralidad para unión sacramental. La secuencia administrativa de los trámites previos a las
la institución eclesiai.J La falta de las fe de bautismos debían suplirse, por caso, uniones matrimoniales reflejaba la preocupación de la Iglesia para que estas
en una tramitación bastante compleja que precisaba de informaciones con se realizasen según sus disposiciones entre bautizados, solteros o viudos con
testigos "que depusieren y jurasen estar bautizados, y tener la edad necesaria libre voluntad, exentos de impedimentos canónicos vinculados al parentesco
para recibir orden sacro". Por ello el Obispo mandará que todos los párvulos (RíPODAZ, ARDANAZ, 1977; Gooov, 1986).
Para Abad Illana la trasgresión y el abuso estaba en la causa que lo
motivaba. Aquellos que se casaban en ámbitos privados no buscaban otra
3. Según la legislación eclesiástica las filiaciones de los bautizados podían ser legítimos/as, cosa "que distinguirse de los demás fieles" (VISITA, p. 257). A este exceso le
naturales, de padres no conocidos y huérfanos. Los hijos legítimos eran aquellos cuyos pad res seguía otro: el de dilatarse notablemente para los casados el suplemento de
habían consagrado su unión por la lglesia y los naturales quienes estaban unidos por el matrimonio las ceremonias religiosas, que a veces transcurrían "tres, cuatro, cinco y aún
en el momento de la concepción. En algunos casos éstos fueron e! efecto de la doctri na de la
iglesia que sostenía que la palabra de casamiento dada en libertad constituía en la práctica un
más afíos sin recibir las bendiciones nupciales de la Iglesia" (VISITA, p. 217). El
matrimonio. A su vez los hijos de padres no conocidos provenían generalmente de relaciones Obispo se refiere particularmente a la jurisdicción riojana donde - según sus
adulterinas con impedimento para casarse. Los huérfanos eran considerados los hij os de padres dichos- predominaban los matrimonios secretos, prohibidos por la normativa
fallecidos, que muy probablemente podían ser producto de uniones no legitimadoras. La lglesia eclesiástica. Si bien - escribía - algunas veces había permitido celebrar en
Católica en América Latina hacía la distinción entre los llamados hijos na turales y los considerados
secreto el santo matrimonio, "nunca he querido dispensar las proclamas [ ... ] y
ilegítimos y bastardos (Guzmán, 20 I O, p. I 5 I)
172 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 173

teniéndolos separados hasta que leídas públicamente en la iglesia no resultase veces, ia afinidad ex copula ilícita sobrevenía al matrimonio ya contraído,
impedimento que obstase al matrimonio contraído" (VISITA , p. 258). y esto ocurría cuando el trato carnal tenía lugar con los consanguíneos dei
Para resolver estos inconvenientes manda que no hiciesen informaciones consorte en primer o segundo grado. Los grados de afinidad correspondían
de libertad para casar a los forasteros, sino que se obligue a éstos que traigan a los de consanguinidad y se computaban dei mismo modo. En estos casos
las proclamas de las parroquias en donde nacieron, o de aquella en donde el matrimonio no se disolvía, pero privaba al cónyuge dei derecho a exigir el
vivieron, o de ambas, y además un "instrumento fehaciente dei Párroco débito conyugal; en cambio no perdía ese derecho el cónyuge que ignoraba el
o Párrocos respectivos que depongan no haber resultado impedimento hecho (GOODY, 1988, p. 20-25):
alguno". El problema que se presentaba era que aquellos que no podían
traer informaciones de su Párroco (caso de los esclavizados, por ejemplo) En los campos en donde juzgaba serían las gentes más inocentes y sencillas,
generalmente no se casaban y con ello aumentaban los amancebamientos y hallo más desenfrenada relajación que en las ciudades, porque en estas
barraganías, "si todavía puede haber más" (VISITA, p. 258). hay alguna justicia, allí ninguna. De aquí nace estar la campana inundada
de adulterios, y amancebamientos, e incurriese muchos impedimentos de
Llegado a tal extremo la desvergüenza que en las visitas no se denuncian ya matrimonio. Los de afinidad nacidos ex copula ilícita son frecuentísimos y
los más feos y sucios amancebamienlos. Nadie denuncia a un amacebado como muchas veces se descubren después de contraído el matrimonio, vea
sino que riiia con él, y entonces hace por venganza lo que debía hacer por vuestra magestad en que apuros se verá el miserable Obispo (VISITA, p. 268).
justicia. Uno u otro muy circunstanciado se denuncia; pero de la ínfima plebe
ninguno, o muy raro (VISITA, p: 267).
Es que ausentándose un índio, mestizo, criollo o espaiiol, de los que viven DE NEGROS, ESCLAVOS E INDIOS

en los campos, dei lugar de su nacimiento, o domicilio, yéndose a otro en


donde no sea conocido, por miserable que sea ha de hallar mujer con quien Las referendas a los sujetos esclavizados y libres de origen africano son
se case. Es extraiia, seiior, la propensión de las mlijeres deste país a casar con
muy escasas en el relato dei Obispo, de igual manera que las referendas
ai mestizaje. El religioso se encuentra con una realidad compleja en
forasteros, y cuando estos hayan dejado viva a aquella con quien casaron
su matriz multiétnica y multicultural, a la que alude ocasionalmente
en su patria y no tengan noticias de ser muerta, con poco dinero y menos
sugiriendo bastante más de lo que explícita. Por ejemplo, deja entrever
trabajo, hallan tres o cuatro testigos falsos que depongan con juramento
un mestizaje extendido y transversal que no significaba necesariamente
haber asistido ai entierro de la mujer de aquel para cuya información de
relaciones armoniosas ni tampoco borraba las jerarquías y las desigualdades
libertad son llamados (VISITA, p. 260).
socioétnicas propias de la sociedad barroca colonial. Conviene detenernos
en las mujeres esclavizadas, cuya localización permanente en domicílios
Si bien la Iglesia no ponía obstáculos para los matrimonios ma:tos y estables dieron lugar a intercambios sexuales que condujeron a la mestización
desiguales (siendo los más comunes entre indígenas y negras) por considerados y al blanqueamiento de una parte de las poblaciones que vivían en relaciones
un freno a los amancebamientos, tiene en cambio una observancia rigurosa dependientes dei mundo espaflol. Las uniones entre espafloles y negras, que
sobre los impedimentos canónicos de gran centralidad para la filosofía se denuncian en el texto, se fueron reproduciendo porque como esclavas
eclesiástica. Las prohibiciones relativas ai matrimonio entre parientes se estaban a disposición permanente de sus amos o de los hijos y parientes de
aplicaban tanto a los parientes consanguíneos (parientes de sangre), a los éstos y hasta de los mismos mestizos que convivían en el mismo contexto
afines (emparentados por matrimonio) y a los espirituales (emparentados social. Surge de la fuente, también, los intercambios frecuentes entre negros/
por compadrazgo). Estos impedimentos podían ser dirimentes que afectaban as e índios/as en condiciones diversas, esto es como esclavos/as o como
la validez dei matrimonio, y los impedientes que solo presentaban obstáculos libres. Los frutos de estas uniones fueron mucho más que los registrados
morales y legales y podían llegar a ser dispensados. Entre éstos últimos se por la Iglesia, puesto que la falta de legitimación de muchas de ellas supone
encontraban los de afinidades ilícitas definidas por el vínculo o proximidad un número considerable de hijos ilegítimos, como los denunciados por el
de las personas, proveniente de acto carnal consumado, lícito o ilícito. A Obispo en el apartado anterior.
174 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo 1 Eduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 175

[... I y si algún índio de la mita se casare en la ciudad donde fue, mande Vuestra LA VISITA EN PERSPECTIVA
magestad que se vuelva con su muger ai pueblo de su origen. Y si la mujer es
esclava, que la pierda el dueno, que acaso habrá solicitado este matrimonio 1. Se advierte en e! discurso de! O bispo la necesidad de imponer un nuevo
para quedarse con el índio que si no será esclavo, hará oficio de tal. Y cuando modelo sociocultural que contribuya ai pasaje de una mentalidad hidalga y
no hay solicitado el matrimonio, habrá dado lugar con su poco cuidado a que barroca a una moderna, más pragmática y racional. Era preciso para ello - este
la esclava se viciase con el índio (sino no se casada) y publicándose esta pena, parece ser e! deseo borbónico - la desarticulación de las oligarquías criollas
todos cuidarían bien de no incurrirla celando las esclavas (VISITA, p. 288). (en cuya conformació n habían tenido que ve r los padres de la Compafiía a
quienes va dirigido gran parte de sus críticas) para romper e! pacto establecido
De que las índias, negras y mulatas, sean madres sin ser casadas, no se hace
con los Austrias. Es que junto a una mentalidad hidalga de antiguo régimen
aprecio, y aún pienso que los duenos de las esclavas, si no las hacen espaldas
primaba toda una concepción de reciprocidades, servidos y beneficios, que
para cometer muchas ruindades, se alegran de las que cometieron por el
Abad Illana enjuiciará en varios p árrafos de su escrito. Los criollos, h ijos de la
provecho que se les sigue de los esclavos y esclavas que deellas nacen. Esto en
tierra, serán también los destinarias de la censura religiosa, tanto en relación
Europa se oiría como juicio sobremanera temerario. Pero los que lloramos
a las concepciones del trabajo, al ocio y la hidalguía, como en sus intentos de
como irremediable la relajación deestas partes, no tenemos dificultad en
distinguirse de la población mezclada, que sin lugar a dudas habría constituído
juzgarlo y proferido [... ] Desde que vine, no ha llegado a mi noticia aborto
e! trasfondo histórico dei sistema de castas. Para algunos autores, los criollos
alguno procurado, porque como las madres de los fetos pecaminosos no habían ideado una imagen de ellos mismos como "puros "y "civilizados" y se
temen el castigo, no procurao ocultar su prenado. puede asumir que dicha imagen fue promovida mediante la diferenciación
Del mismo modo que en Espana andan las casadas cargadas con sus hijos, de los "otros" mezclados. Estas intentos de diferenciación producto de la
andan aquí las solteras con los suyos. Y si son esclavas, a vista, ciencia y configuración barroca comienzan a ser desafiados en la segunda mitad dei
paciencia de sus amos [... ] Creo, seno r, que estos mis miedos son muy bien sigla XVIII, cuando se imponen nuevas concepciones sobre las alteridades
fundados, porque más estimao los criollos a los esclavos que a los hijos, y sociales. La Visita deja entrever una profundización de la d istancia social y
más extremos de dolor hacen por la muerte de un esclavo que por la 'pérdida cultural entre las elites criollas y los peninsulares que se ahondarán, incluso,
de un hijo. Y si supiesen que descubierto el desliz de la esclava se habían de en las décadas siguientes con el arribo de nuevos contingentes de peninsulares,
quedar sin ella, muy de antemano procurarían el aborto, especialmente si dedicados al comercio y a la burocracia estatal y religiosa que incidirán en
fuesen ellos los autores del feto (VISITA, p. 267). la composición de las hegemonías. También anticipa otra tensión y nuevas
jerarquizaciones entre las castas afromestizas siendo, quizás, la más importante
Estos dos últimos párrafos nos permiten constatar el papel constitutivo la que se operará entre el "mestizo" y el "mulato", dos sub-categorías de los
(en tanto código moral de género) que desempefiaba la ideología de Limpieza libres de calor. El primero tiene más calidad que el segundo afirma Lozonczy
de sangre en las relaciones de poder entre los hispanos criollos y las mujeres (2008). En la fuente que analizamos los mestizos apareceo equiparados
negras e indias, que afectaría de manera decisiva la reproducción colonial. a los espafioles y no serán clasificados junto a los índios, negros y m ulatos.
También surge dei documento la dimensión de género que tiene el mestizaje Incluso Abad Illan a en su visita a las ciudades reglamentará esta separación
vinculado a las relaciones de domínio y de poder patriarcal. Por lo general se y jerarquización. En 1768, por orden dei religioso los registros parroquiales
trata de un h ombre blanco- o m ás bien claro - que mantiene relaciones sexuales referidos a los Bautismos, Confirmaciones, Matrimon ios y Defunciones de
con las mujeres subalternas-indígenas o negras. El varón tiene la posibilidad varios curatos dei obispado serán anotados en libras separados: en uno, los
de mixturarse sin poner en peligro su status social ni su vida doméstica y considerados espafioles y m estizos; en otro, los naturales y castas.
marital, en tanto la mujer que entra en estos tipos de relaciones corre el riego 2. Estos aj ustes clasificatorios deben ser entendidos en la emergencia
de verse desprestigiada y de perder el honor - hon or virtud (STOLCKE, 1992 y de nuevos patrones económicos, sociales y culturales. La política reformist a,
2008). En el caso d e las mujeres esclavas la cercanía y convivencia forzosa con hija de la Ilustració n, era una filosofía aristocratizante que va a d istin guir
los amos, dará lugar además al estereotipo de libertinas, carentes de moral y de entre las minorías selectas y el vulgo. Una cosa era la "gente decente" y otra
honra tal cu al se sugiere en el documento que comentamos. el "populacho"; y aún dentro de esta, una cosa era la plebe urbana y otra
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la plebe rural (RoMERO, 2010. p.140). Bajo esta concepc10n, la sociedad Destacamos tambíén un documento contemporáneo a la Visita como es
se representaba en dos grupos sociales claramente diferenciados. Por el inventario de esclavos de las Temporalidades de 1767, juntas a cargo de la
un lado, la "gente decente" y a la "parte más sana y principal", que incluía admínistracíón de los bienes de los jesuítas. En la descripción yvaluación de los
a los peninsulares, criollos y a buena parte de los mestizos (denominados esclavos que habían pertenecído a los Padres son muy llamatívas y sugerentes
"espanoles" en las fuentes) y por otro lado, los de "baja esfera" o "gente las complejízaciones de las taxonomías y la visualizacíón tan manifiestas sobre
de servicio" "inferior clase" "o plebe" como aparece reiteradamente en el el color; además del carácter polisémico de las categorías coloniales (negro,
documento que comentamos. Esta nueva configuración social no significaba mulato, pardo podían significar tanto e! origen como e! color, la condición, el
la desaparición de la sociedad de castas con sus jerarquizaciones de colores status social o la mezcla de todos estos atributos). El análisis dei documento
y calidades étnicas. Estos dos sistemas clasificatorios se superpondrán una y nos permite, además, establecer algunas correlaciones y profundizar nuestra
otra vez, y dependiendo de los contextos será la consideración de uno sobre el argumentación. Entendemos que las lógicas clasificatorias son variadas y
otro. En este punto, también es importante resaltar una observación referida contextuales yvan a depender tanto de quienes sean los encargados de producir
a los niveles políticos y sociales de los encargados de producir clasificaciones. identificaciones, como de la conjunción de variables sociales relacionadas
Después de varios anos de leer documentos y analizar las modalidades de con el espacio, el tiempo y sobre todo de la semantización de cada una de
producción de las catalogaciones de las poblaciones coloniales, encuentro las categorías. 4 Tenemos aquí que en el ano que culmina el informe de Abad
que éstas van a depender, asimismo, de los niveles políticos y sociales de Illana, 322 esclavizados/as correspondientes a las jurisdicciones de La Rioja,
aquellos que realizan tales clasificaciones. He advertido, por ejemplo, Tucumán y Santiago dei Estero (ciudades que integraban el obispado del
que en los documentos provenientes de los estratos altos de la burocracia Tucumán) son tasados y clasificados de la siguiente manera:
colonial (oficiales de la Real Hacienda, autoridades del Estado, obispos) es
muy común encontrar que se disminuyen o se omiten las diferencias entre Negros, negro criollo, negro bozal Angola, negro bozal dei Congo, negro
los sectores de castas libres y se advierte una mayor homogeneización de claro, negro azambado, negro ortelano, negro pardo; mulato, mulato aindiado,
las categorías clasificatorias. En tales casos, las diferencias y jerarquías son mulato claro, mulato azambado; zambo, zambo oscuro. Las combinaciones
más generales, pero no por ello menos relevantes. En tanto, en los estratos entre estas categorías son más complejas aun. Tenemos por ejemplo: zambo
más bajos de la burocracia colonial observamos una mayor preocupación oscuro + negra; negro + zamba; mulato azambado+ negro azambado; zambo
por la especificación de las taxonomías coloniales. Los religiosos, regidores, +mulata= mulato oscuro (AGN, IX, 22-2-2).
subdelegados parecieran tener un ojo más afinado para evaluar estos asuntos
y sus escritos presentan generalmente una terminología más matizada Estas clasificaciones pormenorizadas contrastan con las ocasionales
sobre las identificaciones sociales. Es que cada una de ellas requiere de un referendas que hace elObispo sobre los esclavizados y libres y, particularmente,
conocimiento detallado dei fenotipo, dei linaje y hasta cierto punto de la con los extendidos relatos que realiza sobre la población indígena en este
reputación de la "raza social" de la población local. informe. Sólo los esclavizados sumaban en este espacio particularizado unos
3. El Obispo cuando visita las ciudades y curatos rurales no hace una
referenda explícita sobre los procesos de mestizajes y de transculturaciones
que se venían produciendo desde hacía varios síglos en toda la regíón. Sin 4. "Mulato" por ejemplo es un término amplio y polisémico, que hace referenda tanto ai
embargo, escribe sobre los sujetos mestizos provenientes de los sucesivos origen como a la condición y a la ascendencia. Puede aludir a los hijos me.~ ti zos de un padre
negro y madre blanca, y viceversa. También a un esclavo o libre. Puede asimismo significar tanto
entrecruzamientos. Negros, mulatos y mestízos aparecen algunas veces en e!
a un sujeto esclavizado como a un libre, a los nacidos en la "tierra" o "criollos" que hablaban
escrito, que se suman a las categorías de peninsulares, criollos e índios. Un censo la lengua castellana, y como "bozales'; a los africanos que continuaban con sus lenguas nativas.
de población levantado diez anos posterior a la Visita - 1778 - da cuenta de Puede hacer referenda a las diversas gradaciones dei color y la calidad (diferentes de los pardos,
esta realidad multiéntica y variada, caracterizada por la presencia mayoritaria negros y morenos, por ejemplo). Pude ser una voz amplia (mulato en reemplazo de todas las
de las castas afromestizas en casi todas las jurisdicciones dei Tucumán. Estas anteriores categorías de pardos, negros, mestizos, zambos). Incluso, utilizado como un adjetivo
de discriminación y subvaloración ("perro mulato" entre otros ejemplos que surgen de numerosas
fueron denominadas como: "Negros, zambos y mulatos esclavos y Negros,
fuentes); con connotaciones morales y simbólicas (vicio, lujuria, ilegitimidad, deslealtad)
zambos y mulatos libres': (Guzmán, 2013: 77).

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11.193, en una totalidad de 126.004 habitantes (9% de toda la población) familiares y sexuales que surgen del documento que comentamos. Si bien la
de acuerdo al primer censo borbónico de 1778 (ACEVEDO, 1966). En Iglesia tuvo una mayor o menor influencia sobre dichas prácticas, no era sin
algunas jurisdicciones representaban, incluso, un porcentaje considerable lugar a dudas la única que contribuía a formar la mentalidad. En los espacios
de las poblaciones urbanas, como es el caso de Córdoba y Salta, cabeceras abiertos a iniciativas colectivas e individuales, hombres y mujeres impondrán
de sus respectivas gobernaciones. Los esclavos de la Compaõía del Jesús sus propios criterios. Las amistades ilícitas, concubinatos, amancebamientos,
representaban un número significativo del conjunto, situación que acarreará hijos naturales, hogares encabezados por mujeres solas fueron realidades que
- tal como sucede, incluso, con las poblaciones indígenas de las reducciones - no incluían solamente a los sectores de "castas': sino a extendidos sectores
una considerable incertidumbre sobre el futuro de los mismos. Llamativamente de la población, resultado de un intrincado juego de mandatos, hábitos y
no hay referencias de ello en el informe. Quizás, una explicación posible gire estrategias vinculadas a la propia organización social y al perfil anticultural
en torno a la relación contractual de domínio y sujeción que los esclavizados ( G UZMÁN, 2010, p. 198-9).
mantenían con sus propietarios. El derecho de propiedad por parte de éstos De modo que la jerarquía, etnicidad y pragmatismo son atributos que
circunscribía la intervención de la Carona, y también la Iglesia, sólo a ciertos hacen referenda a esta sociedad en formación y también en transformación.
temas vinculados a la trata, el comercio, y a la observancia y disciplinamiento A las denuncias del Obispo, a sus narraciones y explicaciones sobre los más
de las prácticas religiosas, la moral y las buenas costumbres. La sujeción del variados temas, debemos sumarie estas caracterizaciones del Tucurnán, en
esclavo, casi absolutamente a manos del amo se modificará en las décadas tiempos de transformaciones y de reformas.
siguientes con la implementación del Código Carolina de 1789, cuando el
Estado pasa a cumplir las veces de protector, reglamentador y vigilante. El REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
esclavo/a, de acuerdo a esta normativa, estará situado/a en la encrucijada
de diferentes sujeciones: como parte de una família que debía respetar ACEVEDO, Edberto Oscar. La Intendencia de Salta deZ Tucumán en el
pero a la que también estaba sometido/a; y como parte de un Estado que Virreinato deZ Río de la Plata. Universidad Nacional de Cuyo, 1966.
a la vez protegía y vigilaba. Y al hacerlo, vigilaba también a los dueõos de
estos esclavos/as. El Código Carolina redefine de esta manera los vínculos ASSADOURIAN, Carlos S. El sistema de la economía colonial. El mercado
establecidos adjudicando nuevos roles a cada uno de los tres vértices de la interior. Regiones y espacio económico. México: Nueva Imagen, 1983.
triangulación: amo, esclavo/a, estado. BAZAN, Armando Raúl, Historia del Noroeste argentino. Buenos Aires:
4. Por último, van algunas caracterizaciones finales relacionadas con Editorial Plus Ultra, 1986.
las prácticas familiares, jerarquizaciones y sexualidades de los sectores
subalternos. Se observa en los dichos del Obispo la preeminencia de la BRUNO, Cayetano. Historia de la Iglesia en la Argentina. Buenos Aires: ed.
Limpieza de sangre y el papel constitutivo que ésta tuvo en las relaciones Don Bosco, 1970.
de poder y en el afianzamiento de la jerarquía social colonial. De acuerdo DUSSEL, Enrique. "Europa, modernidad y eurocentrismo". In: LANDER,
a la legislación eclesiástica el matrimonio legal era la forma apropiada Edgardo. La colonialidad dei saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos
de unión entre iguales sociales, mientras que las uniones desiguales (no Aires: CLACSO, 2003.
necesariamente interraciales) dieron como resultado concubinatos más o
FARBERMAN, Judith y RATTO, Silvia (coord. ). Historias mestizas en el
menos estables y/o unidades domésticas matrifocales Estas uniones podían
Tucumán colonial y las pampas (siglas XVII-XIX). Buenos Aires: Biblos, 2009.
ser estables, como igualmente extrarresidenciales temporales que acabaron
con el abandono de la mujer de color por preferir el hombre una esposa GOODY, Jack, La evolución de la fam íliay dei matrimonio en Europa. Barcelona:
perteneciente a su mismo grupo social. La marginalidad de la mujer de editorial Herder, 1986.
color dentro de la gradación del honor en la sociedad colonial - que nos GROSSO, José Luis. Indios Muertos, Negros lnvisibles. Hegemonía, Identidad
deja entrever el informe de Abad Illana - nos introduce además en la y Aõoranza. Córdoba: Encuentro Grupo Editor-Facultad de Humanidades,
dimensión de género y completa la referenda del párrafo anterior. En este Universidad Nacional de Catamarca, 2008.
mismo sentido, resulta importante destacar el pragmatismo de las prácticas
180 RELIGIÚES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 181

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Devoções e Recolhimento feminino nos
sertões do Brasil Setecentista

ISNARA PEREIRA Ivo

INTRODUÇÃO

As devoções, igrejas, oragos, capelas e religiosidades se reproduziram


no Novo Mundo a partir de um universo cultural multifacetado de crenças
que se estruturaram dentro e fora das instituições. Nos séculos XVIII e XIX,
nos sertões da América portuguesa, as práticas religiosas estavam diretamente
vinculadas, também, aos processos de trânsitos e de movimentos de forasteiros
e aventureiros que estavam a serviço do reino. A presença de homens não
brancos e de origem não lusitana tonificou as religiosidades dos espaços
habitados pelos autóctones que passaram a conviver, de forma nem sempre
idílica, com aqueles que se tornaram os novos donos do lugar. Nos sertões da
Bahia e do Norte de Minas Gerais as devoções à Nossa Senhora Mãe de Deus
e dos Homens, à Nossa Senhora das Vitórias e a criação do Recolhimento de
Mulheres Casa de Oração Vale de Lágrimas estão relacionadas às trajetórias
de três homens responsáveis pelas conquistas e controle administrativo dos
sertões. Eles foram os protagonistas das primeiras aberturas de caminhos, pelo
aprisionamento de índios e pela busca e exploração de metais e pedras preciosas
às margens dos rios que interligavam os sertões. São eles o pardo João da Silva
Guimarães, o romano Pedro Leolino Mariz e o preto João Gonçalves da Costa,
que durante o século XVIII e início do século XIX percorreram os sertões
mencionados, orientados pelos caminhos das águas, verdadeiras artérias que
conectavam o mundo Atlântico ao interior do continente.1

I. João da Silva Guimarães, pardo e português adentrou as capitanias de Minas Gerais e da Bahia
durante o século XVIII. Inspirado pelas lendas acerca da existência de prata na Bahia, efetuou
184 REUGIOES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃOEMESTIÇAGENS lsnaraPereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 185

Compreender os encontros culturais e suas dinâmicas reprodutivas CONQUISTAS E DEVOÇÕES


de mesclas e de misturas significa co nceber estes eventos não apenas de
formas naturalizadas, biologicamente explicáveis, mas, também, como A mundialização iniciada pelas Coroas católicas - portuguesa e
encontros construídos, socialmente, pelo incessante movimento das pessoas espanhola - no início do século XVI aproximou gentes das quatro partes do
no decorrer dos processos históricos, trânsitos que produziram misturas mundo (FREYRE, 1973). Aqueles que se deslocaram para os sertões em estudo,
biológicas e culturais em universos construídos no passado, especificamente, atraídos, principalmente, pela busca do ouro, eram oriundos, em grande
as práticas religiosas ou religiosidades delas resultantes. Falar em dinâmicas de parte, do Arcepisbado de Braga. Muitas destas pessoas eram da religião cristã
mestiçagens (PAIVA, 2012, p. 11 e 12) é conceber os universos culturais como e trouxeram para o Novo Mundo, além de pequenas imagens de santos de sua
marcadamente definidos por diversos elementos que produzem, ao mesmo devoção, um sentimento religioso e uma singela piedade, que nem sempre se
tempo, as coexistências, as resistências, as superposições, as apropriações e as aliava à moral na vida prática (LIMA JúNIOR, 1978, p. 87). A crença cristã não se
misturas. apresentou isolada das conquistas ultramarinas, mas dela fez parte e fomentou
No contexto de formação do mundo Atlântico, os sertões do Brasil e a colonização pelos quatro cantos do mundo. O Novo Mundo, considerado
os demais espaços de comércio longínquos transformaram-se em lugares de inculto, era povoado por bárbaros que seriam salvos pelas "caravelas de
diálogos e trocas culturais. Para as Américas, o elemento novo é a intensa Deus": "trouxe a tempestade a Pedro Álvares Cabral a descobrir o Brasil. [... ]
chegada de africanos e europeus em larga escala, que passaram a fomentar perdidos os rumos da navegação, e conduzidos da altíssima Providência mais
inéditos campos de sociabilidades dinamizadoras das mestiçagens biológicas do que dos porfiados ventos': Novas terras repletas de riquezas, especialmente
e culturais que não podem ser compreendidas sem que sejam consideradas as contidas nos sertões norte de Minas Gerais: "nas próprias Minas do Sul o
as dinâmicas da escravidão em todas as suas relações de coexistências, opulento Serro Frio que tem mais partos de ouro que o Potosi teve de prata"
trocas, superposições e resistências. Assim, compreender e explicar religiões (PITA, 1976, p. 20 e 21).
e religiosidades no Novo Mundo pressupõe considerar os processos de Nos sertões do norte de Minas Gerais - comarca do Serro do Frio - e
mestiçagens, intensas ou sutis, que perpassaram as dimensões do político, nos sertões da Bahia - Sertão d a Ressaca e Alto Sertão - três trajetórias se
do econômico e do social no passado. As novas formas de ser e de viver no destacaram: a do romano Pedro Leolino Mariz, a do pardo João da Silva
mundo ibero-americano incentivaram o rompimento das fronteiras de crenças Guimarães e a do preto forro João Gonçalves da Costa. Ainda no início do
e de práticas religiosas, ora dividindo universos culturais, ora aproximando- século XVIII, Mariz deslocou-se da Capitania da Bahia rumo ao Norte de
os, fermentando assim novos espaços mesclados e mestiços tonificados por Minas Gerais para administrar as riquezas dos sertões, sendo o responsável
tradições de distintas origens. A partir dessas considerações, compreendemos pela descoberta de minas de salitre na Serra de Montes Altos, no Alto Sertão
as práticas religiosas nos sertões em análise. da Bahia, pela expulsão dos paulistas de Minas Novas do Araçuaí e pela prisão
de Manuel Nunes Viana, em 1722.2 Tornado homem de confiança do governo
português, foi encarregado de evitar o descaminho do ouro, de administrar os
conflitos de jurisdição que alimentavam as querelas entre o governador das
Minas e o vice-rei do Brasil, em função das constantes descobertas em Minas
Novas (norte da Capitania de Minas Gerais) pelos paulistas Dias do Prado
(ACCIOLI, 1925, p. 341).

grandes conquistas para a Coroa portuguesa. João Gonçalves da Costa, preto forro e também
português, abriu caminhos de conexões entre estes sertões. As entradas e conquistas destes 2. Viana era português nascido no Mi nho e foi o principal líder da Guerra dos Emboabas,
homens foram comandadas por Ped ro Leolino Mariz, nascido na Itália e tornado Superintendente conflito contra o controle dos paulistas nas explorações das riquezas descobertas no sertão da
da Comarca do Serro do Frio durante quase todo o século XVIII. Ver: IVO, Isnara Pereira. Homens Bahia e de Minas Gerais no in ício do século XV III. Ver: RO MEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas:
de caminh o: trânsitos, comércio e cores nos sertões da América portuguesa- século XVIII. Vitória Ideias, práticas e imaginário político no século XVII I. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008 e
da Conquista: Edições Uesb, 201 2 e _ _. O anjo da m orte contra o santo lenho: poder, vingança VA INFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil colonial. (1 500- 1808). Rio de Janeiro: Objetiva,
e cotidiano no sertão da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2004. 2001.
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 187
186 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

A instalação de uma fábrica real de extração de salitre e a abertura de


estradas entre a Serra de Montes Altos e os portos da Bahia, comandadas por
Mariz, foram de extrema importância econômica para os sertões (Ivo, 2008).
A iniciativa das autoridades coloniais de sedimentar a instalação de famílias
de pequenos agricultores ao longo do trajeto objetivou a preservação e a
manutenção dos caminhos, e foi uma iniciativa de fomento do abastecimento
das áreas de mineração, especialmente das Minas Gerais, num projeto claro
de interiorização e de integração econômica dos sertões da Bahia à economia
colonial: "a vantagem não será uma estrada que vai fornecer o interior dos
cortes a força e o pão. O terreno é o mais fértil para todo o gênero de culturas,
o milho, o feijão, base fundamental da sustentação de todo o país das Minas': 3
Além de residir na sede da Comarca do Serro do Frio, Mariz também residia
nos Currais da Bahia, mais precisamente numa fazenda de sua propriedade,
adquirida em 1720 e chamada Brejo das Carnaíbas

aonde há roçaria e engenho de cana, há estrada duas legoas e meia de


distância duas, húa legoa e méia de bom caminho e passase o Rio das Rãs, e
outra legoa e meia, caminho de ladeyras, e a ultima a descer para o Rio, eu se
torna a passar, He bem altam mais de terra vay o Rio aqui entre dous cordões
de serra, como se vê (VIANA, 1935, p. 182).

Era da localidade de Montes Altos que Mariz administrava a extração de


salitre com os técnicos estrangeiros:
Nossa Senhora Mãe de Deusedos Homensde Monte Alto1

Em carta de 19 e 24 de maio deste prezente anno avisei a V. Exa. Que


A Capela do atual município de Monte Alto, sob a invocação de Nossa
tinhão saído desta cidade o Desembargado João Pedro Henrique da Sylva,
Senhora Mãe de Deus e dos Homens, começou a ser erguida em 1739, sendo
o Sargento Mor Engenheiro Manuel Cardoso Saldanha e o Thenente de
concluída em 1742 e inaugurada em 1743. O português Francisco Pereira de
Infantaria Francisco da Cunha de Araújo, a incorporar-se com o Mestre de
Barros, chamado "Pereirinha", comprou as terras onde foi erguida a Capela,
campo Pedro Leolino Mariz que na Capella de N. S. da Madre de Deus pouco
de Isabel Guedes de Brito, filha extraconjugal e herdeira única de Antonio
d istante da serra dos Montes Altos os havia estar esperando. 4
Guedes de Brito. Não se sabem os reais limites da fazenda. Neves (1908) e
Cotrim (1997) afirmam que era de mais de cem léguas de terras nas margens
do rio São Francisco. Tornado proprietário, Pereirinha deixou parte de seus
bens, em testamento, à Senhora Mãe dos Homens de Monte Alto. O povoado
3. Anais da Biblioteca Nacional (Doravante Anais da BN). Volume 36. Carta de José de Sá
foi elevado à Freguesia de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, em
Bittencourt Accioly para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, em que informa sobre os trabalhos
da nova estrada para a Serra dos Montes Altos, cuja construção estava dirigindo. Porto de Sousa,
20.05.1801. P. 403.
4. Anais da BN, v. 31. Officio do vice-rei Conde dos Arcos para Thomé Joaquim da C. Côrte Real
5. Acervo da autora. Agradeço a ajuda preciosa de Rosangela Figueiredo Miranda/IFBA/
transmittindo as informações que recebera da commissão enviada à Serra dos Montes Altos para
Guanambi, por ter proporcionado a viagem de pesquisa a uma documentação inédita no Arquivo
proceder a exploração do salitre e estudar o caminho mais fácil e econômico para o transportar. do Município de Monte Alto.
Bahia 15 de setembro de 1758. P. 290.
188 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 189

1840. De acordo com a Escritura de Doação à Capela de Nossa Senhora Mãe Homens. Somente em 1779 a igreja começou a ser construída. 8 Como se vê, a
de Deus, Pereirinha definiu os limites da seguinte forma: igreja de Monte Alto, dedicada à Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens,
pode ter sido a primeira construída no Brasil com este fim .
Nos lagadiços do Rio San Francisco, entre duas fazendas, h uma a Canabrava No Sertão da Ressaca, a devoção à nossa Senhora das Vitórias sempre
que He do Reverendo Doutor João Calmom, outra a Boa Vista que He de foi atribuída à João Gonçalves da Costa, considerado o principal responsável
Dona Joana Pimentel Guedes de Brito Costa, lado Norte se confronte com o pela conquista do Sertão da Ressaca. A invocação à Nossa Senhora das
rio das Ranz e as fazendas de Antonio Lobato, citas no mesmo, Rio das Ranz, Vitórias já existia em Portugal desde o tempo de Dom João I (1357-1433),
e pio lado do Sul se confronta com o Rio Verde Pequeno e fazendas que estão · quando foi alcançada vitória na Batalha de Aljubarrota contra os espanhóis.
nelle e são do Coronel Manoel de Figueredo Mascarenhas. 6 Em agradecimento, o rei mandou construir um mosteiro e um santuário
com o nome de Santa Maria da Vitória. Em 1571, em vitória cristã sobre os
No ano de 1742, Pereirinha solicitou e obteve da Igreja a autorização muçulmanos, na batalha naval de Lepanto, o Papa Pio V deu à Virgem Maria
pra construir a Capela em Homenagem à Nossa Senhora Mãe de Deus e o título de Nossa Senhora da Vitória. No século XVI foram criados, no Brasil,
do Homens. Doou toda a sua fazenda Riacho da Boa Vista como forma de dois santuários com o nome da Santa. O primeiro foi erguido na Capitania do
agradecimento por graças alcançadas. Segundo Araújo (2010), a atitude de Espírito Santo, em 1551, após a vitória do donatário Vasco Fernandes Coutinho
doação encontrou ressonância com uma prática comum na época: doação sobre os índios Goitacazes, e o segundo, em 1516, em Salvador (GAMA, 1984;
de terras para expressar a piedade religiosa. Para Kátia Mattoso (1992), nem CARVALHO, 2002).
sempre essa prática correspondia às intenções proclamadas, mas, por este Na verdade, Costa e sua família tornaram-se proprietários de grande
mecanismo, a propriedade em questão se tornava inalienável e não podia parte das terras no Centro-Sul do que é hoje o Estado da Bahia e, como outras
ser hipotecada. De fato, no testamento de Pereirinha há uma declaração nos famílias de portugueses, tornaram-se, no decorrer do tempo, membros da elite
seguintes termos: "declaro que este cítio em que me moro he terra própria, local do grande território que compunha a antiga Imperial Vila da Vitória,
e não quero que os herdeiros tenhão nelle para não despedasarem, mas atual Município de Vitoria da Conquista. Lopes Moitinho, Fernandes de
concedo que possão nelle criar seos gados, e vivam de suas lavouras nelle e Oliveira, Ferreira Campos, Ferraz de Araújo e Oliveira Freitas são parentelas
seus descendentes". 7 que ainda precisam ter suas contribuições para a história dos sertões da Bahia
A devoção à Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens surgiu em melhor demonstradas. O destaque dado por mim, em trabalhos anteriores,
Portugal no século XVIII e foi propagada por Frei João de Nossa Senhora, e pela memória histórica local, talvez se deva ao fato de João Gonçalves da
do Convento de São Francisco das Chagas, em Xabregas, bairro de Lisboa. Costa ter sido um negro alforriado e se tornado um grande homem de posses
Durante as pregações o Frei carregava uma imagem de seis palmos de altura de terras e de escravos, além da intensa influência política de sua parentela no
da Virgem Maria, com a mão direita erguida, abençoando; no braço esquerdo, decorrer de todo o século XIX até meados do século XX.9
o Menino Jesus, e, sob os pés, três cabeças de anjo. Segundo alguns registros, Os trânsitos de João Gonçalves da Costa nos sertões da Bahia estão
a devoção chegara ao Brasil em 1774, trazida pelo Irmão Lourenço de Nossa vinculados à presença de Pedro Leolino Mariz como Superintendente da
Senhora que fundou uma capela e eremitério na Serra do Caraça - Município Comarca do Serro do Frio em Minas Gerais, desde o início do século XVIII,
de Caeté, em Minas Gerais - criando a Irmandade Nossa Senhora Mãe
dos Homens que existiu até 1885. Há registro de que no Rio de Janeiro, em
1750, havia oratórios e imagens encravadas nos muros, dedicados à Mãe dos 8. http://www.domluizbergonzini.com. br/20 ll / 12/nossa -senhora-mae-dos-homens-portugal.
html; CARVALHO, José Geraldo Vidigal de. Temas Marianos. 2• Ed. Edito ra Folha de Viçosa,
2002. GAMA, Lélia Vida! Gomes da. Devoção e nostalgia. Informação histórico-litúrgica sobre
o catolicismo e o culto da Virgem Maria em Minas Gerais. Belo Horizonte: Biblioteca Pública
Estadual Luiz de Bessa, 1984. Agradeço a atenção da professora Adalgisa Arantes Campos/UFMG
pelo auxilio na pesquisa sobre o culto Mariano.
6. Autos do Encapelado. Cartório Cível da Comarca de Palmas de Monte Alto. 1846. V 1. 9. A trajetória da família de João Gonçalves da Costa e de sua importância política e econômica
7. Autos do Encapelado. Cartório Cível da Comarca de Palmas de Monte Alto. 1846. V. 1. pode ser vista em: IVO, Isnara Pereira. op. cit. 2004.
190 RELIGIÚES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃOEMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 191

conforme expresso na carta patente de João Gonçalves da Costa, emitida em anos, seguia a sua vocação, que era a de conhecer terras distantes" (WrEo-
1744: NEUWIED, 1989, p. 390-392 e 447-448).
De fato, Costa nascera na Cidade de Chaves, em Trás-os-Montes,
consideração que em fez Pedro Leolino Mariz, esperando dele que nas provavelmente por volta de 1720. Era reconhecido pelas autoridades coloniais
obrigações por lhe tocarem com este emprego se fará muito conforme como um grande desbravador e conquistador de gentios, recebendo, em
a confiança que faço do seu procedimento [... ] elejo e nomeio, capitão da 1744, a patente de capitão-mor do terço de Henrique DiasY Após a morte
gente preta que servirá naquela conquista subordinado às ordens do dito de Guimarães, Costa assumiu, oficialmente, a tarefa de conquista do Sertão
mestre-de-campo João da Silva Guimarães, para que o seja, use e exerça com da Ressaca e, já no início do século XIX, obteve o reconhecimento público
todas as honras, graças, franquezas[ ...] ordeno ao mestre-de-campo Pedro de membros da nobreza lusitana que, ao relatarem a exploração das margens
Leolino Mariz que lhe dê a posse e juramento de que se fará junto nas costas do rio Pardo, registraram: "não produz um século um homem com o gênio
destas. 10 deste capitão-mor, tem 80 e tantos anos, e todas as suas paixões tendem a estas
aberturas e descobertas, em que tem gasto o que é seu, e arrisca frequentemente
O dado mais intrigante deste personagem é sua qualidade e condição 11 a própria vida'~ 14
social, expressas na sua carta patente: "posto de capitão da gente preta que O ouvidor da comarca de Ilhéus, Ralthasar da Silva Lisboa, ao escrever
servirá na conquista e descobrimentos do mestre-de-campo João da Silva sobre os problemas e as potencialidades comerciais daquela capitania,
Guimarães que V. Majestade teve por bem criar de novo e prover na pessoa expressou críticas às entradas de João Gonçalves da Costa, externando causar-
de João Gonçalves da Costa, preto forro, pelos respeitos acima declarados'~ 12 lhe surpresa um homem com família mestiça ter recebido o título de capitão-
Tais inferências nos permitem afirmar tratar-se de um homem não mor da Conquista: "[... ] que efeitos eram de esperar vantajosos à execução
branco, conforme declaração do viajante austríaco em sua passagem pelo dos sábios projetos do governador em uma tão grande distância, tendo-se
Centro-Sul da Bahia: "Ressaca é uma pequena localidade em que três famílias dado por governador e executor do projeto a João Gonçalves, por diretor um
de homens de cor cultivam um terreno situada numa pequena elevação, pouco coriboca 15 da sua família e por pároco um pároco ignorante?" 16 A crítica às
inclinada e rodeada de carrascos, criam também gado'~ Wied-Neuwid refere atividades católicas no Sertão da Ressaca não foi exclusividade do Ouvidor
às famílias de Antônio Ferreira Campos, João Gonçalves da Costa e Antônio da Capitania de Ilhéus, o próprio capitão-mor, João Gonçalves da Costa, em
Dias de Miranda (filho de Costa). O capitão Ferreira Campos "nasceu na 1783, já informara às autoridades portuguesas os problemas que enfrentava na
Europa e se tornou proprietário de vários sítios habitados por homens de cor administração dos preceitos católicos no sertão:
que cultivam mandioca, milho, algodão, arroz, café e todos os demais produtos
do país': Registra ainda que os proprietários do Sertão da Ressaca possuem
"cento e vinte escravos, ou mais': O viajante austríaco afirmou ainda que João
Gonçalves da Costa "é europeu e tem 86 anos" e que "na idade de dezesseis

13. APEBA. Seção: Colonial e Provincial. Série: Patentes e Alvarás do Governo. 1738-1745. Maço
10. Arquivo Público do Estado da Bahia (Doravante APEBA). Seção Colonial e Provincial. Série
356. f. 370.
Patentes e Alvarás. 1738.1745. Maço 356. f. 270. 05.03. 1744.
14. Anais da BN, v. 38. Inventário dos documentos relativos ao Brasil, existentes no Arquivo de
li. No mundo colonial ibérico a categoria qualidade hierarquiza, classifica e indica o lugar
Marinha e Ultramar feito por Eduardo de Castro Almeida. Oficio do governador Conde da Ponte
social dos indivíduos. A condição - livre, escravo e forro - era uma categoria que, geralmente
para o Visconde de Anadia, sobre a exploração das margens do Rio Pardo, pelo capitão-mor João
jurídica, acompanhava a categoria anterior, quando se tratava principalmente de africanos e seus
Gonçalves da Costa. 31.03.1807. P. 455.
descendentes e mesmo de mestiços em geral, podendo também estar aí os índios. A qualidade e a
15. Grifo nosso. Em algumas regiões do Brasil, epíteto geralmente atribuído ao mestiço de
cor aparecem associadas e também se confundem, pois indicam a posição ocupada pelo indivíduo
branco com índio.
na sociedade e se referem a negros, pretos, brancos, cafusos, mulatos, mamelucos, índios, curibocas
16. Anais da BN, v. 36. Ofício do ouvidor da comarca dos llhéos Balthasar da Silva Lisboa para
e mestiços em geral.
Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, no qual lhe communica uma interessante informação sobre
12. Arquivo Público do Estado da Bahia (Doravante APEBA). Seção Colonial e Provincial. Série
a comarca de Ilhéos, a sua origem, a sua agricultura, commercio, população e preciosas mattas.
Patentes e Alvarás. 1738.1745. Maço 356. f. 270. 05.03. 1744.
Cairú, 20.03. 1799, p. 112.
192 RHIGIÚESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGEN S lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 193

e assim estão os sertões todos acabados, e que os tem acabado são os juízes Guimarães era pardo e, possivelmente, filho do mascate mulato Paschoal d a
de órfãos e os vigários, pois estes pegam -se a um costume antigo de levarem Silva Guimarães, um dos líderes da Revolta de 1720, ocorrida contra a criação
duas patacas a cada pessoa, filhos, famílias, e escravos a pataca pela d esobr iga, das Casas de Fundição e Moeda, em Vila Rica (Ivo, 2012). Em alguns registros
e por cada criança que batizam, quatro patacas, e outro tanto d efesa de casar Guimarães é qualificado como p ardo, conforme sua Carta Patente para capitão
quatro mil reis de Estolla [sic], e dez patacas dos banhos, q u atro mil reis de da Companhia e Infantaria da Ordenança de Homens Pardos do Arrebalde,
faze r pergu ntas aos noivos se fi zeram voto de castidade, e a vista disso parece emitida em 1750 por Dom Luiz Peregrino de Carvalho Menezes e Ataide,
que é melhor ser gentio no m ato de que ser cristão em semelhante terra.17 Conde de Althouguia do Concelho de Sua Majestade Vice Rey Capitão Geral
de Mar e Terra do Estado do Brasil:
Continuou o relato denunciando às autoridades coloniais os empecilhos
que os próprios membros da Igreja criavam à obra religiosa da qual se via como que ao bem que estas circunstâncias concorreram na pessoa de João da
membro e defensor: "este ano sucedeu nesta freguesia vir o operário do vigário Silva Guimarães, h om em pardo e ao ser viço que fez ao dito senhor em d ar
o padre Manoel Vaz da Costa em desobriga, e o que não teve dinheiro para lhe seiscentas mulas de donativos para a sua real fa zenda queiram haver por
dar, não só n ão confessou, como também os pôs na porta da igreja onde estão certidão do escrivão do tesouro [... ] hei por bem de nomear [... ] capitão da
trinta e tantos, conjunto com os soldados': 18 Conforme o relato de Wied- referida tropa para que exerça com todas as honras, graças e franquezas [...]
Neuwied, conclui-se que a igreja do Arraial levou anos para ser concluída. Capitão d a Infantaria neste Estado e reino de Portugal. [... ] carta patente do
Em 181 7, quando o viajante por lá passou ainda estava em construção e sob posto d o capitão de uma Companhia de In fantaria da Ordenança de Homens
responsabilidade do capitão-mor João Gonçalves da Costa (1989, p. 427) que, Pardos do Arrebalde d esta cidade que vagou pela total incapacidade em que
após falecimento, deixou determinada a doação das terras para construção da [... ]Miguel Mendes exercia e V. Exa. Fez por fez prover na pessoa d e João da
igreja em homenagem a Nossa Senhora da Vitória: "tendo falecido Capitão Silva Guimarães pelos respeitos acima declarados.11
João da Costa feito a doação a Nossa Senhora da Vitória, terras compreendias
dentro de meia légua em rua desta vilà: 19 João da Silva Guimarães é um personagem muito importante no
processo de conquista dos sertões da Bahia para a Coroa portuguesa. Era filho
RECOLHIMENTO FEMININO de portugueses, sesmeiro, morador da Vila do Carmo (atual cidade mineira
de Mariana) e recebeu, diretamente do rei de Portugal, Dom João V (1 706-
O Recolhimento feminino Casa de Oração Vale de Lágrimas foi criado 1750),22 em Lisboa, a patente de capitão- mor das Ordenanças do distrito de
por Isabel Maria, filha de João da Silva Guimarães, no Arraial da Chapada, Sumidouro, na Vila de Nossa Senhora do Carmo, conforme justificado pelo
Termo de Minas Novas na C omarca do Serro do Frio. 20 João da Silva rei ao governador-geral da Capitania das Minas, Dom Lourenço de Almeida:
"me havendo servido com boa satisfação no posto de uma companhia
de Itacolomi e por esperar dele que daqui em diante tudo há de que for
17. ANTT (Arquivo Nacional da Torre do Tombo). Brasil-Avulsos. Cópia da carta do capitão encarregado de meu serviço se haverá mui conforme a confiança que dele
João Gonçalves da Costa ao desembargador Francisco Nunes da Costa escrita no Arraial de Nossa faço da sua pessoa':23 Guimarães, depois de ter sido indicado por Mariz para a
Senhora da Vitória, em 30.07. 1783.
18. ANTT. Brasil-Avulsos. Cópia da carta do capitão João Gonçalves da Costa ao desembargador
conquista dos sertões de Minas Gerais, seguiu para o Sertão da Ressaca, Alto
Francisco Nunes da Costa escrita no Arraial de Nossa Senhora da Vitória, em 30.07.1783. Sertão da Bahia, e para o recôncavo, registrando em seu percurso a descoberta
19. APEBA. Seção Colonial e Provincial. Série: Judiciário. Juízes. Vitória. 1837-1872. Maço
2647. Correspondência de Manuel José dos Santos Silva. Fabriqueiro. Imperial Vila da Vitória.
31.1 2. 1866. 21. APEBA. Seção Colonial e Provincial. Série Patentes. Alvarás. 1745.1750. Maço 357. f.
20. Anais da BN, v. 31. Inventário dos documentos relativos ao Brasil, existentes no Arquivo de 253.07.02. 1750.
Marinha e Ultramar feito por Eduardo de Castro Almeida. Ofício do Arcebispo da Bahia, para 22. In: RUSSELL-WOOD, A. J. R. Apêndice 1: Monarcas de Portugal e do Brasil. 1500-1760.
Diogo de Mendonça Côrte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão Vice-reis e governadores-gerais do Brasil na Bahia. 1549- 1760. In: _ _ . Fidalgos e filantropos.
por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instruções a A santa casa de misericórdia da Bahia. 1550- 1755. Brasília: Editora da UNB, 1981. p. 291-295.
este respeito. Bahia, 14 de Julho de 1754. P. 79/80. 23. Arquivo Público Mineiro (A PM). Seção Colonial. Códice 15. 22.09.1732. f. 68v.
194 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.} 195

de esmeraldas, diamantes, ouro e a incessante busca das lendárias minas de Em Portugal há quatro tipos de recolhimento registrados na documentação
prata, supostamente ali existentes (Ivo, 2012). Guimarães envolveu os vários colonial:
membros da sua família no percurso de entradas para o sertão, entre eles, 1) O filantrópico, preocupado com o destino das meninas órfãs pobres,
o seu irmão José da Silva Guimarães, morto por índios durante a busca de constitui-se por doações de pessoas nobres e ricas; 2) os ligados às Santas
esmeraldas e a sua filha Isabel Maria, fundadora do Recolhimento feminino Casas de Misericórdia e que receberam enjeitados de todos os sexos, mas
Casa de Oração Vale de Lágrimas.
que possuíam um tratamento específico para com as meninas no que
Os recolhimentos femininos eram lugares nos quais as mulheres se
respeita a casamento e dote; 3) o criado para dar um estado, principalmente
dedicavam à vida comunitária religiosa sem, contudo, prestar votos perpétuos
às órfãs filhas de funcionários reais que morreram nas conquistas; 4) e por
e possuíam caráter educacional e caritativo. Surgiram como resposta à
fim, os recolhimentos que surgem com beatérios, alguns desejam apenas
política do governo português de dificultar, e mesmo impedir, a criação de
emendar mulheres perdidas, já outros almejavam tornar conventos, com
conventos femininos na América portuguesa, medida que visava a estimular
a possibilidade de professar, ou seja, de as moças recolhidas fazerem votos
o casamento. Não eram instituições reconhecidas canonicamente, pois não se
perpétuos, e eles serem conhecidos canonicamente, tornando-se conventos
voltavam totalmente para a devoção religiosa. Nos recolhimentos aceitavam-
(ALMEIDA, 2012, p. 291 e 292).
se mulheres e meninas das mais diversas origens que, na maioria das vezes,
eram encaminhadas de maneira forçada para estes espaços pelos seus pais e
maridos. As justificativas para o envio iam desde a limpeza da honra da família Pelo que indica a documentação, este último modelo foi o seguido pela
até às formas mais variadas de educação, pois lá aprendiam a costurar, bordar, Casa de Oração do Vale de Lágrimas, criado às margens do rio Araçuaí, no
ler, escrever, contar etc. Aquelas que permaneciam por mais tempo recebiam Vale do Jequitinhonha, distrito de Minas Novas, na comarca do Serro do
aulas de música e de latim (DEL PRIORE, 1994; ALGRANTI, 1993; FURTADO, Frio. Segundo Botelho, o Recolhimento fora criado pelo padre Manuel d os
2003). Santos, oriundo da Ilha da Madeira, e que este "andou pelas Minas com pouca
No Império colonial português, a condição da mulher apresentava-se edificação até que um certo dia, caindo-lhe um raio aos pés, se converteu e
ambígua: ora como um sujeito imbecilizado e ora como uma camada social entregou-se a uma vida de zelo, oração e penitências" (BoTELHO, 2004, p. 249-
que, por ser inferiorizada, alcançava uma série de privilégios (ALMEIDA, 250). Segundo a autora, o convertido, auxiliado por Isabel Maria, filha de João
2012, p. 287). De acordo com as Ordenações Filipinas, a mulher precisava da Silva Guimarães, fundou a instituição sem autorização eclesiástica ou da
de procurador para representá-la, não podia ser fiadora, nem admitida em Coroa e vestiu o hábito de Sant'Ana, assim como as moradoras.
cargos públicos. Não havia formas de emancipação feminina, pois passava da Na verdade, o Recolhimento era localizado em área de fronteira entre o
sujeição paterna para a marital. Ao marido havia a prerrogativa de castigos Arcebispado de Mariana e o Arcebispado da Bahia. Em 1754, após investigar
físicos moderados e até de matar, caso fosse comprovado adultério. A defesa da o modo de vida das enclausuradas, o Arcebispo da Bahia, D. José Botelho
honra da gente de qualidade pressupunha a tutela irrestrita sobre as mulheres. decidiu manter a Casa de Oração, que a partir de então passou a ser chamada
O temor da prostituição assolava as famílias tidas como bem nascidas, que Recolhimento da Chapada. Em 1779, veio a licença real para o funcionamento
viam nos recolhimentos uma saída para a recuperação das máculas de um d o Recolhimento, que parece ter tido, durante toda a sua existência, uma
mau passo dado por mulheres da boa sociedade. finalidade apenas educativa e não voltada para o claustro (Botelho, 2004, p.
Os perfis dos recolhimentos femininos no Império português foram 249-250). Conforme ofício de 1754 do Arcebispo da Bahia, o Recolhimento
diferenciados, mas todos estiveram voltados para proteger a honra feminina. Casa de Oração Vale de Lágrimas foi fundado por volta de 1730, por Isabel
Iam do mais famoso, como o Castelo de Lisboa que abrigou as filhas dos Maria, filha do conquistador João da Silva Guimarães:
funcionários que feneceram nas conquistas, ao mais simples, como o de
Filipeia de Nossa Senhora das Neves, na Paraíba. Havia também os destinados He fundadora e governante huma D. Isabel Maria, filha do Mestre de Campo
a recuperar prostituas e mulheres perdidas, os chamados Recolhimentos das da Conquista João da Sylva Guymarães, que há muitos annos, que ajuízo por
Convertidas. mais de vinte, que com alguns homens brancos e escravos vive entranhado
naquelles sertões, sem comércio de outras creaturas racionaes, mantendo-se
196 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 197

do que trabalha e de algumas porções de ouro, que os Governadores deste O oficio do Arcebispo origina-se do recebimento de atestados,26 abaixo-
estado lhe tem mandado dar para descobrimentos que lhes representa e assinados27 e representação28 em favor da manutenção do Recolhimento.
segura muito capaz, para o que tem dom especial. 24 A autoridade religiosa decidiu em favor da instituição, justificando que
compreendia os sertões como o espaço de refúgio e destino dos avarentos:
O conjunto de documentos encontrados sobre o Recolhimento "não estranho já esta manifestação, por ser uso practico e universal em todos
feminino Casa de Oração Vale de Lágrimas é composto de atestados, abaixo- os sertões e minas, que se tem introduzido em huns pella cobiça e em outros
assinados, ofícios e declarações referentes às iniciativas para a manutenção do pello temor de que os matem [... ]". 29 A decisão do Arcebispo da Bahia, em favor
recolhimento. São indícios que nos permitem pensar na existência de iniciativas da manutenção da Casa de Oração Vale de Lágrimas, fundada por D. Isabel
contrárias à permanência da instituição feminina ali nos sertões. Infelizmente Maria, foi precedida de investigação solicitada ao "Vigário da Matriz de Santo
não foram, ainda, encontradas fontes históricas e/ou historiográficas que nos Antonio e ao N. S. de Covello, Padre Nicolao Pereira de Barros':30 Da mesma
permitam afirmar por que isso aconteceu. No entanto, podemos ficar com forma as autoridades da comarca do Serro do Frio se posicionaram a favor
algumas hipóteses, ainda por serem mais bem formuladas: Por que alguns do Recolhimento, afirmando que estavam integralizando somente interesses
moradores da comarca do Serro do Frio desejavam o fim do Recolhimento e metropolitanos e devoções religiosas:
outros desejavam sua manutenção? O possível envolvimento de João da Silva
Guimarães nos motins de 1720, em Vila Rica, 25 estaria relacionado ao desejo Além destas informações eu ten ho muitas outras vocais de pessoas fidedignas
de alguns moradores e autoridades da Capitania de Minas Gerais de acabarem que todas m e seguram ser aquele Recolhimento muito útil para educação da
com a instituição mantida por Isabel Maria, filha de um "homem de cor"? mocidade, terem as suas congregações com que viver decentemente e darem
A localização do Recolhimento em área fronteiriça entre o Arcebispado da pela sua conduta exemplos de virtude dignos de se imitarem por cujas razões
Bahia e de Minas Gerais teria sido atingida pelas querelas administrativas e me parece justa e conveniente que S. Majestade lhes faça a graça de lhes
judiciárias existentes, durante todo o século XVIII, e parte do século XIX, conceder a confirmação que pretendam. 31
entre as capitanias da Bahia e de Minas Gerais? E nestes termos pode V. Exa. sem o mínimo escrúpulo informar a S. Majestade
Ao que se sabe, o Recolhimento fazia parte do Arcebispado da Bahia e que é justo o requerimento, que a mesma senhora fizeram aquelas recolhidas,
era mantido por doações e pelos trabalhos agrícolas desenvolvidos com ajuda
da mão de obra de livres e de cativos. Estava a quatro léguas de distância
de Minas Novas, erguido num terreno montanhoso e úmido, cujas internas
"vivião não só recolhidas, mas enclausuradas, vestidas uniforme de S. Anna 26. Anais da BN, v. 31. Atestado de Pedro Leolino Mariz, Mestre de Campo, Com mandante das
e que em breve tempo crescia muito o material daquella obra e numero das Minas Novas do Arassuahy, acerca de D. Isabel Maria e do seu Recolhimento. Villa de N. As. Do
recolhidas, pellos muitos mineyros que procuravão recolher suas filhas no tal Bom Sucesso, 28 de fevere iro de 1754. P. 80.
27. Anais da BN, v. 31. Attestado de várias pessoas, certificando o bom comportamento de D.
recolhimento:'
Isabel Maria. Villa do Bom Sucesso e Minas do Araçuahy, 19 de janeiro de 1754. P. 80.
28. Anais da BN, v. 3 1. Representação de D. Isabel Maria, fundadora e directora do referido
Recolhimento, justificando a sua fundação e o estado em que se encontrava. Minas Novas, 2 de
março de 1753. P. 80.
29. Anais da BN, v. 31. Inventário dos documentos relativos ao Brasil. existentes no Arquivo de
Marinha e Ultramar feito por Eduardo de Castro Almeida. Ofício do Arcebispo da Bahia, para
Diogo de Mendonça Côrte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão
por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instruções a
24. Anais da BN, v. 31. Inventário dos documentos relativos ao Brasil, existentes no Arquivo de este respeito. Bahia, 14 de Julho de 1754. P. 79/80.
Marinha e Ultramar feito por Eduardo de Castro Almeida. Ofício do Arcebispo da Bahia, para 30. Anais da BN, v. 31. Auto de investigação a que procedeo o Padre Nicolao Pereira de Barros,
Diogo de Mendonça Côrte Real, referindo-se a um Recolhimento de mulheres, fundado no sertão Vigario da Matriz de Santo Antonio e N. S. do Bom Sucesso do Corvello, por ordem do Arcebispo
por uma filha do Mestre de Campo da Conquista João da Silva Guimarães e pedindo instruções a da Bahia, sobre o recolhimento fundado nos lim ites da freguezia do Fanado. Bahia, 6 de junho de
este respeito. Bahia, 14 de Julho de 1754. P. 79/80. 1754. P. 80.
25. Sobre essa possibilidade, ver: IVO, Isnara Pereira. 2012, p. cit. 31. APM. Seção Colonial, Códice 224. 1780-1 782. f. 2.
198 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 199

que na verdade pela sua exemplar vida e bons costumes se fazem dignas e pelos "senhores governadores e, não menos, pelos senhores corregedores': O
merecedoras da Real Piedade e da Proteção de V. Exa. 32 Recolhimento foi considerado pelas autoridades como Casa de Oração secular,
sem voto algum e com grande utilidade para os povos das Minas que enviavam
A região montanhosa e úmida na qual se situava o Recolhimento era um suas filhas que de lá saíam "provectas em artes liberais, mas também no santo
lugar propício à proliferação de doenças entre as recolhidas, daí a iniciativa amor e temor de Deus': 33
do Comandante de Minas Novas, Joaquim Manoel de Vieira Abrantes, retirar O Recolhimento feminino Casa de Oração Vale de Lágrimas,
as internas para o Arraial da Chapada, lugar mais próprio às atividades administrado por uma mulher não branca, e os trânsitos de devoções
econômicas do Recolhimento: portuguesas relacionadas às trajetórias de um preto forro e de um romano
estão vinculados, diretamente, a um contexto de trânsitos do século XVIII e
Possuem mais dois sítios onde criam gado vacum um d istante do Arraial início do século XIX. As intensas circulações de forasteiros e d e não brancos
da Chapada légua e meia chamada Mãe D 'Água por doação que dele as pelo mundo lusitano, verificadas desde o início das conquistas ultramarinas,
ditas recolhidas fez o falecido Gabriel Monteiro e outra perto do Ribeirão nos permitem compreender estas trajetórias nos sertões do Brasil como parte
chamado Vacaria por doação que dele lhe fez o falecido capitão mor Romão de processos de trocas e trânsitos de sentimentos, de costumes, de hábitos e
Gramacho Falcao porém estes sítios ou fazendas por hora não são de muito de religiosidades inerentes às dinâmicas das mestiçagens que, marcadamente,
rendimento por falta de melhor fábrica que os administre. tonificaram as formas de ser e de viver no Novo Mundo.

O sustento das recolhidas provinha do trabalho dos seus "36 escravos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de ambos os sexos e alguns casados, isto é, escravos de serviços, excetuando
várias crias cujos se ocupam com seus filhos em lavouras de milho, feijão e ACCIOLI, Ignácio. Memórias históricas e políticas da província da Bahia.
arroz e mais mantimento': As propriedades do Recolhimento eram compostas Anotações: Braz do Amaral. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1925. v. 2.
de três fazendas
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas mulheres da colônia: condição
feminina nos conventos e recolhimentos do sudeste do Brasil. 1750-1822. Rio
uteis para lavouras, e não terras minerais, vertendo uma destas fazendas para
de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993.
o rio Arassuai outra para o rio Fanado e outra em o luar do sitio chamado
Corrente, com um engenho de canas e seus assessórios de cujos 36 escravos ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. "Entre a proteção e o abandono:
se ocupam seis ou oito escravas donzelas dentro do dito Recolhimento para recolhimentos femininos na cidade de Lisboa no período moderno". In:
servirem nos ministérios da Comunidade. ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; RIBEIRO, Marília de Azambuja e
SILVA, Gian Carlo de Melo. (Orgs). Cultura e sociabilidade no mundo atlântico.
O lugar onde foi erguida a Casa de Oração Vale de Lágrimas foi comprado Recife: Editora da UFPE, 2012.
e desembargado "com escritura, sem vizinhos e cercado com muros altos de ARAÚJO, Jonas Cardoso de. "Algumas considerações acerca do município
altura pouca, mais ou menos de quinze a dezoito palmos': A casa era mantida de Palmas de Monte Alto': In: SILVA, Joaquim Perfeito da (Org). Território
com sua produção de subsistência, por meio do trabalho dos 36 escravos que e ambientes da Serra de Monte Alto. Região Sudoeste da Bahia. Vitória da
possuíam e mediante esmolas recebidas de alguns fiéis. Em 1780 "moravam Conquista: Edições Uesb, 201 O, p. 167-177.
no Recolhimento 35 mulheres, das quais 33 donzelas e duas casadas, das
BOTELHO, Ângela Vianna. "Recolhimento': In: BOTELHO, Ângela Vianna e
quais uma foi metida no mesmo recolhimento por ordem do Corregedor
ROMEIRO, Adriana. Dicionário histórico das Minas Gerais. 2a edição revista.
Guerra e do Conde de Valadares': As internas foram consideradas virtuosas
Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
pelos moradores, pelas autoridades de toda a Capitania de Minas Gerais e

32. APM. Seção Colon ial, Códice 224. 1780-1782. f. 2, 3 e 4. 33. APM. Seção Colonial, Códice 224. 1780- 1782. f. 2, 3 e 4.
200 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 201

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Batismos mestiços: mestiçagens na
freguesia de Nossa Senhora das Neves
do Sertão do Maca é (RJ), século XIX 1

]ONIS FREIRE

A mestiçagem foi fenômeno visível em diversos espaços e práticas


culturais e/ou sociais, inclusive as religiosas, no Brasil colonial/imperial.2 No
cotidiano, sentimentos eram estabelecidos, conformando processos variados
de mestiçagens biológicas e culturais, que se constituíram em verdadeiros
"espaços mestiços':
Os registros paroquiais constituem fontes importantes para pensar as
mestiçagens. Por meio deles é possível analisar as variadas relações (sociais,
demográficas, políticas etc.) entre os diversos indivíduos que compunham as
sociedades escravistas. É possível também visualizar as mestiçagens, e como
elas foram percebidas pelos "mestiços" e pelos "não mestiços" em diferentes
espaços temporais e cronológicos. Os registros feitos pelos párocos refletem,
além da mestiçagem em termos biológicos e culturais, as percepções daqueles
religiosos quanto aos indivíduos envolvidos nestas práticas e a maneira como
foram representados no correr do tempo, sobretudo com relação às cores/
qualidades que lhes foram atribuídas e que muitas vezes determinavam sua
posição social, dinâmica do seu cotidiano, origens, hierarquias e vivências.3

1. Agradeço ao CNPq e a FAPER) o auxílio para a pesquisa.


2. De acordo com Eduardo França Paiva: "[... ] 'mestiço' já era termo antigo quando se iniciou
seu emprego nas conquistas americanas. Segundo Carmen Bernand e Serge Gruzinski, 'El término
'mestizaje' proviene de un adj etivo latino, mixticius, que designa ai que ha 'nascido de una raza
misturada~ En el siglo Xll Girarte dei Rosellón habla ya de los mestiz franceses, mexclados con
borgonones"' (20 12, p. 195).
3. lsnara Pereira Ivo, analisando a documentação setecentista, tanto portuguesa quanto
espanhola, constata que os termos 'qualidade' e 'condição' se "referiam aos vários tons da pele,
varias o rigens e aos dife rentes fenótipos da população. Assim, a 'qualidade: na escrita coeva,
204 RELIGIOESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 205

Este capítulo faz parte de um trabalho, em andamento, sobre os registros compartilhadas apenas verticalmente pelas autoridades e pelo Estado, mas
de batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, também horizontalmente:
ao longo do século XIX, e que demonstra mestiçagens possíveis de serem
percebidas nos assentos paroquiais. O resultado dessas miscigenações legou [... ] é fundamental compreender que elas [as grandes categorias de d istinção]
aos batizandos cores/qualidades que não necessariamente eram as mesmas foram operadas pelos vários grupos sociais, ainda que de maneiras diferentes,
que as de seus pais e/ou mães e que, como veremos, também não possuíam com intensidades e motivações distintas, que as conheciam, compreendiam
um padrão. Essa miríade de cores/qualidades demonstra uma multiplicidade e, também , valoravarn. Não se trata de arsenal classificatório imposto de cima
de designações, ao que parece, não ligadas necessariamente à tez da pele. para baixo, operado pelas mãos representantes de estados absolutos, mesmo
Elas eram indicativas de identidades culturais que marcaram o cotidiano dos que essas categorias também ajudassem os administradores e autoridades
mestiços naquela sociedade oitocentista. representantes das coroas ibéricas a organizarem as sociedades ibero-
O mosaico de cores/qualidades - pretos, pardos, caboclo, crioulos, americanas e a manterem o domínio de espanhóis e portugueses ( PAIVA,
mulatos, cabras, mestiço, etc. - ou a ausência delas parecem estar imbricados 2012, p. 184) .
com a condição social e jurídica daqueles sujeitos. Caracterizavam-se como
categorias de classificação, nas quais se pretendia determinar, por meio dessas Para os inocentes, as cores/qualidades que lhes foram atribuídas (por
designações, os lugares estabelecidos naquela sociedade para cada um dos clérigos, recenseadores etc.), e que também podiam ser atribuídas a eles
envolvidos naquele sacramento. por seus responsáveis, indicavam um lugar social/hierárquico e não neces-
sariamente diferenças de cunho racial. De acordo com Isnara Pereira Ivo, é
"Negros': "pretos" e "crioulos" foram as "qualidades" mais usualmente consenso entre os estudiosos que a relação direta entre brancos livres e negros
atribuídas aos homens e mulheres nascidos na África ou aos seus escravos não se aplica nem na América portuguesa e nem para a espanhola
descendentes diretos, cujos nascimentos ocorreram nas Américas. Mas setecentistas. Segundo a historiadora, é impossível estabelecer critérios raciais
houve muitas misturas biológicas entre esses grupos e os demais (incluindo para classificar essas populações, pois as designações "branco, preto, negro,
os já mesclados), desde o século XVI, o que gerou dezenas de categorias de mulato, pardo, cabra, mestiço ou crioulo dizem mais sobre a heterogeneidade
mestiços, umas mais evocadas que outras na documentação. ( PAIVA, 2012, p. cultural existente no Brasil colônia do que sobre as especificidades 'raciais"' A
224-225). imprecisão dos termos, muitas vezes oriundas das instituições adm inistrativas,
e por que não dizer religiosas também, torna de difícil entendimento as
Essa multiplicidade de designações mestiças utilizada pelas sociedades designações dos grupos que compunham essas sociedades (Ivo, 2012, p. 280).
escravistas, inclusive nos seus documentos oficiais, demonstra a sua Neste sentido, alguns assentos de batismo da freguesia de Nossa Senhora das
complexidade. Ao mesmo tempo, aponta que categorias como as de cor/ Neves do Sertão de Macaé podem nos ajudar a pensar essas questões, para
qualidade não eram estanques no tempo, ou seja, seus "significados" tentarmos compreender quais os significados e as utilizações feitas desse
foram variando/ circulando ao longo dos séculos, sendo utilizados tanto "léxico das mestiçagens".
pelos grupos de elite quanto por aqueles sobre os quais recaíam mais
fortemente as mestiçagens. Portanto, essas designações mestiças - "esse
A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES DO SERTÃO DE MACAÉ
léxico das mestiçagens", nos dizeres de França Paiva - não foram utilizadas/
No período colonial, Macaé fazia parte da capitania de São Tomé, que
aparece empregada para se referir a brancos, pretos, negros, crioulos, pardos, mulatos, cabras,
posteriormente passou a se chamar capitania de Paraíba do Sul. A freguesia de
mamelucos, curibocas, caboclos etc. A 'condição: por sua vez, refere-se a livres, forros, e escravos:' Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, segundo núcleo de população
(IVO, 2012, p. 252). Nas Minas Gerais do século XIX essas categorias parecem indicar a mesma mais antigo do Município de Macaé, foi criada no ano de 1795, e elevada
coisa. Nas Listas Nominativas de 1832 e 1838, o termo "qualidades" estava entre as variáveis à categoria de paróquia em 1803 (LAMEGO, 1958, p. 66 e 138; AMANTINO,
recenseadas e ao que tudo indica tinha os mesmos critérios expostos por Ivo. Nesta variável eram
2011).
descritos: brancos, pardos, crioulos, angolas, negros, pretos etc.
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino {orgs.) 207
206

De acordo com Sheila de Castro Faria, essa foi a terceira freguesia em De acordo com o recenseamento de 1872, a freguesia de Neves possuía
proporção de ex-escravos e seus descendentes. Ao analisar a população da uma população de 8.348 habitantes, a maior que compunha o município,
capitania de Paraíba do Sul entre 1785-1799, a pesquisadora destacou que seja com relação a livres ou escravos - eram 5.131 livres e 3.217 cativos.
nesse período em Nossa Senhora das Neves houve um "espantoso" aumento Muitos deles mestiços. Portanto, estamos a tratar aqui de uma freguesia que
demográfico da população geral, de 4.228%, enquanto que a de pretos/pardos possuía, ao longo do século XIX, um alto número de livres, cativos (africanos
livres foi da ordem de 2.687%. e "nacionais") e também de libertos/forros - brancos, pardos, pretos, cabras
Faria ressaltou ainda que, naquela capitania, nenhuma outra freguesia - o que, sem dúvida, se consubstancia como mote para um estudo mais
se aproximou de Neves no que diz respeito ao aumento demográfico (FARIA, aprofundado sobre diversos temas, inclusive o das mestiçagens que ocorreram
1998, p. 130). Segundo a pesquisadora, esse era um momento atraente para entre essas pessoas. Agregado a isso não podemos nos esquecer de que essa era
populações migrantes, sobretudo livres pobres. Baseando-se nos manuscritos uina região, desde muito tempo, constituída de uma vasta população indígena
do cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis, a historiadora destacou que: que, por meio de sua união com outros indivíduos, foi importante nestes
processos de mestiçagem (LIBBY, 2010; AMANTINO, 2010).
Esta é a mais moderna, situada na margem do Macaé no luga r denominado Ora, certamente essas populações possuíram muitas uniões que levaram
Aldeia dos Índios, não tem terr itório com limites certos, os seus habitantes à miscigenação, ou seja, por meio destes encontros muitas famílias mestiças se
são pobríssimos, e muito poucos em número e dispersos; chamam -se
formaram. Neste aspecto, não é difícil imaginar que, a partir daquelas mestiçagens
fregueses desta todos os que habitam na viz inhança do Rio de São Pedro,
biológicas e culturais, muitas relações familiares, de solidariedade e de parentesco
espiritual (compadrio), dentre outras, ocorreram entre aqueles indivíduos, sendo
e da barra des te por uma outra margem do Macaé acim a (FARIA, 1998, p.
algumas delas possíveis de serem conhecidas por meio de práticas religiosas,
131).
como o batismo cristão. Desta forma, a análise dos registros de batismo pode nos
ajudar a entender de que maneira as designações mestiças de cor/qualidade, que
Sobre o povoamento e a economia da região, Faria apontou que:
"marcavam aquelas pessoas': se fizeram presentes naquele ato religioso.
Toda a capitania de Paraíba do Sul, no decorrer do século XVIII, foi atraente
ESPAÇOS MESTIÇOS E LUGARES SOCIAIS NO SACRAMENTO DO BATISMO
à entrada de homens e de capitais, sendo que Neves teve um aumento
populacional excepcional. Em 1785, tinha quarenta habitantes livres, 102
Neste trabalho destacaremos alguns registros de batismo, a maioria deles
escravos, dois engenhos, produzia somente cem arrobas de açúcar por
da primeira metade do século XIX, que podem nos ajudar a compreender
ano, uma pequena colheita de grãos e pouca criação de gado, distribuídos
como as mestiçagens foram entendidas/utilizadas pelos envolvidos naquele
por 12 unidades agrícolas. Em 1799, sua situação havia-se transformado sacramento.4 França Paiva chama a atenção para o fato de que os religiosos,
radicalmente: de quarenta habitantes passou a ter 1.691 (um aumento de desde muito cedo, foram grandes manejadores de instrumentallinguístico, que
4.227,5% em 14 anos); a população cativa aumentou de 102 para 3.640 norteou uma vasta gramática que poderíamos chamar de "mestiça': De acordo
(em termos proporcionais, a elevação foi de 3,568,6%). Segundo Pizzaro com o pesquisador, esses agentes religiosos, por meio de sua atuação, ajudaram
e Araújo, em 1812, seus habitantes se dedicavam à extração de madeira, à na construção/incorporação de vários vocábulos que foram utilizados pelas
pesca e à agricultura da cana, da mandioca, do milho, do arroz e de legumes, populações ibero-americanas. Desta forma, com o passar dos tempos, "a cada
exportados pelo rio Macaé (FARIA, 1998, p. 326-327). nova geração o léxico ibero-americano tornava-se mais amplo, mais disseminado

O açúcar foi o principal produto da região nos séculos XVIII e XIX,


integrando o circuito do mercado interno de abastecimento. Contudo, Ana 4. Os livros de batismo da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé são muito
Lucia Nunes Ferreira (2001) afirma que na segunda metade do XIX esse ricos em informações e apresentam poucas lacunas cronológicas. Não há entre os utilizados neste
capítulo distinções, são livros "mistos': ou "mestiços': ou seja, não há livros específicos para livres,
cultivo estava longe de ocupar um papel predominante na produção agrícola
escravos etc. Da mesma forma, os batismos de inocentes e adultos encontram-se distribuídos em
do município. conjunto. Todos os registros da população de Neves misturam-se nos assentos de batismo.
RELIGIOES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 209
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e mais praticado, isto é, naturalizava-se, crescia e consolidava-se entre os muitos os grupos sociais existentes, enquadrados em distintas "qualidades" e
grupos que compunham aquelas sociedades" (PAIVA, 20 12, p. 188). "condições': Isso não significa di zer que essa história foi harmônica e pacífica,
Por se tratar de um estudo preliminar, optamos por uma abordagem mas que ela foi construída em contextos históricos que não se deram com base,
mais qualitativa do assunto, contudo é preciso destacar que os casos aqui exclusivamente, nos conflitos entre os vários grupos sociais. Houve, também,
apresentados não são únicos na documentação, ou seja, não estamos tratando acordos, negociações, conveniências, convergências e pragmatismo entre
de situações esporádicas. Faremos, posteriormente, uma análise quantitativa eles, além , obviamente, de conflitos, formas de opressão e de resistências. O
dos dados agregados, o que possivelmente permitirá acompanhar e detectar ou léxico é fruto dessa dinâmica complexa e multifacetada (PAIVA, 2012, p. 243).
não, ao longo do tempo, possíveis "padrões" nas designações/representações
atribuídas aos mestiços na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Sobre os critérios de classificação, Roberto Guedes, em estudo sobre
Macaé. 5 O exame dos registros de batismo permite vislumbrar uma tendência escravidão e cor nos censos em São Paulo do século XIX, traz hipóteses que
de que as cores/qualidades dos mestiços demarcavam lugares sociais para nos parecem possíveis de ser estendidas aos registros paroquiais de batismo,
aqueles indivíduos e seus familiares. sobretudo com relação ao segundo dos critérios por ele mencionados:
As anotações, que nos remetem a processos de mestiçagem, feitas pelos
clérigos responsáveis pelo batismo, eram muitas. Cabe ressaltar que ao longo [...) vigoravam dois crité rios para classificar a cor da população. O primeiro
do período estudado foram vários os religiosos responsáveis pelos registros era utilizado de forma m ais genérica nos mapas de população. O segundo
paroquiais, o que certamente pode explicar diferenças na forma de designar aludia a uma observação pontual, dirigida a pessoas/famílias presentes nas
os envolvidos naquele sacramento. Portanto, a maneira como foram feitos listas nominativas. O que sugere uma caracterização pontual e personalizada
os batismos, bem como as designações e informações sobre os sujeitos que nas listas é que as mesmas pessoas/ famílias frequentemente mudavam de
fizeram parte daquele sacramento - pais, mães, batizandos, padrinhos, cor. Logo, quando o critério era pontual, as relações sociais podiam pesar
madrinhas - tendem a mudar, já que "os olhares" de cada pároco podiam muito no registro da cor, gerando modificações. Assim, dentre outros
alterar o entendimento sobre as cores/qualidades daqueles sujeitos. Uma fatores, a caracterização da cor d ependia da fonte e de quem fazia o regi stro,
boa explicação para essas "diferenças" foi dada por lvana Stolze Lima. Para a sem esquecer, evidentemente, a possibilidade de autoidentificação, que,
pesquisadora:"[ ... ] a relação do Império com as cores de sua população oscilou
infelizmente, a documentação não me permite aferir (GUEDES, 2009, p. 491).
segundo o olhar do recenseador [como os párocos], que foi constrangido por
diferentes variáveis e situações [... ]" (LIMA, 2003, p. 90).
As maneiras de branquear e de enegrecer eram muitas e determinavam
Com relação às mestiçagens, as designações atribuídas pelos párocos
os lugares sociais no período escravista - podiam ocorrer ou não por critérios
ou autoatribuídas por aquelas pessoas - no caso dos batizandos por seus
como a posse de escravos, o pecúlio, patentes militares ou eclesiásticas,
responsáveis - parecem indicar lugares sociais. Claro que no caso da segunda
ofícios especializados etc. As relações pessoais, o olhar dos clérigos, dentre
hipótese, mais difícil de ser percebida, havia uma dificuldade adicional que era
outros aspectos, conformaram a maneira como foram descritos pais, mães,
a figura do próprio pároco como "sensor': Ou seja, uma autoidentificação feita
batizandos, padrinhos. O conhecimento das relações familiares daqueles
podia ser entendida de forma diferenciada pelo clérigo, o que se refletiria na
indivíduos, propiciado pelo tempo de permanência de um determinado
designação registrada. Ao que tudo indica, esse léxico mestiço não foi imposto
clérigo naquela sociedade, podia levá-lo a "corrigir': segundo seus critérios,
de cima para baixo, mas sim compartilhado/utilizado por todos
a designação de cor/qualidade dada por pais, mães, batizandos, padrinhos,
madrinhas ou as de seus colegas de ofício (Ivo, 2012; PArvA, 2012; GuEDES,
2008; SANTOS, 2005).6 As formas de designar aqueles mestiços obedeciam,
S. Douglas Libby e Zephir Frank chamam a atenção para o cruzamento de fontes paroquiais,
ao que parece, a práticas específicas baseadas na cor/qualidade daqueles
entre si e com outros documentos, como a melhor maneira de se compreender, dentre outras,
questões relativas às mestiçagens: "Quando se empregam esses cruzamentos referenciais, [... ] é sujeitos, para distinguir socialmente os lugares que deveriam ser ocupados
possível detectar tendências importantes:' LIBBY, Douglas Cole; FRANK, Zephir. "Voltando aos
registros paroquiais de Minas colonial: etnicidade em São José do Rio das Mortes, 1780-1810':
Revista Brasileira de História (Impresso), v. 29, 2009, p. 402. 6. Os estudos citados, dentre outros, ajudam a pensar essas questões.
RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Arnantino (orgs.) 211
210

por cada um naquela sociedade escravista e hierárquica. Segundo Silvia designação?7 De acordo com Libby e Frank, muitas vezes, as designações de
Hunold Lara: cor, etnia ou condição legal, feitas pelos encarregados dos registros, eram
consideradas informações sem importância e não apareciam, por serem de
[... ] nomear as pessoas como negros, cafuzos, pardos, pretos e crioulos era conhecimento de toda a comunidade (LIBBY; FRANK, 2009).
uma forma de afastá-las dos brancos. Em diversas situações, muitos pardos Já Manoel pardo, nascido no dia 08 de julho de 1839, recebeu o sacramento
do batismo meses depois na mesma localidade, mais precisamente em 25 d e
e mulatos, livres ou forros, foram dessa forma empurrados para longe da
abril de 1841. Contudo, ao contrário de Candido (filho natural de Antonia
condição da liberdade, apartados de um possível pertencimento ao mundo
parda), Manoel pardo era filho legítimo de Valeriano Coutinho e d e sua
senhorial. Podiam ter nascido livres e até possuir escravos, mas estavam, de
mulher Mathildes Barbosa, ele natural e batizado na Freguesia de Guapimirim
certo modo, identificados com o universo da escravidão (LA RA, 2007, p. 144).
e ela da Freguesia de Nossa Senhora das Neves. Manoel pardo era, ao que
tudo indica, livre, já que a fonte não diz que o mesmo era escravo ou forro/
Os registros de batismo podem ser entendidos como espaços mestiços, liberto. Além das informações sobre a procedência dos pais, o vigário atestava
já que naquele sacramento cristão é possível perceber inúmeras mestiçagens. ainda que Manoel era neto paterno de Ignacio Pinto e [?] de Tal , e materno
Muitas das designações que nos remetem à mestiçagem são de difícil de João Francisco Barbosa e Maria Francisca das Neves, seu único padrinho
compreensão. Esses designativos de cor/qualidade tiveram usos diferenciados foi Joaquim da Silva. O único envolvido neste sacramento que teve a sua cor/
e por vezes não seguiram nenhum padrão visível, apontando, uma vez mais, qualidade descrita foi o batizando. Seus pais, avós e o padrinho tinham nome
para a possibilidade d e que muitas vezes os critérios eram subjetivos. Mas e sobrenome e, a princípio, a não menção a um passado escravista os colocava
sempre carregavam significados indicativos de distinção/posição social, como como sendo livres. Não havia também uma vinculação direta a mestiçagens. 8
poderemos notar, por exemplo, nas várias formas de nomear os pardos: pardo, Manoel tinha pais com nome e sobrenome, mas foi designado pelo pároco
pardo livre, pardo forro, pardo escravo em Nossa Senhora das Neves ao longo como "pardo". Enquanto Candido, que era filho de parda, "perdeu", no
do século XIX. Douglas Libby (2010) argumenta que as combinações entre momento de seu batismo, essa informação.
indivíduos de origem diferenciada eram bastante numerosas, o que se impõe Contudo, a designação de Manoel como pardo n ão aconteceu por acaso.
como obstáculo para que se proceda a qualquer esquema classificatório ou O intuito deve ter sido o de lembrar-lhe, bem como aos envolvidos naquele
descritivo. sacramento, a sua ascendência, mesmo que remota, a um passado de relações
Neste sentido, a família é fundamental para entender a mestiçagem, na mestiças, não necessariamente ligadas à escravidão. Apesar disso, a sua
medida em que é a partir dela, ou melhor dizendo, de suas mestiçagens biológicas ascendência parece ter obtido mobilidade já que para nenhum dos parentes
e culturais, que se estabeleceram as designações mestiças. Não podemos pensar citados no registro de batismo houve, como já dissemos, uma designação clara
no mestiço sem pensar em quem o gerou, ou seja, a mescla se dá na relação que os remetesse a um passado escravo ou mestiço. Entretanto, a designação
entre homens e mulheres "diferentes" e se reflete no parentesco oriundo dessas feita pelo pároco no momento daquele sacramento cristão certamente tinha
relações, que acarretavam um amplo processo de mestiçagens (NETTO, 201 1). um objetivo, que nos parece ligado à posição social de Manoel pardo e de seus
Vamos, então, tentar compreender um pouco desse mundo mestiço. familiares. A não designação de cor/qualidade ou de status social dos pais e
Na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, no dia avós de Man oel não permite afirmar que todos eram brancos e livres, o que
seis de fevereiro de 1838, o inocente Candido foi batizado solenemente pelo pode ser comprovado inclusive pelo designativo dado a ele pelo pároco. De
Reverendo Vigário João Bernardo da Costa. Candido foi descrito como escravo acordo com Silvia Lara:
e filho natural de Antonia parda, escrava de José Francisco Alvares. A criança
teve como único padrinho Albino Alvares, possivelmente um parente de seu
proprietário. Nenhuma menção à cor/ qualidade foi feita, diferentemente do que 7. Laboratório de Acervo e Documentação Histórica - PPGH - Universidade Salgado de
Olivei ra/ Niterói/RJ (Doravante LADOCH ). Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora
aconteceu com sua mãe, Candido não herdou a designação "parda" indicativa
das Neves do Sertão de Macaé, 1838- 1849, f. I v.
de mestiçagem. O fato de ser escravo fazia desnecessária tal informação? 8. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Mas se era assim qual o motivo para sua mãe, também escrava, possuir tal Macaé, 1838- 1849, f. 2v.
212 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I Marcia Amantino (orgs.) 213

[... ] a cor da pele estava associada à condição que separava a liberdade da A designação pardo e outras aparecem na documentação independente
escravidão. [... ], ela era lida, no Reino e na América portuguesa, como da condição jurídica dos batizandos -livres, libertos ou escravos. Encontramos
uma dentre as muitas marcas simbólicas de distinção social. Incorporada pretos, pardos, cabras descritos como livres, libertos/forros e escravos. Da
à linguagem que traduzia visualmente as hierarquias sociais, a cor branca mesma forma, a legitimidade, ou seja, o fato de terem sido gerados em uniões
podia funcionar como sinal de distinção e liberdade, enquanto a tez mais sacramentadas ou não perante a Igreja, não. era determinante na designação
escura indicava uma associação direta ou indireta com a escravidão. Ainda de suas cores/qualidades. Parece sim que o principal era demarcar os lugares
que não se pudesse afirmar que todos os negros, pardos e mulatos fossem ou sociais de onde eram oriundos, sobretudo pelo fato de que, em determinados
tivessem sido necessariamente escravos, a cor era um importante elemento casos, seus parentes mais próximos não possuíam semelhantes designações
de identificação e classificação social (LARA, 2007, p. 143-144}. de cor/qualidade ou outras que pudessem ligá-los diretamente à escravidão
e/ou mestiçagens. Vale ressaltar que as categorias "definiam um indivíduo,
Semelhantes a esse registro, outros tantos batizandos como, por informavam sobre seu passado, sua ascendência, suas origens e suas posições
exemplo, Salvino pardo,9 tiveram as suas genealogias descritas, o que, diga- sociais. Nas sociedades de distinção, hierarquizadas e estratificadas do mundo
se de passagem, era muito mais usual de ser encontrado para a população ibero-americano, elas podiam também indicar o futuro dos indivíduos ou,
livre com algum status. Assim como Manoel pardo, a leitura da fonte não pelo menos, podiam apontar probabilidades e alternativas" (PAIVA, 2012, p.
aponta "traços" de um passado escravista para Salvino. A menção pardo(a) 174).
na identificação dos batizandos podia ser reveladora de uma ascendência O religioso Bernardo Alvares batizou no dia 29 de junho de 1847 o
mestiça, que possivelmente era de conhecimento daquela sociedade, se não inocente Alipio, filho natural da escrava Felizarda, propriedade de Antonio
dela como um todo ao menos do pároco que fez o registro. O pardo podia Rodrigues d' Oliveira. De acordo com o registro, feito pelo pároco, Alípio era
indicar nesses casos, muito mais um passado mestiço do que necessariamente pardo, escravo e tinha como padrinhos Geraldo e Maria, ambos escravos de
uma ascendência escrava, já que os registros pais e avôs dos batizados não D. Brisida Cabral de Souza. Alguns dias depois, o mesmo sacerdote batizou o
possuem nenhuma indicação a esse passado. E se esse existiu, ao que tudo inocente Sabino, pardo, forro, filho legítimo de Valerianno José Coutinho e sua
indica, já se haviam passado algumas gerações. mulher Matildes Francisca das Neves, neto paterno de João Francisco Barbosa
Portanto, nestes casos não era exclusividade da cor/qualidade branca e Maria Francisca das Neves e materno de Domicilia. Foram seus padrinhos o
a vinculação direta à condição de livre, a de pardo também era, ou seja, a casal José d' Aniceto e Rita Felicianna d' Aniceto. 10 Percebe-se, pelos exemplos
condição de liberdade em contraposição à de escravidão não se relacionava acima expostos, que o termo pardo poderia designar escravos, forros/libertos
simplesmente à cor da pele. Pardo( a) não dizia respeito somente aos escravos e, como já vimos, livres. Da mesma forma, podemos observar no caso desse
ou libertos/forros, mas também aos nascidos livres. Como bem destacou Silvia pardo forro que a memória genealógica de seus familiares foi relembrada pelo
Lara, a ideia de brancos livres e negros necessariamente escravos não se aplica vigário. Nesse caso a condição de forro demarca, juntamente com o termo
(LARA, 2007, p. 131). pardo, a ancestralidade de Sabino ligada à escravidão e à mestiçagem, mesmo
O termo pardo, talvez a mais complexa das designações de cor/qualidade, que seus pais ou avós não possuam na fonte nenhuma indicação a esse passado.
por exemplo, tem sido apresentado como resultante de combinações entre Neste sentido, o cruzamento de fontes pode ajudar muito na reconstrução das
pessoas de origem africana e europeia sem considerar, na maioria das vezes, trajetórias de vida daqueles indivíduos.
uma possível miscigenação indígena. Isso pode demonstrar que no meio da A inocente Alexandrina era parda forra, nasceu no dia 30 de março
população livre havia uma divisão por cores/qualidades, o que a nosso ver de 1847, e foi batizada no dia 29 de setembro do mesmo ano no Oratório
reforça a ideia de que essa divisão determinava lugares sociais e hierarquias. da Fazenda do Lirio, propriedade do Senhor Antonio José Ferreira Braga.
Ela era filha natural de Furtunata Maria do Rozario e no ato do batismo, em

9. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, 1838- 10. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
1849, f. 3v. Macaé, 1838- 1849, f. 133.
214 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 215

presença de testemunhas, seu pai, Lourenço d' Almeida Teixeira, reconhecia


a sua paternidade, declarando-a como sua herdeira legítima. Alexandrina pais com relação à escravidão, bem como a sua condição jurídica. 13 Porém,
teve como padrinho Senhor Antonio José Ferreira Braga e como madrinha pelas designações dadas a Francisca, elas eram inegáveis. Mas, por que este
Protetora Nossa Senhora das Neves. Não sabemos quais as cores/qualidades de silêncio? Teriam os pais de Francisca conquistado certo grau de ascensão
seus pais. O certo é que em algum momento elas devem ter existido, ou melhor dentro daquela localidade, o que pode ter se refletido no silenciamento de
dizendo, elas foram descritas. A identificação da inocente com as designações suas raízes? Todavia, essa mobilidade não era ainda suficiente para apagar
parda e forra não deixa dúvidas de que a mesma possuía uma ascendência totalmente as suas origens. Para tal, o ato do batismo de seus filhos poderia
mestiça ligada à escravidão. Tratava-se, então, de lembrar aos pais, à sociedade ser o momento para lembrar-lhes "de onde vieram". De acordo com Roberto
e à Alexandrina o lugar de onde vinha e marcar, por meio deste referencial, os Guedes:
lugares que poderia ocupar naquela sociedade hierarquizada. Cabe, contudo,
ressaltar que os epítetos parda forra, dependendo da história e das estratégias [... ] o que exclui ou inclui não é o que se faz ou se deixa de fazer, mas a cor/
de vida de Alexandrina, podiam desaparecer ou "serem esquecidos".'' condição social. Isto significa que o ideal exclusivista, baseado no princípio
Assim como as cores/qualidades, a condição de pertencimento, ou não, da desigualdade, e com uma rígida hierarquização social, tão característico
a um passado escravista podia desaparecer ou ser herdada. Esse foi o caso de de sociedades estamentais, permanece, mas sob outras bases, orientadas pela
Lourenço forro, batizado no dia 01 de novembro de 1842. Lourenço era filho escravidão (GUEDES, 2008, p. 85).
natural de Maria, preta forra, e afilhado de Adão e Benedita, ambos escravos.
Ora, se Maria era preta forra, Lourenço era na verdade livre, e não forro como Aos seis dias do mês de setembro de 1845, o Vigário encomendado Padre
designado pelo pároco. Esse exemplo demonstra como era tênue a linha José Antonio de Sequeiro batizou o inocente Belarmino, que no ato daquele
entre a escravidão e a liberdade. Embora fosse juridicamente livre, Lourenço sacramento tinha quatro meses de idade. O batizando teve como padrinho
foi identificado como forro. A cor/qualidade preta de sua mãe não lhe foi Francisco José da Silva, filho de Julio Jose da Silva, e como madrinha Nossa
atribuída, contudo a designação forro marcava seu lugar social. Era livre, mas Senhora. 14 O menino era filho natural de Rosa mulata, escrava de João Rangel
acima de tudo era filho de forra, ou seja, filho de ex-escrava. Tal qualificação de Brito e sua mulher. Belarmino "herdou" de sua mãe, além da condição de
destacava sua ascendência escrava e de cor/qualidade, determinando seu lugar escravo, a menção de que era "mulato branco escravo". Assim como a mãe era
naquela sociedade. 12 mulato, contudo para o Padre Sequeiro sua tez de pele era mais clara d o que
A cor/qualidade/condição social muitas vezes apareceram em conjunto. a de sua mãe e, portanto, mesmo sendo cativo, a sua cor era "mulato branco':
A inocente Francisca, batizada aos 12 de março de 1843, por exemplo, era Como já demonstrado pela historiografia, havia uma multiplicidade de
filha legítima de Leandro Jose Teixeira e de sua mulher Antonia Maria da cores/qualidades, e as nossas fontes vêm demonstrando que na freguesia de
Conceição. Francisca era, segundo as anotações feitas pelo padre, parda e Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé todas elas aparecem. Pardos,
forra. Novamente a fonte silencia as possíveis ascendências e relações de seus mulatos, pretos, brancos, cabras, fossem eles livres, escravos ou libertos/ forros
foram designados ao longo dos registros, embora o primeira termo seja o
mais recorrente. Ao que tudo indica, esse mosaico relacionava-se também
às características, aos critérios locais, às peculiaridades sociais e às relações
11. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838 - 1849, f. 135.
sociais. Para Roberto Guedes o entendimento das mudanças de cor é difícil
12. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de de ser percebido, já que muitas dessas alterações eram aleatórias, além do que
Macaé, 1838- 1849, f. 17 v. "Embo ra seja perfeitamente claro que, em termos estritamente legais, a contavam com os equívocos dos responsáveis pelas informações. Ainda de
condição de alforriado jamais poderia ser herdada, a imposição do termo por mais de uma geração
obviamente constituía uma representação visando à identificação de vínculos ascendentes com
a escravidão:' LIBBY, Douglas Cole. "A empiria das cores: representações identitárias nas Minas
Gerais dos séculos XVIII e XIX'~ In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira e MARTINS, Ilton 13. LADOCH . Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Cesar (Org.). Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais. São Paulo: Annablume, Macaé, 1838 - 1849, f. 20.
Belo Horizonte: PPGH -UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010, p. 43. 14. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838- 1849, f. 81 v.
216 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.) 2 17

acordo com o pesquisador, havia certo cuidado com a atribuição das cores, recebendo a mesma designação de cor de sua mãe Claudina mulata. Mãe e
demonstrando que muitas vezes houve uma hierarquia baseada na cor, "não filha eram escravas de Manoel Luis Maudonado e outra diferença é que essa
se deve congelar a posição social pela cor. Por isto, creio que a hierarquia e cativa recebeu como padrinhos os livres Ricardo Machado Fartado e madrinha
a posição social manifestas na cor/qualidade eram fluidas e dependiam D. Joaquina Rosa Vieira. 16 O mesmo pároco que fez esses registros, o vigário
de circunstâncias sociais, sendo reatualizadas, negociadas. É a perspectiva encomendado Padre José Antonio de Sequeiros, batizou solenemente aos 16
relacional que deve ser considerada" (GuEDES, 2009, p. 508). de outubro daquele ano a inocente Altina Mulata, de mês e meio de idade,
O mosaico de designações de cor/qualidades, oriundos do entendimento filha natural de Catharina de Nação. Foram padrinhos Silvestre Pereira dos
e de visões muitas vezes particulares dos responsáveis pelo batismo daqueles Santos e sua mulher Maria Delfina. Ao contrário do que se poderia esperar, a
indivíduos, pode ter muitas explicações. A primeira delas diz respeito à feitura filha da africana Catharina não foi classificada como crioula, e sim mulata. Por
dos assentos por vários sacerdotes, cada um deles imbuído de uma visão que essa designação "mulata'' e não a corriqueira "crioula" dada às filhas de
daquelas famílias mestiças. Outra questão tem relação com a ocupação da africanos nascidas no Brasil? 17 Seria porque foram geradas fora do casamento
localidade durante as primeiras décadas do século XIX. Naquele momento católico? Tratamento igual recebeu a inocente Iubencia, mulata de oito meses,
houve um incremento demográfico bastante acentuado e, neste aspecto, ganha filha de Bibiana de Nação, seus padrinhos foram Salvador e Leonora, todos
destaque a migração forçada de africanos. Os próprios registros paroquiais eles escravos de Manoel Luis Pires. 18
demonstram isso, na medida em que identificamos muitos cativos adultos Joaquina, também mulata, era filha natural de Marcelina de Nação. No ato
sendo batizados ao longo daqueles anos. Muito provavelmente esse afluxo de seu batismo, em 04 de janeiro de 1846, o senhor de sua mãe declarou que
grande de indivíduos escravizados oriundos da África, em conjunto com a Joaquina era mulata liberta, passando-lhe naquele momento a alforria na pia,
população indígena e as migrações de sujeitos oriundos da Europa conformou como se de ventre livre houvesse nascido. 19 O mesmo pároco José Antonio de
a visão daqueles indivíduos. Tratava-se, então, de definir "quem era quem': ou, Sequeiros, que fez o assento de Marcelina, atribuiu uma designação diferente à
melhor dizendo, definir quais os lugares de cada um dentro daquela sociedade inocente Maria que, segundo a fonte, era parda forra, filha natural de Joaquina
miscigenada. Ao que parece, os aspectos de cor e/ou qualidade foram utilizados de Nação. Maria, assim como Joaquina, recebeu sua liberdade na pia batismal,
pelos clérigos responsáveis por aquele sacramento católico. ela, que da mesma maneira como Joaquina, era filha natural e de mãe africana,
Havia escravos, libertos/forros e livres, muitos deles não brancos, portanto recebeu a designação de parda e não de liberta como Joaquina. 20
era preciso determinar para cada um deles seus lugares sociais naquela Isabel, parda crioula, era mãe de Maria parda; mãe e filha eram cativas de
sociedade hierarquizada, e para isso a cor/qualidade foi um dos critérios Serafim de Azevedo Lemos e a criança teve como padrinhos Estado Pereira
utilizados. Entretanto, cabe ressaltar que esta pesquisa, ainda incipiente, vem de Aguiar e Rosalina Josefa de Sousa. Maria "herdou" o mesmo designativo
apontando que as designações mestiças atribuídas aos envolvidos naquele de cor de sua mãe, contudo o termo denotativo que era uma cativa nascida
sacramento cristão não possuíam "modelos estanques': Ou seja, não nos no Brasil e filha de africanos não acompanhou a batizanda. Se concordarmos
parece até agora, pela análise da fonte, possível estabelecer que determinadas com a hipótese que diz que o termo crioulo acompanha somente a primeira
designações possuíssem categorias/padrões absolutos, como podemos geração de cativos nascidos no Brasil, a explicação está dada, já que sua mãe
perceber pelos exemplos abaixo.
Constantina mulata foi batizada no dia treze de outubro de 1845, filha
natural de Maria crioula, ambas escravas de Desiderio Antonio da Trindade. 16. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838- 1849, f. 86 v.
Nascida em 18 de novembro do ano anterior, Constantina teve como padrinhos 17. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
os crioulos Pedro e Claudina, escravos do mesmo Desiderio.15 Diferentemente Macaé, 1838- 1849, f. 90.
de Constantina, aos 15 de outubro de 1845, Ritta foi batizada como mulata, 18. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838 - 1849, f. 91.
19 LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838- 1849, f. 95 v.
15. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de 20. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838 - 1849, f. 85 v. Macaé, 1838- 1849, f. 104 v.
218 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 219

era crioula. Porém, como as fontes e outros estudos demonstram, o "adjetivo"


crioulo podia acompanhar várias gerações de cativos e não necessariamente mesmo modo era filha de preta. Entretanto, a designação atribuída pelo padre
ser atribuído a filhos de africanas. Um exemplo disso é que no mesmo ato era de parda e não de mulata como Amelia.24 Seriam as duas filhas de um
foi batizado e recebeu a liberdade Agostinho, pardo, forro, filho natural de relacionamento mestiço entre suas mães e seus respectivos proprietários? Mas
Marcelina de Nação, escrava de Clara Maria de Jesus, viúva, e de seu filho se assim o era, qual o critério que levou o pároco a atribuir cores/qualidades
João Antonio da Silva. 21 O crioulo, ao que parece, era muito mais um escravo diferenciadas para inocentes que, a princípio, comungavam de uma "mesma
que nasceu no Brasil do que necessariamente a primeira geração de filhos de trajetória"? Nesse caso, os designativos parda e mulata relacionavam-se à tez
africanos. mais clara da pele? Difícil responder.
Aos 28 de dezembro de 1847 foram batizados Domingos, então com sete Outro caso acontecido no mesmo dia do de Augusta é bastante
anos de idade, e seu irmão Antonio, de dois anos, filhos naturais de Joaquinna interessante. 25 Trata-se do batismo de Anna, preta, crioula, forra, nascida em
Benguela, escrava do finado Francisco Gonçalves Pinto. Manoel José Nunes quatro de outubro do ano de 1845. Anna era filha legítima de Carlos Anastacio
foi padrinho de Domingos, Antonio Gonçalves Vianna de Antonio, sendo da Silva e de sua esposa Lucinda Maria das Neves, ambos pretos forros e
protetora de ambos Nossa Senhora. No mesmo ato, o legítimo herdeiro do moradores na dita freguesia de Nossa Senhora das Neves. Os padrinhos de
finado Francisco Gonçalves Pinto libertou Domingos e Antonio, pedindo Anna foram André Victorino de Souza e Anna Maria, ambos também pretos
às testemunhas que respeitassem sua declaração como legal carta de alforria forros agregados na fazenda da Coroa. Portanto, assim como Amelia e Augusta,
para aqueles dois meninos. Domingos e Antonio eram filhos da africana Anna era filha de pretos, embora esta última fosse filha legítima. Será que foi
Joaquinna Benguela, contudo ao lado do registro paroquial o vigário anotou justamente essa condição de legitimidade que levou o pároco a atribuir-lhe a
que ambos eram pardos forros. Ou seja, não eram crioulos, mas pardos. Nesse mesma cor/qualidade dos seus pais? Ou esse dado reforça a hipótese de que os
caso parece que para o vigário o termo pardo poderia significar o mesmo que pais de Amelia e Augusta eram de cores/qualidades diferentes da de suas mães,
crioulo, indicando que ambos eram nascidos no Brasil; todavia, a designação o que se refletiu na atribuição de sua cor? A forma como Anna foi descrita:
parda pode ter sido utilizada em uma mescla, que permitia afirmar que eram preta + crioula + forra, não era nova. França Paiva apontou que:
nascidos aqui, mas com uma tez de pele mais clara do que a de sua mãe, a
africana Joaquinna Benguela, e que eram também mestiços. 22 Na verdade, desde o século XV, pelo menos, as indicações de pessoas não
Aos 21 de agosto de 1846 foi batizada Amelia, mulata forra, que havia brancas feitas nos documentos de diversos tipos adotaram a fórmula
nascido no dia 13 de agosto do mesmo ano. Amelia era filha natural da preta nome+"qualidade"+"condição", com variações, muitas vezes. Escrevia-se,
Joanna, escrava de Justino Joaquim de Azevedo, que no ato do batismo deu a por exemplo, fulano preto forro ou cicrana parda, escrava de beltrano -, por
liberdade à inocente batizanda. Seus padrinhos foram Francisco Ferreira de vezes, confundindo "qualidade" e "cor': [... ] ou acrescentando a "nação" do
Queiros e Nossa Senhora das Neves. Amelia era filha de preta, mas o pároco implicado (PAIVA, 2012, p. 135).
a nomeou como mulata. 23 No dia 13 de setembro do mesmo ano, o pároco
José Antonio de Sequeira batizou Augusta parda. A inocente, nascida em 31 Interessante também destacar que Anna, além da cor preta, possuía
de agosto de 1846, era filha natural de Leocadia, preta, escrava da Fazenda designativo crioula. Além disso, ela era forra e sua liberdade não foi "dada" na
da Coroa, propriedade de Justino Joaquim de Azevedo Murtingel. Da mesma pia batismal. Estamos, ao que parece, diante de um caso de mobilidade social,
maneira que Amelia, Augusta era filha natural e foi alforriada na pia e do na medida em que percebemos a transição entre escravidão e liberdade no
âmbito daquela família e mesmo de seus padrinhos. Se a mesma nasceu livre,
ou se seus pais compraram sua liberdade, fica difícil de responder. O fato é que
21. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838- 1849, f. 106 v.
22. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838 - 1849, f. 170 v. 24. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
23. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, 1838 - 1849, f. 120.
Macaé, 1838 - 1849, f. 116. 25. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838 - 1849, f. 120.
220 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 221

seus pais tiveram sucesso, o que se percebe pela mobilidade que obtiveram por que ambas eram pretas forras não deixa dúvidas disso, ao mesmo tempo em
meio da alforria. que determinava o lugar social que ambas deveriam ocupar na sociedade. Pode
Com relação à hipótese de que filhos de pretas com seus senhores até ser possível pensar que na verdade ambas fossem livres e não forras, já que
poderiam ter designativos de cor/qualidade mais claros, o caso da inocente seus pais não possuíam nenhuma designação de forro ou liberto, ou algo do
Ludgeria parda liberta pode nos ajudar a responder, pelo menos parcialmente gênero, o que reforça a ideia de que a cor/qualidade servia como norteadora
a questão. Ludgeria também era filha natural de uma preta. Sua mãe era a de posições sociais atribuídas às pessoas. 28
preta Rosa, escrava de Manoel Gomes Braga, o qual deu liberdade para todo o Como já afirmamos, a cor branca não era necessariamente atribuição de
sempre àquela inocente. Braga vendeu a liberdade de Ludgeria para João José brancos e nem a cor preta era necessariamente ligada à escravidão, ou melhor
de Azevedo, que no ato do batismo de Ludgeria reconheceu a menina como dizendo, preto não era exclusividade para designar escravos e ex-escravos.
sua filha legítima e lhe concedeu a liberdade destacando que, a partir de então, Leoncio era filho legítimo de Manoel Antonio da Costa e de Andresa Maria
a reconhecia como sua legítima herdeira por ser sua filha. 26 das Neves, seus padrinhos foram Manoel dos Santos e sua mulher Anna Maria
Como já apontamos, existia certa subjetividade dos párocos ao designar/ Magdalena, todos moradores no lugar do [Pio?] Alto. Leoncio era, de acordo
qualificar os batízandos mestiços e provavelmente a de outros envolvidos com o encomendador Bernardo Alvares, preto livre. O mesmo designativo foi
naquele sacramento. Florinda era escrava do tenente coronel Antonio Coelho dado a Luis, preto livre, filho legitimo de José Nunes da Silva e de Francisca
Antam de Vasconcellos, tinha como filhos naturais Silveria e Ambrosína. Joanna,29 e também a Emigídio, preto livre, filho natural de Luisa Maria da
Ambas foram batizadas pelo vigário Bernardo Alvares no dia 03 de outubro Conceição. 30 Já Maria tinha três meses quando foi batizada, filha legítima de
de 1847, sendo que a primeira teve como padrinhos Manoel Joaquim da Costa Francisco Vicente Leite e Antonia Bernade de Lemos, e fora classificada pelo
e a escrava deste de nome Maríanna. Já os padrinhos de Ambrosína foram vigário Manoel da Silva e Souza como preta livre. 31 Regínaldo, por sua vez, foi
Manoel Alves Guímaraens e Engracia, escrava do tenente coronel Vasconcellos. batizado em dez de agosto de 1856, filho legítimo de Maríanno e Margarida,
Silveria e Ambrosina eram escravas. Contudo, apesar de serem irmãs batizadas escravos do tenente Antonio Francisco Caldas; seus padrinhos foram os
no mesmo dia, receberam por parte do vigário designações diferentes, Silveria escravos Joaquim e Luiza, ele escravo do mesmo tenente, e ela escrava de
era parda escrava enquanto que Ambrosina era preta escrava. Qual o critério Joaquim Gomes Braga. O inocente era, como pode ser observad o pelas
utilizado pelo padre Bernardo para fazer essa diferença? Provavelmente a tez anotações do vigário às margens do assento, preto escravo. Da mesma forma,
da pele, mais clara ou mais escura, foi motivadora para que o clérigo tenha Julio, batizado no mesmo dia, foi batizado como sendo preto escravo, filho
feito tal diferenciação entre as filhas de Florinda. Sua posição social já estava de Antonio e Ignacia, todos escravos do mesmo senhor, o tenente Antonio
demarcada, ambas eram escravas, mas seus designativos de cor/qualidade Francisco Caldas, só que os padrinhos de Julio foram Manoel, escravo de João
eram distíntos_27 Mendes dos Santos, e Maria, escrava do senhor Joaquim Gomes Braga.32 A
Rita e Candida eram filhas legítimas de João Marques Ramos e de sua condição de pretos escravos e pretos livres foi dada naqueles registros a outros
mulher Ludgeria Maria. Rita tinha dois anos e Candida nove meses quando tantos inocentes. Portanto, a cor preta pode estar associada aos libertos e
foram batizadas em julho de 1847. Da mesma forma como a maioria dos também aos nascidos livres.
batízandos, o pároco anotava ao lado do registro informações sobre as cores/
qualidades e condições dos batízandos e, de acordo com a fonte, Rita e Candida
eram pretas forras. Mai s uma vez, não havia menção de algum vínculo com a 28. LADOCH. Livro de hatismos 16. da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
escravidão por parte de seus país. Entretanto, a declaração feita pelo padre de Macaé, 1838- 1849, f. 207.
29. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838- 1849, f. 21 9 e 219 v.
30. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838- 1849, f. 226.
26. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das
31. LADOCH. Livro de batismos 0 2, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
N eves do Sertão de Macaé, 1838 - 1849, f. 128. Macaé, 1851 - 1856, f. 96.
27. LADOCH. Livro de batismos 16, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de 32. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1838 - 1849, f. 158 v.
Macaé, 1851- 1856, f. 97.
222 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo Fra~ça PaivaIMarciaAmantino (orgs.) 223

Igual raciocínio pode ser feito para outras designações de miscigenados, escrava de Mathildes Maria da Conceição. 38 O livre Manoel, de quatro meses,
como os chamados cabras. Domingos cabra recebeu o sacramento do batismo filho natural de An na Francisca Rosa, era, segundo o mesmo pároco, "de cor
em 04 de novembro de 1855; o inocente havia nascido aos 29 de outubro de parda': 39
1854 e. era filho natural de Flausina, africana liberta. Seus padrinhos foram Gradações nas cores/qualidades também podem ser encontradas nos
Antomo da Costa Teixeira e Maria Isabel Pinto. Era, portanto, cabra filho de registros paroquiais de batismo. Este foi o caso do batismo de Eugenia, realizado
uma africana liberta. 33 Já Cristianna foi batizada a 1 de agosto de 1851, filha aos 04 de setembro de 1854 pelo padre Antonio Maria d os Santos Chaves. A
natural de Leonarda liberta, seus padrinhos foram José Joaquim da Cunha e a inocente era filha legítima d e Francisco Leite Vicente e Antonia Bernardina
es~ra:a Hercul~na, ~ertencente a Simplício José d' Amaral. Pressupõe-se que Frederida de [Sena?], tinha idade de três meses e era, conforme descrito às
Cnstmna_era hv.re, Já que não há indícios do contrário e, também, pelo fato margens do registro, livre e parda. No entanto, na feitura do registro, o padre
de sua .m~e ser liberta. Ao lado do nome da batizanda havia a designação de deu mais informações sobre a inocente, designando-a como "Eugenia pard a
que ~nstlanna era cabra, não sabemos qual a mestiçagem que resultou na cor/ escura': Era livre; contudo, os designativos parda escura não deixavam dúvidas
qualidade cabra atribuída a ela; contudo, parece que aos cabras também era sobre seu passado mestiço e possivelmente d e seu sangue negro. Mesmo sendo
dada a possibilidade de terem nascido livres. 34 Mas não só. Vitalina era cabra livre, seu passado mestiço, provavelmente ligado à escravidão, era con hecido
liberta. Batizada aos 9 de setembro do mesmo ano que Cristinna cabra, ela era ao menos pelo padre. Tais aspectos não passaram despercebidos no ato de seu
filha natural de Basilia, escrava de Joaquim Antonio Coelho Antam; sendo seus batismo cristão, demarcando/ relembrando, uma vez mais, assim como outros
padrinhos Leopoldino Antonio Coelho Antam, provavelmente um parente tantos batizandos, o lugar de onde vieram e no qual deveriam se lembrar, e
de seu senhor, e madrinha Fortunata Maria do Rosario. Na mesma ocasião 0 possivelmente se manter, naquela sociedade escravista e hierarquizada. 40
proprietá~io de sua mãe disse que Vitalina era sua escrava, mas que lhe passava Outros exemplos indicativos de que a condição de liberdade não era
carta de hberdade plena, para que pudesse usufruir de sua liberdade como se exclusividade de bra ncos podem ser encontrados na documentação. A inocente
de ventre livre houvesse nascido. 35 Já Maria era cabra, com dezoito meses de Gertrudes, por exemplo, foi batizada em fevereiro de 1855 e ao lado de seu
idade ~uando foi batiz_ada aos 2 de janeiro de 1852, filha natural de Joaquina, nome o pároco fez menção expressa a sua condição de livre, porém, segundo
er~, asstm c?mo sua mae, escrava de Francisco de Paula Cardoso. Seu padrinho o mesmo clérigo, a mesma era parda, filha legítima de João Evangelista e
fot Inocenc10 Caetano Valadares e não possuía madrinha.36 Rosa Maria Joaquina. O mesmo aconteceu com Lorenço livre e pardo, filho
. Em alguns registros a menção ao significado da cor é explícita como no de Tristão José Pereira Sodré e Isabel Maria da Conceição, bem como com
batismo de Leonarda de cinco meses e que, segundo o vigário encomendado Donato livre e que na leitura do registro é descrito também como livre.4 1
padre Antonio Maria dos Santos Chaves, era "de cor parda': Leonarda parda Havia, ao que tudo indica, a necessidade de marcar aqueles mestiços e
era filha natural de Joaquina, sendo as duas escravas de Francisco de Paula delimitar o local social que deveriam ocupar. A mestiçagem, d esta maneira,
37
Cardos0. Menção explícita à cor também aparece no batismo do escravo estava "colada': os acompanharia sempre.
Tristão "de cor crioulo" e com idade de 3 meses, filho natural de Silvania, No d ia OS de dezembro de 1858, foi batizada Jozefa, que havia nascido
no dia 19 de janeiro do mesmo ano. Jozefa era filha legítima d e Antonio
Pereira Maria e Justina Lopes das Neves, os padrinhos da batizanda foram

33. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 185 1 - 1856, f. 74 v.
34. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de 38. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 185 1 - 1856, f. 3 v. Macaé, 185 I - 1856, f. 48 v.
35. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de 39. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1851 - 1856, f. 5 v. Macaé, 1851 - 1856, f. 48 v.
36. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de 40. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 185 1 - 1856, f. 14 v. Macaé, 1851 - 1856, f. 53 v.
37. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de 41. LADOCH. Livro de batismos 02, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de
Macaé, 1851 - 1856, f. 48 Macaé, 185 1 - 1856, f. 58 v.
224 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMar<ia Amantino (orgs.) 225

Antonio Francisco Barboza e Anna Francisca da Silva. Até aí nada de muito Cabe ressaltar, no entanto, que essa classificação parece não ter impedido
novo neste registro, mas chamam a atenção as designações dadas pelo vigário o acesso à mobilidade, como podemos perceber, por exemplo, pelos batizandos
colado Manoel da Silva e Souza, anotadas ao lado do assento. De acordo pardos com pais e avós desprovidos de designações mestiças nos registros de
com as anotações do vigário, Jozefa era "branca ou parda': Branca ou parda, batismo. Isto demonstra uma certa permanência daquela mobilidade, que
a indefinição/indecisão do pároco chama a atenção. Certamente, para Jozefa, se refletia na forma como aqueles sujeitos foram descritos nos assentos de
a diferenciação entre ser denominada branca ou parda faria diferença no seu batismo.
cotidiano. Branco e pardo estariam, do ponto de vista da "cor" da pele ou da
hierarquia social, tão próximos que ela podia ser Jozefa branca ou Jozefa parda? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Difícil resposta.42
A principal conclusão, ainda que preliminar, é a de que, além da existência AMANTINO, Marcia Sueli. "Macaé nos séculos XVII e XVIII: catolicismo
da mestiçagem biológica e cultural, a delimitação/marcação/caracterização e povoamento': In: , ENGEMANN, Carlos; FREIRE, Jonis &
como mestiço (pardo, mulato, cabra, preto etc.), feita pelos párocos, servia RODRIGUES, Claudia (Org.). Povoamento, catolicismo e escravidão na antiga
para demarcar lugares sociais que aqueles sujeitos deveriam ocupar, pois Macaé (séculos XVII ao XIX). Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.
mesmo quando eram livres o vigário fazia questão de marcar isso, para que ___. "Jesuítas, negros e índios: as mestiçagens nas fazendas inacianas do
nunca esquecessem a sua ascendência. Rio de Janeiro no século XVIII". In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara
A classificação baseada na cor dos mestiços serviu como um dos critérios Pereira & MARTINS, Ilton. (Org.). Escravidão e mestiçagens: populações e
de diferenciação na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. identidades culturais. São Paulo: Annablume, 2010.
Tratava-se de dizer a que grupo pertenciam ou não determinados indivíduos e
famílias. A escravidão, a migração - forçada ou não - e as relações cotidianas FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no
daqueles personagens foram fundamentais para determinar os lugares sociais cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
daquelas populações mestiças. De acordo com Verene A. Shepherd: "[... ]situar FERREIRA, Ana Lucia Nunes. O município de Macaé: fortunas agrárias na
la diferencia establece los límites de la pertinencia; para otros, situar la diferencia transição da escravidão para o trabalho livre. Dissertação de Mestrado em
es una manera de significar la tendencia opuesta, la de no pertenecer. Esta História. Niterói. UFF, 2001.GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho,
tensión entre 'pertenecer' y 'no pertenecer' es una característica fundamental família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 - 1850).
dei 'juego de la clasificación' [... ]"(SHEPHERD, 2010, p. 73-74). Rio de Janeiro: Mauad, 2008.
A classificação - que podia ser social, linguística, de cor, étnica, cultural
etc. - correspondia, portanto, a um mecanismo de ordenamento social, de - - - . "Escravidão e Cor nos censos de Porto Feliz (São Paulo, século XIX)".
hierarquização social e cultural. O conhecimento e entendimento dessas Especiaria (UESC), v. 10, 2009.
classificações e desse léxico gramatical mestiço não são fáceis de entender. IVO, Isnara Pereira. Hom ens de caminho: trânsitos culturais, comércio e cores
Talvez não tenha sido nem para seus contemporâneos. Contudo, o que parece nos sertões da América portuguesa. Século XVIII. Vitória da Conquista:
é que eles fizeram parte de um mecanismo que estratificou, identificou, Edições Uesb, 2012.
classificou e hierarquizou aquelas pessoas, utilizando-se de procedimentos
LAMEGO, Alberto. Macaé a luz de documentos inéditos. In: Anuário
nem sempre muito fáceis de compreender, mas baseados em atributos como
Geográfico do Estado do Rio de Janeiro, IBGE, 1958, n.ll.
as cores/qualidades, origens, ascendências e traços fenotípicos daqueles
indivíduos. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na
América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LIBBY, Douglas Cole. "A empiria d as cores: representações identitárias nas
Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX': In: PAIVA, Eduardo França; IVO,
42. LADOCH. Livro de batism os 04, da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Isnara Pereira e MARTINS, Ilton Cesar (Org.). Escravidão, mestiçagens,
Macaé, 1858- 1870, f. 9.
226 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃOEMESTIÇAGENS

populações e identidades culturais. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte:


PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010. Estereótipo e silenciamento em
___. ; FRANK, Zephir. "Voltando aos registros paroquiais de Minas sites de igreias cristãs:
colonial: etnicidade em São José do Rio das Mortes, 1780-1810': Revista
Brasileira de História (Impresso), v. 29, 2009.
a interdição da imagem do mestiço
LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos de mestiçagem no Império
do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. EovANIA GoMEs DA SILVA

NETTO, Rangel Cerceau. "Famílias Mestiças e as representações identitárias:


entre as maneiras de viver e as formas de pensar em Minas Gerais, no século
XVIII". In: PAIVA, Eduardo França; AMANTINO, Marcia & IVO, lsnara P.
(Org.). Escravidão e mestiçagens: ambientes, paisagens e espaços. São Paulo:
Annablume, 2011.
PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas
portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do
Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de
Neste artigo, analisamos três sites de igrejas e/ou movimentos, que se
Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.
autodenominam cristãos e que são considerados como movimentos religiosos
SANTOS, Jocélio T. "De pardos disfarçados a brancos pouco claros: pentecostais (PRANDI, 1998) - Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja
classificações raciais no Brasil dos séculos XVIII-XIX': Afro-Ásia (UFBA), Internacional da Graça de Deus, Renovação Carismática Católica - , a fim de
Salvador, v. 32, p. 115-137, 2005. mostrarmos alguns traços do funcionamento discursivo das( os) referidas( os)
igrejas/movimentos religiosos. Trata-se, mais precisamente, de verificar de
SHEPHERD, Verene A. "Pertenecer y no pertenecer": diferencia, etnicidad y
que forma a imagem do mestiço é (re)construída pelo chamado movimento
clasificación em la Jamaica colonial. In: CUNIN, Elisabeth (Coordinadora).
pentecostal.
Mestizaje, diferencia y nación: lo "negro" em América Central e e! Caribe.
México, D. F.: Instituto Nacional de Antopología e Historia: Universidad
SOBRE O PENTECOSTALISMO
Nacional Autónoma de México, Centro de Investigacionaes sobre América
Latina y el Caribe: Centro de Estudios Mexicanos y Centroamericanos: Institut
Na análise aqui empreendida, abordamos diferentes manifestações de fé,
de recherche pour le développement, 2010, p.73-74.
as quais, por uma questão de respeito aos dados, não podem ser verificadas sem
que se leve em consideração tal diversidade. Entretanto, mesmo reconhecendo
a especificidade de cada um dos posicionamentos aqui analisados, interessa-
nos verificar o funcionamento dessas/desses igrejas/ movimentos pelo traço
comum do pentecostalismo.
O pentecostalismo caracteriza-se, principalmente, pela experiência
da Efusão do Espírito Santo. Para os pentecostais, a experiência religiosa se
resume à relação com Deus (Pai e Filho) que se dá por meio da reatualização
da experiência de Pentecostes. Trata-se, portanto, de uma mística religiosa
que defende a experiência com o Espírito Santo (terceira pessoa da Santíssima
Trindade) como algo primordial para vivência cristã. Atualmente, existem
228 REliGIÕES EREliGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 229

várias religiões pentecostais no mundo. No Brasil, também há um grande dos "dons espirituais': dentre os quais se destacam a glossolalia (ou dom de
número de pentecostais. Dentre essas, cito: a Igreja Assembleia de Deus; línguas) e o dom de cura.
a Congregação Cristã no Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus e a
Igreja Internacional da Graça de Deus. Em todas essas religiões, a Efusão do SOBRE O PARADIGMA INDICIÁRIO
Espírito e a vivência de uma espiritualidade centrada nos carismas (ou dons
carismáticos) são uma constante. O paradigma indiciário é um modelo epistemológico, atualmente
Segundo Laurentin (1977), o pentecostalismo é o movimento cristão que utilizado em muitas pesquisas qualitativas, que, segundo Ginzburg (1986),
se vem manifestando com maior vitalidade desde o começo do século XX. emergiu no âmbito das ciências humanas no final do século XIX. Esse
Surgido entre os anos de 1900 e 1991, o movimento pentecostal, que se espalhou paradigma tem sido responsável, principalmente ao longo dos últimos dois
por diferentes religiões cristãs, já contava, no ano de 1977, quando Laurentin séculos, por uma verdadeira transformação no olhar do pesquisador. Antes de
escreveu seu livro, com cerca de 15 milhões de adeptos espalhados por todo estabelecerem o paradigma indiciário como método de análise, as pesquisas
mundo. Além do Pentecostalismo, existe também o movimento Neopentecostal. em ciências humanas buscavam como modelo as análises realizadas pelas
De acordo com Laurentin (1977), a expressão neopentecostalismo é aplicada ciências ditas naturais e primavam pela observação do geral, a fim de alcançar
aos novos movimentos pentecostais, que começaram a surgir nas igrejas uma totalidade. Hoje, com base na observação dos indícios, muitos estudiosos
cristãs mais tradicionais, como é o caso da Igreja Episcopal, da Presbiteriana e procuram analisar não o universo e toda sua amplitude, mas o detalhe, o
da Católica. O movimento da Renovação Carismática Católica (RCC) é, nessa dado aparentemente insignificante, buscando, através dessas análises, chegar a
perspectiva, uma manifestação do neopentecostalismo que se materializou no afirmações mais gerais. Ou, como afirma Ginzburg:
seio do catolicismo romano. Ainda segudo Laurentin:
Características minúsculas têm sido usadas para reconstituir mudanças e
No mundo protestante, o Movimento Pentecostal, muitas vezes, levou as transformações culturais [...]. Os traços esvoaçantes das pinturas florentinas
pessoas a se separarem da Igreja-Mãe e a fundarem novas. O Movimento no século XV, as inovações linguísticas de Rabelais, a cura dos males reais
Pentecostal Católico não manifestou tal tendência. Ao contrário, aprofundou pelos monarcas ingleses e franceses [... ) cada um desses fatos tem sido
intensamente os laços de seus membros com a Igreja. Têm a mais viva estima tomado como uma pequena, mas significativa chave para fenômenos muito
e o maior respeito pelas instituições da Igreja (LAURENTIN, 1977, p. 25). mais gerais: a perspectiva de uma classe social, ou de um escritor, ou de uma
sociedade inteira (GINZ BURG, 1983, p. 127).

Para os movimentos, como a Renovação Carismática Católica, e igrejas,


Vê-se, portanto, a valorização de dados supostamente sem importância ou
como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça,
cuja importância se limitaria, aparentemente, a aspectos mais visíveis e factuais
que assumem o discurso pentecostal, o culto ao Espírito Santo é uma carac-
e não à descoberta ou à decifração de uma grande mudança social. Nesse
terística fundamental. Além de, segundo essas/esses igrejas/movimentos,
sentido, o paradigma indiciário é inovador como método investigativo não
trazer a paz e a cura, o Espírito Santo é também o responsável pela oração em
apenas pelo fato de dar relevo a dados pouco visíveis, mas, principalmente, por
línguas (glossolalia), presente em todos os movimentos pentecostais. Segundo
ver nesses dados sinais de grandes descobertas. É justamente a possibilidade
os pentecostais, assim como ocorreu no episódio bíblico de Pentecostes, as
de decifrar, a partir de minúsculas pistas, um grande crime que apaixona os
p(;ssoas podem receber, juntamente com a graça da efusão do Espírito Santo,
leitores dos clássicos policiais do detetive Sherlock Holmes, bem como os
o "dom das línguas':
apreciadores do "método Morelli" (CF. GINZBURG, 1983). 1
Outra característica do pentecostalismo é a existência, no seu meio, de
curas milagrosas. Para os pentecostais, "a cura é o mais propalado elemento de
sua pregação" (PRANDI, 1998, p. 131). Em resumo, as principais características
1. Giovanni Morelli foi um médico italiano que era especialista em arte. Ele foi o criador de um
do pentecostalismo são: (i) valorização de uma fé individualista; (ii) incentivo
método que buscava distinguir, através da análise de pequenos detalhes, as obras originais dos
à experiência do "Batismo" (ou Efusão) no Espírito Santo; e (iii) utilização grandes mestres da pintura das cópias feitas por falsários.
lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.) 23 1
230 RELIGIÚES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

e b) política d o silêncio, que está, ainda segundo a autora, divid ida em: silêncio
Neste trabalho, analisamos as materialidades verbais e não verbais dos constitutivo, o qual se situa entre o dizer e o não dizer, pois, "uma palavra apaga
sites que constituem o corpus da pesquisa com base no paradigma indiciário. necessariamente a outrà' (p. 34); e silêncio local, que se refere à censura, ou
Isso significa que as imagens e as formulações linguísticas serão vistas como seja, à proibição de dizer algo em uma certa conjuntura. . .
indícios que, juntos, contribuirão para mostrar o funcionamento discursivo Para este trabalho, interessa-nos o silêncio constitutivo, pois partimos da
que se encontra materializado nos dados analisados. hipótese de que, nos sites analisados, tanto o verbal (o que é dito) ~uanto o
não verbal (as imagens) que são veiculados apagam outras palavras e Imagens,
Análise de Discurso e silêncio as quais são silenciadas: no caso em tela, apagam a imagem e a voz do negro/
mestiço. Hipotetizamos ainda que tal apagamento está ligado tanto a um ~erto
estereótipo de cristão (AMOSSY & PIERROT, 2005) quanto a um mecamsmo
A Escola Francesa de Análise de Discurso (doravante AD) é uma disciplina de silenciamento (ORLANDI, 2007), que busca impedir a entrada do negro/
de entremeio- pois trabalha com objetos de três lugares distintos: a Psicanálise, mestiço em uma certa ordem d iscursiva.
a Linguística e o Marxismo - que surge no fim da década de 1960. Trata-se
de uma disciplina de interpretação que busca olhar para as materialidades SOBRE A NOÇÃO DE ESTEREÓTIPO
que analisa (textos, imagens etc.) verificando a relação entre o real da língua
e o real da história. Isso significa considerar a língua em sua materialidade No que diz respeito ao conceito de estereótipo, Amossy e Pierrot (2005)
simbólica e considerar a história também como material e atravessada pelos mostram que esta é uma noção que interessa a diferentes discipli~a~ e que .ca~a
diferentes processos ideológicos. Para a AD, não existe um sentido, pronto e uma dessas d isciplinas constrói seu objeto em função de sua logiCa propna
acabado, mas efeitos de sentido, que só podem ser definidos a partir da relação e, como não poderia deixar de ser, de seus interesses. Nesse sentido, ain~a
entre fatores de ordem histórico-ideológica e as determinações do sistema segundo as autoras, o estereótipo surge como um objeto transversal da reflexao
linguístico. De acordo com Orlandi (2007): contemporânea nas ciências humanas. . .
O termo "estereótipo" surge relacionado ao campo da tipografia e d iz
Compreender o que é efeito de sentidos é compreender que o sentido não respeito a algo que é "impresso com placas cujos caracteres não são móveis, e
está (alocado) em lugar nenhum mas se produz nas relações: dos sujeitos; que se conservam para novas tiragens" (AMOSSY & PIERRo: , 200?, p. 30). A
dos sentidos, e isso só é possível, já que sujeito e sentido se constituem palavra estereotipia liga-se, portanto, à ideia de rigidez, poiS supoe algo que
mutuamente, pela sua inscrição no jogo das múltiplas formações discursivas não se modifica, que é fixo, cristalizado. O estereótipo no sentido de esquema
(que constituem as distintas regiões do dizível para os sujeitos) (ÜRLANDI, ou de fórmula cristalizada aparece no século XX e se converte em um centro
200 7, p. 20). de interesse para as ciências sociais desde os anos 1920 do referido século.
0 primeiro autor a utilizar o termo estereótipo no seu sentido atual foi
0 americano Walter Lippmann. Para Lippmann, os estereótipos são imagens
Com base nessa concepção de discurso, Orlandi (2007) defende que o da nossa mente que mediatizam nossa relação com o real. Nesse sentido, a
sentido também se dá no silêncio, ou melhor, que o "silêncio significa" (p. 42). estereotipia é concebida pelo referido autor como um fenômeno intrínsec~ à
Para a autora, o silêncio, que durante muito tempo foi relegado ao residual, vida em sociedade, pois, "na confusão brilhante, ruidosa do mundo exten ? r,
visto como aquilo que era sinônimo de falta, é na verdade fundante, sendo a pegamos o que nossa cultura já definiu para nós, e tendemos a perceber aqmlo
fala o excesso. Ainda segundo Orlandi, expressões como: "estar em silêncio I que captamos na forma estereotipada para nós por nossa c~lturà' (LIPPMANN,
romper o silêncio': "guardar o silêncio I tomar a palavra" e "ficar em silêncio 2oo8, p. 85). Nesse caso, estereótipo é definido como uma Imagem fixada pela
I apropriar-se das palavras" mostram o silêncio como "estado primeiro,
sociedade.
aparecendo a palavra já como movimento em torno" (ORLANDI, 2007, p. 31). Em relação à importância da noção de estereótipo para a Escola Francesa
Orlandi (2007) trata de três tipos (ou formas) do silêncio: a) silêncio de Análise de Discurso, Amossy e Pierrot afirmam que, "a análise de discurso
fundador, "aquele que existe nas palavras, que significa o não dito e que dá na França, surgida em fins dos anos sessenta, se interessou pouco pela
espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar" (p. 24);
232 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 233

estereotipia, mas instaurou um marco favorável ao seu estudo" (AMOSSY &


PIERROT, 2005, p. 30). Para as autoras, a primeira aproximação possível entre
estereótipo e AD está relacionada à noção de pré-construído.
De acordo com Pêcheux, efeito de pré-construído (ou encaixe) é um
EAD AGRADE
Educação à Distância
termo, inicialmente proposto por Paul Henry, que é utilizado para "designar o
que remete a uma construção anterior e exterior, mas sempre independente, Em Breve estará
em oposição ao que é 'construído' pelo enunciado" (PÊCHEUX, 1988, p. 99). disponível a plataforma
Trata-se, ainda segundo o autor, do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático. EAD.
Esse é um dos principais pontos de articulação entre Teoria do Discurso e
Linguística, pois mostra que existe uma forte relação entre aquilo a que Pêcheux
(1988) chama de base linguística e os diferentes processos discursivos. Trata- AGUARDE
se, ainda segundo Pêcheux (1988), da relação de discrepância entre domínios
de pensamentos diferentes: "um anterior (já pensado antes, desde sempre) e
OVIDADE
um realizado na situação de enunciação" (PÊCHEUX, 1988, p. 147).
Retomando Amossy e Pierrot, verificamos que, para as referidas autoras, Figura 2. Material de divulgação da Academia de Teologia da Graça de Deus
o estereótipo se relaciona duplamente com o pré-construído: (AGRADE). In: http://www.agrade.com.br

[...] no sentido de que designa um tipo de construção sintática que põe em


jogo o pré-afirmado, e, em um sentido mais amplo, d e que o pré-construído
funciona como uma marca, em um enunciado individual, de discursos e Nas duas figuras acima, coletadas no site da Igreja Internacional da Graça
juízos prévios, cuja origem foi apagada (AMOSSY & PI ERROT, 2005, p. 113). de Deus, vemos a imagem do negro/ mestiço ser apagada. No caso da figura 1,
tem-se a propaganda de um conjunto (Kit) de DVDs de Midinho, o pequeno
Em outras palavras, a noção de estereótipo liga-se, em alguma medida, ao missionário. Trata-se de um personagem infantil, criado por membros da Igrej a
conceito de memória discursiva, pois supõe a existência de algo que antecede Internacional da Graça de Deus, que vivencia, ficticiamente, histórias que fazem
e fundamenta a emergência dos enunciados. parte do cotidiano das crianças em geral, mas que têm sempre uma ligação com
questões da Bíblia. Trata-se, portanto, de uma espécie de "mascote" da referida
ANÁLISE DOS DADOS igreja. Por meio do personagem Midinho, o enunciador Igreja Universal
da Graça d e Deus constrói uma imagem de cristão que é corroborada nos
Com base no referencial teórico apresentado, procedemos à análise discursos materializados na/pela referida instituição. Analisando a imagem do
dos dados. Para tanto, selecionamos e catalogamos imagens e enunciados nos "pequeno missionário': vemos que se trata de uma criança branca, de cabelos
três sites, os quais foram observados diariamente, durante seis meses. lisos, que segura um livro na mão esquerda, enquanto, com a direita, aponta
em direção ao enunciado "Kit ' s com cinco OVOs do Midinho - compre agora
ANÁLISE DO SITE DA IGREJA INTERNACIONAL DA GRAÇA DE DEUS com desconto". O menino d a imagem apresenta um semblante sorridente,
feliz. Trata-se de uma imagem estereotipada, pois condiz com certas imagens
cristalizadas acerca da criança cristã: estudioso (com o livro, provavelmente a
Bíblia, na mão), feliz e branco. A imagem não diz em nenhum momento que
a
ang e.mm crianças negras não podem ser cristãs, mas, ao apagar a possibilidade de um
Midinho negro, ao utilizar, ao invés do desenho de um menino negro, o de
um menino branco, há o que Orlandi chama de silêncio constitutivo, pois a
Figura 1. Partesuperior dosite da Igreja Internacional da Graça de Deus(In: http://www.ongrace.com/portal/)
veiculação de uma imagem apaga a outra.
lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 235
234 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

no material sob análise, são todos iguais, isto é, estão todos necessitados das
A figura 2 apresenta uma propaganda da Academia de Teologia da Graça sementes do evangelho cristão, pregado pela Igreja Internacional da Graça
de Deus (AGRADE), a qual promove cursos de Educação à Distância (EAD). de Deus. Todos os que aparecem nas fotografias são discursivizados como
Na figura, veicula-se a imagem de um jovem com traços asiáticos (olhos necessitados de evangelização, de conversão. Contudo, é importante salientar
puxados, cor amarela etc.). Mais uma vez, a imagem do negro é apagada. Vale que as imagens veiculadas no site ongrace não podem negar o outro, a mistura,
salientar que não se trata apenas dessas duas propagandas, mas que em 90% o híbrido. Mesmo que esse outro apareça sob a forma de simulacro.
das imagens veiculadas no site ongrace temos esse mesmo funcionamento, isto
é, o apagamento da imagem do negro/mestiço. ANÁLISE DO SITE DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS
Entretanto, ainda há os outros 10%. A imagem abaixo ilustra justamente
o que ocorre nos demais casos. .4.. ·------

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FORMANDOS AGRADE ~
MISSOES
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t<)fft Wau •m V •K.• .:. ~ S..W.•~o~l ~ ,..,. _,. t7.ndt t:.O"Vr~io ~»'•

Figura 3. Material dobre as missões da Academia de Teologia da Graça de Deus (AGRADE). In:
• t.--.;:.111 torut...~ 411>
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~ F.......... J012
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http://www.agrade.com.br Figura4. Página inicial do site Arca Universal (Igreja Universal do Reino de Deus). (In: http://www.arcauniversal.
com/iurd/)

Nesse caso, trata-se, mais uma vez, de uma propaganda da AGRADE,


mas agora não se está divulgando o curso de EAD, mas um curso de Pós-
Como deve ser o homem ideal?
Amfga d~s~ja ~ncontrá·lo para cons~gufr s~r t~lfz no amor
graduação em Teologia, com ênfase em Missões. Na figura acima, vemos a
(•) Cristiane Cardoso I Fotos: T hlnkstocl<
imagem, em foco, de negros, índios, mulheres indianas, tanques de guerra redacao@arcaunlversal. com
etc., tudo isso precedido pela imagem de uma mão e um braço que jogam
sementes no campo. Aqui, por meio da memória discursiva, reportamo-nos
à parábola bíblica do semeador, o qual é apresentado no texto bíblico como
uma metáfora para o próprio Jesus Cristo, que semeia sementes em diferentes
solos (os corações), os quais, também segundo a metáfora do solo pedregoso,
do solo espinhoso e do solo bom, podem ser maus, bons, impenetráveis etc.
Dessa forma, vemos que a mistura, a mestiçagem, o hibridismo só aparece no
material analisado, quando reduzido à categoria do "outro': do "diferente" e,
mais do que isso, do excluído, daquele que necessita de conversão, de ajuda
espiritual. Dessa forma, ocorre um processo de interdição, de silenciamento,
pois se silencia a cultura e a religião do outro. Além disso, ao colocar numa Figura 5.1magem veiculada na página de perguntas erespostas do site Arca Universal. (In: http://www.
mesma imagem, sob um mesmo ângulo, negros, índios e tanques de guerra, arcauniversal.com/iurd/perguntas-e-respostas/noticias/como-deve-ser-o-homem-ideal-14596.html)
o enunciador mostra, discursivamente, que, para o discurso materializado
236 RELIGIOES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo I Eduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.} 237

Nas figuras 4 e 5, presentes no site da Igreja Universal do Reino de Deus mãos, é um mestiço, o que pode ser constatado tanto pela cor de sua pele quanto
(IURD), vemos também a repetição da imagem do branco e o consequente pelos seus cabelos. Esses homens sentados são apresentados na imagem como
apagamento da imagem do negro. No caso da figura 4, a jovem de mãos carentes, necessitados. Isso explica, inclusive, a oposição, simbolicamente
postas, em atitude de oração, na página principal do site, é uma jovem branca. marcada pelas posições: estar sentado no chão e estar de pé. Mais uma vez,
Do mesmo modo, o casal retratado pela figura 5 é constituído por dois jovens os discursos materializados pela imagem mostram o negro/mestiço como o
brancos. Nesse último caso, a pergunta, apresentada no mício da página, necessitado. Entretanto, assim como no caso da análise feita em relação às
compõe um todo com a figura do rapaz branco e sorridente que segura a mão imagens do site ongrace, não há um apagamento total da imagem do negro
de uma jovem também branca. Nesse caso, o efeito de sentido criado é o de que e do mestiço, pois não há como negar a mistura, o que há é a discursivização
o homem ideal deve ser como o retratado pela imagem: sorridente, carinhoso dessa imagem como separada, à parte, como a alteridade. E mais que isso:
(pois faz um gesto de carinho na moça) e branco. Por outro lado, o negro é como uma alteridade necessitada, carente. Apaga-se, assim, discursivamente,
retratado no site da seguinte forma: a imagem do negro/mestiço como aquele que age, que contribui, que tem uma
atuação em todas as esferas sociais, inclusive na esfera religiosa.
Anjos da Noite atuam na Nicarágua
Voluntários of~r«fifl o/lm~ntos, roupas ~ palovros d~ vtdo aos
morador~ dr r ua ANÁLISE DO SITE DA IGREJA INTERNACIONAL DA GRAÇA DE DEUS
Da Redação I Foto: IURD- Nlconitua
redacao@vcaunivenal.com

Renovação
Carismática
Terra Santa
~ .... c-
Católica ......,c.ll<euutL
.... ... ... ___. • • l i
Bra• íl

Ministério de Coordenação e o Dom da untdade

11 • ,, . , . ....... . J lt .• :
~-> ~ OfJÇl·) • u~ comun;jaót arts""'Mc.a Qfts..,.. num.J ~u ll•OoQUia ""',..~ c~,..o """'*'"~
tl"":fttU t.L':~J (~ f'f1~1 etc QUf ~~ Of~ I P~ t IOOOt OI "'*~.a.J~ctol ~
.-~. --~-- tN ~anç•lho J r a."'r ~ tJ;eMnoa «» NOvno no EtC*'IO $Ido ( 1• tt '"'"'"' ""tt~ con.unco ~ t~at!OQI!
~ts-."la~rw~ .....s~ ot cornuMAo ç~~ oM~ t t~

4. A•~Jo C.~rtti'"\.W..:.t t "''"' ·c:outn'• ct -ort<~ Qll.lt "''.....,. ~1 uno.at • l)lui>O' t•PitUIIItM .- '' ~'~"'••~' a
parV oela ..,..., dttttrfn onoõot t t:lf''"U Ot Oi'o;...tne..açio· 4 R:CC t Of~31 tlt><onttt 013it : .. a~. 4pe,s~a come
1.1m U..~mtonl: fdn~ S,.:•~ no rt.lntt1 QUt .l t7t.,.l t t concrtbn~ IO't1aP~ J IOt •~ Ctxt,MJ o~·
cct·,.~t ~ ACC ~omo ~ (Ot~,.- st Ot<;~ t ··o'ltf .a tua o-«:ts.,....~o.· .,...,..., c. \1'""\J W~t.,çl~ n.t
o.utot•.:•'Ofll.l'".c~sv.a U.U dklt'l.kol•~~ e«stt &xuan.:. o~...•moeuse.as.ri"'UU".. pu&).j.)t
Ol'tto'QOO ():tf t ~.ç.s Otlt-.-ot C\lt '\h H ct.~ttarat1tr\tll""' ttu t;tttti'N

Figura 6. Notícia sobre os "Anjos da noite'; veiculada no site Arca Figura 7. Página inicial do Ministério de coordenação, no site da Renovação Carismática Católica. (http://www.rccbrasil.org.br/
Universal. (In: http://www.arcauniversal.com/iurd/mundo/noticias/ espiritualidade-e-formacao/index.php/artigos/833-ministerio-de-coordenacao-e-o-dom-da-unidade}
anjos-da-noite-atuam-na-nicaragua-14601.html}

Na imagem acima, três homens de cabeça baixa estão sentados no chão


de uma rua qualquer; e um quarto homem, de pé, coloca as mãos sobre a
cabeça de dois dos homens que estão sentados. Essa imagem, juntamente com
a formulação linguística "Anjos da noite atuam na Nicarágua - voluntários
oferecem alimentos, roupas e palavras de vida aos moradores de rua': produz
um efeito de sentido segundo o qual os homens sentados estão sendo
consolados, cuidados, pelo homem que está em pé. O detalhe é que, dos três
homens sentados, o que está no centro da imagem, com a cabeça sobre as duas
238 RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.) 239

pessoas que estendem a mão, em um gesto de unidade retratado e apresentado


rodo doo. Z.S1 5w1to. Co,tQJ'If\Q. ~ LVII
f!n'l o.-~ pelo.. RCC e ~~ l'l'lf!n'lbroL na página inicial do site oficial da RCC, são brancas.
Qv..eM ~+~ Jv..l'lto 1'\~!10..? A figura 8 é composta por um conjunto de "quadrinhos" que funcionam
como material de divulgação das "Semanas Missionárias': Trata-se de um
evento da RCC no qual os carismáticos escolhem um dia da semana ou d o mês
para orar pelos grupos de oração, "considerados a base da vida carismática"
(PRANDI, 1998, p. 25), de uma determinada cidade. No caso em tela, d ivulga-se
o dia 25 de cada mês, dia esse escolhido para se orar pelos grupos de oração de
Santa Catarina. Voltando à análise dos quadrinhos, verificamos que todos os
personagens apresentados nos quatro quadrinhos são brancos. Há, portanto,
mais uma vez, um silêncio constitutivo, pois a imagem do negro é substituída
pela do branco.
A figura 9 trata de uma outra ação das "Semanas Missionárias": as missões
=
:.. - ·~::.:::-;·:;~.-= =:-.--::.:.:=--=-:-..:::.-..:=:.:: -;-_--....:- :..-::-= .._. ~::::-... de evangelização. Tanto a imagem quanto o texto se referem a uma m issão no
se;.~;~~;,;:-~ t»t ~ ~·-;,..I!M J"-"tO nWe do, I!M U.~ Oiapoque, realizada por um grupo de carismáticos. Na imagem, veem-se um
Figura S. Imagem publicada para divulgar as'Semanas Missionárias" da RCC. rapaz e uma moça, esta última é fotografada de costas, dirigindo-se a uma
(In: http://rccbrasil.org.br/semanasmissionarias/}
mãe com uma criança de colo. Verificamos que tanto a mãe quanto a criança,
as quais estão sendo acolhidas pelo casal de carismáticos, são mestiços. No
texto, abaixo da imagem, essa questão da acolhida e do assistencialismo é
SEMANAS MlSSIONÁRlAS
repetida por meio da materialidade linguística. Dessa forma, quando a fala
Semana issionária de Huana Furtado aparece no texto, por meio do discurso direto, verificamos
que o enunciador carismático se vê distante da mãe e da criança retratadas na
chega ao Oiapoque imagem, pois a expressão referencial "aquelas pessoas" mostra que não se trata
do mesmo, mas do outro. E que este outro, assim como nos demais exemplos
analisados, é sempre o necessitado que está distante e nunca o semelhante.
............................ .......................................................................................................................
Além da experiência de evangelização, os missionários puderam obter vasto conhecimento CONSIDERAÇÕES FINAIS
da difícil realidade na qual os moradores da região vivem. Huana Furtado, coordenadora dos
profissionais do Reino no estado, descreve essa experiência: "O mais tocante é descobrir a história Nas análises, constatamos que a imagem, tanto imagética quanto
daquelas pessoas, vivenciar uma realidade tão dura e de tamanha pobreza. Também ficamos felizes
linguística, do negro/mestiço é, simplesmente, apagada/silenciada. Dessa
em saber que podemos fazer muito por elas': Ela se refere a uma visão dos futuros projetos sociais
que o Ministério Universidades Renovadas passou a sonhar para esta comunidade depois da visita. forma, constatamos que, além das palavras, há silêncio também nas imagens,
ou seja, existe um sentido que se constitui na relação entre o que é mostrado e
Figura 9.1magem etexto sobre aSemana Missionária no Oiapoque. (In: http://rccbrasil.org.br/semanasmissionarias/}
o que é apagado. É isso que ocorre nas imagens e nas mensagens que aparecem
nos sites por nós analisados. Ambas apagam a figura do mestiço e o substituem
pela imagem do caucasiano. As análises mostram ainda que tal apagamento está
Os dados apresentados nas figuras 7, 8 e 9 corroboram, mais uma vez,
ligado tanto a um certo estereótipo (imagem cristalizada) de cristão (AMOSSY
a hipótese deste trabalho, em que defendemos que há um apagamento da
& PIERROT, 2005) quanto a um silêncio constitutivo (ÜRLANDI, 2007).
imagem do negro/mestiço nos sites de algumas igrejas pentecostais.
Na figura 7, vemos a imagem de várias mãos sobrepostas, como que
simulando uma atitude de união. Para nós, interessa o fato de que todas as
240 RELIGIOES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMOSSY, R. ; PIERROT, A. H. Estereotipas y clichés. Traducción y adaptación:


Lelia Gándara. 1• ed. 4•. reimp. Buenos Aires: Eudeba, 2005, p. 30
GINZBURG, C. "Sinais, raízes de um paradigma indiciário': In: _ _. Mitos,
emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,
1983.
LAURENTIN, R. Pentecostalismo Católico: riscos e futuro. Trad. Felipe Gabriel
Alves. Petrópolis: Vozes, 1977.
LIPPMANN, Wa_lter. Opinião pública. Tradução e prefácio: Jacques A.
Wainberg. Coleção Clássicos da Comunicação Social. Petrópolis: Vozes, 2008.
ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6• ed.
Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2007.
PeCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad.
Eni Pulcinelli Orlandi (et. al.). São Paulo: Editora da UNICAMP, 1998.
PRANDI, R. Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo
carismático. 2• ed. São Paulo: Edusp/FAPESP, 1998.

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