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DISCÍPULOS DO CAOS: DO BLACK METAL COMO


REPRESENTAÇÃO DA ESTÉTICA PÓS-MODERNA

Jonivan Martins de Sá
jonivanmartins@yahoo.com.br
Bacharel em Ciências Sociais – Ciência Política pela Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA)

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a construção de uma analítica acerca da estética
do Black Metal e de sua relação com as concepções do pensamento pós-moderno. Para tal,
reconstruiremos brevemente a história deste estilo musical, recapitulando seus principais
personagens, bandas e fatos, dando especial atenção ao Movimento Black Metal Norueguês. Na
seqüência, buscaremos intersecções possíveis entre a estética crua e primitivista do Black Metal
com o pensamento pós-moderno, retomando o pensamento de Jean-François Lyotard.

Palavras-chave: Black Metal, Estética, Pós-Modernidade.

INTRODUÇÃO

Ainda na primeira metade da década de 1980, emerge no cenário da


música mundial o que se pode definir como, no mínimo, um interessante
fenômeno estético/musical, hoje mundialmente conhecido como Black Metal. O
Black Metal se diferencia das demais representações estéticas/musicais da época,
pela sua aparente estranheza, ou seja, quebra com os padrões estéticos
disseminados à seu tempo. O seguinte trabalho tem como o objetivo uma analítica
acerca de uma provável relação entre a estética Black Metal e o pensamento pós-
moderno. Primeiramente, pretendo reconstruir brevemente a história deste estilo
tão diferenciado, recuperando quem são seus principais personagens, as bandas
pioneiras e os fatos que permeiam a gênese, significação, disseminação e
efetivação do Black Metal como estilo musical. Como se poderá perceber, darei
uma atenção especial ao que chamo de Movimento Black Metal Norueguês, como
uma das principais células disseminadoras e significadoras do estilo1.
Em uma segunda parte do trabalho, tendo em vista o objetivo central deste
trabalho, pretendo ariscar uma intersecção possível entre a construção do Black
Metal como fenômeno estético e sua ligação com as concepções do pensamento
pós-moderno. Para tal, recapitularei o pensamento de Jean-François Lyotard, no
sentido de uma aproximação entre a estética do estilo musical e o que as teses
pós-moderna pensam por estética, arte e representação.

1 Chamo de “Movimento Black Metal Norueguês” com inicias maiúsculas, por me parecer se tratar
de um grupo mais ou menos definido, que surge na mesma época e lugar, com indivíduos que se
influenciavam mutuamente e se comportavam de forma razoavelmente semelhante, se
expressando segundo representações estéticas igualmente semelhantes.
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CONTOS DO SUBSOLO: UMA HISTÓRIA DO BLACK METAL

Traçar uma história do Black Metal dentro do âmbito acadêmico é tarefa


nada simples, já que, não existem estudos relevantes que dêem conta da relação
deste estilo tão particular com a sociedade2. Assim como não se tem notícias de
produção dentro o âmbito acadêmico que descreva o Black Metal como movimento
e estilo musical, apontando seus elementos estéticos e suas nuances históricas. O
que temos é um emaranhado de informações que vem á tona através de sites, as
antigas fanzine3, revistas, documentários e através das próprias bandas.
Não sem risco de ser simplista – situarei, a nível de praticidade da
pesquisa – como marco histórico da construção do Black Metal como estilo
musical, o lançamento, em 1982, do álbum intitulado Black Metal da banda
inglesa Venom. A sonoridade trazida pelo álbum parece representar uma mistura
entre o Punk – estilo já estruturado não só na Inglaterra – e do Heavy Metal de
bandas como Black Sabbath e Motörhead. Em suma, a sonoridade de Black Metal
lembra pouco a estética do Black Metal que hoje consideramos como tradicional.
A importância no álbum reside, como não poderia deixar de ser, no uso do termo.
O “Metal Negro” como um grito contra-hegemônico, uma chamado à escuridão,
chamado de uma juventude já cansada da rebeldia morna do Punk e do Heavy
Metal. Apologia escancarada ao satanismo, ao obscuro como uma expressão da
rebeldia, diferente das apologias satânicas tímidas que o Rock já conhecia.
De certa forma, é de senso comum se pensar no Black Metal como um estilo
musical influenciado pelo Movimento Thrash Metal Americano. Uma pesquisa
rasa pode apontar que ambos os cenários se influenciam mutuamente, dado tanto
a proximidade estética da musica quanto a proximidade de datas no que diz
respeito a lançamento de álbuns e a gênese de ambos como movimentos
estruturados.
A sonoridade Black Metal parece ter aparecido pela primeira vez em 1984,
no álbum Bathory4 da banda sueca de mesmo nome. Ainda mais arriscado que
considerar Black Metal do Venom o primeiro passo à construção do estilo, é
considerar Bathory como marco estético, já que, os brasileiros do Vulcano e os

2 A obra mais popular escrita até então sobre o estilo chama-se Lords of Chaos, de autoria de
Michael Moynihan e Didrik Søderlind. Não faço o uso desta obra como referência, na medida em
que não cessam as críticas recebidas por seu conteúdo tendencioso e pouco verdadeiro, tanto
acerca do Movimento Black Metal Norueguês, quanto acerca da construção do Black Metal como
representação estética.
3 As fanzines são pequenas revistas ou panfletos publicados por fãs. Hoje em dia se tornam cada

vez mais raras, mas, desde a época da construção do movimento punk, se tornaram populares nos
undergrounds da música independente.
4 O nome escolhido pela banda remete à condessa húngara Elizabeth (Erszebet) Bathory, que

viveu no século XVII. A condessa em questão é conhecida no folclore húngaro por supostamente
banhar-se no sangue de virgens que ela mesma teria assassinado.
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americanos do Possessed já apresentavam uma sonoridade, no mínimo, de uma


agressividade incomum5. Considero o álbum como um marco estético devido a
influência que este teve não só na Escandinávia, mas em toda a Europa e
América. Tomas Forsberg, líder do Bahtory – que usava o pseudônimo Quorthon6
- é muito citado até hoje como um dos maiores gênios do estilo, sendo também
precursor do que se chamou posteriormente de Viking Metal, estilo que mistura a
sonoridade do Heavy Metal à temática da cultura viking.
A sonoridade presente no álbum de lançamento do Bathory é das mais
incomuns, se comparada com o Heavy Metal apresentado até então. Talvez as
duas principais características do álbum sejam a rispidez sonora, fruto de uma
produção precária, e a velocidade de execução das músicas. O vocal de Quorthon
(que também gravou as guitarras do álbum) é um terceiro elemento a ser
destacado como, no mínimo, inovador, apresentando a entonação ríspida e aguda
de um vocal gutural. A arte de capa soma-se a estética crua apresentada pela
sonoridade, trazendo o desenho de um bode (símbolo popularmente conhecido de
culto satanista e pagão) de traços rústicos.

Figura 1: Capa do álbum de lançamento da banda sueca Bathory, de 1984.

Apesar de, como já foi dito, outras bandas apresentarem uma estética crua,
de sonoridade agressiva, um dos fatores que certamente fizeram da música de
Quorthon um baluarte na construção estética do estilo, foi a influência que esta
teve no que parece ter sido o principal elemento de construção do Black Metal
como um estilo musical e representação estética contemporânea: Movimento
Black Metal Norueguês.

UMA CHAMA NO CÉU DO NORTE: O MOVIMENTO BLACK METAL


NORUEGUÊS

5 Em 1984 o Vulcano lança uma demo intitulada “Devil on My Roof”, já apresentando uma
sonoridade agressiva e rápida. Ao passo que o Possessed, os primeiros a cunhar o tremo “Death
Metal”, lançam uma demo deste nome também em 1984.
6 O uso de pseudônimos é comum dentro do estilo até os dias atuais. Os integrantes do Venom já

os usavam, talvez como mais uma forma de demonstrar agressividade. Ainda sobre Quorthon,
este veio a falecer no dia 03 de Junho de 2004, vítima de uma parada cardíaca.
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Assim como a gênese da história do Black Metal não poderia ser descrita
com todas as suas nuances em um trabalho tão pequeno, a descrição do que
chamo de Movimento Black Metal Norueguês também não se faz aqui sem
simplificações e riscos, já que, não são poucas as bandas surgidas no final dos
anos 80 e início dos 90 nesse país aparentemente calmo e idílico. Dentro desta
perspectiva de trabalho, tratarei de forma simplificada da história de três bandas
– Mayhem, Burzum e Darkthrone – e de três fatos que considero importantes
para a construção musical e estética do Black Metal como um estilo – alem da
influência das bandas pioneiras, obviamente.
Os pioneiros noruegueses do estilo que ainda se construía, foram, sem
dúvidas, os integrantes do Mayhem7. A banda foi formada em 1984, na cidade de
Ski, sendo liderada pelo guitarrista Øystein Aarseth (Euronymous). Euronymous
era considerado como uma espécie de líder, não só no Mayhem, mas em todo o
movimento que surge a partir da banda. A primeira demo da banda é lançada em
1986, com o nome de Pure Fucking Armaggedon, mas é com o lançamento do EP
Deathcrush, em 1987, que a banda vem a ser conhecida no subsolo do Heavy
Metal norueguês.
A musicalidade exposta em Deathcrush lembra muito a do primeiro álbum
do Bathory – apesar do EP trazer um cover do Venom. Guitarras estridentes,
vocais guturais ríspidos e bateria de rápida execução são seus traços marcantes.
A arte de capa traz a imagem de duas mãos amputadas, no que lembra um
instrumento de tortura medieval. Depois de Deathcrush, esse tipo de capa,
trazendo imagens fortes de amputações, pessoas e animais mortos e todo o tipo de
atrocidades, se torna cada vez mais comum dentro do gênero.
Outro elemento que certamente deve ser destacado, importante tanto como
representação estética assim como elemento de identidade de um grupo, é a
corpse paint. A corpse paint é um tipo de pintura que já vinha sendo utilizada por
algumas bandas8, mas que certamente ganha força no Mayhem. Tal pintura
remete ao aspecto pálido e sem vida de um cadáver e, unida ás roupas escuras e
muitas vezes rasgadas, constrói o embrião daquilo que iria se tornar um
estereótipo Black Metal.
Diretamente influenciados pelo lançamento de Deathcrush, inúmeros
jovens, já identificados com a música “agressiva” que se construía como
movimento, decidiram montar suas próprias bandas, com o intuito de disseminar

7 A banda é citada inúmeras vezes como a pioneira norueguesa no estilo por várias pessoas que
fizeram parte da mesma conjuntura. Mais informações sobre a construção do cenário Black Metal
na Noruega podem ser encontradas no documentário Until de Light Takes Us (2008) de direção de
Aaron Aites e Audrey Ewell, largamente usado como referência neste trabalho, já que, traz
entrevistas com os principais personagens deste movimento.
8 Dentre elas, podemos destacar os suíços do Celtic Frost, que em 1984 já usavam esse tipo de

pintura.
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o que parecia ser uma espécie de ideologia do macabro e obscuro,


descontentamento estético em relação à arte e a sociedade. Dentre as várias
bandas surgidas nesta época, duas se destacam, tanto pela musicalidade
apresentada, quanto pela influência que seus integrantes vieram a ter no
Movimento Black Metal Norueguês: Burzum e Darkthrone.

Figura 2: Fenriz, Zephyrous (ambos do Darkthrone), Euronymous e


Hellhammer (ambos do Mayhem) em vestimentas típicas usadas pelas bandas da
época.

O Darkthrone foi formado em 1987, resultado da troca de nome da banda


de Death Metal9, Black Death. Seu primeiro álbum foi lançado em 1991,
intitulado Soulside Journey, mas é com A Blaze in the Northern Sky (1992), seu
segundo disco, que a banda entra para o embrionário cenário Black Metal da
Noruega. A formação deste segundo álbum conta com Ted Arvid Skjellum
(Nocturno Culto), Gylve Nagell (Fenriz) e Ivar Enger (Zephyrous), sendo que os
dois primeiros se tornaram músicos muito influentes no Black Metal mundial. O
instrumental de A Blaze in the Northern Sky é basicamente Death Metal. A
modificação estética reside na timbragem dos instrumentos – apresentando um
timbre mais estridente que do álbum anterior, e de produção deliberadamente
precária – assim como na adoção de pseudônimos e da vestimenta que se tornava
um símbolo identitário da cena. Desde a data de seu lançamento, até os dias
atuais, este é considerado um dos principais álbuns do gênero, já que, parece
acentuar a criação do Black Metal como um estilo musical e representação
estética. Todas as edições do álbum – inclusive as atuais – trazem uma nota de

9 O Death Metal é um estilo que tem sua gênese na mesma época do Black e Thrash Metal.
Talvez, a diferença mais substancial na construção musical do Death Metal, se comparado ao
Black Metal tradicional, seja a freqüência variacional dos riffs de guitarra, além do vocal, que
geralmente é mais grave. No entanto, tais diferenças não impediram os estilos de se misturarem
muitas vezes sob o signo de Death Black Metal.
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dedicação à Euronymous10, já que, segundo Fenriz (UNTIL THE LUGHT TAKE


US, 2008), este foi o grande inspirador, tanto do álbum quanto da mudança de
estilo da banda.
A história do Burzum começa com o fim da banda de Death Metal
Satanael, em 1991. À época, inspirado pelo novo tipo de formação criado pro
Quorthon, do Bathory, Varg Vikernes monta sua banda sob o modelo one man
band, ou seja, uma banda que conta com um único integrante (e compositor,
naturalmente), que grava todas as seções em estúdio, sem subir aos palcos 11. O
termo “burzum” foi retirado da tão conhecida trilogia O Senhor dos Anéis de
J.R.R. Tolkien e significa “escuridão”. Alem de temáticas obscuras e de
musicalidade estridente, agressiva e deliberadamente mal produzida, a
sonoridade do Burzum é construída, segundo as palavras do próprio Vikernes
(UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008), “para se aproximar ao máximo de uma
narrativa épica”, introduzindo Varg, muitas vezes, à mitologia nórdica, como uma
forma de expressar o descontentamento com o cristianismo, descontentamento
este já expressado anteriormente através da temática satanista e pelo “culto ao
obscuro” expressado tanto pelo Burzum quanto pelas demais bandas do gênero.
Parece-me importante citar aqui a relação entre Vikernes e os demais membros
deste embrionário movimento, já que, à época de construção deste, o convívio dos
indivíduos que se sentiam representados pela estética Black Metal começa a se
estreitar, tendo como ponto de encontro a loja de discos de Euronymous, Helvete
(“inferno” em norueguês). Alem desta relação, Vikernes ainda veio a tocar (baixo)
no Mayhem em alguns shows e na gravação do álbum De Mysteriis Dom
Sathanas, lançado só em 1994.
Assim como toda forma de conjuntura artística dotada de certa relevância
no meio social não é constituída apenas por artistas, mas também pelos
acontecimentos que permeiam tais conjunturas, o Movimento Black Metal
Norueguês traz em sua história alguns pontos que me parecem ter certa
relevância, portanto, devem ser descritos aqui.
O primeiro fato que gostaria de descrever aconteceu em 1991, no interior
de Oslo, na casa onde os membros do Mayhem viviam e ensaiavam. O então
vocalista Per Yngve Ohlin (Dead) comete suicídio durante a ausência dos demais
integrantes da banda, sendo encontrado por Euronymous algum tempo depois do
ocorrido. Extasiado pelo que parece ser a representação genuína da morte, ou
seja, um elemento estético extremamente explorado pelo Black Metal,
Euronymous, mesmo antes de comunicar as autoridades, fotografa diversas vezes

10 A citada nota: "This album is eternally dedicated to the king of death/black metal Euronymous"
(O seguinte álbum é eternamente dedicado ao eterno rei do Death/Black Metal Euronymous).
11 Esse estilo de formato se construiu como um dos principais na cena Black Metal mundial.

Influenciados por Quorthon, muitas bandas do gênero se recusam a tocar ao vivo, dentre elas o
próprio Darkthrone. Quorthon gravou sozinho apenas os dois últimos álbuns do Bathory, sendo
que nos demais optava pela contratação de músicos.
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o cadáver de seu colega de banda. Salvo julgamentos morais e, até mesmo, de


cunho psicológico que poderiam interpretar tal fato, a relevância estética desse
contato de Euronymous com a morte me parece residir no aprofundamento da
relação entre o Black Metal e a morte, já que, a partir desse acontecido – e da
publicação de uma das fotos tiradas na capa de um EP ao vivo do Mayhem, em
1995 – tal relação parece ter se tornado palpável, não mera representação
abstrata de uma juventude descontente.
A ocorrência de incêndios criminosos a igrejas cristãs, também pode ser
citado como um fato que influenciou esteticamente o Black Metal. Juntamente
com o advento do Movimento Black Metal Norueguês, cerca de 50 igrejas foram
incendiadas na Noruega e em seu país visinho, a Suécia. O alvo principal dos
incendiários eram igrejas históricas, construídas sob terreno considerado sagrado
nos primórdios da cultura viking. Através de investigações e de uma entrevista
dada por Vikernes em 1993, a polícia norueguesa aponta como responsáveis pelos
incêndios pessoas ligadas ao grupo de bandas que constituíam a cena Black Metal
na Noruega. Após grande alvoroço da mídia, sobre a existência de uma “máfia
satânica”, que agia em torno do cenário musical, muitos membros do Movimento
tiveram suas prisões decretadas – dentre eles, o próprio Vikernes, liberto no
mesmo ano.

Figura 3: Capa do EP "Aske" (1993), do Burzum, traz uma imagem da


Igreja de Fantoft, queimada em 1992.

Segundo o líder do Burzum (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008), o


signo da igreja queimada só toma conotação satanista após a mídia expô-lo desta
maneira, já que, substancialmente, representava a insatisfação do grupo com a
colonização cristã da Escandinávia, que se dera a partir do século IX (BERNET
2011: 38). Tal signo, não só na época como até hoje, pode ser considerado como
um dos principais elementos estéticos do Black Metal mundial, tomando muito
mais a conotação imposta pela mídia do que a de seu verdadeiro significado. O
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que se percebe é um embate da igreja queimada como representação satanista e


da igreja queimada como representação de um fundamentalismo pagão.
Alem do suicídio de Dead em 1991 e a queima das igrejas – que ocorreu
entre 1992 e 1995 -, podemos apontar ainda como um fato que influenciou na
construção do Black Metal tanto como estilo quanto como movimento, o
assassinado de Euronymous, cometido por Vikernes, em Agosto de 1993. Segundo
Vikernes (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008) não eram poucos os
desentendimentos entre ele e Euronymous. Tais desentendimentos chegaram ao
seu ápice quando, em meados de 1993, Vikernes acusa Euronymous de legitimar
a opinião tendenciosa da mídia norueguesa ao considerar-se abertamente um
“satanista”. Vikernes (ibidem) ainda afirma ter descoberto um suposto plano de
Euronymous de assassiná-lo. Após discussões, Varg assassina Euronymous em
seu apartamento, em Oslo, com 23 facadas, sendo condenado posteriormente a 21
anos de prisão, por homicídio e porte ilegal de armas e explosivos encontrados em
seu apartamento, em Bergen12.
O assassinato de Euronymous fecha um ciclo de construção simbólica que
fez do Black Metal não só um estilo musical ou um movimento, mas também uma
espécie representação estética do caos, da morte, do contra-hegemônico. Alem de
sua carga simbólica, os fatos acima descritos certamente tornaram o Black Metal
conhecido por inúmeras pessoas, já que, foram transmitidos em nível global.
Além da própria música, tanto as idéias e ideais dos seus fundadores – um tanto
efêmeras e disformes – quanto as interpretações simplistas da mídia da época,
contribuíram para a construção do Black Metal como um estilo de complexa
assimilação estética.

UM FIM SÓRDIDO: A ASSIMILAÇÃO DA ESTÉTICA BLACK METAL PELO


MERCADO

Apesar de todo o caos causado pelo Movimento Black Metal Norueguês,


envolvendo mortes e depredação de patrimônio histórico, apesar deste movimento
ter-se construído como um representante genuíno do contra-hegemônico, isto não
impediu a assimilação da estética Black Metal pelo mercado. Ainda na primeira
metade dos anos 90 surgiram grandes gravadores que alem de solapar a não-
produção – uma das marcas fundamentais da estética Black Metal – auxiliaram
na construção de uma estereotipação e mercantilização deste estilo tão complexo
e rico de nuances. Não só o mercado da música, como o mercado da moda se
utiliza da estética Black Metal com fins de capital 13. Ann-Sophie Back, Anti-
Sweden Jeans, Cheap Monkey, podem ser citadas como algumas das muitas
marcas que disseminam o Black Metal como moda. Muitas vezes, a visão que se

12 Vikernes foi libertado em 24 de maio de 2009, após cumprir 16 anos de prisão.


13 Ver mais em: <http://www.steffmetal.com/fashion-for-metalheads-black-metal-fashion/>.
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tem do Black Metal hoje é pautada apenas pelo uso das roupas, pinturas e pela
temática satanista, ou seja, uma visão desprendida de seus aspectos simbólicos,
construídos através de processos históricos de significação que dizem respeito a
um espaço/tempo determinado, alem de, acima de tudo, representarem o
pensamento de um grupo diferenciado de indivíduos, que não se enquadram nos
padrões estéticos tido como “normais”.
Poucos são os artistas que fogem hoje da representação estética
estereotipada que se construiu em torno do que um dia foi um movimento
genuíno de representação inovadora. Nomes como Fenriz e Vikernes ainda
reivindicam para si e para raros, a verdadeira expressão e compreensão do que
foi o Black Metal um dia, condenando modismos e a brutal alteração que a
música sofreu desde sua gênese.

Figura 4: Não foram poucos os elementos do Black Metal assimilados pelo


mercado da moda. A corpse paint certamente está entre destaques.

DO BLACK METAL COMO REPRESENTAÇÃO ESTÉTICA PÓS-MODERNA

Tendo percorrido o que chamei até aqui de “uma história do Black Metal” –
“uma”, já que esta é apenas uma forma de construção de sentidos sobre o Black
Metal, dentre várias possíveis – o que se segue é a tentativa de uma aproximação
das representações estéticas advindas do Black Metal e suas proximidades com o
pensamento pós-moderno, por sua vez, representado aqui por Jean-François
Lyotard. Em suma, buscar-se-á ver a construção do Black Metal como produto
genuíno da pós-modernidade.
“Pós-moderno não significa recente. Significa o estado de escrita, no sentido
mais amplo, de pensamento e ação, após ter sofrido o contágio da modernidade e
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ter tentado curar-se dele” (LYOTARD 1993: 69-70). Como se pode ver pela
sucinta definição de pós-moderno apresentada por Lyotard em Uma Fábula Pós-
Moderna, o pós-moderno não é visto como um período histórico estritamente
determinado, movimento ascendente pautado pela idéia do progresso como
períodos históricos passados. O que Lyotard percebe por pós-moderno, nada mais
é que a ruptura com o progresso, o eterno-retorno ao primitivo, em um
movimento caótico, instável – uma espiral que avança na medida em que
retrocede. O movimento retilíneo, tão almejado no passado, perde aqui todo o seu
valor, dando lugar á idéias aparentemente disformes e desconexas, mas que, ao
mesmo tempo, parecem formar esse mesmo espiral, um todo completo e
conectado. Ainda sob a luz de Lyotard, pode-se ver a pós-modernidade sob a
perspectiva de uma harmonia oculta, harmonia esta que não depende do homem
para se dar, mas que se faz representar pelo próprio movimento caótico dos entes.
A busca pelo antídoto que guarda em si a propriedade da cura da
modernidade leva, dentro da perspectiva deste trabalho, diretamente às
representações estéticas do Black Metal. Tal antídoto é posto à luz por elementos
diversos que fazem deste gênero musical tão particular. Alem daquilo que parece
ser a quebra com a estética da boa produção musical – ou “bons modos” no que diz
respeito à construção musical -, tal gênero encerra em si um comportamento
primitivo, uma forma “de pensamento e ação” que busca a quebra com o
progresso, com a ordem, com o moderno.
A misantropia, não explorada neste até então, pode ser considerada um dos
principais elementos das representações (formas de pensamento) advindas do
Black Metal. Misantropia como o refúgio, o distanciamento do solitário ao lugar
remoto, longe da influência externa, influência social que se constrói com o
convívio. Este encerrar-se em si e na natureza – já que, o misantropo no Black
Metal é aquele que busca a floresta como refúgio e inspiração – representa alem
do individualismo e do desgarramento do rebanho social, uma forma de quebra
com progresso do todo, quebra com o movimento ascendente do progresso
humano, para assim dar maior importância às instâncias pessoais de
representação, mesmo que isso signifique a solidão. Não raramente se vê o culto à
misantropia como elemento presente tanto nas letras quando na way of life de
membros de bandas do gênero. Este, no entanto, parece ser um dos principais
elementos solapados por parte da assimilação do Black Metal pelo mercado, na
medida em que a lógica do consumo fatalmente liga os assujeitados entre si
através de seus fetichismos massificados.
É importante não deixar passar em branco o papel (talvez) paradoxal da
misantropia no meio Black Metal. Na mesma em que o ente inserido na lógica
deste estilo musical busca o isolamento, a própria idéia de isolamento como fuga
do moderno é cultivada em grupo. Em suma, o culto a misantropia parece surgir,
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justamente, dentro de um grupo14, como um dos elementos que definem a


identidade deste grupo.
A quebra com um padrão estético não se separa da quebra com o âmbito
social existente até então, na medida em que as construções estéticas parecem
não se desprender de um âmbito social particular.

Mas o que está na base das considerações de Lyotard no relatório [da


condição pós-moderna] é a conexão entre o saber, o vínculo social e a
legitimidade a ele conferida pelo consenso de seus sabedores em termos
de verdade e legitimidade. Desta forma, a questão de produção,
transmissão e armazenamento do conhecimento estão fortemente ligadas
às práticas culturais, à formação da identidade subjetiva e ao vínculo dos
integrantes de uma suposta sociedade (NASCIMENTO, 2010: 28)

Se separar fisicamente e esteticamente dos demais (misantropia) parece,


acima de tudo uma questão de deslegitimação de uma ordem que traz em si não
apenas um padrão estético, mas também um padrão de convívio, um padrão de
saber específico, fechado, estático. O jogo entre o signo da inovação e as
representações que remetem a um passado distante (temática Black Metal), faz
do Black Metal pós-moderno por excelência.

A narrativa do Iluminismo, a dialética romântica ou especulativa e a


narrativa marxista, embora secularizadas, usam a mesma historicidade
que a Cristandade, porque mantêm o princípio escatológico. O fim da
história, ainda que sempre adiado, restabelecerá uma relação plena e
completa com a lei do Outro (capital zero), tal como esta relação havia
sido no começo: a lei de Deus no paraíso cristão, a lei da Natureza nos
direitos naturais sonhados por Rousseau, e a sociedade sem classes,
anterior à família, à propriedade e ao Estado, imaginada por Engels
(LYOTARD 1993: 70)

Inevitável não aproximar a repulsa que o gênero incita à Cristandade com


esta quebra com a idéia de progresso já citada. Não só a Cristandade, mas as
escatologias de uma forma geral parecem ser alvos da estética Black Metal, já
que, a negação das lógicas constituídas até então são elementos presentes no
gênero. O culto ao caos – e os produtos comportamentais vindos deste – é
assumido como estilo de vida, assim como a própria misantropia. A negação do
satanismo por parte de Vikernes e de diversos integrantes do Movimento
Norueguês (UNTIL THE LIGHT TAKES US, 2008), parece residir justamente
nesta quebra com as escatologias, na medida em que o satanismo – não sem
razão, um dos elementos mais explorados pelo mercado em torno do Black Metal -
, apesar de representar contrariedade, está inserido em uma lógica cristã, como
um dos lados da moeda. Ao passo que esta espécie de fundamentalismo pagão

14 Podermos perceber isso nas entrevistas dadas por Fenriz e Vikernes no documentário Until
The Light Takes Us. Ambos salientam a importância que tal elemento tem para as representações
ligadas à gênese do estilo e de como este elemento se faz presente em suas vidas atualmente.
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defendido por muitos, reafirma o movimento, o caos como forma de expressão,


comportamento.
O desprezo pelo mercado, fator preponderante durante os tempos de gênese
do estilo e que se arrasta até hoje, representado por algumas bandas, não deve
ser deixado para traz como elemento secundário. Não só o desprezo às
instituições religiosas, mas também em relação a tudo aquilo que multiplique,
dissemine valores já enferrujados e impregnados de elementos subjetivos de
dominação e assujeitamento. Pode-se dizer que tudo que leve de alguma maneira
à convivência com um meio social já padronizado e pautado por regras estáticas, é
alvo daquela estética inicial do Black Metal, apesar deste mesmo ter sido
transmutado em mercadoria. No início dos anos 90 não era grande o número de
gravadoras interessadas em lançar o novo estilo musical. Dentro desta
perspectiva, pode-se afirma que não só elemento importante, este desprezo em
relação ao mercado é um dos responsáveis pela própria construção do estilo. O
mercado, através da propaganda, também pode ser considerado monumento
escatológico, na medida em que constrói visões de mundo pautadas pela idéia do
conforto como ápice da vida humana. Alem de desprezar para nascer, o Black
Metal se constrói mais uma vez como não-escatológico ao desprezar o mercado
como representação desta lógica.
Apesar de não muito conhecido, o Black Metal certamente pode ser
considerado como umas das representações artísticas mais complexas,
controversas e interessantes de nossa época. Mais que um estilo musical, busca a
quebra com um padrão estético cada vez mais fechado e influenciado por lógicas
de mercado que parecem levar a arte para o terreno da mediocridade e da falta de
sensibilidade no tocante às formas de expressão humanas. Os acontecimentos que
ocorreram em torno desta representação estética, salvo julgamentos morais,
podem se construir como símbolos da importância que nossas concepções
artísticas podem tomar em nossas vidas, influenciando o quotidiano de forma
drástica, mudando, muitas vezes, aquilo que tínhamos por estático e imutável.
Esta junção entre representação artística e mudança (tanto no âmbito social
quanto individual), faz do Black Metal, além de “uma história”, um fenômeno,
signo do diferente, ímpar e obscuro.

REFERÊNCIAS:

AITES & EWELL, Aites & Audrey. Until The Light Takes Us. Field Pictures and
The Group Entertainment, 2008. 1 dvd.
BATHORY. Metal Archives. Disponível em: <http://www.metal-
archives.com/bands/Bathory/184>. Acesso em 18 de Junho de 2013.
BERNET, Anne. O Crepúsculo dos Deuses. Revista História Viva. Editora
Duetto: São Paulo, 2011.
401

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Imagens:
Figura 1, Capa Bathory. Dispovível em: <http://www.metal-
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Figura 2, Imagem Darkthrone e Mayhem. Disponível em:
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de junho de 2013.
Figura 3, Capa Aske. Disponível em: <http://www.metal-
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Figura 4, Black Metal Fashion. Disponível em:
<http://www.steffmetal.com/fashion-for-metalheads-black-metal-fashion/>. Acesso
em 19 de junho de 2013.

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