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62 | A PRODUÇÃO DO MUNDO .

PROBLEMAS LOGÍSTICOS E SÍTIOS CRÍTICOS PROBLEMAS | 63

TRÊS MIL ANOS DE RITUAIS


ALGORÍTMICOS: A EMERGÊNCIA DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL A PARTIR
DA COMPUTAÇÃO DO ESPAÇO1

Matteo Pasquinelli
1. Recompondo um Deus desmembrado
Num fascinante mito da cosmogénese dos antigos Vedas,
conta-se que o deus Prajapati foi feito em pedaços no ato da
criação do universo. Após o nascimento do mundo, o deus
supremo é encontrado desmembrado, desfeito. No ritual
Agnicayana correspondente, os devotos hindus recompõem
simbolicamente o corpo fragmentado do deus através da
construção de um altar de acordo com um plano geométrico
2
elaborado. O altar de fogo consiste no alinhamento de mi-
lhares de tijolos de forma e tamanhos exatos para criar o perfil
de um falcão. Cada tijolo é numerado e colocado, enquanto
o respetivo mantra é recitado, seguindo-se instruções passo a
passo. Cada camada do altar é construída no topo da anterior,
adaptando-se à mesma área e formato. Resolvendo o enigma
lógico que é a chave do ritual, cada camada deve manter a
mesma forma e área das contíguas, mas usando uma con-
figuração de tijolos diferente. Por fim, o altar do falcão deve
estar virado a leste, como um prelúdio do voo simbólico do

1 Texto original: Matteo Pasquinelli, “3000 Years of Algorithmic Rituals: The Emergence of AI
from the Computation of Space,” e-flux journal #101, June 2019. Tradução de Cláudia Figuei-
redo.
2 O indologista e filósofo da linguagem holandês Frits Staal documentou o ritual Agnicayana
durante uma expedição a Kerala, Índia, em 1975. Ver Frits Staal, AGNI: The Vedic Ritual of the
Fire Altar, vol. 1–2 (Asian Humanities Press, 1983).
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deus reconstruído em direção ao sol nascente — um exemplo e um exemplo primordial da cultura algorítmica.
de reincarnação divina por meios geométricos. Mas como podemos definir um ritual tão antigo quan-
O ritual Agnicayana é descrito nos Shulba Sutras com- to o Agnicayana como algorítmico? Para muitos, a leitura
postos em cerca de 800 a.C. na Índia para o registo de uma de culturas antigas através do paradigma das mais recentes
tradição oral muito mais antiga. Os Shulba Sutras ensinam tecnologias pode parecer um ato de apropriação cultural.
a construção de altares de formas geométricas específicas, Contudo, alegar que as técnicas de conhecimento abstra-
destinados a assegurar os favores dos deuses: por exemplo, tas e as metalinguagens artificiais pertencem unicamente
sugerem que «todos os que desejem destruir inimigos pre- ao Ocidente moderno e industrial não só é historicamente
sentes e futuros devem construir um altar-fogo em forma de impreciso, como se trata de um ato implícito de colonialis-
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um losango». A complexa forma de falcão do Agnicayana mo epistémico face a culturas de outros lugares e tempos. O
evoluiu gradualmente a partir de uma composição esque- matemático francês Jean-Luc Chabert observou que «os al-
mática de apenas sete quadrados. Na tradição védica, diz-se goritmos têm estado presentes desde o início dos tempos,
que os espíritos vitais Rishi criaram sete Purusha (entida- existindo já bem antes de ter sido cunhada uma palavra
des cósmicas ou pessoas) quadrangulares que em conjunto especial para os descrever. Os algoritmos são simplesmente
compunham um só corpo, sendo desta forma que Prajapati um conjunto de instruções passo a passo, destinadas a serem
emergiria uma vez mais. Embora o historiador de arte Wi- executadas de modo bastante mecânico, para que se obtenha
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lhelm Worringer defendesse, em 1907, que a arte primordial algum resultado desejado». Nos dias de hoje, alguns veem
nascera na linha abstrata encontrada na pintura das cavernas, os algoritmos como uma inovação tecnológica recente que
pode assumir-se que o gesto artístico irrompe também atra- executa princípios matemáticos abstratos. Pelo contrário, os
vés da composição de segmentos e de frações, introduzindo algoritmos encontram-se entre as mais antigas práticas ma-
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formas e técnicas geométricas de crescente complexidade. teriais, antecipando muitas ferramentas humanas e todas as
Nos seus estudos sobre a matemática védica, o matemático máquinas modernas:
italiano Paolo Zellini descobriu que o ritual Agnicayana foi
utilizado para transmitir técnicas de aproximação geomé- Os algoritmos não se reduzem à matemática… Os babilónios
trica e de crescimento incremental — por outras palavras, usaram-nos para decidir questões jurídicas, professores de Latim usa-
técnicas algorítmicas — comparáveis aos cálculos modernos ram-nos para afinar a gramática, e foram usados em todas as culturas
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de Leibniz e de Newton. O Agnicayana é um dos mais para prever o futuro, para decidir tratamentos médicos ou para preparar
antigos rituais documentados praticados ainda hoje na Índia comida… Por isso, falamos de receitas, regras técnicas, processos, proce-
dimentos, métodos, etc., usando a mesma palavra para nos referirmos a
situações diferentes. Os chineses, por exemplo, usam a mesma palavra,
3 Kim Plofker, «Mathematics in India», in Victor J. Katz (ed.) The Mathematics of Egypt, Mesopo-
tamia, China, India, and Islam (Princeton [NJ]: Princeton University Press, 2007).
4 Ver Wilhelm Worringer, Abstraction and Empathy: A Contribution to the Psychology of Style (Los
Angeles: Ivan R. Dee, 1997). 6 Ver Frits Staal, «Artificial Languages Across Sciences and Civilizations», Journal of Indian Phi-
5 Para uma resenha das implicações matemáticas do ritual Agnicayana, ver Paolo Zellini, La losophy 34, no. 1–2 (2006).
matematica degli dèi e gli algoritmi degli uomini (Milão: Adelphi, 2016). Traduzido como The 7 Jean-Luc Chabert, «Introduction», in Jean-Luc Chabert (ed.) A History of Algorithms: From the
Mathematics of the Gods and the Algorithms of Men (Londres: Penguin, 2019). Pebble to the Microchip (Londres: Springer, 1999), 1.
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shu (que significa regra, processo ou estratagema) na matemática e em última instância, muito simples, como Diane Nelson nos
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nas artes marciais… No final, o termo algoritmo acabou por significar recorda: Quem conta? Quem calcula? Os algoritmos e as
qualquer processo de cálculo sistemático, ou seja, um processo que pode máquinas não calculam para si próprios; calculam sempre
ser desempenhado automaticamente. Hoje em dia, principalmente de- para alguém, para instituições ou mercados, para indústrias
vido à influência da computação, a ideia de finitude entrou no signifi- ou exércitos.
cado do algoritmo como elemento essencial, distinguindo-o de noções
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mais vagas tais como processo, método ou técnica. 2. O que é um algoritmo?
O termo «algoritmo» deriva da latinização do nome do
Antes da consolidação da matemática e da geometria, as académico persa Khwarizmi. O seu tratado Sobre o Cálculo
civilizações antigas eram já grandes máquinas de segmen- com Numeração Hindu, escrito em Bagdade no século ix, é
tação social que marcavam os corpos humanos e os territó- o responsável pela introdução da numeração hindu no Oci-
rios com abstrações que se mantiveram operativas durante dente, bem como das novas técnicas de cálculo correspon-
milénios, e continuam a manter-se. Abordando também o dentes, nomeadamente os algoritmos. De facto, a palavra
trabalho do historiador Lewis Mumford, Gilles Deleuze e medieval latina «algorismus» referia-se aos procedimentos e
Félix Guattari apresentaram uma lista destas velhas técnicas atalhos usados para resolver as quatro operações matemáticas
de abstração e de segmentação social: «tatuar, excisar, incisar, fundamentais — adição, subtração, multiplicação e divisão –
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entalhar, escarificar, mutilar, cercar e iniciar.» Os números com numerais hindus. Mais tarde, o termo «algoritmo» viria
eram já componentes das «primitivas máquinas abstratas» a significar metaforicamente qualquer procedimento lógico
de segmentação social e de territorialização que fariam a feito passo a passo e tornou-se o centro da lógica computa-
cultura humana emergir: o primeiro censo documentado, cional. No geral, podemos distinguir três etapas na história
por exemplo, ocorreu por volta de 3800 a.C. na Mesopotâ- do algoritmo: na Antiguidade, o algoritmo pode ser reconhe-
mia. Formas lógicas elaboradas a partir de formas sociais, os cido em procedimentos e rituais codificados para atingir um
números emergiram materialmente através do trabalho e de objetivo específico e transmitir regras; na Idade Média, era o
rituais, da disciplina e do poder, de marcação e de repetição. nome de um procedimento auxiliar em operações matemá-
Durante os anos setenta, o campo da etnomatemática co- ticas; nos tempos modernos, o algoritmo qua procedimento
meçou a promover uma rutura face aos círculos platónicos lógico, tornou-se completamente mecanizado e automatiza-
da matemática de elite, revelando o sujeito histórico por trás do por máquinas e, depois, por computadores digitais.
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da computação. A questão política no centro do atual de- Olhando as práticas antigas, tais como o ritual Agnicaya-
bate acerca da computação e da política dos algoritmos é, na e as regras de cálculo hindus, podemos esboçar uma de-
finição básica de algoritmo compatível com a ciência infor-
8 Jean-Luc Chabert «Introduction», 1–2. mática moderna: (1) um algoritmo é um diagrama abstrato
9 Gilles Deleuze and Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia (Nova Iorque
Viking, 1977), 145.
10 Ver Ubiratàn D’Ambrosio, «Ethno Mathematics: Challenging Eurocentrism», in Arthur B.
Powell e Marilyn Frankenstein (eds.), Mathematics Education (Nova Iorque: State University of 11 Diane M. Nelson, Who Counts? The Mathematics of Death and Life After Genocide (Durham:
New York Press, 1997). Duke University Press, 2015).
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que surge da repetição de um processo, da organização do ventou e construiu a Perceptron, a primeira rede neural artifi-
tempo, do espaço, do trabalho e das operações — não é uma cial operativa — a avó de todas as matrizes de aprendizagem
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regra inventada a partir de cima, mas que emerge de baixo; automática, na época classificada como segredo militar. O
(2) um algoritmo é a divisão deste processo em passos fini- primeiro protótipo da Perceptron era um computador ana-
tos, de forma a executá-lo e a controlá-lo eficientemente; (3) lógico composto por um dispositivo de entrada de 20 x 20
um algoritmo é a solução para um problema, uma invenção fotocélulas (designadas como «retina») ligado através de ca-
para superar os constrangimentos da situação: qualquer al- bos a uma camada de neurónios artificiais que terminavam
goritmo é um truque; (4) mais importante, um algoritmo é numa só saída (uma lâmpada acendendo on e off para signi-
um processo económico, pois deve empregar a menor quan- ficar zero ou um). A «retina» da Perceptron gravava formas
tidade de recursos em termos de espaço, tempo e energia, simples, como letras e triângulos, e transmitia sinais elétricos
adaptando-se aos limites da situação. a uma multitude de neurónios que calculariam o resultado
Atualmente, entre as capacidades em expansão da inteli- de acordo com uma lógica de limiar. A Perceptron era uma
gência artificial (IA), existe uma tendência para percecionar espécie de máquina fotográfica que podia ser ensinada a re-
os algoritmos como uma aplicação ou imposição de ideias conhecer uma forma específica, ou seja, a tomar uma decisão
matemáticas abstratas sobre dados concretos. Pelo contrário, com uma margem de erro (o que faz dela uma máquina inte-
a genealogia do algoritmo demonstra que a sua forma emer- ligente). A Perceptron foi o primeiro algoritmo de aprendiza-
giu de práticas materiais, de uma divisão mundana do espaço, gem automática, um «classificador binário» básico que podia
do tempo, do trabalho e das relações sociais. Procedimentos determinar se um padrão se enquadrava numa determinada
rituais, rotinas sociais e organização do espaço e do tempo classe ou não (se a imagem inserida era um triângulo ou não,
são a fonte dos algoritmos e, neste sentido, eles existiram an- um quadrado ou não, etc.). Para conseguir isto, a Perceptron
tes mesmo do surgimento de sistemas culturais complexos ajustou progressivamente os valores dos seus nós de forma
como a mitologia, a religião e, especialmente, a linguagem. a converter a entrada de uma grande quantidade de dados
Em termos de antropogénese, pode dizer-se que foram os numéricos (uma matriz espacial de quatrocentos números)
processos algorítmicos codificados em práticas sociais e ri- numa saída binária simples (zero ou um). A Perceptron daria
tuais que fizeram emergir os números e as tecnologias nu- o resultado um se a imagem de entrada fosse reconhecida
méricas e não o contrário. A computação moderna, olhando dentro de uma classe específica (um triângulo, por exemplo);
apenas para a sua genealogia industrial nas fábricas estudadas caso contrário, daria o resultado zero. De início, foi necessá-
por Charles Babbage e por Karl Marx, evoluiu gradualmente rio um operador humano para treinar a Perceptron a apren-
do concreto para formas crescentemente abstratas. der as respostas corretas (alterando manualmente a saída
para zero ou para um), na expectativa de que a máquina,
3. O surgimento da aprendizagem automática como com base nestas associações supervisionadas, reconhecesse
espaço computacional
Em 1957, no Cornell Aeronautical Laboratory em Buf-
12 Frank Rosenblatt, «The Perceptron: A Perceiving and Recognizing Automaton», Technical Re-
falo, Nova Iorque, o cientista cognitivo Frank Rosenblatt in- port, 85-460-1, Cornell Aeronautical Laboratory, 1957.
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corretamente formas similares no futuro. A Perceptron foi da Guerra Mundial, tais como os autómatos celulares de
desenhada não para memorizar, mas para aprender a poten- John von Neumann (1948) e o Rechnender Raum de Konrad
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cialmente reconhecer qualquer padrão. Zuse (1967). Os autómatos celulares de von Neumann são
A matriz de 20 x 20 fotorreceptores da primeira Percep- aglomerados de pixéis, percecionados como pequenas célu-
tron foi o princípio de uma revolução silenciosa na compu- las numa rede, que mudam de estado e se movem de acordo
tação (que viria a tornar-se no paradigma hegemónico no com as suas células vizinhas, compondo figuras geométricas
início do século xxi com o advento da «aprendizagem pro- semelhantes a formas de vida em desenvolvimento. Os au-
funda», uma técnica de aprendizagem automática). Embora tómatos celulares têm sido usados para estimular a evolução
inspirada nos neurónios biológicos, de um ponto de vista es- e para estudar a complexidade dos sistemas biológicos, mas
tritamente lógico a Perceptron marcou não uma viragem bio- eles permanecem algoritmos em estado finito confinados a
mórfica na computação, mas antes uma viragem topológica; um universo bastante restrito. Konrad Zuse (que construiu
significou o aparecimento do paradigma do «espaço com- o primeiro computador programável, no ano de 1938, em
putacional» ou «espaço autocomputacional». Esta viragem Berlim) tentou estender a lógica dos autómatos celulares à
introduziu uma segunda dimensão espacial no paradigma Física e a todo o universo. A sua ideia de «rechnender Raum»,
da computação que tinha, até então, apenas uma dimensão ou espaço de cálculo, é um universo que é composto por uni-
linear (ver a máquina de Turing, que lê e escreve zero e um dades discretas que se comportam de acordo com o com-
ao longo de uma fita de memória linear). Esta viragem to- portamento das unidades vizinhas. O último ensaio de Alan
pológica, que consiste no centro do que, hoje em dia, as pes- Turing, A Base Química da Morfogénese (publicado em 1952,
soas percecionam como IA, pode ser mais modestamente dois anos antes da sua morte), também pertence à tradição
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descrita como a passagem de um paradigma de informação das estruturas autocomputacionais . Turing considerava as
passiva para um de informação ativa. Ao invés de possuir moléculas presentes nos sistemas biológicos como atores au-
uma matriz visual processada por um algoritmo descenden- tocomputacionais capazes de explicar estruturas ascenden-
te (como qualquer outra imagem editada atualmente por tes complexas, tais como os padrões tentaculares na hidra, as
um programa de software gráfico), na Perceptron os pixéis da formas espiraladas nas plantas, a gastrulação nos embriões,
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matriz visual são processados de uma forma ascendente e de o mosqueado na pele dos animais e a filotaxia nas flores.
acordo com a sua disposição espacial. As relações espaciais
da informação visual moldam a operação do algoritmo que
13 John von Neumann e Arthur W. Burks, Theory of Self Reproducing Automata (Champaign: Uni-
as processa. versity of Illinois Press, 1966); Konrad Zuse, «Rechnender Raum», Elektronische Datenverarbe-
Devido à sua lógica espacial, o ramo da informática ori- itung, vol. 8 (1967). Em livro: Rechnender Raum (Friedrich Vieweg & Sohn, 1969). Traduzido
como Calculating Space (MIT Technical Translation, 1970).
ginalmente dedicado às redes neurais foi designado «geo- 14 Alan Turing, «The Chemical Basis of Morphogenesis», Philosophical Transactions of the Royal
Society of London, 237, no. 641 (1952).
metria computacional». O paradigma do espaço compu- 15 Deve ser notado que no livro de Marvin Minsky e Seymor Papert, publicado em 1969, Percep-
tacional, ou do espaço autocomputacional, partilha raízes trons (que atacou apenas superficialmente a ideia de redes neurais, mas que, ainda assim, provo-
cou o designado primeiro «inverno da IA», parando todo o financiamento para a investigação
comuns com os estudos dos princípios de auto-organização em redes neurais) os autores diziam apresentar uma «introdução à geometria computacional».
Marvin Minsky e Seymour Papert, Perceptrons: An Introduction to Computational Geometry
que se encontravam no centro da cibernética do pós-Segun- (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1969).
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Os autómatos celulares de von Neumann e o espaço percetiva, um aspeto do trabalho ainda por situar algures
computacional de Zuse são intuitivamente fáceis de per- entre o manual e o cognitivo). Que tipo de trabalho desem-
ceber como modelos espaciais, ao passo que a rede neural penham os condutores? Que tarefa humana irá a IA registar
de Rosenblatt apresenta uma topologia mais complexa que com os seus sensores, imitar com os seus modelos estatísti-
requer mais atenção. De facto, as redes neurais utilizam uma cos e substituir com a automatização? A melhor forma de
estrutura de combinações extremamente complexas, o que responder a esta questão é olhando para o que a tecnologia
provavelmente faz delas os algoritmos mais eficientes para a automatizou com sucesso, assim como para as atividades em
aprendizagem automática. Diz-se que as redes neurais «re- que não logrou fazê-lo.
solvem qualquer problema», o que significa que elas podem O projeto industrial para automatizar a condução tornou
aproximar-se da função de qualquer padrão de acordo com claro (muito mais do que milhares de livros sobre econo-
o Teorema da Aproximação Universal (se dotadas de cama- mia política) que o trabalho da condução é uma atividade
das de neurónios e de recursos computacionais suficientes). consciente que segue regras codificadas e convenções so-
Todos os sistemas de aprendizagem automática, incluindo ciais espontâneas. Porém, se a competência da condução
as máquinas de vetores de suporte, as cadeias de Markov, pode ser traduzida num algoritmo, será porque a condu-
as redes de Hopfield, as máquinas de Boltzmann e as redes ção possui uma estrutura lógica e inferencial. A condução
neurais convolucionais — para enumerar apenas alguns — é uma atividade lógica, tal como o trabalho é uma atividade
começaram como modelos de geometria computacional. lógica em termos gerais. Este postulado ajuda a resolver a
Neste sentido, elas fazem parte de uma antiga tradição de banal disputa em torno da separação entre trabalho ma-
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ars combinatória. nual e trabalho intelectual. É um paradoxo político que
o desenvolvimento empresarial dos algoritmos da IA para
4. A automatização do trabalho visual a automatização tenha tornado possível o reconhecimento
Mesmo no final do século xx, ninguém pensaria jamais de uma componente cognitiva do trabalho, negligenciada
em designar um camionista como trabalhador cognitivo, um pela teoria crítica durante muito tempo. Qual a relação en-
intelectual. No início do século xxi, a utilização da apren- tre trabalho e lógica? Esta torna-se uma questão filosófica
dizagem automática no desenvolvimento de veículos autó- crucial para a era da IA.
nomos levou a um novo entendimento das competências Um veículo autónomo automatiza todas as microdeci-
manuais, como a condução, mostrando como a mais valiosa sões que um condutor tem de tomar numa estrada movi-
componente do trabalho, em termos gerais, nunca foi mera-
mente manual, mas também social e cognitiva (bem como 17 Em particular, uma atividade lógica ou inferencial não tem de ser necessariamente conscien-
te ou cognitiva para ser eficaz (este é um ponto crucial num projeto de computação como a
mecanização do «trabalho mental»). Ver o trabalho de Simon Schaffer e de Lorraine Daston
16 Ver o trabalho do monge catalão do século xii Ramon Llull, assim como as suas rodas girató- sobre esta questão. Mais recentemente, Katherine Hayles sublinhou o domínio de ampla cog-
rias. Nas ars combinatória, um elemento de computação segue uma instrução lógica de acordo nição não consciente na qual estamos todos implicados. Simon Schaffer, «Babbage’s Intelli-
com a sua relação com outros elementos e não de acordo com instruções externas ao sistema. gence: Calculating Engines and the Factory System», Critical inquiry 21, no. 1 (1994); Lorraine
Ver também Amador Vega, Peter Weibel e Siegfried Zielinski (eds.), DIA-LOGOS: Ramon Daston, «Calculation and the Division of Labor, 1750–1950», Bulletin of the German Historical
Llull’s Method of Thought and Artistic Practice (Minneapolis: University of Minnesota Press, Institute, no. 62 (Primavera de 2018); Katherine Hayles, Unthought: The Power of the Cognitive
2018). Nonconscious (Chicago: University of Chicago Press, 2017).
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mentada. As suas redes neurais artificiais aprendem, ou seja, dor coletivo, um cérebro social que navega a cidade e o mun-
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imitam e copiam as correlações humanas entre a perceção do. Olhando apenas para o projeto empresarial de veículos
visual do espaço viário e as ações mecânicas de controlo do autónomos, é evidente que a IA se constrói sobre informação
veículo (conduzir, acelerar, parar) enquanto decisões éticas coletiva que codifica uma produção coletiva de espaço, tem-
tomadas em de milésimos de segundo quando os perigos po, trabalho e relações sociais. A IA imita, substitui e emerge
surgem (para segurança das pessoas dentro e fora do veícu- de uma divisão organizada do espaço social (primeiramente de
lo). Torna-se claro que o trabalho de condução requer altas acordo com um algoritmo material e não com a aplicação de
competências cognitivas que não podem ser deixadas ao im- fórmulas ou análises matemáticas abstratas).
proviso ou ao instinto, mas também que a rápida tomada de
decisão e a resolução de um problema são possíveis graças a 5. A memória e a inteligência do espaço
hábitos e a um treino que não são completamente conscien- Paul Virilio, o filósofo francês da velocidade, ou da dro-
tes. Conduzir continua a ser também uma atividade essen- mologia, foi também um teórico do espaço e da topologia,
cialmente social que segue, ao mesmo tempo, regras codifi- pois ele sabia que a tecnologia acelera a perceção do espa-
cadas (com condicionamentos legais) e regras espontâneas, ço, tanto quanto transforma a do tempo. Curiosamente, o
incluindo um código cultural tácito que qualquer condutor título do livro de Virilio, A Máquina de Visão, foi inspirado
deve subscrever. Conduzir em Mumbai — foi dito muitas pela Perceptron de Rosenblatt. Com a erudição clássica de
vezes — não é o mesmo que conduzir em Oslo. um pensador do século xx, Virilio traçou uma linha nítida
Obviamente, conduzir implica um intenso trabalho de per- entre as técnicas antigas de memorização baseadas na espa-
ceção. De facto, muito do trabalho parece principalmente per- cialização, como o Método de Loci, e a moderna memória
cetivo por natureza, através de atos de decisão e de cognição informática enquanto matriz espacial:
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contínuos que ocorrem num piscar de olhos. A cognição
não pode ser completamente dissociada de uma lógica es- Cícero e os antigos teóricos da memória acreditavam que era pos-
pacial, e muitas das vezes segue uma lógica espacial nas suas sível consolidar a memória natural com o treino certo. Eles inventaram
construções mais abstratas. Ambas as observações — que a um sistema topográfico, o Método de Loci, uma mnemónica imagética
perceção é lógica e que a cognição é espacial — encontram- que consistia na seleção de uma sequência de lugares, localizações, que
-se, sem alarde, empiricamente provadas pelos algoritmos da podiam ser facilmente ordenados no tempo e no espaço. Por exemplo,
IA usados na condução autónoma, que constroem modelos pode-se imaginar deambular pela casa, escolhendo como loci diversas
para inferir estatisticamente o espaço visual (codificados mesas, uma cadeira vista de uma entrada, um parapeito, uma marca
como vídeo digital de um cenário de estrada 3D). Além dis- numa parede. De seguida, o material a ser lembrado é codificado em
so, o condutor que a IA introduz em carros autónomos e em imagens discretas e cada uma dessas imagens é inserida na ordem
drones não é um condutor individual, mas, sim, um trabalha- apropriada dentro dos vários loci. Para memorizar um discurso, trans-

18 De acordo com ambas teorias, a de Gestalt e a do estudioso da semiótica Charles Sanders 19 Os condutores de autocarros escolares nunca granjearão o mesmo fascínio académico que os
Peirce, a visão requer sempre cognição; mesmo um pequeno ato de perceção é inferencial — i.e., pilotos de aviões e drones com a sua «cognição em ambiente selvagem». Não obstante, deve
tem a forma de uma hipótese. reconhecer-se que o seu trabalho dá perspetivas cruciais na ontologia da IA.
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formam-se os pontos principais em imagens concretas e «situa-se» quinta geração de «sistemas periciais», por outras palavras,
mentalmente cada um dos pontos na ordem de cada locus sucessivo. No uma inteligência artificial que poderia ser mais enriquecida
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momento de proferir o discurso, tudo o que é necessário fazer é recor- apenas através da aquisição de órgãos de perceção.
dar as partes da casa por ordem.
6. Conclusão
A transformação do espaço, das coordenadas topológi- Se considerarmos a antiga geometria do ritual Agnicaya-
cas e das proporções geométricas numa técnica de memória na, a matriz computacional da primeira rede neural Percep-
deve ser considerada equivalente à mais recente transforma- tron e o complexo sistema de navegação dos veículos autó-
ção do espaço coletivo numa fonte de inteligência mecânica. nomos, estas diferentes lógicas espaciais talvez possam, em
No final do seu livro, Virilio reflete sobre o estatuto da ima- conjunto, clarificar o algoritmo como uma forma emergente,
gem na era das «máquinas da visão», tais como a Perceptron, mais do que tecnológica a priori. O ritual Agnicayana é um
ressoando um aviso sobre a iminente era da IA enquanto a exemplo de algoritmo emergente, na medida em que co-
«industrialização da visão»: «Agora os objetos percecionam- difica a organização de um espaço social e ritual. A função
-me», escreveu o pintor Paul Klee nos seus Notebooks. Esta simbólica do ritual é a reconstrução do deus através de meios
surpreendente afirmação tornou-se recentemente um facto terrenos; esta prática de reconstrução simboliza também a
objetivo — a verdade. Afinal, não se falará sobre produzir expressão dos muitos no interior do um (ou o cálculo do um
uma «máquina da visão» num futuro próximo — uma má- através dos muitos). A função social do ritual é a de ensinar
quina capaz não só de reconhecer os contornos das formas, competências básicas de geometria e de construir edifícios
21
mas também de interpretar por completo o campo visual? sólidos . O ritual Agnicayana é uma forma de pensamento
Não se falará também sobre a nova tecnologia da visiónica: a algorítmico que segue a lógica de uma geometria computa-
possibilidade de alcançar a visão cega por meio da qual uma cional primordial e direta.
câmara de vídeo seria controlada por computador? Tal tec- A Perceptron é também um algoritmo emergente que
nologia seria usada na produção industrial e no controlo de codifica de acordo com uma divisão do espaço, especifica-
mercadorias; e talvez também na robótica militar. mente uma matriz espacial de informação visual. A matriz
Agora que se prepara o caminho para a automatização dos fotorreceptores da Perceptron define um campo fechado
da perceção, para a inovação da visão artificial, delegando e processa um algoritmo que calcula informações de acor-
a análise da realidade objetiva numa máquina, talvez seja do com a sua relação espacial. Também aqui o algoritmo
apropriado lançar outro olhar sobre a natureza da imagem aparece como um processo emergente — a codificação e
virtual… Hoje em dia é impossível falar sobre o desenvolvi- cristalização de um procedimento, de um padrão, após a sua
mento do audiovisual… sem apontar para a nova industria-
lização da visão, para o crescimento de um verdadeiro mer-
cado na perceção sintética e para todas as questões éticas que 20 Virilio, The Vision Machine ..., 76.
21 Como, entre outros autores, Stall e Zellini notaram, estas competências também incluem o
este implica… Não devemos esquecer que toda a ideia por designado teorema de Pitágoras, útil para o desenho e construção de edifícios, o que demonstra
que era já conhecido na antiga Índia (provavelmente transmitido através das civilizações meso-
trás da Perceptron seria a de encorajar a emergência de uma potâmias).
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repetição. Todos os algoritmos da aprendizagem automática são alargada do trabalho social. Apesar da forma como é fre-
são processos emergentes nos quais a repetição de padrões quentemente enquadrada e criticada, a inteligência artificial
similares «ensinam» a máquina e fazem com que o padrão não é, na verdade, artificial ou estranha. No habitual processo
22
surja como uma distribuição estatística. mistificador da ideologia, parece ser um deus ex machina que
Os veículos autónomos são um exemplo de algoritmos desce ao mundo como no teatro antigo. Mas isto oculta o
complexos emergentes, uma vez que eles se desenvolvem facto de que ela emerge da inteligência deste mundo.
a partir de uma sofisticada construção do espaço, nomea- O que as pessoas designam como IA é, na verdade, um
damente o ambiente viário enquanto instituição social de longo processo histórico de cristalização do comportamen-
códigos de trânsito e de regras espontâneas. Os algoritmos to coletivo, de informações pessoais e de trabalho individual
dos veículos autónomos, depois de registarem estas regras em algoritmos privatizados, que são utilizados para a auto-
espontâneas e os códigos de trânsito de um determinado matização de tarefas complexas: da condução à tradução, do
local, procuram prever acontecimentos inesperados que reconhecimento de objetos à composição musical. Tal como
possam ocorrer numa estrada movimentada. No caso dos as máquinas da era industrial se desenvolveram a partir da
veículos autónomos, a utopia empresarial da automatização experimentação, do saber fazer e do labor dos trabalhadores
faz evaporar o condutor humano, esperando que o espaço especializados, engenheiros e artesãos, os modelos estatísti-
visual do cenário da estrada dite por si só como deve ser cos da IA desenvolveram-se a partir da informação produ-
navegado o mapa. zida pela inteligência coletiva. O que é o mesmo que dizer
O ritual Agnicayana, a Perceptron, e os sistemas de IA dos que a IA surge como uma enorme máquina de imitação da
veículos autónomos são todos, de maneiras diferentes, for- inteligência coletiva. Qual a relação entre inteligência arti-
mas de autocomputação do espaço e algoritmos emergentes ficial e inteligência humana? É a divisão social do trabalho.
(e todos eles, provavelmente, formas de invisibilização do
trabalho).
A ideia de espaço computacional, ou de espaço auto-
computado, evidencia, em particular, que os algoritmos da
aprendizagem automática e a IA são sistemas emergentes,
baseados numa divisão mundana e material do espaço, do
tempo, do trabalho e das relações sociais. A aprendizagem
automática emerge de redes que são a continuação de antigas
abstrações e rituais relacionados com a marcação de territó-
rios e corpos, contagem de pessoas e bens; neste sentido, a
aprendizagem automática surge essencialmente de uma divi-

22 De facto, mais do que ser a máquina a aprender, são a informação e as suas relações espaciais que
ensinam.

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