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Teste de avaliação

O menino que escrevia versos


Mia Couto1
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima
das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
5 — Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de
nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava
chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido
10 em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa
sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora
15 senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de
combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que
começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou,
20 sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais,
perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as
25 meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice
intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto
morto?

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Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Foi jornalista e atualmente é professor e biólogo.
É sócio correspondente, eleito em 1998, da Academia Brasileira de Letras, sendo sexto ocupante da cadeira
5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa. Como biólogo, dirige a Avaliações de Impacto Ambiental,
IMPACTO Lda., empresa que faz estudos de impacto ambiental, em Moçambique. Mia Couto tem realizado
pesquisas em diversas áreas, concentrando-se na gestão de zonas costeiras.
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse
examinado.
30 — O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível
do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr
cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para
35 poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava
o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
40 — E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe
45 dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho
aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi -se
anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no
antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a
50 começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo
caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico
aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o
55 paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não
teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse,
60 apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino
carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria
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sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num
recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho
do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
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Grupo I – Compreensão do texto
1. Dona Serafina, a mãe do menino, foi incisiva ao apresentar ao médico o mal de que o filha
padecia – ele escreve versos!...
1.1. Que sentimento(s) poderá ter revelado na entoação com que proferiu esta frase?
1.2.O médico mostrou-se sensível a qualquer sentimento que tenha captado nas palavras da
senhora? Justifica a tua resposta.
1.3. Na tua opinião, o que torna esta consulta urgente e, talvez, decisiva para o futuro do
“doente”?

2. No conflito que se gerou no seio familiar da Dona Serafina, é ela que assume o papel mais
delicado e mais difícil, explica porquê.

3. “O pai logo sentenciara…” - l. 19


“O pai, conformado, exigiu…” – l.
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3.1. Que função desempenha o pai no núcleo familiar? Justifica a tua resposta.

4. “Dói-me a vida, doutor.” – l. 30


Perante esta afirmação e atendendo aos remédios que encontra para avaliar a dor, explica
qual o problema do menino que escrevia versos.

5. O longo do conto o médico vai mudando a sua atitude em relação ao miúdo.


5.1. Quando manifesta, pela primeira vez, interesse pelo menino que escrevia versos?
5.2. Revela, logo, abertamente, esse interesse pelos versos/sonhos do rapaz? Justifica.
5.3. Considerando a leitura que fizeste do conto, qual a interpretação que fazes do
desenlace do conto.

6. O narrador situa-nos num tempo que começa com a consulta. No entanto, o desenrolar da
narrativa remete-nos para um tempo anterior. Identifica-o e descreve-o.

7. Ao longo do conto, direta ou indiretamente, as personagens vão-se revelando, dando-nos


uma imagem de si próprias.
7.1. Caracteriza cada um dos elementos da família, constituída pela Dona Serafina, o
marido e o filho “que escrevia versos”.
Grupo II - Funcionamento da Língua

1. Contei-lhe tudo tintim por tintim.


Gostei imenso de ler este Tintim.
“O médico destrocou-se em tintins.” – l. 6
1.1. Explica o sentido da palavra “tintim” em cada uma das frases.

2. “O médico, sisudo, taciturneou.” – l. 56


2.1. Explica como se formou o verbo “taciturnear” e qual o sentido que pretendo transmitir
com a sua utilização/criação.

3. “Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o
pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê?
Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o
braço da mãe.”
3.1. Reescreve excerto acima apresentado passando-o para o discurso direto.

4. Identifica os processos irregulares de formação das palavras/expressões que se seguem:


a) UEFA f) GALP
b) PNL g) print
c) pen h) MP3
d) DVD i) TVI
e) Metro j) SIC

5. Coloca à frente de cada palavra, o número correspondente do processo de formação:


1) Prefixação 2) Sufixação 3) Prefixação e 4) Parassíntese
sufixação

a) Refazer e) Apressadamente i) Envelhecer


b) Descontinuadamente f) Depressinha j) Velhinho
c) Ensonado g) Avizinhar k) Entardecer
d) Recontar h) Recompor l) Devagarinho
6. Lê o excerto a seguir transcrito e reescreve-o acrescentando a pontuação que consideres
mais adequada:
Há quinze anos que não tenho quinze anos e não tenho pena nenhuma é uma idade para
esquecer mas é inesquecível trataram-me muito mal qualquer pessoa é muito mal tratada
se a apanharem com quinze anos é a idade em que parece haver qualquer coisa contra nós
o que é concretamente é o mundo inteiro ou melhor é o mundo inteiro com a insidiosa*
colaboração dos pais.
Miguel Esteves Cardoso, Os meus problemas

*insidiosa – traiçoeira

7. Tendo em conta o Acordo Ortográfico, reescreve a carta que a seguir se apresente, procedendo às
alterações necessárias.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2010

Querida Tia,
Escrevo‐lhe este postal para lhe dar os parabéns. Espero que esteja tudo bem por aí.
Não lhe dizia nada desde o Natal… uma vergonha! A mini‐saia que me ofereceu tem feito
um sucesso enorme. Sempre que a vêem, as minhas amigas ficam verdes de inveja!
Já comecei as actividades extra‐curriculares aqui na escola. Só descanso ao fim‐desemana!
Agora tenho como objectivo concentrar‐me nos trabalhos que tenho de fazer. São
imensos, mas há‐de correr tudo bem!
Muitos beijinhos,
Sofia
Grupo III – Produção Escrita

Poema

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro


em todas as ruas te perco

Mário Cesariny, in Pena Capital, 1957

Após uma cuidada e atenta leitura do poema de Mário Cesariny de Vasconcelos, intitulado
“Poema”, redige um texto, tendo por base a ideia/mensagem introduzida pelo mesmo.
O teu texto deve ser:
 Criativo;
 Cuidado;
 Ter em atenção a articulação das ideias, construção frásica e pontuação.
Após a sua redação, deves proceder a uma leitura/revisão final.

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