Você está na página 1de 12
Dot: 195212/0TharPofe.1512.0011 MUSICA E EDUCAGAO: ANTIGAS QUESTOES, NOVOS DESAFIOS MUSIC AND EDUCATION: OLD ISSUES, NEW CHALLENGES Luciana Requiéo’ Resumo: O texto busca debater a questdo da formacao do professor de miisica frente 20s desafios Impostos pela Lei 11.769/08, que dispde sobre a obrigatoriedade do ensino de misica nas escolas de ensino basico como componente curticular obrigatério da disciplina de artes. O veto ao artigo 2° da lei, que previa a necessidade de formacao espectfica para o professor de musica, aitra o antigo debate sobre a qualificagao necessérla ao profissional que serd o respons4vel pelo eusino de musica nas escolas. Por intermédio de estuco de caso em escolas da Costa Verde Sul Fluminense, observamos que a educac3o musical é percebida na maiotia das vezes como um componente auxiliar para outras disciplinas ou como uum elemento lidico desprovido de conteidos espectficas, 0 que toma confusa a concepgo de quem setia esse professor. Nao obstante a falta de recursos materiais e manos, tal realidade aponta para a necessidade de acdes educativas que qualifiquem todo o processo historico em que a educaggo musical passa a ser reconhecida como area de conhecimento especifico. Assim, buscamos destacar que a Lei 11,769/08 necessita de agdes que a tornem possivel, e que para isso é necessério uma investigacao mais, profunda sobre a realidade das escolas brasileitas. Palavras-chave: tisica e educacio. Lei 11.769/08 Formacio de professores. Abstract: The article discusses the education of music teachers, and the new challenges brought by the Law 11.769/08, and its imposition of musical education in elementary schools as part ofthe mandatory curriculum of the arts subject. The veto to the second article ofthis law, which foresaw the need of specific training to music teachers, revives the debate on the required training to the professional in charge of the musical teaching in these schools. Through case studies in schools of the Costa Verde Sul Fluminense, it was noticed that musical instruction was complementary to other subjects or a playful element devoid of any specific content knowledge, and that adds confusion to the conception about who should teach this subject. Despite the lack of human and specific material resources, such reality indicates the need for educative measures that qualify all the historical process in which musical education can be recognized as an area of specific knowledge. Thus, the article tries to emphasize that the Law 11.769/08 needs actions that tum it into a reality; for this to happen broader investigations of Brazilian school realities are necessary. Keywords: Music and education. Law 11.769/08. Teacher education, * Doutora em Educacéo pela UFF. Professor do Instituto de Educagao Angra dos Reis, da UFF. E-mail: * Doctar in Education from UFF. Professor atthe Angra dos Rels Insiute of Education, UFF. E-mail: . ards profiesr, Ponta Grose, 15(2}: 271-362, 2012, Disponivel em 372 Miia #etucngéo:antigas quests, nave desapoe Introdugio dia 18 deagosto de 2008, quando foi sancionada a Lei n® 11.769 que dispoe sobre a obrigatoriedade do ensino de miisica nas escolas de ensino basico como componen- te curticular obrigatério da disciplina artes (BRASIL, 2008), constitu, sem diivida, um marco histérico, particularmente para a area da Educagio Musical no Brasil.Esse fato re- presenta mais uma etapa de um processo,1io qual antigas questées vém sendo debatidas frente a novos desafios que cada um desses momentos hist6ricos proporciona. Entre essas questdes, por exemplo, esto 0 reco- nhecimento da miisica como area de conhe- cimento especifico e a necessidade de forma- ao especifica para o professor de misica. ‘A fundag3o do Conservatério de Miisica do Rio de Janeiro, em 18476 considerada um dos marcos desse processo histérico, na direc3o da dissociag3o Institucionalda educagao musical dos servigos religiosos e, posteriormente,em sua constituicao como érea de conhecimento. De acordo com Oliveira Durante o5 12s primetros séculos, apés @ descoberta pelos portugueses em 1500, 2 riisica estava,inicialmente,ligada a reli- sido. No perfodo compreendido entre sua chegada e expulsdo, em 1759, os jesuitas demonstraram estar extemamente pre- ocupados com a educagio, deixando em seu rastro 11 colégios e seis semindrios. (OLIVEIRA, 2007. p.5). A literatura sobre a educagio musical, de forma geral, aponta como outro importante marco os anos 1930, quando a miisica, como parte do projeto politico educacional do entio presidente Getilio Vargas, toma-se obrigaté~ tla em todos 05 niveis escolares (SOUZA, 2007, p.13). Como bem lembra Fuks, “o es- tudo da histéria [..] aponta pata um longo ‘other de professor, Ponta Grose, 152): 71-382, 2012, 372. Dyepensval em percurso de criacio das condicdes para o que iria ser instituido nos anos 30” (FUKS, 2007, p.18). Assim, fica claro que nenhum desses marcos estabeleceu-se exclusivamente por decreto e, tal qual 0 movimento que levou a Lei 11.769/08, slo fruta de longos processos. Interessa-nos aqui discutir em espe- cial uma questao que permeia todoopercurso histérico sobre o ensino de miisica nas esco- las, que 6 a formacao do professor de misi- ca. A Let 11.769/08, que dispde sobre a obri- gatoriedade do ensino de miisica nas escolas como componente curricular da disciplina de artes, levanta novamente essa discussao e de forma bastante contraditéria. Isso porque a lei teve veto ao artigo 2° que previa a neces- sidade de formagao especifica para o profes- sor de misica. Seria esse um indicio da volta tao criticada polivaléncia do professor de atte, que continua tendo que dar conta, agora de forma “obrigatéria”, de contetidos da drea da miisica mesmo sem formagio especifica? A histéria da educagio musical no Brasil nos mostra que a miisica nas escolas sempre foi wm campo de disputa entre aque- les que entendem a musica como area de co- nhecimento especifico e aqueles que a enten- dem como lazer ow recreagao. Quais seriam as consequéncias do veto ao artigo 2° através do qual nao se tem a obrigatoriedade de f macio especifica para o professor de mt ca? Como garantir, de fato aobrigatoriedade dda educagio musical nas escolas de ensino basico brasileira? Como afirmado, e de acordo com Saviani, “a organizagio escolar no é obra da legislagio. Ambas interagem no seio da sociedade que produz uma e on- tra” (SAVIANI, 1980, p.154). A formagao do professor de mtisica: antigas questées Conforme nos demonstra Fuks (2007), 0 projeto de educacao musical lide- rado por Villa-Lobos nos anos 1930, como parte do projeto politico educactonal do pre- sidente Vargas, foi inspirado no modemismo da década anterior. A autora nos conta que iisicos como o maestro Francisco Braga, © compositor Sylvio Salema Garcao Ribeiro € D. Eulina de Nazareth, filha do compositor Ernesto Nazareth, formaram jé na década de 1920 uma comissio para elaborar um pro- grama de miisica para as escolas do Rio de Janeito, entio Distrito Federal, o que indica a existéncia, nos anos 20, de uma politi- «a de edcagio musical e de um interesse governamental a respelto da sistematiza- (go dessa forma de ensino. (FUKS, 2007, p.20). Porém, 0 crédito ao projeto de Villa-Lobos como um marco para 0 ensino de miisica nas escolas brasileiras deve-se a alguns fatores, entre eles estao a abrangén- cia da proposta, que nao atendia somente ao Distrito Federal, mas a todo 0 territério nacional, ¢ & preocupacao com a formacio dos professores.Através da Superintendén- cia da Educagéo Musical e Artistica (SEMA) Villa-Lobos, reboque do Decreto 19.890 de 18 de abril de 1931 que instinuitt 0 ensino obrigatério de Canto Orfednico no Munici- pio do Rio de Janeiro,foi criado oCurso de Orientagao e Aperfeigoamento do Ensino de Miisica e Canto Orfeonico para a formacao dos professores, ‘Nao obstante toda a complexidade do momento historico quando esse projeto de educacao musical nas escolas se desenvolveu e todas as suas implicacdes', a preocupacio no desenvolvimento de um projeto ampara- Sobre isso, ver Souza (2007), Lusona Resuido do por leique pretendia garantir a educacio musical nas escolas em ambito nacional, a preocupaco com a elaboragio de um projeto politico pedagégico para a educagao musical a preocupacao com a formacao docente foi um ganho, naquele momento, para a histéria da educacio musical brasileira. Por outto lado, verificamos, no decor- rer da histéria, que embora a preocupagio com a formacio docente sempre se faca pre- sente, € uma questo que permanentemente vem enfrentando desafios. Se observarmos documentos ¢ Leis que amparam o ensino de miisica nas escolas, veremos que a discussao sobre a formacao do professor de artes sem- pre foi tema de debate Os Parametros Curiculares Na- cional para as Artes (PCN-Artes), por exemplo,como critica ao projeto de Villa-Lobos,observa que esse projeto “es- barrou em dificuldades praticas na orienta- ‘Gao de professores ¢ acabou transformando a aula de mtisica numa teoria musical base- ada nos aspectos matematicos e vistiais do cédigo musical” (PCN, 1997, p.22). Sobre a introdugao da educagao artistica no curricu- lo escolar, enaltece as artes como componente formador, e critica a polivaléncia do professor. © resultado dessa proposisao foi contra- ditério e paradoxal. Muitos professores, 1do estavam habilitados e, menos ainda, preparados para o dominio de varias lin- ‘guagens, que deveriam ser incluidas no conjunto das atividades artsticas.(p.24). E explica: De maneira geral, entre 05 anos 70 60, ‘0 antigos professores de Artes Plésticas, Desenho, Miisica, Artes Industriais, Artes ‘Cenlcas e os recém-formadas em Educa- 20 Artistica viram-seresponsabilizados por educat os alunos (em escolas de ensino ‘médio) em todas as linguagens artisticas, configurando-se a formacio do professor ards profiesr, Ponta Grose, 15(2}: 271-362, 2012, DDisponivl em chp iinesepgteolanteposeee> 373 374 Miia #etucngéo:antigas quests, nave desapoe polivalente em Arte. Com isso, inimeros professores detxaram as stas areas espe- cificas de formagio e estudos, tentando assimilar superficialmente as demais, na slusdo de que as dominariam em seu con- junto. A tendéncia passou a sera diminui- io qualitativa dos saberes referentes as especificidades de cada uma das formas de arte e, no lugar destas, desenvolveu- -se acrenga de que bastavam propostas de atividades expressivas espontaneas para que os alunos conhecessem muito bem miisica, artes plasticas, cénicas, danga,et. (PCN, 1997, p24). Mais adiante, aponta 0 movimento Arte-Educagao, dos anos 1980, como um importante movimento que permitiu que se ampliassem as discusses sobre a valorizacio e 0 aprimoramento do professor, que reconhecia o seu isolamento dentro da escola e a insuficincia de conhe- cimentos e competéncia na érea. (p.25), Apesar da. discussio empreendida pelos PCN, ele mesmo foi alvo de criticas. Penna, por exemplo,observa nosPCNs uma “falta de clareza acerca da formagio do pro- fessor de arte, cuja qualificacio nao ¢ indica- da com preciso” (2003, p.24). Dessa forma, conforme Penna, osPCNs ao nao apontar com clateza qual seria a formacao do profes- sor deixa em aberto se essa formacio seria geral, abordando todas as lingwagens artisti- cas, ou especifica. Segundo Penna ‘Uma questaa crucial, portanta, 0 pro- fessor que iré colocar em pratica os PCN-Arte: qual deverd ser a sua qualifi cacao? A caracteristica geval da proposta, que se diteciona para o resgate dos conhe- cimentos especificos da arte, a complexi- dade dos contetidos nas diversas modali- dades artisticas, tudo isso parece indicat @ necessidacle de professores especializaclos em cada linguagem. Mas, na verdade, nao ‘other de professor, Ponta Grose, 152): 71-382, 2012, Dispenivel em
1d definigdes claras sobre a formacao do professor de Arte, nem nos PCN, nem na atual Lei de Ditetrizes e Bases (LDB). Pot cconseguinte, como multas vezes a contra tagio de professores esté subbmetica a I6- ica de custos e beneficios, acreditamos ‘que dificlmente as escolas contardo - a ccurto ou médio prazo ~ com professores especializados em cada uma das quatro modalidades artisticas dos PCN-Arce. (PENNA, 2001, p51). No contexto atual, com a Lei 11,769/08, a mtisica ganha status de com- ponente curricular obrigatério, porém ainda nao é uma disciplina, Com 0 veto ao artigo 2°, que previa a necessidade de formacio es- pecifica do professor de miisica, nos parece que permanecemos com as mesmas indaga- Ges © ctiticas como as expostas antetior- mente e com a necessidade de debater sobre aa questao da formagao de professores frente a Lei 11.769/08. Nessa ditecio, percebernos a existén- cia de preocupagdes e consideragies sobre as implicagies da Lei 11.769/08 através de produgdes bibliograficas eféruns de deba- te sobre o tema, como os promovidos pela Associagio Brasileira de Educacio Musical (ABEM)? Apenas como indicacao,podemos cl- tar os livros organizadospor Santos (2011), que discute a Lei 11.769 frente as miltiplas possibilidades da presenca da miisica nas escolas; Penna (2010), que através de uma coleténea de artigos também discute possi- bilidades praticas para a implementagao da Lei 11.769/08; eo livro organizado por San- tos e Batista (2011) com propostas praticas a0 professor de miisica e como material de apoio implementacao da Lei. ( imo Congresso Anual da ABEM, realizado em 2011 em Vitéria‘ES, por exemplo, eve como tema “A Ecducagao Musical no Brasil do Século XXI" Ainda com o objetivo de contribuir com o debate sobre a implementagio da Lei 11.769/08, citamos 0 artigo de Sobreira (2008) “Reflexdes sobre a obrigatoriedade da miisica nas escolas piiblicas”, que aponta, naquele momento, a existéncia de um inci- piente mimero de publicagdes sobre 0 as- sunto, apesar do ja intenso debate. A autora indica ainda alguns entraves para a aplicacio da Lei, como a falta de docentes com a for- magao necessétia. Em um importante debate, Figueiredo Pereira (s.d.) observam que a Lei 11.769/08 altera a LDB de 1996 apenas no paragrafo referente s artes, o que significa que 0 veto ao artigo que trata sobre a obrigatoriedade da formacao especifica ao professor nao in- dicaria a ndo necessidade dessa formacao, luma vez, que a obrigatoriedade do diploma de licenciatura estaria assegurada pelo artigo 62 da LDB. Assim, a conclusao dos autores 6 a de que “seguindoesta orientagao, para ensinar mtisica na escola,é preciso ser licen- ciado em miisica” (3.4., p.2). A diivida que permanece é: se, conforme a lei, a miisica 6 contetido curricular, porém nao exclusivo, da disciplina de artes, entdo, todo professor de artes teria também de ser licenciado em mnisica ou a escola deve se incumbir de ofe- recer dois professores licenciados para attiar na disciplina de artes? Considerando 0 artigo 62 que afirma A formagao de docentes para atuar na educagdo bésica far-se-t em nfvel supe- rior, em curso de licenciatura, de gradi- agao plena, em universidades e insttutos superlores de educagéo, admitida, como formagao minima para o exercicio do ma- sistério na educagao infantil e nas quatto primelras séries do ensino fundamental, 2 oferecida em nivel médio, na modalidade Normal. (BRASIL, 1996), Lusona Resuido Seré que podemos garantir que essa licenciatura seja de fato em miisica? Em outto sentido, o veto ao attigo se- gundo da Lei n° 11.769/08 na interpretagio de Alvarenga e Mazzotti (2011), 20 sugerir que miisicos e artistas, sem a formacaoacadémica ou oficial, desde que reconhecidas pelos seus grupos, possam inistrar ocontetido de miisica na escola regular, descredenciam-se as professores de mmisicaformados nos cursos de licen- ciatura (p.69) e concluem que, nesse caso, distorcem-seas disposigdes legais que regem a formacio em nivel superior, afirmando que alguém naolicenciado em determinada area de conhecimento pode ensiné-la, ‘Como podemos perceber, a lei propor iona diferenciadas interpretacoes. Conforme Penna, emtendemos que a Lei 11.769/08 representa um momento de transi¢do, que necessita de aces que a tor- nem realidade, A Lei 11.769/2008 fortalece essas con quistas, e com els abrem-se as miltiplas possibilidades para a area de educagao ‘musical, que se encontra em wm momen= to hist6rico de transicdo, de extrema im- orténcia quanto aos reals efeitos dessa determinacgo legal, em processo de im- plementacdo. Entetanto, é importante ter conscigncia de que as leis ¢ outros dispo- sitivos regulamentadates nio sto dotados de uma ‘virtude intrinseca’ capaz de reali- zzar mudancas na organizaga0 e na prética escolar. Nesse sentido, n8o cabe esperar ‘que essa nova lei gere automaticamente transformagdes na prética pedagégica co- tidiana, A realizagao efetiva das possibili- ddades que se abrem paraa misica na esco- la depende de imimeros fatores, inclusive do modo como atwamos concretamente nos miltiplos espacos possiveis. (Penna, 2010, p.141). thar de profesor, Poa Gross, 152): 371-32, 202. Dispenitel am chaps noeaepe lartopoteeae> 375, Miia #etucngéo:antigas quests, nave desapoe Debater a questéo da formaco do professor de miisica, aquele que vai efetiva- ‘mente fazer acontecer os dispositivos da Lei 11.769/08, sem diivida, € 0 desafio que te- mos pela frente. Porém, acreditamos que as leis 56 se sustentam por agdes que as tornem vidvels. Indo além, acteditamos que para que tais agdes sejam efetivas € necessério que conhecamos a realidade das escolas, em especial, aquelas localizadas no interior do pais, pois sdo essas, indiscutivelmente, as que dispoem de menores recursos materiais e humanos. Nesse sentido, autores como Dozza Subtil (2009), a partir de pesquisa de campo, revelam a falta de professores de fato habl- litados para trabalhar com a disciplina artes has escolas. A autora aponta a falta de formacao espectfica dos professo- res, a ausncia de concepcao de trabalho atistico e, em decoréncia, um visivel reducionismo no encaminhamento do tra= balho com arte nesse segmento escolar (DOZZA SUBTIL, 2009, p.195). © que seria, segundo a autora, um resquicio da Lei 5.69271 que raz a “vi sio da arte como atividade, polivaléncia e livre-expressio” (idem). No mesmo sentido, Sobreira (2008) indica que entre as dificul- dades para se trabalhar 0 contetido musical has escolas da rede oficial, esto a falta de docentes e a formacao necesséria, Por tudo 0 que foi comentado até aqui, entendemos a necessidade de se conhecer a realidade das escolas e, principalmente, 0 que pensam professores, diretores e alunos a respeito da miisica nas escolas. Como do- cente de uma tniversidade federal na regizo da Costa Verde Sul Fluminense, junto a um grupo de pesquisa formado por professores e alunos do curso de pedagogia dessa ins- Ttuigao, realizamos pesquisa de campo em lharde professor, Ponta Gross, 15(2): 271-382, 2012, 376 Dyepensval em quatro municipios vizinhos. A pesquisa nos permitiu uma maior compreensio das reais possibilidades de se efetivar a educaggo mu- sical nas escolas piiblicas e entender a for- magio dos professores na area da misica como condicao para isso. E 0 que relatare- ‘mos a seguir. A realidade em escolas da CostaVerde Sul Fluminense: um estudo de caso Entre julhio de 2011 e julho de 2012, tivemos a oportunidade de desenvolver um estudo em escolas da Costa Verde Sul Fluminense, em especial, nos_ municipios de Paraty, Angra dos Reis, Rio Claro @ Mangaratiba. Através dese estudo, buscamos entender 05 reflexos da Let 11,769/08 a partirdaquele momento — agosto de 2011 - quando findava o prazo estipulado para sua efetiva implementagao.” Visitamos cerca de 20 escolas nos quatro municipios e em entrevistas com seus diretorese com a aplicacao de um questio- nario acerca de 80 professores, tivemos um panorama sobre questdes a respeito da obri- gatoriedade do ensino de miisica nas escolas. Foram entrevistados professores de diversas disciplinas, ¢ nao s6 de artes. Isso porque nossa intencdo era de fazer uma avaliagio de como a educacéo musical € compreen- dida por todo o corpo docente das escolas. Assim como Sobreira (2008) e conforme po- deremos observar adiante, acteditamos que conhecer a concepgio que se tem sobre 0 en- sino da misica é fundamental para compre- ender as formas de insergao da musica nas escolas. Sata-se da pesquisa “Implementagao da Lel 11.769: ‘construggo de uma proposta de formagao inicial ¢ con- LUnuada para professores da Rede Publica da Costa ‘Verde Sul Fluminense na irea da Educacaa Musical” {gue teve apoio da FAPERI na modalidade APQI. resultado que obtivemos através desse estudo nos indicou uma variada gama de concepcdes sobre o ensinto de miisica, que se enquadram, de forma geral, nas trés repre- sentagdes destacadas a seguir: 1. A miisica como um componente au- siliar aos professores de diversas disciplinas, como quimica, matemstica e historia. Nesse caso, os professores entendem que a obriga- toriedade do ensino de miisica nas escolas significa capacitar 0s professores de diver- sas disciplinas no sentido de oferecer-Ihes ferramentas “musicais” que os auxiliem no desenvolvimento de seus contetidos especi- ficos em sala de aula, 2. Amiisica como um elemento lidico no espago escolar. Nesse sentido, o papel da misica na escola e das artes em geral seria 0 de proporcionar aos alunos um momento de descontracio, para que os contetidos das demais disciplinas possam se tomar menos “pesados”. O professor de miisica é enten- dido como aquele capaz de desenvolver ati- vidades préticas, como a criagdo de bandas musicais ou coros. 3. A misica como uma rea de conhe- cimento especifico. Nessa concep¢ao,o pro- fessor de miisica necessitaria de formacao especifica e 0 objetivo da educacio musical seria colaborar pata uma formacao mais am- pla do aluno, desenvolvendo capacidades especificas baseadas na aplicagio pratica de conceitos e respeitando 0 estagio de desen- volvimento do aluno. Quantitativamente, tiveros 0 seguin- te resultado: Lusona Resuido Figura 01- musica nas escolas ‘Masica nas Escolas osEBRE Contraditoriamente, apesar de a mii- sica nas escolas ser entendida pela matoria dos professores ¢ diretores como um compo- nente auxiliar ot! como tm elemento hiidico, conhecimentos bastante especificos foram relacionados no questionério aplicado, onde a teoria musical e a historia da misica sao destaque: As atividades préticas e traballios em sgrupo foram considerados prioritarios, como mostra a figura a seguir: Figura 02 - contetidos da educagio musical Conteddos Figura 03 - procedimentos didaticos Procedimentos Didticos thar de profesor, Poa Gross, 152): 371-32, 202. Dispenitel am chaps noeaepe lartopoteeae> 37 Miia #etucngéo:antigas quests, nave desapoe Sobre a Lei 11.769/08, alguns direto- res a desconheciam, outros tinkiam conheci- ‘mento, mas nao sabiam bem como aplicé-la, e um municipio em particular — Angra dos Reis — ja havia tomado medidas efetivas para suta implementacio.* Das escolas que jé desenvolviam al- guma atividade musical, que corresponde a cerca de 20% do conjunto de escolas visi- tadas, nao foi raro encontrar situacées onde funcionétios das escolas com alguma expe- rigncia em atividades préticas musicals na comunidade ou que possuiam alguma habili- dade especifica foram designados ao ensino de miisica em atividades extaclasse. Arepresentacio do professor de miisi- ca, de acorco com 0 conjunto de professores e diretores constltados, apresentou-se da se- guinte forma: Figura 04 - representacao do professor de misica, Representagiodo Professor de Misica A maioria dos professores que respon deram a nosso questiondrio entendeu que as atividades com miisica na escola podem ser desenvolvidas porprofessores de qualquer outra disciplina, desde que receba alguma formagio especifica para esta atuagao. Essa ideia vai ao encontto da forma como esses T No caso de Angra dos Reis, fo criado um polo mie sical, om professores especificos, para atender alunos de determinada regiio. A coordenadora de misica do ‘municipio nos informou que o projeto é o de crar un polo para atender cada regiao escolar. ‘other de professor, Ponta Grose, 152): 71-382, 2012, 378 Dyepenival em professores compreendem 0 papel da edu- cago musical na escola,ou seja, como um componente auxiliar aos professores de di- versas disciplinas. Cortespondendo também a situacdo encontrada, miisicos amadores atuantes na regio esto tabalhando como professores de miisica, esses, muitas vezes empregados na escola como zeladores ou outras fungoes. 20% dos professores indicaram 0 mtisico amador como perfil ideal para o professor de maisica, De forma muito curiosa, 0 professor licenciado em educacdo artistica ficou em tiltimo lugar, perdendo inclusive para aquele que teria o perfil de recreador. De forma nao esperada, contetidos te- 6ticos como a histéria da miisica e a teoria musical foram indicados como prioritatios, a0 mesmo tempo em que as aulas praticas ganharam destaque, Correspondendo 2o respondido atra- vvés dos questionatios, fot comum encontrar na fala dos diretores quando perguntados so- bre o que pensam a respeito da formacao dos professores de miisica e o papel da educacao musical nas escolas, respostas como as se- guintes: As criancas aprendem muito com a mt ca, € até mais facil aprender cantando do que fazendo cépias. [..] E preciso melho- rar a formacio dos professores para usa- rem mais a miisica em sala de aula. Q professor de espanhol sempre procurou focar a misica, Eu, quando estava em sala de aula, sempre procurei focar a msica, awelar a musica a um texto [...]. Pegae va uma leta para trabalhar a gramatica Eu s6 tenho o gostinho pela miisica, agora,conhecimento nenbum, A ideia do colegio ¢ esta: ndo existe um professor [de miisica]. Tem um professor de historia que colocou a letra “Que pais € esse?” do Legido Urbana (..J. Isso [a educagdo musical na escola} cabe a0 professor de histéria? Nao, cabe a todo mundo, E a mmilsica nao val servir s6 para cumprir a Lei, é pro dia-a-dia mesmo. Ta to difi- cil mantero aluno em sala de aula. [..] Eu acho assim, que a musica consegue pren- der. [..] Dando aula de histéria, dando aula de portugués mais ainda né? A gente tem um professor voluntatio, ele ver agui e ensina mais ou menos alguns tons, faz algum trabalho com as criangas, mas nfo é coisa efetive, no. Quando té perto de 7 de setembro ou quando a gente tem alguma comemoragao pra fazer, esse professor dé nocao. Esse breve relato de pesquisa nos aponta alguns dos desafios que teremos que enfrentar para o cumprimento da Let 11.769/08 em ambito nacional. Em algumas escolas, nto interior do estado do Rio de Ja- heiro, encontramos situacao bastante critica em relacio a recursos materials e humanos. Sem entrar nese mérito da questio e nos restringindo apenas as consideracdes so- bre a educacdo musical, a partir do que foi exposto,destacamos alguns pontos que nos parecem relevantes para o debate: 1. © conhecimento da Lei 11.768/08 ¢ de seus dispositivos ndo chegou para signi- ficativa parte dos diretores e professores das escolas visitadas; 2. A grande maioria de diretores e professo- res nao entende a ecucacdo musical como uma area de conhecimento espectfico, apesar de apontar a necessidade de algu- rma formacao ou experiéncia musical para aquele que sera o responsavel por desen- volver atividades musicais na escola; 3. Na falta de professores com formagio es- pecifica, estéo sendo direcionados para a pratica da mtsica nas escolas funcionarios Lusona Resuido ‘com fungbes varladas que io sdo contra- tados como professores; 4. Aexpectativa de grande parte dos profes- sores das escolas ¢ a de que eles mesmos recebam instrugao necesséria para poder utilizar a miisica como recurso didatico em suas disciplinas. A discussio sobre a importncia da musica para formagao humana é antiga. ‘Violeta Gainza (2011), fundadora do Férum Latino-Americano de Educagéo Musical, diz que essa discussao 6 algo que jé deveria ter sido superado, Porém, ela traz a reboque ou- tra questao de igual importéncia: quem profissional que ira colocar nao s6 0 ensino de miisica, mas todo um processo de educa- ao musical em prética? Violeta Gainzanos responde: “necessitamos de professores, de fato, especializados em mtisica” (p.40). As- sim, temos pela frente a missao de retomar fo debate de antigas questées que ainda no foram superadas e que hoje encontram novos desafios. O breve relato apresentado nos indi- ca a possibilidade de se encontrar uma di- versidade de concepgies sobre 0 ensino de maisica nas escolas Brasil afora, Entendemos que a aprovacao da lei, e mesmo a disponibi- lizago de recursos materiais, no sdo ages suficientes para que se possa garantir a apli- cago da Lei 11.769/08, considerando todo 0 processo historico percorrido pela educagao musical até sett reconhecimento como area de conhecimento especifico. Interessante observar 0 caso relatado pela diretora de um colégio estadual sobre (uso do material didtico distribuido as es- colas pela Secretaria Estadual de Eduucagio.* Fata-se do kit MPB nas escolas, laborado pele Ins- tituto Cravo Albin, comprado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro e ja distibuido as escolas estadu- ais. Sobre isso, ver: 379 Miia #etucngéo:antigas quests, nave desapoe Quando perguntada se o material estaria atendendo as necessidades da escola, a di- retora informou: “ndo, € mais um material Iinformativo, de divulgacao dos tipos must- cais da MPB”, Quando perguntada se houve algum treinamento para uso desse material, a diretora respondeu que nao, mas que soube que “determinadas escolas foram atendidas com treinamento para uso do material” e que ‘o material esta sendo usado por quem tem interesse. Hé o professor que tem interes- se em tabalhar a histéria, por exemplo, do samba, ali tem toda a historia, algumas Jewas, alguns autores, mas naoligado dire- tamente ao curriculo, Se buscarmos conhecer a historia ape~ nas pela leitura das leis produzidas, teremos uma visio bastante distorcida da realidade. Conformar-nos apenas com a sangio de leis que poderiamtazer beneficios & populacdo é comer o riscode amuila-las. Para que se efe- tivem € necessario, em primeiro lugar, que comhecamos a realidade onde essa let sera aplicada, ¢ em segundo, agdes e investimen- to material e humano para que ela se realize. Nesse sentido, destacamos a necessidade de aces educativas que qualifiquem todo o pro- cesso histérico em que a educagao musical passa a ser reconhecida como érea de conhe- cimento especifico. E 0 reconhecimento da miisica como um elemento essencial 4 for- macao humana, e a necessidade de formacio para o professor de miisica, o primeiro passo para que a Let 11.769/08se tome a realidade nas escolas brasileiras. A partir dos dados levantados, ¢ em consonancia com as reflexdes de Sobreira (2008), percebemos que as diferentes con- cepgdes sobre a miisica nas escolas e sobre 0 professor de miisica contradizem importan- tes conquistas realizadas através da histdria onde a misica se afirma como area de co- nhecimento especifico necessitando assim, lharde professor, Ponta Gross, 15(2): 271-382, 2012, 280 Dyepenivel em chp sinnvsneps br alhantspotesor> a Eduicagio Musical, de professores com conhecimentos especificos. Sobreira diz que “as diferentes concepges acabampor com- prometer a insergao da mtisica nas escolas, uma vez. que cada concepsao corresponde ametodologias e formacio docentes especi- ficas” (p.45). E por esse motivo que enten- demos que conhecer a forma como a escola em sua integralidade concebe a educacio musical é fundamental para a elaboragao de ages que contribuam para a efetivagdo da educagio musical nas escolas. E isso 0 que buscamos fundamentalmente demonstrat pelo exposto. Consideragies finais ‘Com base nesse texto, buscamos mostrar, mesmo que de forma breve, que a educagdo musical no Brasil vem percor- rendo uma longa trajetoria na busca por ser recomhecida como érea de conhecimento. A produgio académica de professores-pesqui- sadores de diversos programas de pos-grad- gio em musica espalhados pelo pais, assim como a longa trajetéria da Associagao Bra- sileita de Educacéo Musical (ABEM), entre outros, representa essa conquista. O debate dessa questio, associado ao debate sobre a formacdo do professor de miisica, se faz pre- sente também na interpretagao de decretos leis e em documentos como os PCNs. A Let 11, 769/2008 faz parte desse processo no sen- tido de reconhecer a necessidade da miisica como um elemento indispensavel a forma- do humana. Porém, no nosso entender, de- forma contraditéria, 0 veto ao artigo 2° que dispensa ao professor de miisica uma forma- ‘do especifica representa um retrocesso. En- tendemos que 0 veto expressa uma negagio a0 reconhecimento da miisica como area de conhecimento. Com isso, nao se esta negan= do que recreadores ou miisicos amadores possam desenvolver atividades extremamen- ie gratificantes para os estudantes do ensino basico. Mas a intencionalidade de uma agio educativa na area da miisica val bem além do que uma atividade recreativa. Como disse Gainza, essa é uma discussio que jé deveria ter sido superada Buscamos ainda mostrar pelos dados apresentaclos que o simples fato da exis- téncia da lel, mesmo que haja recursos ma- terials, nao é suficiente para o seu cumpti- mento. E preciso que as escolas conhecam , fundamentalmente, reconhecam o papel da educagio musical em suas atividades, e a consequente necessidade da formacao espe- cifica para 0 professor de miisica Referéncias ALVARENGA, C. H.; MAZZOTTI, T. B. Educagio musical e legislacao: reflexdes acerca do veto a formagao especifica na Lei 11.769/2008. Opus, Porto Alegre, v.17,n. 1, p. 51-72, jun. 2011, BRASIL. Lei n° 11.769, de 18 de agosto de 2008, Altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996 para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da musica na educacao basica. Diario Oficial da Uniéo, Brasilia, ano CXLV, n. 159, seco 1, p. 1, 19 ago. 2008. Disponivel em: . Acesso em: 20 out.2012, Lei de Diretrizes ¢ Bases - Lei n° 9,394, de 20 de dezembro de 1996, Estabelece as diretrizes e bases da educacdo nacional. 20 dez. 1996. Disponivel em: . ‘Acesso em: 20 out.2012, Lusona Resuido SUBTIL, M. J. D. Educagio e arte: dilemas a pratica que a histéria pode explicar. Praxis Educativa, Ponta Grossa, v. 4, n° 2, p. 185- 4194, jul-dez, 2009. Disponivel em: . Acesso em: 20 cout.2012. FIGUEIREDO, S. L. E; PEREIRA, G. V. As orientagdes legais para o ensino de miisica nas séries iniciais do Ensino Fundamental ros estaclos da Bahia, Rio Grande do Norte e Sergipe. s.d. Disponivel em: . Acesso em: 20 out.2012, FUKS, R. A. Educagao musical na_era ‘Vargas: seus precursores, In: OLIVEIRA, As CAJAZEIRA, R. Educacao musical no Brasil, Salvador: P&A, 2007, p. 18-23. GAINZA, V. H. Fala, mestre! Revista Nova Escola, abril 2011, p.28-40. OLIVEIRA, A. Aspectos histéricos da educacio musical no Brasil e na América do Sul. OLIVEIRA, A; CAJAZEIRA, R. Educacdo_ musical no Brasil. Salvador: P&A, 2007, p. 12 PARAMETROS CURRICULARES NACTONAIS, 1997. Disponivel em: . Acesso em: 09 jun.2011. PENNA, M. E este o ensino de arte que queremos? uma andlise das propostas dos Parémetros Curriculates Nacionals, 2001. Disponivel em: . Accesso et: 15 jun. 2012. A dupla dimensio da politica educacional e a miisica na escola: analisando alegislagao e termos normativos. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 10, p. 19-28, mar, 2004. ards profiesr, Ponta Grose, 15(2}: 271-362, 2012, DDisponivl em chp iinesepgteolanteposeee> 381 Miia #etucngéo:antigas quests, nave desapoe PENNA, M. Miisica(s) e seu ensino, Porto Alegre: Sulina, 2010. SANTOS, R.M.S. (Org,). Miisica, cultura e educagao: os miltiplos espagos de eduucagao musical. Porto Alegre: Sulina, 2011. SANTOS, A. K. A.; BATISTA, H. S. (Orgs.) A musica na educagio basica: material de apoio a implantagio da Lei 11.769/08. Salvador: Edufba, 2011. SAVIANI, D. Educagao: do senso comum a consciéncia filoséfica. S40 Paulo: Cortez, Aurores Asociados, 1980. SOBREIRA, S. Reflexes sobre a obrigatoriedade da miisica nas escolas piiblicas. Revista da ABEM, Porto Alegre, 1. 20, p. 45-52, set. 2008. SOUZA, J.A Educacio musical no Brasil dos anos 1930-45. In: OLIVEIRA, A.; CAJAZEIRA, R. Educacdo musical no Brasil. Salvador: P&A, 2007, p. 13-17. Enviado em: 12/07/2012 5/11/2012 Aceito em: lharde professor, Ponta Gross, 15(2): 271-382, 2012, 282 Dyepenivel em

Você também pode gostar