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A Igreja Militante Oe cen. R29 As datas sio prendedores indispensiveis para fixar a tapegaria da historia — e, como a data de 1066! é bem conhecida, ela pode nos servir como uma referencia conven nte. Nenhuma construgao completa do periodo saxio sobreviveu na Inglaterra, ¢ sio poucas as igrejas anteriores a essa época ainda existentes na Europa em geral, Porém, os normandos que desembarcaram na Inglaterra trouxeram consigo um estilo arquiteténico desenvolvido, que aquela geragio viu se consolidar tanto na Normandia quanto em outras regides. Os bispos e nobres que se tornaram os novos senhores feudais da Inglaterra logo comegaram a afirmar seu poder fundando abadias e mosteiros. O estilo em que esses edificios foram construidos, conhecido na Inglaterra como normando e, no continente europeu, como romanico, floresceu por mais de cem anos apés a invasio normanda. Hoje nao é facil imaginar o significado de uma igreja para as pessoas daquela época. Somente em algumas aldeias antigas do interior ainda conseguimos vislumbrar sua relevancia. A igreja costumava ser o tinico edificio em pedra da area; era a tnica estrutura considerdvel num raio de quilometros, e seu campandrio era um ponto de referéncia para quem se aproximava de longe. Aos domingos, e durante 0 servico religioso, toda a populacao da cidade encontrava-se ali, eo contraste entre a construgao espacosa e as habitagdes humildes e rudimentares em que aquelas pessoas passavam suas vidas devia ser esmagador. Pouco admira que toda a comunidade se interessasse pela construcao das igrejas e se esmerasse em sua decoragdo, Mesmo do ponto de vista econdmico, a constru¢io de um mosteiro, que levava anos, devia transformar a cidade inteira. A extracao de pedra e seu transporte, a montagem de 10 autor refere-se a um fato proeminente na histéria de seu pais: a invasio normanda da Inglaterra por Guilherme, 0 Conquistador. No ano de 1066 travou-se a batalha de Hastings, na qual pereceu o rei saxéo Haroldo. (NT) 130A Igreja Militante andaimes adequados, o emprego de artesaos itinerantes, que traziam consigo histérias de terras distantes; tudo era um verdadeiro acontecimento naqueles dias remotos, A Idade das Trevas nao havia apagado, em absoluto, a lembranga das primeiras igrejas, as basilicas, e as formas utilizadas pelos romanos em sua arquitetura. O plano basico geralmente era 0 mesmo — uma nave central que levava a uma abside ou coro e duas ou quatro alas laterais. Vez por outra esse plano simples era enriquecido com a adigio de outros elementos. Alguns arquitetos, aderindo 4 ideia de construir igrejas em forma de cruz, acrescentavam 0 chamado transepto entre 0 coro € a nave. A impressio geral causada por essas igrejas normandas ou rominicas é, contudo, muito diversa das velhas basilicas. Nestas, usavam-se colunas classicas na sustentagao de “entablamentos” retos. Nas igrejas romanicas e normandas geralmente se vem arcos redondos assentados sobre pilares macicos. A impressio geral dessas igrejas, do lado tanto de dentro como de fora, é de uma'robustez compacta. A decoracdo € escassa, ¢ até as janelas sio poucas, mas as paredes € torres inexpugnaveis lembram as das fortalezas medievais, figura 111, Essas poderosas ~ e quase desafiadoras — pilhas de pedras erguidas pela Igreja em terras de camponeses e guerreiros recém-convertidos de seu estilo de vida pagio Parecem a concretizacao da propria ideia de Igreja Militante — ou seja, a ideia de que aqui nesta terra é fungao da Igreja combater os poderes das trevas até que a hora do triunfo desponte, no dia do juszo final, figura 112. Havia um problema relacionado 4 construgio de igrejas que absorvia todos os bons arquitetos: a necessidade de munir esses impressionantes monumentos de um telhado de pedra decente. Aos telhados de madeira que se costumavam usar nas basilicas faltava dignidade, além de serem perigosos por se incendiarem com facilidade. A arte romana de construir abobadas para tao grandes construgées requeria uma considerivel soma de 131 O sécalo xt cilculos ¢ conhecims tinham perdido, Des: tum petiodo de expe, monta o trabalho de toda a sua extensio, a distancia como se gigantescos ecam co; 08 arcos dessas pont abébada assim const firmeza para nio de era demasiado granc pilares tinham de se- usadas nessas prime Em vista disso, ox experimentar outro necessirio que o te! mio de alguns arc preencher o: que a melhor escrate “nervuras” transvers preencher as segGes revolucionaria os m aplicagdo, até onde > figura 114 ~ muito et projetou a primeira interior, fie 13. ¢ possibilidades tents Foi na Franga que decoradas com escul “qecorar” seja basta igreja possuia uma f especifica, vical $t.Trophime, em At aT, é um dos mals t — inicas e dos do lado pacta. A. Paredes evais, as de i0 ’ tante — ja fo jas que ir esses ecente. cileulos ¢ conhecimentos técnicos que, em sua maior parte, se tinham perdido. Desse modo, os séculos XI e XII tornaram-se um periodo de experimentagio incessante, Nao era de pouca monta 0 trabalho de cobrir com uma absbada uma nave em toda 2 sua extensio. A solugdo mais simples pareceu ser transpor a distincia como se transpde um rio com uma ponte. Pilares gigantescos eram construidos dos dois lados, a fim de sustentar ‘98 arcos dessas pontes. Logo ficou claro, porém, que uma abobada assim construida teria de ser estruturada com muita firmeza para nio desabar, e que o peso das pedras necessirias era demasiado grande. Para suportar tio imensa carga, paredes € pilares tinham de ser reforcados. Enormes massas de pedra eram usadas nessas primeiras abébadas em forma de “tinel”. Em vista disso, os arquitetos normandos comecaram a experimentar outro método. Perceberam que nfo era de fato necessario que o telhado inteiro fosse tio pesado. Bastava lancar mio de alguns arcos firmes que cobrissem toda a extensio e preencher os intervalos com material mais leve. Concluiu-se que a melhor estratégia para tal seria erguer os arcos ou “nervuras” transversalmente entre os pilares para, em seguida, preencher as secGes triangulares entre eles. Essa ideia, que revolucionaria os métodos de construcao, teve sua primeira aplicagao, até onde sabemos, na catedral normanda de Durham, figura 114 — muito embora 0 arquiteto que, apds a Conquista, projetou a primeira “abébada de nervuras” para seu imponente interior, figura 113, dificilmente tivesse consciéncia das imensas possibilidades técnicas criadas entao. Foi na Franga que as igrejas romanicas comegaram a ser decoradas com esculturas, embora aqui também a palavra “decorar” seja bastante enganosa. Tudo o que dizia respeito 4 igreja possufa uma fungdo definida e expressava uma idela / especifica, vinculada 4 doutrina da Igreja. O portico da igreja de St. Trophime, em Arles, sul da Franga, datada do final do século XI, é um dos mais rematados exemplos desse estilo, figura 115. 132A lgreja. mumante Sua forma remete ao principio do arco do triunfo Tomano, figy ‘ a i =, vemos Cristo em Sua gloria, cercado pelos simbolos dog quatro evangelistas. Tais simbolos ~ 0 leo para Si0 Marcos, anjo para Sio Mateus, 0 boi para Sio Lucas e a guia para $i, Jodo — sio derivados da Biblia, No Antigo Testamento, lemos respeito da visio de Ezequiel (Ez 1, 4-12), em que ele descreye o trono do Senhor sustentado por quatro criaturas com as cabecas de um ledo, um homem, um boi e uma guia. 74, No campo acima do lintel ~ chamado de timpano, fgy Os tedlogos cristdos interpretaram os sustentaculos do trono de Deus como sendo os quatro evangelistas — uma imagem muito adequada para a entrada de uma igreja. Logo abaixo, no lintel, ha doze personagens sentados (0s doze apéstolos); & esquerda de Cristo, uma fileira de figuras nuas acorrentadas (as almas perdidas sendo arrastadas para o inferno) e, 4 Sua direita, os bem-aventurados, seus rostos voltados para Ele em eterno éxtase. Abaixo, esto as rigidas figuras de santos, cada qual assinalado por seu emblema, lembrando os figis de quem poderia interceder por eles quando suas almas se apresentassem para 0 Juizo Final. Desse modo, os ensinamentos da Igreja sobre o objetivo tiltimo de nossa vida terrena foram assim encarnados nessas esculturas no pértico da igreja. Essas imagens permaneciam na imagina¢io das pessoas com intensidade ainda maior que as palavras do pregador em seu sermao. Um poeta francés de fins da Idade Média, Francois Villon, descreveu esse efeito nos comoventes versos que escreveu para sua mie: Sou uma pobre e velha mulher, Muito ignorante, que nem sabe ler, Mostraram-me na igreja da minha terra Um Paraiso com harpas pintado Eo Inferno, onde se escaldam as almas condenadas, Um me enche de jibilo; 6 outro me aterra..., a 1330 sécale ap Nio era praia oe solenidade maciga og muito mais Fiat capy ajustam-se muito me conjunto. Cada detathe no i: pensado pata atende Mostra um candelat volta do ano 1119 compéem remeter figuras 101, 103. age definido a essas for de sua coroa, e: obra de virtude k c homem nio se per que os olhos pene encontramos mais (em toro da pro’ doutrina, mas ar Laocoonte e seus monstros; sua lu: nas trevas” pode A pia batism volta de 1113, € tedlogos como ¢ latio, exibe no 1 mais apropriadc explicam o sigh “Angelis ministran' personagens 40 Mas nao s40 80 | dada ao signifi \ um sentido. N > FOMANO, figy ano, figura 114 bolos dos 0 Marcos, o tia para Sio nto, lemos a > ele descreve com as suia, culos do trono 2 imagem 30 abaixo, no stolos); a orrentadas (as , 4 Sua direita, em eterno cada qual le quem apresentassem la Igreja m assim issas om rem seu rancois que 133 O século XII Nao era de se esperar que tais esculturas se revestissem da graciosidade, leveza e n: solenidade maciga s6 f aturalidade das obras classicas. Sua faz, tornd-las ainda mais impactantes. Fica muito mais fécil captar de um relance o que representado, e ajustam-se muito melhor a grandiosidade do prédio em seu conjunto. Cada detalhe no interior da igreja era cuidadosamente pensado para atender a seu propdsito e mensagem. A figura 117 mostra um candelabro feito para a Catedral de Gloucester por volta do ano 1110. Os monstros e dragées entrelagados que 0 compéem remetem ao trabalho da Alta Idade Média, pagina 120, figuras 101, 103. Agora, porém, atribui-se um sentido mais definido a essas formas fantisticas. A inscrigao latina ao redor de sua coroa, em linhas gerais, diz o seguinte: “Este porta-luz obra de virtude ~ com seu brilho prega a doutrina, para que 0 homem nio se perca nas trevas do vicio.” Com efeito, a medida que os olhos penetram nessa selva de estranhas criaturas, encontramos mais uma vez nao s6 os simbolos dos evangelistas (em torno da protuberancia no meio), representando a doutrina, mas também figuras humanas desnudas. Como Laocoonte e seus filhos, figura 69, so acossados por serpentes € monstros; sua Iuta, porém, no é em vio: “A luz que brilhava nas trevas” pode fazé-los triunfar sobre o poder do mal. A pia batismal de uma igreja em Lidge (Bélgica), feita por volta de 1113, é outro exemplo do papel desempenhado pelos tedlogos como conselheiros dos artistas, figura 118, Feita de latao, exibe no meio um relevo do batismo de Cristo — 0 tema mais apropriado para uma pia batismal. Inscrigdes em latim explicam o significado de cada figura; por exemplo, lé-se “Angelis ministrantes” (anjos oficiantes) acima dos dois personagens que esperam por Cristo na margem do Rio Jordao. Mas nio sio s6 essas inscrigdes que sublinham a importancia dada ao significado de cada detalhe. A pia batismal em si tem ‘um sentido. Nem os bois em que esta apoiada estdo ali como 134 A Igteja Militante meros elementos ornamentais ou decorativos. Lemos na Bityi (2 Cronicas 4) como o Rei Salomao contratou um habil artfig deTiro, na Fenicia, que era especialista na fundigao de bronze Entre as pegas criadas por ele para o templo de Jerusalém, descreve o cronista: Fez também 0 mar de fundi¢ao, de dez cvados de uma borda até q cutra, redondo (...) E 0 mar esta posto sobre doze bois; tr que othavam para o norte, trés que olhavam para o ocidente, trés que olhavam para o sul e trés que olhavam para o oriente; eo mar estava posto sobre eles; ¢ as suas partes posteriores estavam todas para o lado de dentro. Foi esse modelo sagrado, pois, que se pediu que o artista de Liége — outro especialista em fundicao de bronze — tivesse em mente, mais de dois mil anos apés a época de Salomio. As formas por ele usadas em suas imagens de Cristo, dos anjos e de Sao Jodo parecem mais naturais e ao mesmo tempo mais tranquilas e majestosas que as das portas de bronze de Hildesheim, figura 108. Recordemos que 0 século XII é o século das Cruzadas. Havia, naturalmente, um maior contato com a arte de Bizincio do que antes, € muitos artistas do século XII Procuravam imitar e superar as imponentes imagens sacras da Igreja Oriental, figuras 88, 89. Em nenhum outro momento, com efeito, a arte europeia aproximou-se tanto dos ideais desse género de arte oriental do due no auge do estilo romanico. Vimos o arranjo rigido e solene das esculturas de Arles, figuras 115-16, e encontramos o mesmo espirito em numerosos manuscritos iluminados do Século XIL. A figura 119, por exemplo, Parece quase Go hirta e imével quanto um relevo egipcio. A Virgem € vista de frente, as mos erguidas indicando sua Perplexidade, enquanto a pomba do Espirito Santo desce das alturas sobre ela, OAnjo é visto meio de perfil, a mo direita estendida num gesto que, na arte medieval, indica 0 ato de representa a Anunciagao. i 135 O seule yay falar. Se buscarmo: cena real, provave! recordarmos que formas naturais, tradhicionais ~ que mistétio da Anun nunca foi sua E prec abriram para os 2 qualquer pretens A figuza 120 m nossos calendi ilustragdes. Ao ce clérigo, e Sio Ga que carrega a ba. imagens aama & recordades <2 representa. seriam com fey horriveis. Nose Jembrar-nes de> foram cortadas © decapiades santa Ursula. ppagios com st Titeralimente & exrrancudo, 2 sua espach estio Podemos ler @ visualizd-laB.¢ de espace 8% figuras € form Ve ‘na Biblia bil artifice e bronze, em, a borda até a bois; trés que te, trés que ;€0 mar avam todas artista de esse em ). 0, dos > tempo ze de 0 século om a lo XII ras da peia atal do e 10S 0 do ado. A das “ita e 135 O século xi falar. Se buscarmos nessa imagem uma ilustragio vivida de uma ee cena real, provavelmente ficaremos decepcionados. Mas, se r recordarmos que 0 objetivo do artista era nao a imitagio das } formas naturais, mas a composigio de simbolos sactos tradicionais — que eram tudo de que precisava para ilustrar 0 mistério da Anunciagio —, deixaremos de sentir falta do que nunca foi sua intengio nos oferecer. § preciso reconhecer as imensas possibilidades que se abriram para os artistas quando finalmente descartaram toda e qualquer pretensio de representar as coisas tais como as viam. A figura 120 mostra uma pagina de um calendério para uso de um monastério germinico. Assinala as principais festas dos santos comemoradas no més de outubro, mas, ao contrario dos nossos calendérios, usa para tanto nio s6 palavras, mas também ilustrag6es. Ao centro, sob os arcos, vemos Sao Willimar, 0 clérigo, e So Galo, com o baculo de bispo e um companheiro que carrega a bagagem do missionério errante. As curiosas imagens acima e abaixo ilustram a histéria de dois martirios recordados em outubro. Mais tarde, quando a arte voltasse 4 representacdo pormenorizada da natureza, essas cenas cruis seriam com frequéncia pintadas com uma profusio de detalhes horriveis. Nosso artista conseguiu evitar tudo isso. Para lembrar-nos de Si Gereio e seus companheiros, cujas cabegas foram cortadas e atiradas num pogo, ele dispds os troncos decapitados num circulo ao redor da imagem de um pogo. Santa Ursula, que, segundo a lenda, foi massacrada pelos pagdos com suas onze mil virgens, é vista entronizada, literalmente cercada por suas seguidoras. Um selvagem carrancudo, armado de arco e flecha, e um homem brandindo sua espada est4o 4 margem da pagina, voltados para a santa. Podemos ler a historia da pagina sem sermos forgados a visualiz4-la. E, como 0 artista podia abdicar de qualquer ilusio de espaco ou agéo dramatica, podia também arranjar suas figuras e formas segundo critérios puramente ornamentais. Na ee 136A Igreja Militante verdade, a pintura estava se transformando numa forma 4 escrita por imagens; contudo, essa retomada de MéOdos 5 simples de representasio proporcionou ao artista mediey al uma liberdade inédita para experimentar meios mais complexos de composicio (composi¢io = por JUNIO). Sern essas técnicas, os ensinamentos da Igreja nao teriam COMO ser traduzidos em formas visiveis. O mesmo vale para as cores. Uma vez QUE 0S artistas nip se sentiam mais obrigados a estudar e imitar as gradaces reais de fons que ocorrem na natureza, estavam livres Para usar em suas ustracdes as cores que bem entendessem. © dourado brilhante € os azuis luminosos do trabalho dos Ourives, as cores intensas das iluminuras, o vermelho incandescente e os verdes Pprofundos dos vitrais, figura 121, mostram que esses mestres fizeram bom uso de sua independéncia da natureza. Era a liberdade em relacio 4 determinacio de imitar o mundo natural que lhes permitia transmitir a ideia do sobrenatural. aig

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