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La Patria somos todos: trajetórias e disputas

narrativas sobre ser imigrante em Cuba1

Denise Cogo (ESPM-São Paulo)


Deborah Rodriguez Santos (UFF)

Durante décadas, profissionais cubanos que abandonam missões de trabalho no


estrangeiro vêm sendo submetidos a exílios de banimento (CHOTIL, 2016) de até oito anos,
que os impedem de retornar, mesmo que de forma transitória, a Cuba. Embora seja uma política
recente, a inadmissibilidade dos profissionais cubanos que tomam a decisão de emigrar estando
em missões internacionais, é herdeira de um conjunto de orientações implementadas
progressivamente por Cuba após 1959, como resposta à hostilidade por parte dos Estados
Unidos. No entanto, de forma progressiva, essas políticas passaram a adquirir um caráter
permanente e estiveram delineadas também por traços autoritários e nacionalistas do governo
revolucionário.
Ao moralizar e penalizar o deslocamento de seus nacionais para outros países, o
posicionamento adotado pelo governo de Cuba colaborou para criar, no imaginário coletivo da
nação, uma acoplagem discursiva entre as figuras do emigrante e do opositor. Desse modo, a
partir de 1959, a emigração de cubanos para o exterior motivaram a produção de diferentes
fluxos discursivos por parte do governo de Cuba, assim como de retóricas de repúdio e
exclusão, que contribuíram para a consolidação de um imaginário do imigrante enquanto
opositor (DE ARAGÓN et. al., 2011).
Em termos narrativos, López-Levy (2020) aponta que um sintoma da separação entre
nação e emigração que tem definido as relações históricas entre Cuba e sua diáspora pode ser
evidenciada na própria denominação atribuída pelo governo cubano à Conferência “La Nación
y la Emigración”2. Levy (2020) destaca que a apresentação da nação e sua diáspora como dois
entes opostos reafirma a forma excludente através da qual o governo cubano tem produzido
discursivamente a figura de seus emigrantes. A estas figuras linguísticas, somam-se medidas
restritivas aplicadas em relação aos cubanos que migram, como é o caso do banimento, dos

1
GT16 - Estado e políticas migratórias: visibilidade, exclusão e violência do 44º Encontro Anual da ANPOCS.
2
A Conferência “La Nación y la Emigración” teve lugar por primeira vez em 1994 com o propósito de aproximar
a emigração cubana e o governo da ilha, após o conhecido “Diálogo del 78”, no qual o líder da Revolução cubana,
Fidel Castro, convidava a membros da imprensa cubano-americana, assim como a emigrados da ilha, para
participarem do evento, que seria o primeiro diálogo oficial entre ambas partes.

1
custos excessivos dos trâmites migratórios3 para quem reside no exterior, da negativa de entrada
ao país por razões fundamentalmente políticas e da impermanência dos direitos cidadãos dos
seus emigrantes4.
Inscritas no jogo político envolvendo as disputas entre EUA e Cuba, o
posicionamento e retórica sobre a diáspora construídos pelo governo cubano foram
incorporadas ao próprio ethos da Revolução, do mesmo modo que a emigração foi se tornando
um fenômeno endógeno e endêmico do país (AJA et.al., 2017). Assim, desde as primeiras
décadas da Revolução até os dias atuais, a representação dos emigrantes cubanos tem se
constituído em torno de um léxico que inclui termos como “gusanos”, “traidores” e “nacionais
no exterior”.
Já a partir de 1994, observa-se uma reconfiguração desse posicionamento adotado pelo
Estado cubano em relação aos emigrantes através especialmente de mudanças implementadas
no marco legal, assim como nos discursos e políticas migratórias, que convergiram com a
celebração em Havana da primeira Conferência “La Nación y la Emigración” (1994). Este novo
posicionamento sugere, ainda, uma “redefinição da questão migratória cubana” (BRISMAT,
2011, p.175), em que se transita da construção do emigrante exclusivamente como dissidente e
se redesenha o processo de politização da diáspora cubana a partir de iniciativas tomadas pelo
governo em favor da integração dos emigrantes à nação.
No marco desse cenário, nos propomos a analisar, nesse trabalho, o processo de
construção narrativa da figura do emigrante por parte do governo cubano e suas reconfigurações
desde 1959 até a atualidade. A metodologia empregada, de caráter qualitativo, abrange coleta e
análise de um corpus de documentos governamentais e textos publicados em mídias cubanas5,
além de postagens recentes do governo da ilha nas plataformas de redes sociais Twitter e
Facebook.

3
O passaporte cubano é considerado um dos mais caros do mundo. Sua confecção pode custar ao emigrante que
reside fora de Cuba até 1.293 reais (no Brasil), além dos custos das duas prorrogações que são exigidas durante os
seis anos de validade do documento.
4
Para manter os direitos cidadãos em Cuba, o emigrante deve viajar à ilha num período que não supere os dois
anos (24 meses) desde sua última saída do país. Se não retornar nesse prazo, será considerado legalmente
“emigrado”, o que implica na perda de alguns direitos no país. Na modificação da Lei Cubana de Migração,
realizada em 2015, ficou estabelecida a possibilidade de extensão desse prazo de estadia fora do país, sempre que
justificado e mediante o pagamento do custo mensal estabelecido pelas autoridades por tempo “extra”.
5
Por serem os meios de comunicação cubanos propriedade estatal, podemos dizer que existem interseções no que
metodologicamente entende-se como “discurso oficial” e “discurso midiático” em Cuba. Uma vez que que existe
um controle do conteúdo na mídia cubana por parte de instâncias oficiais, na prática os limites entre discursos
oficiais e midiáticos às vezes se dissolvem. Daí também nossa decisão por incluir mídias cubanas no corpus de
análise.

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Estados-nação e a emigração como construção social e política

Toda emigração é ruptura, ou seja, ruptura com um território e, em consequência, com


uma população e com alguma ordem social, econômico, político, cultural ou moral, enfatiza
Sayad (1999, p.165) a fim de refletir epistemologicamente que, ao ser causa de rupturas, a
emigração é ela própria o produto de uma ruptura fundamental na medida em que se torna
necessário que todos os quadros que asseguram a coesão social se deteriorem para que a
emigração possa aparecer e se perpetuar. Dessa mesma perspectiva, emigrar constitui
objetivamente um ato que, mesmo sem o conhecimento ou independente da vontade de todos
os envolvidos, é fundamentalmente político, inclusive quando se trata de mascarar ou negar a
existência da emigração (SAYAD, 1999, p 166).
A relação estabelecida entre uma ordem das migrações e uma ordem nacional,
formulada no pensamento de Sayad, nos oferece um marco compreensivo sobre as condições
sociais de produção, funcionamento e perpetuação de representações e definições acerca da
imigração/emigração. A própria existência do Estado-nação deriva da ideia de soberania sobre
um território e da necessária capacidade de delimitar uma população, ou seja, um povo
diferenciado dos outros sobre o qual é exercida essa soberania, criando e recriando uma
comunidade nacional. Refletir sobre a imigração e a emigração implica, assim, pensar o Estado
e a nação ao mesmo tempo em que ambos se pensam a si mesmos ao pensar a migração
(ARAÚJO GIL, 2018, p. 112; SAYAD, 1999, p. 487)
Refletir sobre a imigração/emigração sobre essa ótica implica em se debruçar sobre a
gênese social do Estado, evidenciando seus mecanismos de produção da figura social e política
do imigrante/emigrante e, em consequência, sobre a produção de uma demarcação, que
distingue entre os “nacionais” e os “não nacionais”, nem sempre de modo perceptível, mas com
efeitos discursivos e sociais incontestáveis. Ou seja, de um lado, os que possuem direitos
“naturalmente”, os que “têm Estado”, possuem a “nacionalidade do país”, e, de outro lado, os
“estrangeiros”, que não possuem esses mesmos direitos ou podem ser excluídos de alguns dos
direitos exclusivos dos nacionais. “A imigração quebra a perfeição mítica da ordem nacional e
o perturba ao confundir a fronteira de demarcação entre os nacionais e os outros” (SAYAD,
1999, p. 486; ARAÚJO GIL, 2018, p. 113)
No caso da análise proposta nesse artigo, essa demarcação assume particularidades uma
vez que é abordada não a imigração, mas a emigração, e que, supostamente, os que emigram
não experimentariam essa distinção em relação aos nacionais, mantendo seus direitos de

3
cidadãos nos países de origem. Se, em muitos casos, essa é uma realidade, em outros, alguns
desses direitos também podem ser perdidos e se tornarem, inclusive, alvo de disputas políticas
no contexto das diásporas, como é o caso do direito ao voto. No que se refere à diáspora cubana,
isso pode ser evidenciado nos condicionamentos impostos pelo Estado-nação em relação aos
direitos de entrada, permanência e trânsito no país de origem.
A partir do pensamento de Sayad, podemos afirmar que a estratégia dos Estados-nação
de assegurar a coesão social que se fragiliza com o surgimento da emigração passa também por
negar ou invisibilizar essa emigração, ou estabelecer modos de representá-la ou visibilizá-la
como alteridade. Assim, os mecanismos de controle sobre direitos das diásporas têm sido
acompanhados também do investimento, por parte dos Estados-nação, na construção de
estratégias discursivas ou narrativas que justifiquem o surgimento e a existência de emigração
e que podem ou não se desdobrar em políticas específicas orientadas à vinculação e integração
dessa diáspora às nações de origem.
Em relação a essas políticas, Mena (2009) denomina de “respostas extra-territoriais” o
conjunto de iniciativas implementadas nos últimos anos por alguns Estados latino-americanos
visando fortalecer as relações com as suas diásporas e engajá-las na construção nacional. Nesse
caso, os Estados buscam se configurar também como agentes construtores do espaço social
transnacional através de estruturas institucionais governamentais que se encarregam de
desenvolver estratégias e ações de vinculação com seus emigrantes através da extensão dos
direitos sociais e políticos fora do território nacional.
Hinojosa Gordonava, Domenech e Lafleur (2016) analisam essas dinâmicas
transnacionais, no contexto da mobilidade Sul-Sul ao focalizarem a evolução das relações entre
o governo boliviano e sua diáspora, especialmente após a chegada ao poder do presidente Evo
Morales Ayma, em 2006, e o processo de extensão do direito ao voto de bolivianos residentes
no exterior. Os autores observam como a relação com a diáspora se tornou central nas políticas
bolivianas e como os emigrantes desempenharam um papel ativo na conquista desses direitos,
especialmente o direito ao voto. No marco dessas políticas, a categoria “Bolívia exterior” foi
cunhada para fazer referência às comunidades de bolivianos que vivem em outros países, assim
como o novo Plano Nacional para o Desenvolvimento foi implementado com o objetivo de
favorecer os emigrantes em diferentes aspectos, especialmente no apoio a processos de
legalização e na defesa de direitos, como o do voto no exterior.
No que diz respeito à diáspora brasileira, Feldmann-Bianco (2016) lembra que, no início
dos anos 90, as mobilizações de imigrantes brasileiros e de ex-colônias portuguesas contra as
políticas restritivas do Estado pós-colonial português incentivaram a formulação, por parte do

4
Estado brasileiro, de políticas dirigidas a essa diáspora, sobretudo durante o governo Lula entre
2003 e 2010. A partir das primeiras mobilizações de brasileiros em Portugal e da fundação, em
1992, da Casa do Brasil em Lisboa, Feldmann-Bianco identifica diferentes protagonistas que
contribuíram com o caráter global que passou a assumir a diáspora brasileira: os imigrantes, a
Igreja Católica, os pesquisadores e ativistas das migrações, os núcleos do Partido dos
Trabalhadores no exterior e as autoridades governamentais.
No âmbito das mobilizações recentes de emigrantes espanhóis, analisamos, em pesquisa
anterior, como o coletivo Marea Granate, constituído por integrantes da nova diáspora
espanhola, se apropriou de mídias digitais para construir e fazer circular, em espaços
transnacionais, narrativas que buscavam o reconhecimento público, por parte do Estado, de sua
condição migratória forçada como resultado da precarização econômica e laboral no país de
origem gerada pela crise econômico-política de 20086, assim como demandar direitos
específicos para os espanhóis residentes no exterior (COGO E OLIVERA, 2017). Algumas das
mobilizações do coletivo, articuladas nas redes sociais a partir das hashtags #SinVozNiVoto,
#VotoRogadoVotoRobado e #RescataMiVoto, estiveram orientadas à reivindicação do direito
ao voto de espanhóis no exterior e à denúncia de alterações administrativas, por parte do
governo da Espanha, que passaram a dificultar o exercício deste direito (OLIVERA E COGO,
2017).

Metodologia

Para analisar a construção da figura do emigrante cubano, a partir do conceito de


narrativa, nos orientamos pela reflexão de Resende quando evoca Ricouer para lembrar que,
ao narrar, criamos os acontecimentos e ao mesmo tempo advertir que, “para além de informar
ou dar ao outro a possibilidade de vir a conhecer ou saber a respeito de um fato, ao narrar damos
vida aos objetos de que falamos e aos sujeitos a quem nos referimos ou com quem pretendemos
falar” (RESENDE, 2012, p. 4).
Na sua condição de organização discursiva específica, as narrativas existem enquanto
uma representação de acontecimentos, na medida em que os atores sociais dão sentido,
organizam e estabelecem relações entre esses acontecimentos. As práticas narrativas inserem-
se, assim, em contextos socio-históricos específicos, atendem a funções sociais e políticas e não
podem ser abstraídas das condições das quais são produzidas e recebidas (PROCÓPIO, 2016).

6
Em contraposição aos discursos do governo e da mídia espanholas que definiam a emigração juvenil como
espontânea ao associá-la à aventura, ampliação de experiência profissional e aprendizado de idiomas

5
Fairclough defende a análise narrativa como estratégia para revelar como determinadas
“construções da realidade na linguagem contribuem para a produção, reprodução, ou
transformação das relações sociais existentes” (FAIRCLOUGH, 1992, p. 87).
Em sua perspectiva sociocultural e política, as narrativas assumem, ainda, uma
dimensão relacional, se produzindo na alteridade e produzindo alteridades, assim como fazendo
emergir questões e contradições acerca das relações de poder que constituem os processos de
alteridade. Cabe lembrar, ainda, que, se as ações vividas têm significado, são as ações narradas
que têm valor na medida em que instauram publicamente um campo de disputa de significados
na definição da realidade e colaboram para produção e reprodução da memória.
Tomando a perspectiva anterior como ponto de partida, a análise que propomos nesse
artigo é desenvolvida a partir da coleta e sistematização de três modalidades de materiais
discursivos em que extraímos evidências sobre as diferentes dimensões da construção da
narrativa da figura do emigrante pelo discurso oficial do governo cubano entre 1960 e os dias
atuais. Incluímos seis perfis oficiais do governo cubano nas plataformas de redes sociais
Facebook e Twitter7 objetivando identificar deslocamentos discursivos com relação a
documentos oficiais que também fazem parte do nosso corpus geral.
Na seleção do corpus de análise, buscamos comtemplar a representatividade de
documentos em relação às reformas econômicas, políticas e sociais em Cuba que afetaram,
direta ou indiretamente, a questão migratória no país.

Estatutos/discursos Matérias e notas de imprensa publicados em Manifestações sobre a emigração


relacionados com a emigração meios digitais (2000-actualidad) cubana em plataformas de redes
em Cuba (1976-atualidade) sociais
Constituição da República de Florida: regulaciones migratorias proveen Perfil no Twitter do Ministro de
Cuba (2019) mano de obra a la máfia – Cubadebate – Relações Exteriores de Cuba:
20/10/2009 - https://bit.ly/3gLVGA7 https://bit.ly/38JlIBm

Lei No. 62 do Código Penal Nuevos shows anticubanos se fabrican en Perfil no Twitter do site“Nación y
cubano Miami – Cubadebate – 24/03/2010 - Emigración”:
https://bit.ly/2ZYCsAt https://bit.ly/2BOVTE8

7
Além dos seis canais oficiais, incluímos, no corpus de materiais empíricos, uma postagem realizada por um
jornalista cubano no seu perfil pessoal no Facebook, conforme detalhamos na tabela de classificação dos materiais
analisados. Optamos por incluir essa postagem pelo fato de oferecer, no âmbito das plataformas de redes sociais,
um síntese das tensões e conflitos discursivos que ainda estão presentes entre Cuba e sua emigração.

6
Discurso de Fidel Castro Elián: Y el niño se hizo hombre- Cubadebate Site “Nación y Emigración” -
(1980) - 16/04/2010- https://bit.ly/3272i8m https://bit.ly/2BWuakE

En Cuba los acoge un pueblo altivo - Diario Perfil no Twitter do Diretor de


Discurso de abertura da III Granma – 15/01/2014 - https://bit.ly/3fk9Yrl Assuntos Consulares e cubanos
Conferência “Nación y residentes no exterior de Cuba:
Emigración” (2004) https://bit.ly/3iSsFob

Disposições gerais migratórias La consolidación de los cambios en la Perfil no Twitter do Presidente


cubanas/ Edição atualizada da comunidad cubanoamericana – Cubadebate – cubano Miguel Díaz-Canel:
Lei 1312 -Lei de Migração de 17/09/2016 - https://bit.ly/326Fndm https://bit.ly/2ZUW6xv
1976/ Edição atualizada do
Decreto 26 - Regulamentação
da Lei de Migração- de 1978.

Comunicado do Departamento Cubanos residentes en el exterior participarán Perfil no Twitter da Presidência da


de Estado dos Estados Unidos en debate del Proyecto de Constitución – República de Cuba:
sobre as relações migratórias Cubadebate – 03/08/2018 - https://bit.ly/2W9BoZH
com Cuba. https://bit.ly/2ZT1iSq

Chamada oficial para a IV Los cubanos residentes en el exterior Post publicado pelo jornalista
Conferência “Nación y constituyen un importante pilar en la defensa Francisco Cruz Rodríguez em seu
Emigración”. de la Patria – Diario Granma 10/12/2019 - perfil pessoal do Facebook no dia
https://bit.ly/2ZVHygV 19/09/2020.

Lei de Ajuste cubano El proceso de normalización con la


emigración es continuo, irreversible y
permanente – Juventud Rebelde –
14/01/2020 - https://bit.ly/2ZeUoYD

7
Cuban Liberty and Democratic Dialogando con la emigración cubana:
Solidarity Act (1996) ¿cómo lograr que en verdad el país crezca? –
OnCuba News – 15/02/2020 -
https://bit.ly/3ejsBur

Decreto-Lei No.302.
Modificativo à Lei No.1312,
“Lei de Migração” de
20/09/1976.

Decreto No. 26
“Regulamentação da Lei de
Migração” (Edição atualizada)
Lei No. 1312 “Lei de
Migração” (Edição atualizada)

Tabela 1. Classificação dos materiais analisados como parte do corpus do trabalho. Fonte:
Elaboração própria.

Cubanos para lá e para cá: ciclos migratórios e a politização da mobilidade


Os primeiros registros de uma história migratória cubana, e, particularmente, da
consolidação de uma diáspora procedente da ilha, se remontam ao século XIX. De acordo com
o historiador cubano Louis A. Pérez Jr. (2007), entre 1860 e 1890 “[...] dezenas de milhares de
cubanos emigraram ao Norte; foi um êxodo que assumiu as proporções de uma diáspora”
(PÉREZ JR., 2007, p.34).
Estes fluxos emissores se mantiveram mais ou menos constantes durante décadas, razão
pela qual Cuba ingressa no século 20 com uma população em crescente mobilidade (PÉREZ
JR., 2007) ao mesmo tempo em que se posiciona como nação receptora de imigrantes. O
pesquisador Antonio Aja (2002) destaca que até 1930 Cuba havia reportado saldos migratórios
positivos devido aos significativos fluxos migratórios procedentes principalmente da Espanha
e das Antilhas.
A partir deste momento, a crise económica no país e as políticas restritivas para a
emigração que se consolidaram no período colaboraram para que Cuba se tornasse uma nação

8
mais de emigrantes do que de imigrantes8. Este momento coincide com uma nova onda de
cubanos se deslocando para os Estados Unidos, que, nos anos 50, já somavam 35.145 mil (AJA,
2002, p.3).
Após o triunfo revolucionário em 1959, os fluxos de emigrantes procedentes de Cuba
se mostram em consonância com esse novo perfil migratório. As viagens por motivos políticos
começam a aumentar em alguns setores sociais, protagonizadas fundamentalmente por
expropriados durante os primeiros anos da Revolução e abertamente opostos ao regime
socialista.
A politização do deslocamento de cubanos para o exterior, por parte do governo, em
particular em relação aos que se dirigiam aos Estados Unidos, alcançaria seu ápice discursivo
a partir dos anos 1960. É nesse década que a saída do país começa a ser compreendida como
abandono e antipatriotismo diante de um esforço coletivo de reconstrução autônoma do país
frente às suas heranças coloniais e neocoloniais, mas também em um contexto em que
começaram a ser gestadas tentativas de sabotagem interna financiadas pela comunidade de
exilados cubanos na Flórida, e promovidas políticas de favorecimento migratório por parte dos
Estados Unidos9 (GRENIER, 2015). Nesse mesmo período, o estigma do emigrante enquanto
traidor foi inscrito no marco legislativo da nação cubana através da Lei 989 do ano 1961, o qual
estabelecia que “[...] o ato de migrar é considerado enquanto traição à Pátria” (BRISMAT,
2011, p.155).
Tais viradas discursivas precisam ser analisadas no contexto de uma atmosfera
cultural/moral e entusiasmo revolucionário (FORNET, 2007) que proliferaram nos primeiros
anos da Revolução e se sedimentaram, durante muitos anos, na vida social e política de Cuba.
Este período esteve marcado, em termos migratórios, por uma barreira ideológica (LÓPEZ,
2015) que separava e criava retóricas beligerantes entre os de “lá” e os de “cá”. Rodríguez
Chávez (1999) destaca que, após a institucionalização do Acordo Migratório entre Cuba e
Estados Unidos, em 1984, o perfil do imigrante cubano em potencial aparece descrito no
caderno estatístico da migração para os Estados Unidos (1992) como pessoas brancas maiores
de 30 anos de idade, residentes na cidade de Havana (capital do país) com nível de ensino básico

8
Embora Cuba não tenha deixado de ser receptora de imigrantes, especialmente, a partir da década de 60, daqueles
procedentes de América Latina e outras partes do mundo, como Europa de Leste (CHOTIL, 2016; DE LA ROSA
et.al., 2018).
9
De acordo com o pesquisador Guillermo Grenier (2015), os cubanos constituem o único grupo migratório com
privilégios especiais nos Estados Unidos. A partir de 1966, os EUA instituíram a “Cuban Adjustment Act” (Lei
de Ajuste Cubano), garantindo a possibilidade de residência permanente a cubanos que tivessem chegado ao país
e residido por dois anos ininterruptos, mesmo que sem regularização jurídica. Além dessa possibilidade, os
imigrantes cubanos têm direito ao acesso a licenças de trabalho, previdência social, dentre outros. Ver:
https://www.uscis.gov/green-card/green-card-eligibility/green-card-for-a-cuban-native-or-citizen.

9
ou médio completos (RODRÍGUEZ CHÁVEZ, 1999, p.40), pertencente, em sua maioria, à
classe trabalhadora e contrastando com os early émigrés (LÓPEZ, 2015) dos anos 60. A
presença majoritária de classes mais populares nas ondas migratórias cubanas após o triunfo
revolucionário reforçava o discurso anticastrista de afirmação do fracasso do projeto da
Revolução promovido por Washington, e que se materializava nas saídas em massa de cubanos
a qualquer custo e por quaisquer meios.
A partir da aprovação da Lei de Ajuste Cubano10, os Estados Unidos foram bem
sucedidos em criar uma emigração irregular e parecida com oposição política. Embora, em
muitos casos, a mobilidade fosse vivenciada, pelos cubanos, como a única opção frente ao
descontentamento com a deprimida economia cubana da época (GRENIER, 2015). A natureza
polarizada das relações entre ambos países também contribuiu para a sedimentação de um
padrão de migração de tipo irregular entre a população cubana potencialmente emigrante (AJA,
2002). O caráter clandestino das saídas de cubanos em direção à América do Norte se tornou
cada vez mais comum e se viu fortalecido a partir da implementação, pelos Estados Unidos, de
políticas como a dos Pés secos/pés molhados 11 e do Programa de Permissão para Profissionais
Médicos Cubanos (CMPP)12, assim como da atuação de organizações cubano-americanas
opositoras ao regime socialista. O governo cubano também contribuiu com essa politização ao
estabelecer políticas restritivas e sanções para seus emigrados, especialmente para médicos e
profissionais qualificados, e aplicar medidas como a proibição de entrada ao país dos imigrantes
irregulares e de uso de embarcações turísticas13. Portanto, até 1994, o governo de Cuba se
mostra bastante reticente na relação com sua diáspora, restringindo os vínculos com seus
emigrados considerados um “outro” não pertencente à nação.

A Revolução os cria. Contextos político-narrativos do deslocamento cubano pós


revolucionário.

Grenier (2010) destaca que a politização da emigração, particularmente a definição de


um grupo de emigrados enquanto “exilados”, está sujeita à natureza das relações políticas entre

11
A política dos “Pies secos/pies mojados”, implementada pelo governo dos Estados Unidos a partir de 1995,
tinha como proposta promover a emigração irregular de cubanos para o território estadunidense por meio da
concessão de privilégios migratórios a cubanos que conseguissem pisar Estados Unidos sem serem interceptados
no mar. A política foi extinta em 2017 durante o governo de Barack Obama. .
12
Programa criado em 2016 pelo Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos para facilitar a
entrada em território norte-americano de médicos cubanos que se encontravam fora da ilha.
13
Algumas de estas medidas deixaram de ter efeito a partir de algumas reformas migratórias realizadas pelo
governo cubano no marco do IV Encontro de Cubanos Residentes nos Estados Unidos, em 2017. Ver:
http://www.cubadebate.cu/noticias/2017/10/29/que-significan-las-nuevas-medidas-migratorias-de-
cuba/#.X4YqRdBKjIW.

10
os Estados de origem e de recepção. Como vimos, por ser Estados Unidos o principal país
receptor de cubanos, a politização foi um caminho inevitável, dado o caráter das relações
históricas entre EUA e Cuba e os condicionantes legais que eram impostos aos trânsitos
migratórios por ambos os países.
Em meio a uma euforia nacionalista instaurada no período inicial da Revolução cubana,
a emigração passou a ser atacada com severidade, tanto discursiva quanto legalmente. Para isso
contribuíram as políticas norte-americanas mencionadas anteriormente, assim como o fato de a
oposição mais potente ao governo cubano estar integrada por grupos de exilados que optaram
por sair de Cuba e se assentar nos Estados Unidos em um período dos anos 60 em que a
Revolução já mostrava seus traços socialistas. Estes grupos promoveram a construção de um
discurso hegemônico intervencionista alinhado à agenda política dos Estados Unidos sobre
Cuba (LEVY, 2011) que ainda ecoa atualmente. O ícone desta coalizão foi a criação, no ano de
1981, da Fundação Nacional Cubano-Americana (CANF)14.
Posteriormente, a emergência de novos eventos políticos engendrou outras narrativas
controversas entre os de “lá” e os de “cá” no contexto da “Batalha de Ideias”15. Em 1999, Cuba
vivenciou uma mobilização coletiva liderada, em termos discursivos, por Fidel Castro, pelo
retorno à casa do menino Elián González, que foi utilizado como isca simbólica pelo exílio
cubano-americano para produzir narrativas políticas contra o governo de Castro na ilha. Elián,
menor de idade, partiu rumo aos Estados Unidos numa embarcação clandestina junto à sua mãe
com o intuito de solicitar residência naquele país. O naufrágio do barco e a sobrevivência de
apenas Elián e outras duas pessoas resultaram na disputa pela tutela do menino por familiares
que residiam nos Estados Unidos e o pai que morava em Cuba e que também solicitou o retorno
do filho sob argumento de não ter autorizado sua partida.
O caso Elián desencadeou uma polarização narrativa bastante intensa e midiatizada por
parte do governo cubano, representado mais uma vez pela voz “do povo” que participava das
marchas pelo retorno do menino, e a denominada “máfia anti-cubana” da Flórida que, aliada a
líderes políticos do país norte-americano, defendia a permanência de Elián nos Estados Unidos.
Nessa perspectiva, o exílio histórico de cubanos em Miami contribuiu também para a
consolidação de uma representação do emigrado como traidor e desertor.

14
Fundada em 1981 pelo exilado de origem cubana residente nos Estados Unidos, Jorge Más Canosa. Ver:
https://www.canf.org/about-us.
15
Por “Batalla de Ideas” ficou conhecida a mobilização ideológica coletiva ocorrida em Cuba a partir do sequestro
do menino Elián González em 1999. A partir dela, surgiram 179 projetos que incluem passeatas coletivas por
determinadas causas, programas educativos e informativos para a população cubana, dentre outros.

11
Nesse período, um campo semântico que hostiliza a emigração começa a se expandir na
retórica revolucionária. Brismat (2011) já apontava para essa estigmatização nas narrativas
oficiais cubanas através de termos como “[...] traidor à pátria, escória ou lumpen” (BRISMAT,
2011, p.175), que aparecem enunciados no discurso proferido pelo líder da Revolução, Fidel

Castro, após os protestos dos Marielitos16. Os termos utilizados indicam que aquelas pessoas
que, em meio ao projeto de reconstrução de Cuba, se recusaram a permanecer no país e ainda
promoviam distúrbios sociais, seriam desprezadas pelo povo e, portanto, excluídas da sociedade
através da abertura das fronteiras marítimas. Em outro trecho do discurso mencionado,
observamos essa separação entre as figuras do povo e dos emigrantes no contexto dos
“Marielitos”: “Este é nosso povo! O povo que está aqui, esse povo de trabalhadores, de
soldados; o povo internacionalista [...]. Esse, esse é o povo, não os lumpens que querem
apresentar como imagem do mesmo, a escória que se assentou na embaixada do Peru!
(CASTRO, 1980).

Segunda fase: o bom filho à casa torna. Redenções narrativas entre Cuba e sua emigração.

A partir de 1994, Cuba começa a dar os primeiros passos para uma ressignificação
retórica da questão migratória. Um exemplo disso foi a criação, em 1994, da Direção de
Assuntos Consulares e Cubanos Residentes no Exterior (DACCRE), subordinada ao Ministério
de Relações Exteriores de Cuba, assim como a criação de outros órgãos representativos da
comunidade emigrada ao redor do mundo (MENA, 2009, p.43). Tais entidades se mostram
bastante ativas nas plataformas de redes sociais, e as narrativas produzidas nesses espaços
ecoam discursos e valores do governo cubano, além de estarem, muitas vezes, associadas
diretamente às representações diplomáticas do governo cubano no exterior.
O governo de Cuba caminha para a adoção de um novo posicionamento diante de sua
diáspora. Um novo tipo de emigrante menos politizado e mais “econômico” emerge
discursivamente como resultado da flexibilização das políticas migratórias na ilha, contribuindo

16
Em 1980, ocorre o êxodo do Mariel em Cuba, uma onda migratória massiva desencadeada pelo
descontentamento de alguns setores da população com a crise econômica. Como resultado desse
descontentamento, alguns grupos de cubanos invadiram violentamente as embaixadas do Peru no intuito de
solicitar asilo político. O então presidente da República, Fidel Castro, respondeu com a abertura do Porto de Mariel
e a permissão para que algumas embarcações procedentes dos Estados Unidos chegassem até a costa cubana e
levassem quem quisesse ir embora do país.

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para que, alguns anos mais tarde, em especial a partir de 2013, os fluxos migratórios passem a
ser tratados como “temporários” (AJA et.al, 2017).
Colaboram para essa reconfiguração discursiva os interesses do governo para o ingresso
em Cuba de remessas enviadas por sua diáspora, em um contexto económico bastante crítico
após a desintegração do bloco socialista e o início do Período Especial em Tempos de Paz17.
Trata-se, contudo, de um reordenamento discursivo que não ocorre de maneira linear. A
reconciliação do governo cubano com sua diáspora iniciada nos 90 atravessou momentos de
tensão e retrocesso a partir dos conflitos ideológicos observados no contexto da “Batalla de
Ideas” mencionada anteriormente, ou, ainda, com o aumento significativo da mobilidade sem
regulação jurídica para os Estados Unidos.
Com a reforma econômica iniciada em 2007, o Estado cubano começa a implementar
medidas visando a superação da que foi a mais grave das crises experimentadas durante a etapa
revolucionária: o Período Especial em Tempos de Paz (DÍAZ VÁZQUEZ, 2012). Muitas das
medidas posteriores a essa etapa se orientam, embora de forma tímida e indireta, ao
reconhecimento dos direitos da diáspora (AJA et.al, 2017) e sua participação econômica na
nação, possibilitando aos emigrantes maior presença na vida pública cubana. Essa participação
se concretiza através do ingresso de divisas ao país por meio de remessas familiares, sobretudo
após a despenalização do dólar em 1993, assim como, mais recentemente, através de medidas
como a criação de contas correntes em dólares e de investimentos diretos em iniciativas
comerciais privadas em Cuba (ALFONSO E SÁNCHEZ, 2017). As remessas têm sido
particularmente importantes para a economia da ilha por financiarem, dentre outros, o
desenvolvimento de pequenos negócios e o empreendedorismo, cujo crescimento, em meados
dos anos 90, já se aproximava ao volume gerado em moeda estrangeira pelo setor turístico na
ilha (DUANY, 2000). Estudos apontam que, nos anos 2000, 90% das remessas em dólares
recebidas em Cuba se originavam na diáspora residente nos Estados Unidos (OROZCO, 2002).
Contudo, a produção de vínculos entre Estado e diáspora transcende a perspectiva
econômica, ao estar vinculada à reorganização social e política vivenciada por Cuba a partir
dos anos 90. A busca dessa vinculação é resultado também de políticas reformistas que dão

17
De acordo com o pesquisador Rafael Hernández (1998), denominou-se Período Especial em Tempos de Paz ao
“[...] cenário de mínimo acesso a recursos e austeridade máxima que tinha sido imaginado como contingência
própria da guerra” (p.3). O período derivou da queda do bloco socialista europeu e a consequente diminuição das
importações de mantimentos e recursos essenciais, e começa a afetar com maior intensidade a economia da ilha a
partir de 1991.

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continuidade a um caminho de retificação de erros do passado ao mesmo tempo em que é
assumida por uma liderança política cubana renovada a partir de 201818.
A concretização deste novo posicionamento visando a criação de vínculos entre nação e
emigração se manifesta mais recentemente em espaços das mídias digitais, como Twitter e
Facebook, onde se produzem interações que, por um lado, evidenciam uma figura
governamental menos enrijecida e, por outro, uma sociedade civil cubana muito mais
participativa e emergente. A comunidade emigrada participa de forma ativa desses espaços, e
as barreiras entre “povo” e “emigrados” são praticamente dissolvidas juntamente com um
processo de desconstituição de um guia de moralidade do revolucionário, considerado arcaico
e desfasado.
Paradoxalmente, a própria retórica que serviu como ferramenta de divisão entre os que
partem e os que ficam na ilha de Cuba opera, atualmente, como estratégia narrativa que subverte
essa visão hostil e preconceituosa sobre o emigrante ao permitir o estreitamento dos vínculos
entre a comunidade diaspórica de Cuba e os residentes da ilha, assim entre os emigrantes e o
aparato institucional do governo. Discursos como o do Chanceler cubano, apresentado na
imagem que segue, exemplificam como a narrativa oficial tem apostado com força na
integração com os emigrados, agora considerados uma extensão da nação fora do seu território
físico ao serem referidos como “nacionais”. Destaca a escolha pela hashtag
#LaPatriaSomosTodos, o oposto semântico da díade nação/emigração acionada em décadas
passadas para representar a relação conflituosa e excludente com os deslocados.

Figura 1. Perfil oficial do Chanceler cubano Bruno Rodríguez no Twitter. Data: 31/01/2020.

18
Pela primeira vez em 59 anos, a Presidência de Cuba é ocupada por uma figura política não diretamente
associada à Fidel e Raul Castro, únicos dois presidentes do país desde 1959 até 2018.

14
Da severidade discursiva, o país transita, nesses últimos anos, para um posicionamento
narrativo muito mais flexível, dialógico e integrador, cujo apogeu pode ser identificado na
convocatória realizada em 2019 pelo governo cubano para que os emigrados participassem do
processo de votação de uma nova Constituição, um fenômeno sem precedentes em Cuba. A
aparição de termos integradores e, inclusive, de hashtags que advogam pela integração entre a
diáspora e o Estado-nação cubano pode ser identificada em outra das manifestações recentes
dessa virada retórica: a chamada oficial para a IV Conferência “La Nación y la Emigración”,
que teria lugar em Havana em abril de 2020 e foi anunciada pelo próprio Presidente da
República. Um tweet coletado no perfil da Presidência de Cuba ilustra esse atual
posicionamento conciliatório adotado pelo governo cubano na relação sua com sua diáspora,
como se observa na imagem seguinte:

Figura 2. Captura de tela do perfil oficial da Presidência da República de Cuba no Twitter. Data:
20/02/2020.

A escolha por termos como “aproximação”, “entendimento mútuo”, assim como o uso
da hashtag #SomosCuba denotam narrativas agregadoras enfatizadas pelo uso da primeira
pessoa do plural na maioria das conjugações verbais e na própria hashtag principal do tweet.
Contudo, trata-se ainda de narrativas revestidas de demarcações ideológicas claras por parte da
oficialidade cubana que defende a conciliação única e exclusivamente em um contexto de
consenso político entre aqueles emigrados interessados no diálogo. Com esse enquadramento,

15
identificamos narrativas como a do Diretor de Assuntos Consulares e Cubanos residentes no
exterior, Ernesto Soberón, que, em entrevista ao jornal cubano “Juventud Rebelde”, qualifica o
processo de normalização da emigração como “contínuo, irreversível e permanente” e, mais
adiante acrescenta, ao se referir particularmente aos emigrados residindo nos Estados Unidos,
que “[...] a maioria [...] rejeita a política agressiva do governo do Presidente Trump contra Cuba
e apoia o fim do embargo” (LÓPEZ BLANCH, 2020).

Considerações finais

Na perspectiva das tramas políticas, sociais e econômicas que configuram a dinâmica


emigratória cubana, nos propusemos nesse artigo a refletir sobre como o governo cubano
construiu, ao longo de 60 anos, narrativas cíclicas de exclusão e reconciliação frente à sua
diáspora.
A análise permitiu apontar duas etapas fundamentais na retórica oficial cubana diante do
deslocamento de sua população: a primeira, que se estende de 1959 a 1994, prevalece uma
postura defensiva diante dos discursos intervencionistas dos Estados Unidos, se estabelecem
políticas migratórias restritivas, se consolida a emigração irregular e se constrói narrativamente
a figura do emigrante em oposição à nação. As políticas e narrativas sobre emigração que
surgiram neste contexto responderam à necessidade de garantir a soberania de Cuba sobre o seu
território, e conduziram inevitavelmente ao enquadramento da identidade do emigrante como
traidor e, portanto, a um duplo deslocamento físico e simbólico, baseado na consolidação de
uma retórica de rejeição ao emigrado.
Já a segunda etapa, de 1994 em diante, introduz uma certa flexibilidade discursiva por
parte de um projeto político maduro, cuja postura em relação à emigração é constantemente
questionada por uma sociedade fragmentada entre os de 'lá' e os de 'aqui'. A ressignificação da
figura do emigrante passa da diferenciação à integração com a nação, embora sob discursos
ainda politizados, onde há uma importante demarcação ideológica que discrimina o tipo de
emigrante com o qual o país propõe uma reconciliação.
Apesar deste exercício analítico por etapas, destacamos que a produção de sentido em
torno do emigrante não se esgota nessa cronologia. Por se tratar de processos coletivos de
significação que derivam das experiências e contextos históricos que Cuba atravessa como
nação, bem como das bases ideológicas sobre as quais se legitima o projeto revolucionário, são

16
processos de natureza circular que, como lugares simbólicos, podem se reatualizar e se tornarem
recorrentes.
A construção binária e politizada do emigrante cubano nos primeiros anos da Revolução
encontrou, nas plataformas digitais, novas formas de se manifestar. Esses espaços introduzem
novas dinâmicas e variáveis na relação entre o Estado cubano e sua emigração, além de criarem
uma instância de interação e debate coletivo que envolve um terceiro ator no diálogo: a
sociedade civil. Novos dispositivos de interpelação e questionamento do Estado são ativados,
redes transnacionais são fortalecidas, atores da diáspora passam a ter influência na agenda
política dos Estados Unidos em relação a Cuba (Sputnik, 2020), e o exercício político é
diversificado em uma geografia digital que não conhece limites. Tais manifestações, apesar de
não terem sido abordadas no presente trabalho, propõem novos prismas teóricos, metodológicos
e empíricos para pensar a produção de sentido em torno dos reordenamentos e complexidade
da emigração cubana atual.

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