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O Sentido de Lugar Livia de Oliveira [ed Que importa este lugar se todo lugar é ponto de ver e ndo de ser? E esta hora, se toda hora ‘id se completa longe de si mesma e te deixa mais longe da procura? [ol CARLOS DRUMOND DE ANDRADE* “En un lugar de La Mancha... assim inicia a aventura rocam- bolesca narrada por Cervantes no Don Quijote de La Mancha. Sempre ha um lugar para se chegar ou se partir. E sempre ha necessidade de se saber o sentido que se atribui a esse lugar. Qual é 0 sentido de lugar? Ao se acordar que o lugar acompanha sempre o homem, nem sempre concordamos com esta ou aquela definicao. HA uma infinidade de definigdes de lugar e de sentido que varia conforme as teorias e os autores. Umas objetivas e outras sub- jetivas. O sentido de lugar implica o sentido vida e, por sua vez, o sentido do tempo. Cassirer j4 colocava uma separacao entre a realidade subje- tiva e objetiva, sem pressupor o dualismo dos conceitos meta- fisicos, pois os valores nao sao deduzidos de uns ou de outros, sendo a diferenca entre uma e outra mera significancia rela- tiva*, Objetivo sao aqueles elementos da experiéncia que per- sistem mediante todas as mudancas do aqui e agora. Enquanto 0 subjetivo pertence ao sujeito, toda mudanga em si, e somente, 4 Origem v1, Obra Completa, Sao Paulo; Nova Aguilar, 2002, p. 325. 2 E. Cassirer, Substance and Function, p. 271. I QUAL O DMT DO FUGA expressa a determinacao particular tinica aqui e agora. Mais adiante, 0 autor postula que nunca conhecemos as coisas que elas séo em si mesmas, mas que somente podemos apreender as permanéncias e mudangas, estabelecidas nas suas relagoes'. As coisas existem por si mesmas, mas sao somente conhecidas para nés em suas interagées, que influenciam ou obscurecem a natureza de cada uma. Para nos nortear no emaranhado labirintico sobre “o sentido de lugar’, faremos consideragées, primeiramente se- paradas, sobre as duas nogées. Em seguida, abordaremos as dimensées significativas do lugar, a fim de tecer um fio de Ariadne que relacione as diferengas/semelhangas entre os no- mes € as coisas; entre o lugar e o seu sentido. NOGAO DE LUGAR O lugar ficou conhecido como Fonte dos Padres, mas depois que seus pequenos alunos indigenas orfaos vindos do reino comecaram a se banhar ali, passow a ser chamado de Agua de Meninos. EDUARDO BUENO* Diante do termo, comegamos com uma consulta ao dicionario. Encontramos que 0 verbete “lugar” é um substantivo mascu- lino oriundo do antigo latim légar, [écus e local como adjetivo. Para nosso espanto, nos deparamos com nada mais nada menos que dezoito vocdbulos para designar lugar. A definigao de lugar se mescla, se confunde com espago ocupado (aqui empregare- mos esse termo), com sitio, Em outras vezes significa povoacao, localidade, regido e até pais. Em ocasides diversas quer dizer posi to, calegoria, situagdo, origem, sendo empregada tam- bem como oportunidade, ensejo e vez. Lugar e tempo se nos aptesentam frequcntemente intimamente ligados, Percebemos entimos.a realidade temporal acoplada ao lugar, ao espacial. Amplicnios um pouco mais a compreensao, Lugar nao é uma forma nem ania materia, aristotelicamente falando. Também bo ddemy pe sos AE Bueno, A Corea, a Crue ea Espada, p. 109. Hao re tnter yale OF tin vazto espacial que pode ser sucessi vamente octipado pot diferentes corpos fisicos & por si mesmo. ia ter concebido foi o conceito de um moderna tcoria da relatividade: um lugar é imoével, no sentido figurado, A concepgao atual de lugar é de tempo em espago; ou seja, lugar é tempo lugarizado, pois entre espacgo e tempo se da o lugar, o movimento, a matéria. Or qae Arestoteles nao pod NOGAO DE SENTIDO Vocés veem como estou escrevendo a vontade? Sem muito sentido, mas 4 vontade. Que importa o sentido? O sentido sou eu. CLARICE LISPECTOR? De volta ao diciondrio, tivemos uma igual surpresa quando nos deparamos com uma infinidade de vocabulos também para sentido. Assim, buscando no léxico, o verbete “sentido” aparece como participio do verbo sentir. Ainda, sentido é empregado como ad- jetivo: sensivel, triste, magoado. Porém, quando usado como sujeito masculino pode significar fisiologico (forma de receber a sensacao dos drgaos dos sentidos), senso, juizo, propésito, objetivo, pensamento, aspecto, cuidado; ou sujeito feminino: atengao, direcao, adverténcia, voz de comando (militar). Por outro lado, ainda podemos usar 0 termo como: sentido figu- rado, fazer sentido, segundo sentido, ter sentido. Todavia, convém lembrar com Cassirer que talvez nao exista problema mais desnorteante e controverso que “o sen- tido do sentido”®. Na filosofia classica, a solucgao de tentativa partia da presuncao de que sem identidade entre 0 objeto a ser conhecido e a realidade conhecida o fato do conhecimento se- ria inexplicavel. Para pensar qual é 0 “sentido do sentido’, é necessario, de inicio, “o significado ser explicado em termos de ser; pois 0 8 C. Lispector, Aprendendo a Viver, p. 65. 6. Cassirer, Antropologia Filosdfica, p. 179. 6 QUAL O SPAGO DO LUGAR ser ou substancia é a categoria universal, que vincula entre st verdade e realidade”’. Neste texto, utilizaremos 0 termo como acep¢do, como sig, nificado ou significagao, 0 que as coisas querem dizer. DIMENSOES SIGNIFICATIVAS DO LUGAR: O HABITAR E O FALAR “Por que vocés néo deixaram a floresta?” “Nao podemos sair de nosso lugar.” “Por qué?” “Amamos ficar em nossa floresta, Gostamos daqui. E um lugar tranquilo para dormir. E tépido, Nao é ruidoso.” YI-FU TUAN® Tentaremos ampliar a nogao de lugar com discussées a respeito do tema sob varios enfoques, procurando esclarecer as dimen- sées significativas do lugar. A diferenga de lugares serve, as vezes, de base a uma dife- renciacao dos objetos fisicos entre eles (isto e aquilo) e a uma diferenciagao entre pessoas (eu, tu, ele). A divisdo entre os dois fatores da representacao: o representado e o que representa (significado e significante) levam em si o germe de uma intui- ao espacial, denotando o carater tinico ao tempo do tempo da irreversibilidade, que deverd permanecer obscuro’. Assim sendo, o grupo Bourbaki (associagao dos colabo- radores do matematico Nicolas Bourbaki) reconhece trés es- truturas-maes na matematica moderna: estruturas algébricas ou de grupo, estruturas de ordem ou redes ¢ estruturas topo- légicas, incluindo a nogao de lugar. Com isso, queremos assi- nalar a relevancia do conceito e da nogao de lugar em todas as nossas preocupacées filosdficas e epistemoldgicas amarradas a4 importancia e complexidade do fato de representar lugares. E aceito universalmente que a ldgica do lugar coincide sem- pre, em linhas gerais, com o paradigma que, em cada época, 7 Idem, p. 180. 8 YR Tuan, Espago e Lugar, p. 177. 9 G.Bachelard, A Poética do Espaco. © Homer: obteve sobre as titerrebigoes cutre si mesmo e seu meroambicnte Hin outvas palavras, o lugar, como limite, é um balance cilmico entre razao ¢ historia ou movimento e pausa. Qutra dimensao significativa de lugar encontraremos na obra chissica de Gaston Bachelard, que ja na metade do século \\ apontava o lugar como a primeira qualidade existencial, por onde todo estudo deveria comegar e terminar’’. E acres- cent que o principio de vizinhanga/proximidade esta na base de toda nogao de distancia, pois é muito geral e conveniente o principio das conchas sucessivas de Aristoteles. Mediante aquele principio, concretizamos nossos axiomas convencionais © ao mesmo tempo racionalizamos nossa experiéncia. Muntafola aponta o entrecruzar sociofisico do lugar em \rés abordagens diferentes: acontecimento, estrutura e estru- tura e acontecimento”’. O lugar como acontecimento, analisado mediante 0 labi- rinto do acontecer heideggeriano, em sua obra classica Ser e Tempo, discorre sobre o Homem descobrindo um “espago no tempo”. Na concepcao do lugar humano existem dois tipos de estruturas: o lugar itinerante e o lugar radiante. Este estatico, que permite, imovel, o reconstruir dos circulos sucessivos até os limites do desconhecido; aquele dinamico, que recorre ao espaco como consciéncia, aquilo que se recorre. No primeiro, aimagem do mundo é um itinerdrio e no segundo, a imagem se integra em duas superficies opostas, a do céu ea da terra, que se unem no horizonte. Sobre o lugar como estrutura, ¢ sintomatico que Lévi- -Strauss tenha feito pouco uso em seu método, talvez com ex- cegao ao estudar a aldeia dos Bororo, aqui no Brasil. As ideias sobre o lugar como estrutura dos antropdlogos e semidlogos mostram mais o que deveria se fazer do que praticamente se tem feito. Pois, uma coisa é postular a existéncia de um para- lelismo entre linguagem, ritos e lugar; e outra, muito diferente, é provar esses paralelismos com os dados empiricos. Esse pa- ralelismo parece mudar com a cultura némade das diversas tribos estudadas. 40 Idem. 11 J. Muntafola, Le Arquitectura Como Lugar, p. 28-32. % UAL O PSEA O HEEL AL O lugar como sintese progressiva cntre acontecimento «¢ estrutura é que atinge melhor a nocao sociofisica de lugar. S« gundo Cassirer, a nogao sociofisica de lugar é definida come acontecimento, como estrutura de sintese entre mudangas com a propria cultura’*. Muntafiola aceita, sociologicamente, uma semiotica do lugar, enquanto uma representacado e um repre sentado, correspondentes a um significante e um significado. Nosso meio fisico se estrutura simultaneamente com nosso meio social, a partir de uma mesma origem, e solidariamente de duas ages essenciais do sujeito: conceitualizagao e figura- ¢40, conforme a figura o1. O centro do diagrama nao representa um individuo concreto, senao 0 entrecruzamento de um habitar e um falar, ou mediante o estudo de uma cultura em sua totalidade como estrutura. Figura 1: Esquema do lugar mM ——__ meio fisico —-_——————_» 2 % 5 by 8 § bry £ g w & é © m—__|_]_——___ meio fisico ——————____» Fonte: Muntafiola (1973, p. 40). Além disso, para Muntafiola’®, o lugar sociofisico pode ser resultante de trés tipos de polaridade estruturais e funcionais: a polaridade habitar e falar, a polaridade figurar e conceitualizar ea polaridade meio fisico e meio social. Cada uma pressupde 12 E, Cassirer, Substance and Function. 13. J. Muntaiola, op. cit. p. 42-44, booutiecdias, que por sta vez se tntepram, como se pode ob- Lervat nos dlagnainias seguintes, les representam as trés di- Incosoes significantes (Higura 2). Higuns © As tres dimensdes significativas Hipungacy falar meio fisico <__—__—> conceitualizagio habitar « > conceitualizagao habitar meio social A B Cc Fonte; Muntaiola (1973, p.43) Cada uma das trés dimensées significativas da realidade so- ciofisica se entrecruzam de modo diferente em relagao ao espaco ao tempo. O sentido ou significagao A sera sempre em direcao do espaco ao tempo e do tempo ao espaco, sendo essencialmente um movimento. Ao passo que a significagao B exige uma situacao antes e depois no tempo em um espago fixo, assumindo a forma de um lugar. A significacao c, em si, e como equilibrio entre a es, deverd identificar movimento e lugares por meio do duplo jogo figurativo-conceitual de nossa capacidade mental humana. E um paradoxo expressar que a significagao c se nos manifesta como material; nesse caso, a matéria sendo o nosso axioma de vizinhanga sociofisica ou nossos padrées, pois somente identi- ficando tempo e espago de um modo ou de outro € que conse- guimos colocar em ago as significagdes C. Em outras palavras, a nogao sociofisica de lugar como sin- tese entre acontecimento e estrutura s6 pode ser real na me- dida em que as inter-relagées entre as trés significagées forem descritas ¢ analisadas em nivel biografico individual ¢ em nivel coletivo, tanto no sujeito como no objeto. Muntafiola escreve também sobre a histé mando atengao para o nomadismo e 0 sedentarismo'. Povos que viveram ou vivem uma vida némade se estruturavam em um lugar a do lugar, cha- 14. Idem, p. 45-33 to eu eran wet sociofisico de aspecto ilinerante; enquatilo os povos de econontit agricola sedentaria concebiam um lugar predominante radiate Além disso, todos os povos tiveram de equilibrar o itine rante e o radiante do lugar, sem isso sua mobilidade teria sido, sociofisicamente falando, mula. O autor cita o exemplo de aborigenes australianos cuja no ao de lugar reside na qualidade de estar aqui e nao acold, acen- tuando a separacao entre o interior e 0 exterior, o que revela a ideia de envolvimento como essencial ao lugar. Entre esses povos nao é a gente que possui a terra, e sim a terra que possui a gente. Assim, as propriedades nao sao medidas, mas conhe- cidas. O exemplo citado de sedentarismo mitoldgico radiante sao os lugares dos impérios mesopotamico e egipcio. Nao sao mais os fatos naturais que dirigem as relacdes do habitar com 0 falar, mas os fatos construidos com seus armazéns, ferramentas, transportes, palacios, templos. ‘Todos esses fatos sao artificios que ignoram 0 acordo sociofisico nos povos ndmades. Sabemos, agora, que o lugar nunca é inteiramente itine- rante nem radiante, mas sim uma mescla de ambos os tipos de uniao sociofisica. O lugar industrializado é um exemplo das complexas misturas possiveis. Nestas nao é facil culpar as pes- soas concretas pelos erros e pelas injusticas do lugar. Cada um dos setores econdmicos primarios (mineracao e agricultura), secundarios (industria) e tercidrios (circulacao e de servicos) exigem um equilibrio entre o lugar radiante e itinerante, de naturezas diferentes, sendo 0 cruzamento sociofisico total um cruzamento entre as trés unides. Finalmente, Muntafola apresenta suas conclusdes sobre a no- ¢4o de lugar com uma primeira indagagao: “Que é um lugar para viver?’, e responde expressando que o lugar é uma interpenetragao sociofisica em que o falar e o habitar, o meio fisico e o meio social e 0 conceitualizar e o figurar se entrecruzam de forma simulta- nea, porém sem identificar-se’*. Uma segunda indagacao basica é: “Como se estrutura esta interpenetracao sociofisica?” A resposta é que ela se estrutura de varias maneiras simul- taneamente, mas fundamentalmente de trés maneiras que se equilibram duas a duas. Isto é: 15 Idem, p. 53-55. be urriitees tn ghia uw 6 Crteandee Gili eo habit, o lugar assume a forma de cos exteriores Hine artes. soe folsteos, HOS quais OS Lilos Fi cantertores ao corpo estio relacionados de antemao com otelato mitico do falar, ransmitido oralmente de geragao em geragao; A. Cruzando o meio fisico e o meio social, o lugar assume a forma de um campo funcional “radiante’, em que as linhas de forga sto as formas fisicas do lugar e, as vezes, os pos- siveis itinerarios funcionais que permitem esse lugar. As linhas expressam a ordem e a hierarquia sociofisica que 0 lugar possui, ou seja, seu poder simbdlico real, ao mesmo tempo emocional; B. O lugar pode se estruturar cruzando a conceitualizagao € a figurag’o a fim de procurar um constante ¢ incansavel equilibrio logico entre a inteligibilidade conceitual e figu- rativa no lugar, entre a itinerancia e a radiancia. C, Em resumo, 0 lugar é um signo constante de reconciliagao sociofisica nao apenas de razdes, mas também de emogoes. DIMENSOES SIGNIFICATIVAS DO LUGAR: OS RITMOS DA EXPERIENCIA Outro autor que convém lembrar, por seus aportes para expli- car e ampliar a nocao de lugar, é Yi-Fu Tuan, com seu classico Espaco e Lugar, a Perspectiva da Experiéncia. Para esse gedgrafo, a familiaridade com dada porgao do espaco, pela experiéncia, faz torna-la lugar. Pois espaco ¢ lugar sio designacées do nosso cotidiano, indicando experiéncias triviais, do dia a dia. Nao ha necessidade de fazer um esforgo consciente para estruturar nosso espa¢o, uma vez que esse es- paco em que nos movemos e nos locomovemos, integrante de nossa vida diaria, é de fato o nosso lugar. Conhecemos 0 nosso lugar; cada um tem seu lugar. Assim sendo, onde vive- mos, nossa residéncia, nosso bairro inteiro, se tornam um lugar para nés. A propria patria, vista como nosso lar, afetivamente se torna um lugar. “O lugar é seguranga e 0 espago liberdade’, ou ainda, “o espaco é movimento e o lugar pausa’, logo, 0 es- . USE OPEC DO LUGAR pago é mais abstrato e o lugar mais concreto. A valorizayao do lugar provém de sua concretude; embora seja passivel de ser en gendrado ou conduzido de um Jado para 0 outro, 6 um objeto no qual se pode habitar e desenvolver sentimentos e emogoes. ‘Tal realidade concreta é atingida por meio de todos os nossos sentidos, com todas as nossas experiéncias, tanto mediante a imaginagao quanto simbolicamente. Conhecer um lugar é desenvolver um sentimento topofilico ou topofdbico. Nao importa se é um local natural ou construido, a pessoa se liga ao lugar quando este adquire um significado mais profundo ou mais intimo. Os lugares intimos, como nossos la- res, sao mais aconchegantes no inverno, nos dias chuvosos, nos momentos de doencas ou de festividade, de descanso, de atendi- mento as nossas festividades. Contudo, a crianca, desde pequena, encontra o seu lugar intimo e primeiro nos pais, pois a casa esta repleta de objetos habituais vistos com a realidade do lar. Os lugares, ainda segundo Tuan, podem se fazer visiveis por meio de intimeros meios: rivalidade ou conflito com outros lu- gares e manifestagdes de arte e de arquitetura. Todo lugar ad- quire identidade mediante as diversas dimensées espaciais, tais como: localizacao, diregao, orientacao, relacao, territdrio, espa- ciosidade e outras. E relevante, também, relacionar 0 espaso/ lugar com o tempo, pois em trés momentos este se torna aque- les: tempo como movimento, sendo lugar como pausa; afeicdo ao lugar como funcao do tempo; e lugar como tempo tornado visivel ou lugar como lembranca. Em suma, lugar é um mundo de significados organizados, a um tempo estatico e a outro dina- mico; sao caminhos que se tornam lugares significativos. Nao poderiamos esquecer de apresentar, neste ensaio, as reflexdes de Kevin Lynch em What Time is This Place? Suas preocupagées dizem respeito a representagdo dos lugares: pre- sente, passado e futuro, ligada ao ritmo da vida, pois sao cos- turados juntos na sintese dos tempos bioldgico, psicolégico e social. Para os individuos, tempo/lugar significa seus lares, suas residéncias, seus lugares de trabalho, de lazer, enfim de toda: tas agdes. O autor entende que o mundo ao nosso redor pulsa em ciclos grandes e pequenos. E como se nadassemos em uma corrente do tempo, da informagao. Alguns ciclos so evidentes aos nossos confides com altenmancna de daz c sonbra, quente © frie, baru tho elenero, Lases da tua, marcha aparente do sol, dia e noite. Ho entinto, outros que nos afetam nao séo conscientes: 0 fluxo cla pravidale, a pressaio atmosférica, radiagao nao visivel. Outros ainda implicam mudangas: dormimos e acordamos, saciamos e sentinios fone, ficamos alegres e tristes, nascemos, crescemos, vivemos ¢ morremos, interessados e entediados. Ha aqueles ci- clos internos, corporais, muito evidentes: temperatura do corpo, excregio, batimento cardiaco, atividade cerebral, respiragao, di- gestao, movimento dos olhos, menstruagdo, produgao de hor- énios, crescimento, tonus muscular, sonhos, anseios, afeigdes. Lynch, como arquiteto, pesquisador e estudioso das for- mas, das fungdes e das estruturas do espago urbano, nos trouxe uma grande contribuigdo a compreensao e & abrangéncia sobre o lugar. Direta ou indiretamente, na pratica, qaem mais tem se aproveitado de suas investigages e resultados sao os gedgra- fos. Pois o lugar é considerado uma das esséncias basicas para a geografia humanista. O autor discute as transformagées das cidades, como lu- gares em continuas mudangas**. As urbes sao modificadas por crises econdmicas, catastrofes ecolégicas, uso de materiais di- ferentes e inovadores, assimilacdo de novos estilos de vida, principalmente pela industrializagéo e adogao de areas verdes (parques, jardins, alamedas, pracas arborizadas) e, por que nao, pela chegada de epidemias (no passado, as pestes e as pragas; e, no presente, a dengue ou a gripe suina). A presenga do passado, no perfil das cidades, é a valo- rizagéo do meio ambiente natural, quer na reconstrugdo de conjuntos de antanho, quer na preservacao de edificios, ruas, pracas ou bairros inteiros. O autor continua a examinar a ques- tao de mudanga e de recorréncia, como o sentido de estar vivo e sentir-se vivo. As coisas se vao, a morte chega ¢ o presente é consciente, pois a imagem que temos do lugar é sempre pes- soal. Nossas imagens do passado e do futuro sio imagens do presente continuamente recriados. O cerne de nosso sentido de espaco-tempo € 0 sentido de “agora” e “aqui”. Temos dois tipos de evidéncia da passagem do tempo que se reflete no lugar: a 16K. Lynch, What Time is This Place?, p. 27-30. uM OU OES SOOr OTe st repeti¢ao ritmica (as marés, os relogios, ciclos do sol eas lase: da lua) e a mudanga progressiva e irreversivel (cre decadéncia) nao sao recorrentes, mas a alteragado do que ama mos de fato nao retorna, apesar de nossas esperangas ¢ desejos de que as coisas mudem. Temos consciéncia de que o tempo interior é diferente do exterior. O tempo social que coordena as acdes de muitas pessoas nem sempre estao de acordo com 0 tempo ritmico do corpo. Os relégios digitais sao bem mais precisos, mas 0 tempo flui da mesma maneira. Procuramos al- cangar 0 espaco-tempo para este mundo ou para preservar, ou para mudar, tornando visivel 0 nosso desejo. A imagem precisa ser flexivel e consoante a realidade externa (0 lugar) e a nossa natureza bioldgica para promover nosso bem-estar. Cimento ¢ UM LUGAR: SAO PAULO © Patio do Colégio - um lugar de muitas memorias. MARIA APARECIDA LOMONACO™” A cidade de Sao Paulo é um bom exemplo para pensar 0 sen- tido de mudangas do lugar, pelas suas transformagées através dos tempos e dos espacos. Daquele “Patio do Colégio’ o ponto de partida do passado para o futuro, a vila de Piratininga, se espalhou pelas colinas em busca das varzeas, subindo os es- pigoes, atingindo vales, se cambiando de cores, de estilos, de fachadas, rasgando avenidas e perfurando tineis, com caras novas, se transformando em uma grande metrépole. Porém, continuando um lugar, um aconchego para os migrantes que aqui se instalaram e continuam a procura-lo. Aziz. Ab’Saber, em sua obra monumental e afetiva, com palavtas saudosas, discorre sobre a “pauliceia desvairada’, nos frindando cons Sio Paulo Ensaios e Entreveros uma visdo com- Alica, histérica da mobilidade e flexibilidade ocortidas nesse espaco-lugar. Pera eos ‘ Fe be bye tthe aede Binene © Nuseinentos de Sao Paulo, Rio de cee) : Pomaprescntajie ilimbranos come lapsara metropole de ce Panto que deren de ser uma cidade pacata ¢ se transfor- menor ine aibe cosmopolitv®. A meméria de “recordagées pronhevds saudades, nos tray os lugares especiais, de aconteci- tentor iclividiais, mas estreitamente entrelagados com ruas, Pravas, bares, Vale do Anhangabat, avenidas, com o bonde elé- fico aberto eo “camarao” fechado, com as esquinas boémias. Todos esses lugares povoados de pessoas amigas, colegas, alunos © muitos desconhecidos. As bibliotecas e as livrarias, marcando 4 paisagem, sao um destaque no perfil da cidade, pois AbSaber craum “rato” desses edificios, era grande leitor, grande prosador « contercncista. Tudo isso se passou em um lugar — Sao Paulo. Por ser curioso, desejoso de conhecer o tempo historico de Sao Paulo, o autor percorreu lugares antigos e modernos dessa cidade atracnte, fascinante e sedutora e que mais do que nunca precisa scr conservada com os seus encantos e sua memoria. Esse majestoso livro é completado com uma pesquisa his- iorico-geografica profunda de todas as transformacées sociais, culturais, arquiteténicas sofridas pelo lugar por meio da me- moria, ilustrando as diversas épocas. Foi uma homenagem sentimental e geografica, de um ponto de vista humanista, do grande pesquisador deixar registrado como um lugar nasce, se desenvolve, cresce ¢ se transforma e continua sendo e funcio- nado como um lugar sociofisico. O SENTIDO DO LUGAR PARA A GEOGRAFIA O lugar na geografia, desde 0 inicio da geografia humanista, foi sempre a esséncia propriamente dita da ciéncia geografica. Refletir sobre o lugar é refletir 0 seu sentido na geografia. As dimens6es significativas do lugar, que na realidade é 0 sentido que se atribui a este ou aquele (o meu, 0 seu OU nosso lugar), sao pensadas em termos geograficos a partir da expe- riéncia, do habitar, do falar e dos ritmos e transformagées. Eo lugar experienciado como aconchego que levamos den- tro de nds. Ou o lugar consciente do tempo social histérico, 18 A. Ab’Saber, Sao Pardo Ensaios ¢ Entreveros, p. 9-26. lo OUST O POO BO THG St recorrente e mutavel, no transcorrer das horas do tenipo com um espaco sentido dentro de um lugar interior ou exterior Talvez a mais significativa dimensao do lugar seja a socio fisica, na qual o conceitual e o figurativo se equilibram entre a intinerancia e a radiancia, pois almejamos a aventura do no made de conhecer novos lugares, novos mares, novas gentes c, ao mesmo tempo, desejamos um “lar” onde chegar, estabelecer e acalentar nossos sonhos e fantasias. Para encerrar estas consideragées, deixo aqui minhas pro prias palavras sobre “o sentido de lugar’, que venho habitando ha tantos anos: “Para mim, Rio Claro é uma concha que me da abrigo carinhoso e seguro. E o meu lugar de trabalho. Foi onde me tornei mestra e pesquisadora em nivel universitario. Preparei novos professores, novos pesquisadores, que produ- zem novas visOes para a geografia. Rio Claro é meu aconchego”. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AB'SABER, Aziz N. Séo Paulo Ensaios e Entreveros. S40 Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2004. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espago. Sao Paulo: Martins Fontes, 2008. BUENO, Eduardo, A Coroa, a Cruze a Espada, Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. . Os Nascimentos de Sao Paulo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. cassiRER, Ernest. Antropologia Filoséfica. Sao Paulo: Mestre, 1972. . Substance and Function. New York: Dover, 1953. DRUMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964. LISPECTOR, Clarice. 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