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LUNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Reitor Antonio Manoel dos Santos Silva Vice-Reitor Lis Roberto de Toledo Ramalho FACULDADE DE HISTORIA, DIREITO E SERVIOO SOCTAL Diretor Luiz Antonio Soares Hentz Vice-Diretor Irene Sales de Souza DEPARTAMENTO DE HISTORIA, Chafe Alberto Aggio Viee-Chefe Aparecida da Gloria Aissar FABIANA DE SOUZA FREDRIGO DITADURA E RESISTENCIA NO CHILE da democracia desejada 4 transigdo possivel (1973-1989) unesp cimpus de franca série estudos: CAPITULO 1 ARUPTURA DE 1973: O NEOLIBERALISMO E A MODERNIZACAO O golpe e a agao fundacional © goipe militar do dia 11 de setembro) de 1973 significou a ruptura com a tradigao| demoeritica vigente no pais desde a década de trinta, Depés 0 presidente Salvador Allende » que havia conquistado seu cargo mediante um dos pleitos mais concorridos no Chile desde entio. A Unidade Popular, a coalizio pela qual se elegeu, propunha a via chilena a0 socialis- mo que, grosso modo, ndo prescindia da ins- titucionalidade burguesa para transitar a0 soci- alismo. Os acontecimentos vertiginosos que marcaram 0 governo de Allende (1970-1973) provocaram uma polarizagdo e uma mobiliza-/ edo nuniea antes vistas na sociedade chilena. O) nivel de expectativa quanto aos acontecimen- tos era altissimo e 0 golpe veio com a forga que julgou necesséria para acalmar os animos @ impor a ordem. As preocupagées da Junta Militar, logo que instalada, foram atingir uma / legitimidade que Ihe permitisse controlar e|, ‘© poder como também buscar um pro-/ Po 0 FABIANA DE SOUZA FREDRIOO | | jeto que redefinisse as bases da sociedade It chilena’ A. legitimidade transformou-se no principal tema do discurso emanado pelo novo poder e, por meio dele, foi materializando-se ‘208 poucos. O golpe passou a ser visto como algo imprescindivel & salvago do pais e, por tanto, tornava-se legitima a cruzada anti marxista. O govemo de Allende era compara~ do a0 caos e a desagregagdo. Como no bas- | tasse, 0 projeto da via chilena e as agdes.que.o | colocaram em pratica passavam a ter respon- sabilidade pela agudizagdo da situaglo_ eco- ‘némica do pais. Nao obstante, pese o tom ‘apocaliptico do qual se revestiu 0 discurso | conservador, para grande parte dos setores sociais, 0 govemo da Unidade Popular era | considerado uma ameaga real | As Forgas Armadas, neste contexto, embora nfo homogéneas, procuraram dar ao golpe um aspecto coeso, Parte desia oficiali- dade via nas ages de Allende um perigo imi- nente que poderia pér em risco a ordem eco- némica e politica do pais. Frente a esses peri- 1805, 05 valores tradicionais da sociedade chi- Jena —que se encontravam assentados na idéia de um Estado forte, de corte portaliano~ toma- ram-se indispenséveis para a criaglo de uma cultura autoritiria’, Apoderando-se deles, a Junta Militar conseguiu manter a sociedade * AGGIO, A. Democresia ¢ sovialismo: « experigncia chilena. $80 Paulo: Unesp, 1993 ? TIRONI, E, ELiberalismo real, Santiago: Sur, 1986. DITADURAERESISTENCIANO CHILE 21 calada diante dos acontecimentos que se des- velavam, Ademais, a sensagdo de caos era’) palpavel no imagindrio social e, em decorrén- I cia desie temor, existiram setores da sociedade ', que nfo sO sé calaram como também deram/( seu apoio velado ao golpe. } ‘A construgio da legitimidade exigiu que o golpe militar assumisse, inicialmente, carter defensivo; afinal, mesmo travestido de poderes salvacionistas, era um golpe militar e, como tal, atuava contra uma ordem constituci- onalmente estabelecida, A. postura antix « popular adotada expressou-se através da re-} presiio € da perseguiedo que atingiu a socie-\ dade-chilena como um todo, Mesmo que os partidos de esquerda tenham se torado os alvos preferenciais do regime, 0 centro politico que havia apoiado o golpe, através da atua- go da Democracia Crist e as organizagdes, sociais foram afetados de igual modo. Quanto as represilias a classe politica, a rapidez de ago da Junta Militar evidenciava que, embora néo definido, nos primeiros mo- ‘mentos, se o cardter da ditadura que se insta- lava era refundador ou restaurador, certamente a atitude golpista vinha para por em xeque & atuagdo politica dos partidos. Com esta finali- dade, em 14 de setembro de 1973, 0 Congres- so foi fechado e foram destituidos de seus ‘cargos 0s ‘senadores e deputados eleitos na | tiltima eleiggo, em margo do mesmo ano. Aproximadamente dois meses depois, no dia 20 de novembro, os partidos de esquerda fo- n FABIANA DE SOUZA FREDRIGO ram declarados ilegais ¢ as outras tendéncias da classe politica chilena réservou-se um Te- cess forgado, A proibigo de eleigdes nos sindicatos e a destruigdo dos registros eleito- rais da cidadania, no mesino més de novern- bro, mostravam a ansiedade da Junta Militar ‘em efetivar o fechamento dos canais de politi- ‘zagdo da sociedade civil. De inicio, a ilegali- dade restringiu-se a0s partidos de esquerda, 0 ‘que nao significou a manutengo dessa postu- ta. No dia 12 de margo de 1977, por meio do_ Decreto-Lei n°1967, declarou-se proibidas todas as atividades politicas © publicas bem como sancionou-se que todos 0s partidosjpoli- ticos eram ilegais® © aparelho repressor, aps a aplicago indiscriminada dos métodos de amedronta- ‘mento, desde fins de 1973, passou a ser seleti- ‘vo quanto aos alvos de sua atividade. Com esse intuito, no dia 15 de julho de 1974, medi- ante publicagdo do decreto-lei n? 521, 0 go- verno criou um novo orgao de seguranga naci- onal, a DINA (Direccién de Inieligencia Na-~ cional). A sua atuaglo esteve relacionada & caga de integrantes de partidos como o MIR (Movimiento de Tzquierda Revolucionaria) ‘9 Partido Comunista. No entanto, mesmo se- Ietivo, esse Orgdo do governo disseminou raci- onalizadamente o terror como uma arma que objetivava a despolitizagao da sociedade, Des~ se modo, os desaparecidos, os torturados ¢ os > MOULIAN, T. Chile actual: snatomia de un mit. Santiago: Lom-Arcis, 1997, DITADURAE RESISTENCIANOCHILE 23 ‘mortos que tinham seus corpos jogados no rio Mapocho, mesmo escolhidos, cumpriam a profecia do castigo: o recado era que a socie- dade chilena tinha que aprender a conviver com 0 terror. Sua finalidade foi, eminente- mente, politica, E por esta razdo realizava-se a exposigio brutal dos atos desumanos pratica- dos pela repressdo. A Seguranga Nacional assumiu, diante da estrutura de poder do re- gime, status estratégico. O conteiido do de- creto -publicado pela imprensa~ que colocou a DINA na legalidade evidenciava o carter arbitrario, mesmo que legalizado, de tal érgio: “© DL 521 contém trés artigos secretos que subordinam os demais servigos de inteligéncia 4 DINA, outorgam aos seus agentes ilimitados poderes para vasculhar domicilios e deter pes- sas e a permite obter financiamento através de distintos meios que no especificam. A nomeaggo do Coronel Manuel Contreras Se- piilveda tampouco toma-se publica” ' Y Ficando evidente a utilizagio da re- presséo como instrumento politico para a ma- nutengdo da ordem, os métodos ¢ as atividades relacionadas & seguranga nacional sofreram uma esealada de acordo com a necessidade de) aplicagéo dessas formulas. Num_primeiro| momento, a resposta 4 exigéncia de coergao | indicava 0 uso indiscriminado, constante e ‘generalizado dos recursos que ® repressio, oferecia, Com a instalagdo da Junta Militar © a, “VERGARA, P. Tac ciel hil, Santiago: Flas, 1985, p30 oT Po 4 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO supressiio das primeiras dificuldades quanto a que carninho seguir, a adogo dos métodos de amedrontamento fisico e emocional tomou-se mais espécifica, especializada e com contetido politico de grau mais elevado. / © inicio do governo militar esteve | marcado pela disputa entre duas tendéncias de vagdo: a restauradora e a fundacional. A ten- déncia restauradora era reiterada nos primeiros documentos langados publicamente pela Junta Militar. Em contrapartida, a imprensa clamava pela instauragdo de uma nova ordem politica. No decreto-lei n® 1, ditado no mesmo dia do golpe, declarava-se que a intengio inicial das Forgas Armadas era restaurar a ordem e de- volver o mando 20s érgdos competentes para administrar 0 pais: “As Forgas Armadas as- sumem o mando supremo da Nao com o compromisso patridtico de restaurar a chileni- dade, a justiga e a institucionalidade deteriora da, No D.L., promulgado no mesmo dia 11, afirma-se que as Forgas Armadas justificam sua intervencdo na cena politica baseando-se em raz¥es juridicas, acusando 0 governo Allende de ter agido de forma ilegitima fla- grante por ter se colocado em varias oportuni- dades a margem da Constituigo. Este ultimo era considerado suficiente para justificar a intervengéo para depor 0 govemo ilegitimo, imoral e no representativo do grande senti- mento nacional.”* *Dbid,, p.19, EE Siti DITADURAERESISTENCIANO CHILE 25 apoio da Democracia Crist deu-se, em virtude da crénga de que as Forgas Arma- | das assumiriam a missio restauradora, tempo-| rariamente, Supunham os democrata-cristios que, uma vez terminada esta tarefa, 08 milita-| res entregariam 0 poder aos representantes da| classe politica, depuradas as tendéncias totali tarias de esquerda. No entanto, o desejo da/ Democracia Crist no se confirmou. Ao con-| trario, as ages da Junta Militar indicavam que, a transitoriedade, aos poucos, deixava lugar 8 ‘bused de um projeto para a permanéncia dos | militares no poder. Em meados de outubro, a | missio que as Forgas Armadas deveriam, cumprir sugeria algo além da restauragdo. Para fugir do caos e ndo cometer os mesmos erros do passado ~que era execrado~ tomava-se imprescindivel a construgao de uma nova ordem, A partir de entéo, de acordo com 2 interpretagdo dos golpistas, néo deveria ha- ver no novo Chile lugar para os verdadeiros responsdveis pelo desgaste institucional e pela necessidade de intervengao militar: a classe politica chilena. Ungida de uma legitimidade absoluta, a Junta Militar instituiu, como justi- ficativa de sua permanéncia no poder, um paradoxo visivel: a restruturagdo da democra- cia -cabe perguntar qual era a democracia imaginada pelos militares~ por meio de uma ditadura, Em meados de 1977 (e, depois, em 1980, com a aprovago da Constituiga0 do regime militar), apresentou-se 0 projeto ditato- 6 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO tial mediante a adaptago do “saber juridico” as necessidades de cumprimento do referido projeto, evidenciando a transmutagao da dita- dura chilena (de uma fase estritamente terro~ /rista, essa passou a assumir feig%o constitucio- ra) ‘Nesse sentido, para a efetivagao de um |corpus juridico autoritirio que legalizasse 0 / despotismo, promulgou-se, entre 0 periodo de 1973 a 1976, quatro Atas Constitucionais*. Estes adendos a Constituigo de 1925 eviden- | ciavam que o discurso da restaurago perdia | cada vez mais campo’, No dia 11 de setembro de 1976, vie- ram a publico as Atas Coristitucionais 1.2, ™3 end” A Atan.2, denominada bases essenciais da institucionalidade chilena, reafirmava as idéias contidas na Declaragao de Principios © reiterava a construgdo de uma nova democra- cia. A Ata n3 definia os direitos ¢ as obriga- 96es dos cidados. Os direitos constitucionais dos chilenos, 0 respeito a liberdade politica e 0 direito fundamental & reivindicagao por melho- res condigdes de vida eram referendados nesta como atribuigdes do Estado, Como entender 0 sentido destas regras mediante a instauragio de uma ditadura des- politizadora da sociedade? Num primeiro momento, a necessidade de legitimidade fazia com que 0 discurso tivesse de ser utilizado como uma arma. Assim, a confecgdo deste era CE MOULIAN, T, op. cit, p.151 "Thid,, p.223 et. seq “Ibid, p.219. _ DITADURAERESISTENCIANOCHILE 27 habjl, entretanto, o uso das regras se dava de acordo com a conveniéncia do contexto. Na realidade, a pritica desautorizava a norma. Qualquer chileno sabia que, embora houvesse a lei e ole pudesse recorrer & Justiga, seus di- reitos no estavam resguardados pelo Estado; mesmo porque o Judiciério, desde 0 golpe, havia perdido sua capacidade decisoria e esta vva subordinado as necessidades da Junta Mi- litar. Por outro lado, sendo parte de um corpus normative, ha que se levar em consideragao, ainda, 0 conteiido restritivo da Ata posterior, & de nd, que definia os estados de excegio. Por esta, ea legal e legitimo que o Estado delimi- 1as8@ 0 US0 dos direitos politicos e civis. Desse modo, havia uma redefinigio das regras até enti estabelecidas. Ao que parece, tratava-se de negligenciar as liberdades ~que se conside- ava excessivas- presentes na Ata n.3. Os estados de excegfio eram definidos por quatro situagdes: as guerras (intemas ou externas), a comogio interior, a subversio latente © a ca~ lamidade publica, Decorrente do anterior, os decretos de Estados de Sitio ou de Estados de Defesa exigiam a total suspensdo dos direitos cidados, sem esclarecer, por exemplo, o que significava a subversio latente ou a comogao interior, termos, propositadamente, abrangen- tes’, Tendo decidido pela necessidade de recriar 0 Chile, 0 govemo militar impés em Ibid, p.220-3, FABIANA DE SOUZA FREDRIGO DITADURAE RESISTENCIANOCHILE 29 suas ages a marca da revolugéo. Um pais que ha pouco pensou estar fazendo uma revolugao de esquerda~ viu-se contido pela transforma- 80 revolucionaria da direita, A sociedade chilena, ao contrario do que sua historia politi- ca anterior indicava, esteve, por esses anos, impregnada pelo ideotogismo e pela polariza- sho. A pritica politica no Chile havia se notabilizado, hé pelo menos quatro décadas, por sua capacidade de didlogo e pelo respeito 20 sistema democritico. Pese 0 fato de que essa afirmago faz parte da mitologia criada pelos chilenos a respeito de sua historia politi- ca, nfo se pode deixar de atribuir a essa asser~ tiva sua parcela de verdade. A tradigao politica no Chile, desde a década de trinta, esteve for- temenite marcada por uma trajet6ria constitu: cional e de democracia representativa, Os par- tidos, quaisquer que fossem suas, tendéncias, festavam abertos a0 acordo, com.o intuito de preservar o sistema democrético" protecionismo ¢ 0 industrialismo fa- ziam do Estado chileno 0 niicleo dinamizador da democracia que 0 pais orgulhava-se em manter. A intervengdo estatal ea constante preocupagio em estabelecer mecanismos que possibilitassem a sociedade uma participagao politica efetiva faziam do Chile um pais dife- 1 AGOIO, A. A Politica Chilena: Uma Historia de Modelos e Experincias, In; —. Revolugo e Democra: ‘sia no nosso fempe. Franca: UNESP, 1997, (Estudos, 1), p69-100 renciado do restante da América Latina, No entanto, tais priticas politicas forneceram aos chilenos material abundante para a construgo do mito sobre uma democracia perfeita ¢ into~ cfivel, 0 que dificultou a percepgio de outras variantes que no correspondiam, necessaria~ mente, a este Estado ideal: “O incorretamente chamado ‘Estado de Compromisso’ interclas- sista construido naquelas décadas escondeu reiteradamente 0 édio € a intoleréncia politi cas, a corrupgao e a sensagao de fracasso na- cional: os chilenos, que se entendiam moder nos, vivenciavam simultaneamente a profunda desilusdo de serem incapazes de alcangar a modemidade.""" Desde o governo Frei (1964-1970), 0 cenétio politico vinha apresentando mudangas apontando as falhas de um sistema que se imaginava perfeito exemplar. O aprofunda- mento das reformas sociais incomodava a di- reita @, nO entanto, ido satisfazia parte da es- querda que entendia ser necessario ir além das ‘mudangas propostas pelo govemno democrata- cristdo, Para realmente transformar as relagdes sociais, no entendimento dessa esquerda, era preciso aplicar maior velocidade e rigor as reformas estruturais, Frente a essas criticas, a Democracia Crista resolveu seguir seu pro- grama e reiterar que as reformas propostas seriam realizadas, porém, nada além delas, mesmo sob pressio, seria modificado. A in- 30 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO transigéncia politica e a possibilidade de go- vernar sem a necessidade de acordo com ou- ‘ros partidos tornaram-se parte dos anseios dos democrata-cristios. A direita, por sua vez, desde a fundago do Partido Nacional, em 1966, vinha tentando rearticular-se como forga partidaria, Para tanto, desenvolveu um cédigo ideol6gico que unia as tendéncias herdadas do catolicismo hispénico e da tecnocracia liberal; assim, embuida pelo nacionalismo messianico, via a necessidade de romper com 0 governo reformista de centro. Por outro lado, com @ vit6ria eleitoral de Salvador Allende, em 1970, a situagdo complicou-se ainda mais. © projeto da esquerda, que se unificou em tomo da Uni- dade Popular, apresentado também como uma altemativa global, significava uma tentativa de ultrapassagem em relagdo as propostas sus- tentadas pela Democracia Crist Desse modo, a irredutibilidade dos atores politicos preparava 0 cenério para o que viria depois a medida que as dificuldades de conciliagio antepuseram-se ao respeito pela constitucionalidade e pela democracia repre- sentativa. O desejo presente em cada repre- sentante partidario indicava a pretensio, de cada um deles, em impor um modelo, Foi assim que as condigdes propicias para 0 golpe criaram-se, anunciando a necessidade pun- gente de uma mudanga radical e estrutural”, "* BENAVENTE, A, ARAYA. E La-deesha. paisa 1973-1981, Santiago: sop, 1981 DITADURAERESISTENCIANOCHILE 3] Cabe esclarecer que nfo pretendemos realizar uma leitura fatalista da historia, Com- preendemios que qualquer interpretagdo que avalie de modo determinista 0 golpe militar contribui para a mecanizagdo e a simplificagdo da explicagdo historica sobre tal fato. As con- digdes sob as quais este ocorre néo podem ser visiag a partir de uma perspectiva linear como se clas fossem levar, inevitavelmente, a um destino preéstabelecido, no caso, o golpe mi- litar . Antes de tudo, o que queremos indicar & como a polarizagao foi ganhando, aos poucos, a raiz da classe politica chilena e, assim, cris- talizando elementos de conduta antagénicos cultura politica. Este fato, com certeza, contri- bbuiu imensamente para o espetaculo de horro- es que se assistiu em setembro de 1973. Por- tanto, avaliar sua historicidade permite entre- ver 0s limites que se impusetam as agdes dos atores politicos e sociais no momento referido. Neste sentido, pode-se compreender as razbes que fizeram com que a Junta Militar lidasse com uma concepeao politica distinta daquela consagrada desde a Constituigao de 1925. No momento do golpe, os ideais cienti- ficistas, dogméticos e absolutistas tomavam conta da pritica politica. O espirito da revolu- gio pairava no ar. Incorporé-lo ao discurso apenas facilitava a justificago de uma ditadu- ra fundacional e transformadora™. MOULIAN, T. El gobierno militar: modernizacion y revolucién In: —. La forja de las ilusiones: sistema de partidos. Santiago: Flacso, 1993, de 32 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO Utilizando como referéncia histérica Diego Portales -0 simbolo da centralizagao do poder quando da construgo do Estado Nacio- nal- as Forgas Armadas, na Declaragéo de Principios de 11 de margo de 1974, explicita- ram seu desejo de poder, indicando a instaura- flo de uma ditadura revolucionéria: “[as For- gas Armadas} nfo fixam prazo para a sua gestio, porque a tarefa de reconstruir moral, institucional © materialmente 0 pais requer uma ago profunda e prolongada. Definitiva- mente, é imperativo mudar a mentalidade dos chilenos. Mas, além disso, o governo tem sido jeategorico ao declarar que néo pretende limi- tar-se a ser um govemo de mera administra ¢40, que tenha o significado de um intervalo entfe dois govemos comandados por partidos com similaridades ou, em outras palavras, que | ndo se trata de uma trégua de reordenamento para devolver poder aos mesmos politicos que tania responsabilidade tiveram, por ago ou omiss%o, na virtual destruigio do pais. O governo das Forgas Armadas ¢ da Ordem — aspira por iniciar uma nova etapa no destino nacional, abrindo caminho para novas gera~ ges de chilenos formados em uma escola de habitos civicos sios™. Entretanto, recriar a ordem exigia um projeto que se adequasse as necessidades ba- sicas de legitimidade do regime. Uma dessas necessidades era de que 0 passado fosse es- Declaracin de Principios, 11 de margo de 1974, apud Vergara, Pop. cit, p.21. DITADURAE Ri NCIANO CHILE 33 quecido e transposto. Assim, 0 projeto que se impusesse deveria representar uma ruptura com 0g valores que até 0 momento haviam definido as atitudes da sociedade chilena, Era imperativo extirpar do meio social qualquer identificag’o com 0 que era considerado um perigo: 0 govemno da Unidade Popular e 0 marxismo. Outra das necessidades fazia refe- réncia pratica A superaedo da crise econdmica. 0 projeto que se adotaria tinha que ser audaci- 050 € composto de solugdes radicais e imedi- Foi assim que se apelou para o tecnix, .0 Boys. Novamente, 0 Chile fi utilizado como laboratério, desta vez, para 1 aplicagdo de um neoliberalismo radical. A\ caracteristica refundadora do golpe fez das transformagées econémicas um instrumento ) para a eriagio de um alicerce sobre 0 qual al politica revolucionéria de uma ditadura pudes- | te se afar Portanto, 0 neoiberalsmo no | Chile transcendeu o ineditismo @ medida que se consolidou como parte importante da politi ca praticada pelo regime ditatorial No entanto, 0 projeto neoliberal no emergiu no cenario como um passe de magica. Fato pouco conhecido, a corrente neoliberal} facgdes do regime. Havia diferentes tendénci-, as da direita apoiando o golpe e, em virtude dey seu cardter hibtido, varias propostas foram apresentadas, inclusive algumas de fundo es+ tatista e corporativista. 34 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO 1.2. A politica econdmica: a formagio dos Chicago Boys eo shock neoliberal © acordéque, posterionnente, daria | condigées para a articulago de_uma equipe govemamental tal como a dos Chicago Boys) \teve sua origem em 1956. Nesse ano, firmou- _Z se um convénio entre a Universidade de Chi- \cago, a Administrago para a Cooperacio Intemacional e a Universidade Catélica do \Chile’*. Havia interesses de ambos os paises envolvidos neste pacto. No caso da instituico chilena, 0 intercdmbio respondia a busca de modernizago académica. A atrag&o por novos paradigmas, que estivessem distantes da pers- pectiva marxista ou desenvolvimentista, con- tribuia para que se visse 0 acordo como indis- pensavel para a reformulagao universitaria. Os. Estados Unidos, por sua vez, consideravam 3 situago como ideal para difundir os preceitos neoliberais na América Latina. Além do mais, se este iltimo objetivo fosse alcangado, ele acabaria neutralizando a influéneia’ da CEPAL (Comissto Econémiea para a América Latina) e da Faculdade de Economia do Chile". (0 convénio entre as universidades ti- nha duragao éstipulada de trés~anos, “mas, prolongou-se até 1964. Este tempo foi sufici- *§ CACERES, G. Revisitando o projeto neoliberal: Chile 1956-1980, Histria, So Paulo v.13, p231-64, 1994 " Tbid., p.232. DITADURAERESISTENCIANO CHILE 35 ente para a formardo de uma equipe de trintay economistas chilenos, Estes, ao retomarem a | Santiago, Ocliparam postos em distintas uni- vveisidades e, também, na iniciativa privada, A preparagio dos Chicago Boys deu-se ao longo de toda a década e, aos poucos, esta equipe| afirmou-se como a representante da direita ‘tecnoctitica ¢ liberal através da elaboragao de | tum planejamento econdmico para o pais. ‘Nos anos sessenta registrou-se a deca- déncia eleitoral da direita tradicional, Com o nascimento da Democracia Crista, na metade da década de 50, a disputa politica tomou no- ‘vos rumos, Este partido, que assumia postura centrista, oferecia um planejamento global das atividades econémicas que agradou setores que até entdo apoiavam propostas da direita, A Igreja, por exemplo, encantou-se pelo progra- ma dos democrata-cristios, pois este unia po- liticas reformistas ¢ populares que se identifi-\) cavam com 0s seus proprios ideais, naquele ‘momento. Por outro lado, o clima intemacional primava pelo anti-conservadorismo e a ultima administraglo de direita (Jorge Alessandri, 1958-1964) softia profundas criticas. Entre- tanto, decadéncia eleitoral nio significava ne- cessariamente perda de poder politico, Ao contrario, a direita, embora desarticulada, ‘continuou a seguir uma politica independente. Prova disto foi a candidatura de Jorge Ales- sandri pelo Partido Nacional em 1970", " Ibid, p234. ae 36 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO Quando adveio 0 golpe militar de \1973, 0 avango do neoliberalismo, no interior |da intelectualidade de direita, possibilitou dis- |seminar a idgia de uma refundagao social. A | politica neoliberal ia de encontro a orientago | fundacional do govemo que procurava reorde- | nar a sociedade. Dominado 0 meio académico, | 0s Chicago Boys algaram véos pelo terreno politico, O novo regime assim o exigia, era quase que um dever patridtice. A comple- mentaridade entre o projeto que se tinha (desde 1973) e o ambiente que se criou per mitiu que a sociedade chilena fosse transfor mada a partir de uma demanda generalizada por autoridade. As mudangas propostas apre~ sentavam pressupostos técnico-cientificos que deixavam evidente o cardter experimental da receita dos economistas de Chicago. Estes pressupostos articulavam o credo neoliberal dos Chicago Boys que, por sua vez, era com- posto por cinco principios ideolégicos.basi- cos" © a superioridade da economia em relagdo & politica; ©) a criagdo de uma antropologia alicergada em trés hipdteses: 1) ada escassez’ pou- cos recursos incitam e determinam a com- petigo natural entre os homens; 2) a do individualismo: 0 individuo -historica e Jogicamente- atua no sentido de sobrepor- se a0 grupo, 3) ado homo oeconomicus: 0 CE TIRONL, F, op cit, p.67-68, 1986. DITADURAERESISTENCIANO CHILE 37 individuo racionalmente, em qualquer si- tuago, age para maximizar seus lucros; * a redugo dos elementos que articulavam as relagdes sociais: a medida que o con- sumo supre as necessidades ¢ desejos do individuo, as relagdes sociais se configu- ram como secundérias ou inexistentes. Melhor, a integragio social opera por meio do mercado. Por isso, a politica & concebi- da enquanto relago econémica; partindo da premissa de que 0 conheci- mento humano é fragmentado ¢ limitado, a busca pelo avango s6 pode efetivar-se por meio dos erros de varios individuos. En- tretanto, o mercado opera distante dos er- ros humanos, pois seu grau de cientificis- mo rege um conhecimento estabelecido que Ihe confere status exclusivo; + limitagéo méxima da fungdo estatal: 0} Estado deveria intervir somente em areas} especificas, aquelas onde o gerenciamento } rio poderia ser feito pelas empresas pri- vadas (seguranga, meio ambiente, politica, exterior etc.) Em fungo da economia de mercado, 0s principios orientadores da politica econd- mica criaram um novo cédigo ético e ideolégi- co. A verdade absoluta do conhecimento cien- tifico, do qual os especialistas eram os tinicos detentores, transformou 0 neoliberalismo na linica altemativa a ser seguida para realizar as ‘ransformagdes necessarias e urgentes aquela sociedade, E mais, para justificar 0 contexto ha - | reridava a ditadura e tommava-se 0 cerné 38 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO autoritario, sem o qual as mudangas bruscas no poderiam ter sido realizadas, valores fo- ram reformulados para que se adequassem & nova realidade. A democracia e a liberdade passaram a ser vistas em associagio direta com 0 mercado, Longe da conotacéo politica que as envolvia, conferindo-lhes significado a partir das demandas pela participagéo ¢ pelo pluralismo partidério, 0 que passou a identifi- cévlas, discursivamente, foi a possibilidade de acesso livre e igualitrio ao mundo das.opor- tunidades. j Assim, iam inserindo-se mudangas na cultura politica chilena que, mais adiante, pa- trocinariam um caloroso embate com os valo- res advindos da tradigio. A pergunta sobre qual o conceito de democracia tinham os mili- tares pode ser respondida mediante © acompa- nhamento das conseqiéncias, por vezes, sutis que se estabeleceram no cotidiano do cidado comum. A democracia perdia seu contetido politico e 0 cidadio chileno identificava-se_¢ reduzia-se, cada vez mais, a0 papel do consu- midor. Na realidade, o projeto neoliberal refe- dominag&o politica. O discurso de que os poli ticos eram a desgraga do pais e os militares os cruzados salvadores da pétria chilena contri- buiu para que a mitolégica crenga a respeito da despolitizagéo das Forgas Armadas fosse reproduzida e, dese modo, pudesse se pre- servar 0 caréter da instituigdo. Portanto, a centralidade do projeto neoliberal no programa a DITADURAERESISTENCIANO CHILE 39 do regime militar estava relacionada, entre outros fatores, & possibilidade de manter a falacia do profissionalismo das Forgas Arma- das, atribuindo ao golpe ¢ ao governo militar um conteiido apolitico que se queria ver dis- semninado na sociedade.”\ A necessidade da criago de um cédi- 120 ético que amparasse a politica econémica indicava, certamente, o anseio de dominio total sobre a sociedade, Apenas o mecanismo re- pressor para o controle dos descontentes, em- bora eficaz, mostrava-se insuficiente. Era pre- iso convencer a todos —inclusive aos grupos de apoio do regime que, ainda, pensavam de forma distinta~ que 0 sucesso do programa neoliberal significava a interdigao de qualquer retrocesso as politicas estatizantes. Tinha-se claro que somente 0 éxito deste discurso, com urgéncia e eficdcia, possibilitaria a transcen- déncia do neoliberalismo para as outras areas de ago, além da econémica. Sendo assim, a ténica do discurso ~sempre critico e demoli- dor- continuava apelando aos desacertos do passado, com o suposto objetivo altruista de alertar os cidadaos para que os erros que pre- judicaram toda nago nfo voltassem a ser co- metidos: “Ficou para tras um regime cambial discriminatério que s6 favorecia aos que ti- ham capacidade de pressionar. Ficou para trés um regime de comércio exterior cautelo- so, um regime de créditos que prejudicava a enda de muitos poupadores ou os que tinham pouca influéncia no sistema financeiro; um 40. FABIANA DE SOUZA FREDRIGO regime tarifério tremendamente injusto com os trabalhadores, @ agricultura e industria ex- portadora. Ficou para tras um regime de fixa- 40 de pregos, tarifas, contingentes de produ- ¢40 ¢ outras intervengdes que a prética de- ‘monstrou ineficiente, injusta com os mais des- protegidos e fonte de todo tipo de corrupeao. Ficou para tras um regime que dava trata ‘mento especial & inverséo estrangeira. Ficou para tras, por fim, 0 aparente gasto fiscal do governo que no ia precisamente atenuar as necessidades urgentes dos mais pobres."”” Nao cabe diividas que o gover mili- tar possuia um projeto ditatorial e seu grande trunfo, certamente, encontrava-se na politica econémica. Embora as orientagdes_ libs mostrassem hi muito sua influéneia, fot nas em 1975 que Chile conheveu 0 dogma- tismo e a aplicago ortodoxa das regras cria- das pela equipe de economistas do regime. f ‘Arpolitica de shock Toi aplicada como Jresposta a crise que sé enfrentava, De acordo com a andlise dos Chicago Bays, 0 gradualis- | mo mostrava-se insuficiente para a estabiliza- | go da economia chilena: A aceleragio inflaci- ‘onéria somaram-se os problemas com a balan- a de pagamentos, as dificuldades de renego- ciagdo da divida extema e de obtengio de eré- ditos no exterior como também a queda no prego do cobre. is ® Palavras de Sérgio de Castro, Ministro da Fazenda centre os anos de 1976 a 1982, Direydo de Pressupostos, (1978), p.307, apud. VERGARA, P., op. cit, p96, Hie DITADURA E RESISTENCIA NO CHILI © plano de 1975 tinha por objetivo a intensificagZo dos cortes no orgamento para atingir a estabilizagdo. Neste momento, as restrigSes significaram a reorganizagio das aplicagdes de recursos nas invers6es publicas. ‘Assim, foram reavaliados os projetos que de- mandavam capital para as areas de habitagio, de obras piblicas e de programas sociais. As principais medidas adotadas foram a liberago de pregos, a redugdo de tarifas para a importa- 0 (que logo foram congeladas em 10%), a atragdo de capital financeiro e a privatizagao do Estado”. Os custos sociais desta experiéncia econdmica fizeram ver que a capacidade auto- reguladora do mercado era um engodo. A queda da produgio industrial e o colapso do sistema financeiro mostraram a0 governo ¢ 20s seus economistas que 2 classe empresarial chilena no se encontrava suficientemente amadurecida para reagir frente as exigéncias do modelo implantado, acostumada que estava com a protegio estatal. Ainda assim, a culpa nio recaia sobre o modelo neoliberal, antes era fruto da ineficigncia que perdurava ha anos no mercado de trabalho, Novamente, 0 discurso dos representantes do govemno legitimava a criagdo da nova ordem neoliberal e conclama- ‘va ~implicitamente- os empresirios e os tra- balhadores a pagarem o prego pela modemi- zagdo do Chile: “Neste pais, educou-se a to- ® ANGELL, A. Chile, de Alessandsi a Pinochet: en busea dela topia, Santiago: Andrés Belo, 1993 2 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO . 5 ITADURAE RESISTENCIANOCHILE 43 dos, empresirios e trabalhadores, na debilida- de, Para educé-los na fortaleza ha que se pagar © custo do desemprego temporério, da quebra de empresas sendo... nunca os chilenos sero responséveis.”™! Se 0 sucesso econémico nao diferenci- asse 0 atual govemo dos anteriores, todo 0 discurso ideolégico construido e 0 caréter refundador perder-se-iam no fracasso decor- rente da opcdo neoliberal. A vantagem da or- todoxia monetarista residia na apresentagéo de ‘um projeto que reforgava a crenga na viabili- dade de uma transformagdo radical da realida- de chilena. Para a insergao desse pais na mo- demidade, toda e qualquer andlise -no enten- der dos técnico-condutores deste processo- deveria primar por alternativas globais e com ares de cientificismo. No entanto, a crise social foi inevité- vel. O desemprego subiu a niveis assombrosos ‘em comparagiio ao que até entio era conside- rado comum: de 5.77% elevou-se a 16.5%, em 1975, para alcangar o patamar de 30%, nos anos de 1982-83. Paralelamente, a economia informal cresceu em 13.3%, 0 que ndo foi suficiente para barrar o avango da desigualda- de social, conseqiéncia logica desse estado de coisas. Os salérios reais dificilmente eqiiivali- am a trés quartos dos de 1970 (sendo que em * Palavras de Pablo Baruona que, juntamente com Sérgio de Castro, foi um dos idealizadores do plano econdmico. Cosas, n.10, 17 fev. 1977, apud, VERGA- RA,P.,op. cit, p97, 1982 seu nivel foi inferior a0 de 1970). O "modelo" proposto pelos Chicago Boys no fez outra coisa Sendo evidenciar e aprofundar a desigualdade na distribuigdo de renda™. A. constituigiio do PEM (Programa de Empleo Minimo) e a capitalizagao répida e abusiva das empresas eram fatos flagrantes dessa situago que a imprensa de oposig&io denunciava: “Esta redistribuigio de renda e as miltiplas agdes que a acompanham para acelerar a formago € a centralizagdo dos capitais sero caracteristi- ‘e85 que no abandonario 0 ‘modelo’ durante 0s anos posteriores, Dois exemplos ilustram os contrastes desta politica: em 1975, se cria 0 PEM para abrandar os efeitos da recessio e 0 desemprego, que, em 82, chega a0 pico de 30%. Simultaneamente, no inicio de 1976, 0 grupo Cruzat-Larrain, emergente aps 1973 e, portanto, filho legitimo deste esquema, ja era dono de 27% das maiores empresas ¢ contro- lava direta e indiretamente um capital de 672 milhdes de délares."* Porém, uma op¢io consolidou-se a partir de 1975. As transformagdes empreendi- das pela politica econdmica de shock destaca. ) ram-se pela audécia, profundidade e extensdo. isso, tais_ mudangas contribuiram { para a personalizago do poder e o inevitavel | crescimento da repressdo. E irrelevante discu- / tir quando 0 projeto ditatorial realmente sur- giu, se antes ou depois do golpe. Muito mais ® Cf ANGELL, A.,op.cit Analisis, set. 1987, p.27 44 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO importante é 0 fato de que este projeto buscou © controle social absoluto e, para tanto, preo- cupou-se com a institucionalizagao do regime, Mais do que cifras de uma sociedade impacta- da pelos resquicios da “revolugio silencio "4g que se evidenciava era a prova de poder e resisténcia da ditadura assentada na hhegemonia dos neoliberais que —apés uma estréia politica bem sucedida- surgiram como 0s condutores do projeto fundacional do regi- me 0 projeto de refundagdo nao se limitou ‘4 esfera econémica e criou o que se denomi- nou de cultura autoritaria. Mesmo que pouco elaborada, esta tltima permeou as bases da sociedade chilena. As regras do mercado in- temalizaram um hébito cultural que primava pela necessidade ~mais do que pelo desejo~ de aquisi¢do e consumo de bens. Mais grave foi o debilitamento dos lagos de integracio social existentes antes do golpe. A sociedade mobili- zada, especialmente as organizagbes sociais ligadas & Unidade Popular, perdeu seu ponto de referéncia e apoio material. A represséo sistematica e cotidiana fez com que os chil nos respondessem com uma profunda apatia ‘as mudancas estruturais postas em andamento. ‘A modemizagao que se instalou no Chile ccultou os anseios daquela sociedade ¢ a transformou em uma massa adepta ao consu- > LAVIN, 5, Lasevolucion silenciosa. Santiago: Zig- Zag, 1987. * CE. CACERES, G., op. cit, p.238. er DITADURAERESISTENCIANOCHILE 45 ‘mo como forma de substituigo para a exacer- bada politizago vigente antes do golpe militar. ‘A politica, entendida anteriormente como ine- rente as relagSes sociais, perdeu seu significa- do e reconstrui-la mais tarde nao seria trabalho facil 3s indices decorrentes da aplicagio do shock neoliberal convergiam para um panora- ‘ma aterrador no qual se visualizava 0 colapso econémico, Ademais, o progressive declinio da classe média ¢ a marginalizagéo dos bairros. periféricos de Santiago -as poblaciones- tor- naram-se uma realidade incontestivel & medi- da que estas foram atingidas pelas conseqiién- cias da revolugio modemizadora proposta pela ditadura, 1.3 A institucionalizagao: a Constituigdo & 0 Plan Laboral Em 9 de julho de 1977, 0 Gen. Au- gusto Pinochet anunciava, em Chacarillas, 0 plano de’institucionalizagao do regime militar. Este fixava metas para o govemno © prazos para a normalizagao politica do pais, Os pra- zos que regulavam a volta a democracia -tal como era concebida pelos militares~ deveriam estar sob 0 estrito controle das Forgas Arma- das, assim como as metas para o regime, des- de que bem definidas, deveriam ser rigorosa- mente observadas e acatadas. Neste momento, Pinochet seus assessores passavam a cons- truit o que viria ser a democracia protegida. Po 46 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO Esta iltima, resultante do desejo de eternidade da ditadura, teve na institucionalizaglo a ala- vanca indispensavel para efetivar-se através dos éfclaves autoritérios que dificultar pratica ae ~~ 0 plano de Chacarillas, assim como 0 shock neoliberal, indicava 0 surgimento de um novo horizonte. A emergente_preocupagio com um. enfoque juridico-institucional_que guiasse as agdes do govemo e, consegiiente- mente, a evidente necessidade de se produzir um texto constitucional permitiam perceber / que era urgente para o regime buscar as saidas institucionais para a conservagiio do poder. Mais do que isso, apontavam para o desejo de regulamentar as conquistas neoliberais patro- cinadas pelo modelo econdmico. Dentro do que ficou conhecide como las siete modernizaciones, as mudangas nas leis trabalhistas e no seguro social foram as mais importantes. Desde o aniincio em Chaca- fillas, a aplicagdo de medidas regulamentado- ras nestas areas, especificamente, era conside- rada fundamental, haja vista a necessidade de controle do governo frente aos gastos com os programas socisis. Pouco tempo depois, as mudangas efetivaram-se através da legislagao trabalhista, em 1979, ¢ da Constituigo, apro- vada por um plebiscito em 1980. 3 Cf GARRETON, M.A. La possibilidad democratica on Chile, Cuademes de Difusion, Satisgo, p.51-63, 1989. ADURAERESISTENCIANO CHILE 47 ‘As modernizaciones proclamavam as- segurar a liberdade individual para além do Ambito econémico, contribuir para a justiga social e para a igualdade de oportunidades e, ainda, trazer a eficiéncia e a racionalidade de ages para o campo das relagSes sociais. Des- se modo, neoliberalismo aumentava seu raio de ago, integralizando a interferéncia dos pressupostos que, até entio, direcionavam apenas a economia © Plan Laboral colocava como sua maior tarefa a criagdo de um sindicato livre que, por sua vez, propiciasse as condicdes para uma negociago coletiva livre, justa e eficiente. Longe do discurso ideolégico, a cri- ago de um sindicato livre, na realidade, signi- ficou um golpe & atuagao histérica do sindicato no Chile, Assim, os pontos centrais da legislago trabalhista de 1979? embora reconhecessem 0 direito grévé © A negociagao coletiva, para- lelamente, impunham outras regras que difi- cultavam as atividades reivindicativas dos ‘rabalhadores. Cada empresa podia ter mais de um sindicato, erodindo, assim, a unidade dos trabalhadores. A filiago aos sindicatos deixa- va de ser obrigatéria e as conquistas efetivadas por eles deveriam se estender aos trabalhado- res como um todo, ndo importando se estes eram filiados ou no, Os contratos de trabalho passavam a depender de acordos entre patrées € empregados, Os conflites trabalhistas devi- aim ser resolvidos por tribunais da justiga co- TE NA DE SOUZA FREDRIGO 48. FAB mum, deixando 0 Estado distante da respon- sabilidade de atuar como arbitro nas disputas trabalhistas. s idealizadores deste plano, julgando que 0s trabalhadores encontravam-se em posi- go favoravel em relago aos patrBes em vit- tude do direito de greve, incorporaram a le- sgislagdo 0 direito de lockout. Este tltimo per- mitia ao empresério 0 fechamento temporério de sua empresa, no momento da greve. A rei- ‘vindicagéo trabalhista nao podia durar mais do que dois meses e, durante este tempo, 0 patro podia contratar novos empregados. ‘Algumas medidas posteriores ao Plan Laboral contribuiram para a flexibilizagdo do mercado de trabalho ¢ para a instauragtio do neoliberalismo na area trabalhista. A elimina- G0 do salario minimo e a realizagao de dos salariais baseados na produtividade inc ‘avant um asso adicional & concep¢io de negociagdo coletiva estabelecida na legislagdo trabalhista. Além disso, a dispensa de traba- Ihadores utilizando como alegago uma neces- sidade da empresa passou a ser considerada valida, bem como a supresséo da seguridade social para jovens e aprendizes. ‘Mesmo tendo causado estragos & of- ganizacdo trabalhista precedente, aprofundado © desemprego, 0 descontentamento social ¢ a crise, 0 Plan Laboral considerava-se 0 tutor dos ideais de liberdade e igualdade que, por sua vez, encontravam-se ausentes na legisla- 80 anterior: “O esquema econdmico- DITADURAERESISTENCIANO CHILE 49 trabalhista vigente até 1973 permitiu que um ‘grupo de empresérios e trabalhadores privile- giados, que em seu conjunto abarcam 20% do pais, se beneficiassem as custas dos quatro grupos restantes que compunham a maioria dos chilenos: os consumidores que no podiam proteger-se da inflagao, os desempregados que pagavam com seu desemprego 0 salério exor- bitante de outros, os trabalhadores nao sindi- calizados que viam reduzir as suas expectati- vas de remunerago € 0s sindicatos que nao tinham poder de pressio suficiente para impor seus interesses. Pode-se imaginar um regime de maior injustiga social do que o descrito?””” Depois de mudangas na érea econémi- co-social, a Constituigéo de 1980 significou um passo fundamental para o regime. Aprova- da por um plebiscito, ainda que sob imposi- Bes, tais como a repressdo e 0 controle da imprensa, éla fepresentou uma vitéria do bloco govemante. O que estava em jogo nao eram as’ condigdes sob as quais a carta constitucional ’ havia sido outorgada, mas sim o modo através do qual havia sido aprovada por referendum popular. 0 plebiscito conferia ao regime a legi- timidade politica que ele procurava desde 1976. O shock neoliberal, embora contasse ‘com 0 apoio da classe média e dos empresa- Discurso que torna pblico 0 Plan Laboral. Palavras slo Ministo de Trabalho, J. Pifera, 1° de julho de 1979, Realdad,v.1, 2.3, ago. 1979, apud VERGARA, P., op sit, p218. 50 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO rios, exigia da camada militar dirigente o uso intenso do aparelho repressivo. Sendo assim, & legitimidade do governo militar esteve condi- cionada, por um bom tempo, as leis de segu- ranga nacional, mesmo que a preocupago do regime indicasse a necessidade de um subter- fgio politico para reafirmar o apoio dos cida~ dios chilenos. Assim, o plebiscito atendeu ndo somente & busca de legslidade —através” da aprovagio das regras criadas pelo regime como também aos interesses de consagra¢o politica da ditadura por meio do referendum popular. Desse modo, a Constituigo refletiu uma vitoria do govemno, pois, ele conse legitintidade politica necesséria e, ainda, arti- culou, no corpo das leis, as téticas para reali- zar uma transigfo gradual e controlada. A criagdo dos entraves autoritérios no texto, constitucional dificultaria, posteriormente, a reconstrugao da democracia chilena. A partir da vigéncia da nova Constituigio, os conflitos no interior do bloco dominante entre os dife- rentes setores das Forgas Armadas- perderam sentido mediante & magnitude do poder que foi conferido a0 presidente da Repiblica, o Gen, Augusto Pinochet. Em termos gerais, a Constituigo regia |que, até 1989, Pinochet permaneceria no po- _er. Em 05 de outubro de 1988, seria convo- “ado um plebiscito para a aprovagio de um ‘candidato proposto pela Junta Militar. No caso de Vitoria deste candidato, ele govemaria por 5 DITADURAERESISTENCIANOCHILE 51 ito anos. Uma situagdo inversa a anterior, ou) seja, @ reprovagio do candidato proposto, si, gnificaria a convocagao de eleigées livres ¢ competitivas. O presidente eleito governaria’” sob regras consagradas e definidas pela Carta) de 1980. As Forgas Armadas assumiram papel politico preponderante, sendo os militares as figuras majoritirias do Conselho de Seguran- ga. Até af, no havia nenhuma novidade em relagdo a0 que ja estava acontecendo. Porém, com a Constituigao, este papel foi regulamen- tado por lei. Da mesma forma, foi concedida as Forgas Armadas a independéncia de ago frente a qualquer outro poder politico, inclusi- ve ao do presidente da Repiiblica. No que se referia 4 presidéncia, os poderes atribuidos a0 | mandatério da Nagdo passaram a ser quase / que absolutos. Entretanto, a limitagéo dos po- | deres do presidente ficava a cargo da institui- | io militar, ou éntéo, das insténcias juridicas téenicas, quais sejam: 0 Conselho de Seguran- $a 0 Banco Central e o Tribunal Constitucio- nal, No entanto, no por acaso, estas instancias estavam sob 0 controle do alto escalio das Forgas Armadas, do qual Augusto Pinochet era parte integrante, autoritarismo criou, desta forma, 03 mecanismos de sua manutengdo ¢ reprodugéo, ‘A Constituigo regulamentava, assim, uma dindmica politica que definiria 0 cenario do pais pelos préximos ito anos. Portanto, no inicio dos “anos Sitenta, no havia questiona- 2 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO ‘mentos em relagdo & ordem que se estabelece- ria e muito menos como esta ordem seria re- cebida pela sociedade civil, Nesse momento, a Constituigdo tinha 0 dever de dar continuidade 4 ditadura que, na realidade, passava por um Proceso de auto-reforma com o intuito de preservar 0 poder. © melhor meio para atingir tal objetivo, de acordo com a interpretago do bbloco dominante, era sancionar como direito as conquistas neoliberais advindas das moderni- zaciones © do shock. Assim, o sistema consti- tucional ratificava, juntamente com a politica ‘econdmica do governo, o desejo de poder e de etemidade da ditadura chilena, usando como Justificativa a criag’io de uma furtura ordem democritica: “a plena aplicagio da nova Constituigéo supde que previamente deve-se alcangar 0 desenvolvimento econémico e as transformagées que foram impulsionadas, pois serio estas os pilares de uma democracia esté- vel, a servigo de uma sociedade livre™. 1.4. A crise de 1981 e sua ressonancia no meio social A recessio intemacional do inicio da década de oitenta atingiu o Chile de maneira brusca, fazendo com que os desacertos da experigncia ortodoxa viessem.a tona e trou- * Discurso do Gen. Augusto Pinochet, quando da ‘convoeagio do plebiscito para aprovar a Constituigao, ElMeteurio, 11 de agosto de 1980, spud. VERGARA, P., op. cit, p.213. ADURAERESISTENCIANOCHILE 53 sem consigo a crise que era iminente desde 0s primeiros efeitos do shock neoliberal. Con- fiantes no sucesso da politica econémica apli- cada, foi dificil para que os economistas ¢ os integrantes do regime acreditassem que a crise que enfrentavam tinha proporpdes maiores do que a simples influéncia extema. Apoiado na ilusdo triunfalista que ha- via feito do neoliberalismo a inica e melhor saida para contrapor-se aos ideais estatizantes, © governo aguardava que a crise passasse. Afinal, no se avaliava capaz de encontrar uma saida vidvel fora da receita ortodoxa, No entanto, 0 ano de 1982 indicava a necessidade de sair do imobilismo: “O ano de 1982 culmi- nou com resultados que confirmavam a pro- fundidade da crise que se atravessava, A ativi- dade econiémica intema, medida em termos do produto intemo bruto, diminuiu em tomo de 14%. A produgo industrial decresceu em 24%, alcangando um nivel absoluto 15% infe- rior a0 que existia no inicio da década de 1970; o desemprego atingiu 30% da fora de trabalho, e a infla¢do voltou a superar o indice de 20% ao ano.”” Contrariando os argumentos que eram © sustentéculo do regime, o meio adotado para | evitar maiores colapsos na iniciativa privada e |, barrar a crise fi utilizar como instrumento 0 intervencionismo estatal. 0 mercado mostrou| sinais de esgotamento eas pitas sobre a falé- | ® VERGARA, P, op. cit, p.234 54 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO Yr DITADURAE RESISTENCIANOCHILE 55 cia da auto-regulagdo eram evidentes. Os ni- veis alcangados pelo intervencionismo estatal no foram muito distintos daqueles dos tem- pos da Unidade Popular. O Estado, novamen- te, assumiu as rédeas para controlar a econo- mia do pais, realizou uma intervengio no sis- tema financeiro e passow@ dirigir as empresas qué Se encontravam nas ios dos- bancos, Restabeleceu-se, da mesma forma, 0 controle do cémbio e das taxas de juros através da atu- ago do Banco Central"*. O liberalismo real chileno mostrava suas debilidades ¢ a exem- plaridade do modelo neoliberal (explorada ¢ exportada como representante maxima do Chile modemo) sé péde evitar a deblaché uma vez que se encontrava diante de um Estado forte ¢ centralizador. Paradoxo visivel que, no entanto, foi o responsavel pelo sucesso eco- némico alardeado a posteriori Neste momento, tragar um panorama detalhado da crise de 1982 nao é imprescindi- vel. Muito mais importante, certamente, é a percepedo das transformagées impostas pelo modelo neoliberal, Isto porque a discusséo realizada no segundo capitulo serviré como complemento para a compreenséo da relagao entre a reestruturagio da sociedade chilena ~ por via do neoliberalismo- e a eclosio das mobilizagdes sociais. O importante é acrescentar que a crise econdmica foi, sem duivida, um fator catalisa- * Did, p.236, dor das protestas. Mas, de modo algum, estas mobilizagSes foram conseqiéncia direta e nica da crise econémica desencadeada em 1981. Inicialmente, porque o ano do shock neoliberal foi 1975, momento em que a socie- dade chilena softeu a primeira crise decorrente do modelo implantado, Por certo que 0 apoio dos empresirios e da classe média (que nunca deixaram de aprovar o gover) era mais forte e coerente neste inicio em virtude das lem- brancas de um passado ainda recente que no queriam ter de volta, No entanto, os efeitos da reestruturagiio empreendida nfo deixaram de atuar sobre os lucros do empresariado e o pa- dr&o de vida da classe média Entiio, conside- ramos fundamental assinalar as variadas face- tas da explosio social que caracterizou os anos de 1983-84 sem reduzi-la, contudo, a uma | abordagem mecanicista que a relacione apenas como cause inerente 4 crise que atingiu a eco- nomia Todavia, a relagio entre a crise eco- némica e as mudangas que se inferiram na sociedade deve ser feita para que se possa esclarecer alguns aspectos que serio funda- mentais, posteriormente, quando da emergén- cia das mobilizacSes sociais. E evidente que a reorganizagdo dos sujeitos populares, das or- ganizagdes sociais, dos aparatos de Direitos Humanos, entre outros grupos organizados, no esteve associada ao intuito de se chegar, especialmente, as protestas, Mesmo porque, para se adotar tal premissa, seria necessario 56 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO aceitar 0 dominio da historia como algo pr6- ximo do campo das previsbes ¢ no como um palco no qual 0s conflitos desenrolam-se, po- dendo advir deles variadas possibilidades, nem sempre previsiveis. Se fOssemos considerar a inevitabilidade como caracteristica inerente 205 acontecimentos histéricos, a movimenta- ‘go posterior a que se assistiu nfo teria sur- preendido até a oposigdo do regime, Nesse sentido, deve-se entender a necessidade de recomposi¢do do tecido social como uma con- seqiéncia da percep dos atores politicos sociais de que 0 cenério modificava-se ¢ de que a sociedade estava suscetivel as demandas cotidianas por melhores condigdes de vida Sabendo que as demandas sociais podiam ser canalizadas politicamente, 0 trabalho dos mi- litantes revelou-se primordial e foi considerado ‘como um meio efetivo de se colocar em an- damento uma nova dinémica de atuagdo politi- ca que se aproximasse da base social. Nao obstante, no se tinha a clareza sobre o lugar a0 qual tal ago poderia conduzir a sociedade chilena, Na realidade, a crise econdmica coin- cidiu com a reorganizago subterrénea de-al- guns setores sociais que, mais tarde, dissemi nariam esta Organizagio, até entio subterra- nea, no espago publico —conquista inevitavel das mobilizagdes populares de 1983 ¢ 1984 A falécia do poder regulador do mer- cado ficava evidente diante de uma ditadura que se tornava, dia a dia, pessoal, intransferi- vele absaluta, A inversio dos ideais politicos DITADURA E RESISTENCIAN 37 conhecidos pela sociedade chilena fez com que se passasse de um Estado politizador da sociedade como era o Estado chileno até 1973— a outro —como era o do regime militar- que se esmerava em despolitizar a sociedade por meio da sobredeterminagio do Estado na politica, resultado Sbvio da concentragdo de poder. Desse modo, a reorganizagéo popular — que poderia ou nfo ter sido efémera- nao po- dia indicar, necessariamente, o que aconteceria no inicio da década de oitenta, As demandas destas organizagées sociais, condiciénadas pelas mudancas patrocinadas na concepeao de Estado, eram relativas & reconstrugdo da vida cotidiana e a restituigo das identidades perdi- das com as ‘ransformagées neoliberais. Em decorréncia de tais caracteristicas, era inevité- vel a presenga de um cardter expressivo- simbélico no interior deste processo de re- composigo. Desse modo, nao se visualizava, a0 menos neste momento especificamente, a possibilidade de um movimento social do porte que foram as protestas, Se houvesse a canalizagdo politica dessas demandas, poderia ocorrer alguma mobilizagdo que, talvez, se disseminasse, No entanto, as rearticulagdes que se faziam presentes no cotidiano dos chi- lenos, ainda, eram ténues. Em virtude disto, tum intenso trabalho politico deveria ser feito para que se alcangasse o status de uma arma eficaz contra o poder das Forgas Armadas, ‘As mudangas patrocinadas pela carta constitucional de 1980 indicavam uma auto- Lk | 58 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO reforma, Portanto, qualquer discussdo a esse respeito encontrava-se submetida ao dominio governamental, O calendério que se responsa- bilizava pela entrega do governo ao poder civil havia sido formulado pelos militares, sem a necessidade de nenhum interlocutor. O debate com a sociedade civil ndo se apresentava como altemativa; melhor seria que se promovesse ‘uma consulta popular da qual se tivesse certe- za de vitéria, A partir dessa interpretago, as atitudes foram tomadas eo plebiscito de 1980 serviu a esses interesses. ‘No sentido exposto, a rearticulagao do tecido social compés-se por iniciativas do mo= vimento popular como também das classes média e alta, Em meados de 1975-1976, surgi- riam as primeiras expresses de um tipo parti- cular de organizagéo social que teve como condutora a Igreja Catélica Tratava-se, por tanto, de organizagbes que atuavam no sentido de assegurar a sobrevivéncia material © 0 conforto espiritual através da. solidariedade. Nao obstante, estas organizagées acabaram criando um espago artistico-cultural no qual reuniam-se jovens e mulheres. O gérmen da discussio politica, certamente, esteve presente nestes encontros e a exigéncia de respeito aos Direitos Humanos foi pauta obrigatéria. Do mesmo modo, nas poblaciones foram multi plicando-se associagées, porém, estas encon- travam-se distantes da protegdo da Igreja e carentes de um abrigo institucional e legal ‘Além do caréter solidario, desenvolveram-se r- DITADURAE RESISTENCIANOCHILE 59 neste ambiente niicleos reivindicativos e de educagio popular mantidos por ativos mili- tantes politicos” a Por sua vez, 0s partidos politicos. en- frentavam a fragmentagao e, com uma organi- zagio minima, a partir de 1974, comegavam a tracar intemamente os planos ¢ as estratégias de ago a partir da realidade em que viviam. Apés a institucionalizago do regime, duas tendéncias intemas evidenciavam a postura da esquerda, Por um lado, apresentava-se como esiratégia a radicalizagéo da luta e o enfrenta- mento direto com o regime, A anilise deste setor partia da premissa de que as altemnativas para a atuagio politica sofriam um bombar- deio com a institucionalizasao. Como vimos, além do controle repressivo, neste momento, 0 govemo tinha elaborado e referendado uma Constituigao. Portanto, se a oposig¢o ndo atu- asse com maior rigor, tomar-se-ia refém da carta constitucional o que, por sua vez, Ihe dificultaria a volta a0 cenério politico. Por outro lado, analisava-se a necessidade urgente da reconstruggo do movimento popular. Esta estratégia cobrava da oposi¢ao uma reflexio critica de toda a sua atividade politica anterior. Tinha inicio, entéo, a busca de um fazer politi- co que permitisse a participagao € 0 protago- nismo popular para, posteriormente, encontrar "DE LA MAZA, G., GARCES, M. La-explasion de las mavorias: protesta nacional, 1983-1984. Santiago: Edveacion y Comunicaciones, 1985 60 FABIANA DE SOUZA FREDRIGO um projeto que possibilitasse a redemocratiza- ao” Ainda, por volta de 1976-1977, assis- tiu-se aos protestos nascidos no interior da classe média. A luta pelos Direitos Humanos e a comogGo frente aos desaparecimentos e as detengSes fizeram com que as familias afeta- das se unissem e mobilizassem esforgos para exigir explicagdes do aparelho repressive do regime, ‘Nas universidades, da mesma forma, observava-se a reconstrugio da oposigio. A retomada paulatina dos postos de ago come- gou com os Comités de Participago, emer- ‘gentes em 1977, A recomposigio universitaria apostou na reconquista das organizagdes estu- dantis, sendo assim, a luta dos estudantes es- teve associada as eleigdes. Nao obstante, 0 proceso eleitoral e a vitéria da oposigao nas universidades foram posteriores. Nos fins da década de setenta, a preocupagiio centrava-se na construgio de espagos democriticos. Neste periodo, ndo houve conquistas reivindicativas de grande vulto™, Bid, p.15-16. » Ao analisarjomais e revista, abarcondo todo o pei- ‘odo militar, pode-se coneluir que a lareja atuow inten- samenie frente a0 desrespeito aos direitos. humanos. ‘Um dos arquivos mais importantes no Chile para reco- Ther material sobre a repressdo encontra-se vinculado & Iareja Viearia de la Solidariedad). ! preciso que se tena claro que o apoio da Igreja, embora tenha exsti- 4o, nfo deixou de lado a postura centrist % $m 1985, em uma conjuntura bem posterior, 22 das 24 federagies estudantis tinbam entre suas liderangas DITADURAERESISTENCIANOCHILE 61 Assim sendo, 0 anincio das protestas, no inicio de 1983, por um lado, surpreende pela magnitude. Por outro, demonstra que 0 processo de recomposigio que se deu nos subterrdneos reafirmar-se-ia por meio da con- tinuidade do trabalho opositor. As mobiliza- ‘ges sociais percorreriam um caminho coroa- do de dificuldades e enfrentariam os avangos ¢ recuos inerentes a qualquer rearticulagdo soci- al. Mesmo assim, demonstrariam 0 poder de criago dos atores no momento em que as necessidades adentrassem o paleo conflituoso da Historia chapas de oposigdo eleitas democraticamente, _ ks

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