Você está na página 1de 1

José Saramago e a Tourada

A tourada, lídima manifestação


de cultura popular, é abjectamente
denegrida em Memorial do Convento
de José Saramago porque a festa de
toiros tem implícita uma antropologia
que se opõe à do marxismo.
Leia-se, por exemplo, esta
passagem: «Estão as bancadas e os
terrados formigando de povo, reservadamente acomodadas as pessoas
principais, e as majestades e altezas miram das janelas do paço, por enquanto
ainda andam os aguadores a aguar a praça, oitenta homens vestidos à
mourisca, com as armas do Senado de Lisboa bordadas nas opas que trazem
vestidas, impacienta-se o povinho que quer ver sair os touros, já se foram
embora as danças, e agora retiraram-se os aguadores, ficou o terreiro um
brinco, cheirando a terra molhada, parece que o mundo se acabou agora
mesmo de criar, esperem-lhe pela pancada, não tardam aí o sangue e a urina,
e as bostas dos touros, e os benicos dos cavalos, e se algum homem se borrar
de medo oxalá o amparem as bragas, para não fazer má figura diante do povo
de Lisboa e de D. João V» (Saramago, José, Memorial do Convento, Círculo de
Leitores, Lisboa, 1984).
Muitos leitores, levados pela máxima de que gostos são gostos,
encolhem os ombros e concluem que Saramago não gosta de touradas, direito
que lhe assiste.
O problema é de longe muito mais profundo.
O comunismo, sem que o pareça, despreza a cultura de raiz popular,
uma vez que esta, por força dos valores intrínsecos que a estruturam (ideia de
uma Força superior à do homem, hierarquização, mais regra para mais
liberdade, etc.), é obstáculo à progressão marxista, retardando o advento da
justiça e paz perpétuas. Esta ideia está tão arreigada nos totalitarismos que
matar milhões e milhões de pessoas em nome da utopia almejada é apenas
um incómodo de percurso.

Você também pode gostar