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AIMPORTANCIA DA SALA DE AULA PARA UMA FORMACAO DE QUALIDADE lideu Moreira Coéiho/JFG" Muto se tem faiado, nas utmas décadas, sobre a universidade brasileira suas deficiéncias, e principaimente sobre uma suposta queda na qualidade do ensino!. Mas, pouco se tem feito para, sem simplismos, com a urgéncia e @ seriedade que os problemas exigem, enfrentlos e superé-os. A propria universidade tem sistematicamente secundarizado as quostdes do ensio frente & pesquisa, 4 chamada “extensdo" universitaria e @ avatacdo dovente, por exemplo. A sala de atia parece contar pouco, especialmente quando se trata de ensino de graduagio. Embora seja 0 campo de atuagao_quase exclusive da maior Parte dos docentes e atinja a quase totaidade dos estudantes de ensino superior, a graduagio mutes vezes cumpre ume fungao formal, burocrética, ritualist Desse porto de vista, as aulas professor 2 preencher aquele minimo de horas-atividade exigido pela instituigdo, ustifcando cortrato de trabalho e convencendo a todos — 2 comegar pelo prépro inieressado — de que o docente faz ‘como s0 0 caminho para o aluno chegar 2o diploma e a0 ingresso no mercado de trabaho. E entéo tudo fica no passando ce uma formalidade, de um rtuel que se ‘cumpre. Estamos, pois, diante de uma negacao do académico, e néo diante de um ensino superior, de uma universidade, de uma sala de aula! a Universicace Federal de Golds. Nesta separcta foram carigicos alguns ertos de inprense exisiertes nos Arai ‘equals cs elementos que a determinam, constiuem ou destoer? Pensar a sala de aula e sua importancia para a formacao dos alunos € enfrentar tecricamente a quesido da universidade, dos projetos . dos curriculos, do saber, do ensinar € do aprender. instituiggo essencialmente académica que emerge da vida social conereta, a reproduz e contesta, a universidade € o espago por exceléncia do debete e da critica da produgdo social, do contronto das id6ias, da interrogacao do sentido e da genese do real, do questiona- mento de si mesma e da busca de altemativas para o mundo da produgdi e para a existéncia Social e individual Certamente esta universidade qual me refiro 6 um ‘projeto”, uma idéia em sentido kantiano, um processo sempre retomado de produgo e superacdo de si mesma, uma utopia no sentido originario da ‘expreseéo, um sonho, ¢ no una realidade empirica existente em algum lugar. Nao se trata, pois. da defesa de um projeto para, nem mesmo de um projeto da universidade brasiera, mas de se assumir a universidade mesma como um projeto, um desafio, € de se produzi-a, de se insttui-la como academia. Construir essa universidade com a qual sonhamos & que emerge das exigencies mesmas da realidade atual da universidade brasileira 6 0 grande desafio que eticamente se impde a todos nds. A sala de aula é uma das dimensdes dese desafio © entao convem perguntar: que exigéncias ela impOe aos que a enfreniam? Em primeiro lugar, que o ensino de graduagao se constitu de fato cormo um projeto de formagao dos alunos come cidados, homens livres @ responsaveis € como profissionais capazes de pensar & ‘equacionar es problemas fundamentais em cada drea, definindo thes as solugdes adequadas. Com isso se supera 0 curricuo “colcha de retahos’, “arvore de natal’, cheio de disciplinas que se amontoam feito uinguitnarias num bazar de novidades intelectuais, como se cada uma tivesse um sentido em si mesma € pudesse ser colocada 2o lado ou sobre a outra 2 No sentido etimoligice nBo teenicista © economiieta do tore, 16 we formar Yécnicos" para desembrulhar pacotes tecnolégicos oriundos dos centros mals avangados, para executar projetos com competéncia © eficiéncia, A formacao técnica no perde sua importancia, mas rompe com o tecnicismo, deixa de ser exclusiva, essumindo necessariamente uma outra dimenséo no processo de formacao dos jovens universitérios E preciso inclusive se superar es equivocadas € to repisadas dicotomi- as entre formagao ¢ informacéo, formacao do generalista e do especia- lista, tecnicismo e humanismo. Se 0 curriculo de fato & um projeto de formacéo, ha um sentido definido no que professores e alunos fazem no ensino de_ ‘araduacao, Nadé ocorre por acaso, mas tudo ~ detinigac do nucleo epistemolégico do cursolprojeto, escolha das matérias e disciplinas € respectivas cargas horérias, pré-fequstos ou posigao na série, programas, bblografias, realizagao da aula, avaliagdo ~ se dé a uze em vista de um fim, ou seja, da concretizacao do projets de formegso._ Estarios longs dos gravee aquivecos de'sa pansar aca constnuir os currculos pelo caminno mais faci e Ingénuo, acrescentando rnovas disciplines e topicos e ampliando as horas reservadas a cada um. como sesso fosse capaz de garantir a melhoria de sua qualidade. Essa via historcamente tem levado 2s 4reas a um inchamento dos curriculos, 4 sua iracionalidede, 20 culto da novidade, reduzida a um epéndice ~ em geral muito valorizado ~ mas desligado dos concaitos basicos € das implcagSes decorrentes, bem como de uma compreenséo mais ampla, rigorosa e profunda do saber. O curiculo néo se reduz, portento, a dscipinastirformagées | fragmentadas, nema ‘saber'inovidade, mas é um todo em construcéo, fem proceso de constituicdo e superago de si mesmo, ou seja, um projeto que prvilegia 0 essencaal em cada area ou matéria, produzindo sinteses, incorporando as novas descobertas das ciéncias as sintosos | jd existentes e revendo tudo em novas bases. | ay ‘A sala de aula no é, pois, um espago fisico, uma realidade formal, burocratica em que. de um lado, o professer “ensina", expde, impée, repassa, socieliza o seber jé acumulado e sistematizado pela humanidade e, de outro, os alunos “aprender”, assimitam, absorvern, aceitam, engoiem o que Ihes é epresentado, O que a con como realidade academica @ 0 trabalho de protessores € alunos, ou ‘0a, a rigorosa elaberapéo tobrica que ai se constréi; a busca, a divida eo questionamento que se cuitiva; o saber vivo com © qual se cor @ cuja compreenséo e superaro se persegue O contetido deixa um produto acabado, independente do processo de sua produpao © transformago, para se constituir como busca do sentido e da genese do real € do préprio saber. A experiéncia do aluno © seu saber, iguaimente, so um ponto de partida a ser pensado, trabalhado icamente, superaco © no apenas sistematizado, ordenado. Mas, se 0 trabalho € destruigZo do vetho e produgao do novo, entdo a sala de aula é essa continua retomada por parte de professores e alunos do nao-seber, buscando sua destruigdo € ‘superagdo @ a concomitante produce do saber. Professores e alunos 0 final de um semestre, ano letivo cu curso serio completamente outros, a nao ser que durante esse periado nao tenham de fato trabalnado, ou seja, se envolvido na destruigao do velho (no-saber) © ina produgo do novo (saber. Nesse sentido, a sala de aula ndo seré jamais 0 espago da rotina, da mera repeticao do que os outros dsseram, mesmo que estes ‘sejam autores "famosos", cléssicos. Com muito mais razéo, ndo seré também o local de se entrar em contato com os resumos, as formulas ié consagradas, os manuais de vulgarizagdo/simpificago de nossa ‘compreensao do real e do propo saber. O saber existente, os conceitos © métodos de invostigago so, acima de tudo, matéria-prima a ser pensada em sua historicidade, @ ser trabalnada como insirmento de expressdo ¢ transformagao do real Se, por um lado, 0 saber no se reduz a um conjunto de verdades prontas e acabadas. 4 descoberias, mortas, autenticos cadéveres ambulantes, nem a informagSes, por outro, o trabalho intelec- tual, constituidor da esséncia mesma da sala de aula, a faz viva, plena de sentido, uma criagSo continua, uma obra de arte, E como todo trabalho, este em especial supde metodo (variével de acordo com a 4rea, com 0 campo da investigarao), cisciplina (controle do corpo e da mente), organizacdo, persistencia, continuidade, un tempe proprio para sua afetivagao (diferente do tempo exigido para a realizacao de outras atvidades humanas), defirigo clara dos fins e dos meios para ating los, uma relaco pessoal dos que trabalham (professores e aluncs) com o saber. fim do trabalho de professores e alunos 6 0 estabele- cimento, o aprofundamento e a consolidagao de uma relagdo de ambos ‘ccm o saber, a constituigo de um convivio amoroso com a verdade que jamais se d& como pronta e, portanto, precisa ser buscada a cada momento, construida. A rela¢do que se estabelece entre os professores, enite os alunos e entre esses dois grupos, apesar de real e importante, 1ndo passa de um meio para se atingir 0 fim que da sentido e é a razéo de ser do trabelho de professores @ alunos em qualquer esccla, especialmente numa universidade. E nesse processo de busca, de estabelecimento dessa relagdo com 0 saber, 0 professor e @ aluno néio se encontram no mesmo lugar Se 0 fim, © ponto de chegada perseguido por ambos é o masmo, se 0 que buscam & uma "convivéncia” mais profunda rigorosa com o saber, no ponto de paxtida professores e alunos so bem diferentes. Embora no seja 0 proprietario e 0 distibuidor/socializador do saber, o professor tem a obrigagdo ética e profissional (para isso inclusive é forado, contratade ¢ constiuide como professor) de ensinar as alunos, 0 que supe maior convivio com 0 saber, com a razo. A ele cabe a produggo e a seleg3o do saber existante em fung4o dos 9 5) apresenta, a definicgo dos conceitos jos métodes de investigagdo € de ensino, dos programas, da seqiiéncia dos contatidos. do procasso de avaliagao. © aluno, por sua vez, € alguém que esié iniciando seus passes nos caminhos do saber Embora ndo seja um neofito por Ccompeeto, no nivel em que a investigagdo e a refiexéo se impoem na universidade, ele no deixa de ser um iniciante, alguém que precisa de ofientagao firme € segura do ponto de vista da razo. Essa situagdo confere a0 aluno 0 direito a um ensino realmente universitario, a uma aula de qualidade, a uma formagéo rigorosa sob todos os pontos de vista @ Ihe impde 0 dever do estudo, da busca, da interrogagao; 20 professor confere o dreito 0 dever do ensino. Professor e aluno esto Unidos, pois, pelo dever do trabalhar para que seja superada a distancia {que 0s separa um do outro e do saber com 0 qual procuram relacionar- ‘se, distancie esta que se recompée a cada momento, de formas ¢ em niveis dferencados. E é nesse trabalho que a sala de aula se constroi, ‘se constitui como espago da razéo, do pensar, da produgdo da ‘autonomia do aluno como trabalhador intelectual. Nessa relagio de professores e alunos com o seber, nuclear nna existéncia mesma da sala de aula, o que esta em jogo principalmente ‘84008 conceilos, as teorias, as opSes metodolégicas; 0 repensar eo refazer dos caminhos ja trihados e dos resultados alcancados: 0 confronto das idéias e métodos, 0 recriar das préticas académicas, inclusive na rea do ersino. No lugar de verdades prontas e acabedas a serem socializadas € consumidas, 0 que esta em jogo s4o verdades em processo de constnuco, saberes vivos, historicamente produzidos © enquanto tas compreendidos, a aquisic&o de um hébito de trabalho intelectual, o cultivo da busca sempre retomada das explicacdes, Nao Sendo um dado, um conjunto de informagSes a serem memerizadas e transiormadas em esquemas mentais, o saber no pode 10 ‘ser encontrado por professores ¢ alunos em algum lugar, nem simples: mente socializado por aqueles, Saber € verdade nao sdo coisas, mercadovias que poderiam ser adquiridas, apropriadas, armazenadas € consumidas. Nao so simples pontos de chegada, mas ao mesmo tempo pontos de chegada (provisérios) ¢ pontos de partida, realdades ‘em construgdo e como tais devem ser enfrentados na sala de a (© importante, pois, néo & repassar aos alunos as uitimas informagSesidescobertas das ciéncias, mas acima de tudo percorer com eles os caminhos da produgao do saber, da elaboragdo das teorias, do levantamento e do teste das hipéteses, enfim. ensina-ios 2 epreen: der 0 mundo como bidlogos ou historiadores. importancia da histéria das ciéncias, entendida no como uma historia que se conta “de fora" das ciéncias, mas como uma consinugéo tedrica que se elabora “de dentro’, a partir do proprio fazer dos cientistas, temmatizando-o, pergun- tando por seu sentido e génese historicamente ceterminados Nic ha deivida sobre a importncia dessa sala de aula como instrumento fundamental para uma formegao de qualidade © para @ existéncia mesma da universidade como instituicdo de pesquisa € fensino, de busca, de questionamento, de trabalho intelectual. E ele € importante justamente porque, procuzida pelo trabalho sério, competen- tee dedicado de professores @ alunos, se constitui como um espago da razo, do pensamento @ ndo do consumo. Finalmente, numa sociedade e numa universidade em que, por inerivel que parega, 0 irracional muitas vezes ameaca invadir 0 ‘espago da razo; em que a subjetividade parece desbancar a o' de; em que froqientemente se nega a possbilidade da razéo ir além do contingente, do descontinuo, das diferencas e apreender o sentido imanente ea histérie, consttuindo a universalidade do real, sem cair nas | armadithas do positivismo, do sectarismo e do totalitarismo; em que @ sla de aula e a universidade como um todo as vezes se tornam cativas m1 do corporativisme de professores, alunos © trabalhadores técnico- _administrativos, talvez seja importarte reafimar e constr a universida- de, a sala de aula como espagos por excoléncia da razdo, nao de uma | raz4o supcstamente neutra, positvista, mas historicamente situada | produzida.

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