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act NO BRASIL fe O presente artigo aborda 0 conceito de alfabetizacao a partir da perspectiva da ciéncia cognitiva de leitura. Usando dados empiricos e documentais, ilustra como as politicas eas praticas de alfabe- tizacdo prevalentes no pais, ao ignora- ‘em os avancos cientificos na area, vem contribuindo, de forma deliberada, para 08 baixos niveis que caracterizam o de- sempenho dos alunos. Palavras-chave: alfabetizacao; leitura; politicas publicas. PES Thisarticle addresses the concept ofteracy teaching from the perspective of the cog nitive science of reading. By using empiric and document data, it shows how literacy policies and practices in the country delibe- rately contribute tothe low levels of student performance as they ignore the scientific progresses of the area. Keywords: literacy; reading: publicpolicies. esde 0 séeulo XVIII, ¢ até a década de 60 do séeulo XX, as discusses sobre alfabe tizagio se davam essencial: mente no campo metodol6. ico, discutiam-se métodos de alfabetizar, ainda que sem uma base cieatifica ov em: pitica adequada. mente, a discussdo girava em tomo de métodos analiticos ou sintéticos ~ ou seja, se se Essencial deveria ensinar do global para © especifico ou do especifico para o global: frase, palavra, silaba, letra (e mais tarde, fonema). Na década de 60, a discussie, no Brasil, comega a as sumir contomos ideoldgicos com as propostas de alfabetizagio de Paulo Freire. Em outros paises, a discussao também se torna mais ideolégica — tan to na vertente do whole language dos paises de lingua inglesa, inspirada pelos linguistas e psico: linguistas, quanto na versio construtivista, que {eve maior impacto em alguns paises latinos: Em sua obra Aduso da Linguagem, Abuso de Poder, Josef Pieper delineia ja no titulo a dimen. sto exata da honestidade intelectual e antecipa os desatinos do relativismo pos-moderno. O coneeito de alfabetizagao é uma das vitimas. A afirmagio de Soares (1999) de que alfabetizacio e letramen to sho indissociiveis inaugura o pos-modernismo na discussao sobre alfabetizagao em nosso pafs provoea a ruptura com a racionalidade cientifica, Esclarecer os termos ajuda a entender as ori gens do descarrilamento da discussie associa. Ko PAULO +N. 100+ 2 da a alfabetizagao, O erro consiste em associar ‘9 processo da alfabetizagio — identifiear 0 que estd escrito ~ com o seu objetivo ~ compreen der 0 sentido do que se 1é. Consiste em confua. dir uma habilidade — que precisa ser ensinada e aprendida ~ com uma eapacidade que pode ser desenvolvida mesmo sem a habilidade de leitura, A palavra “alfabetizar”, no seu sentido etimo lgico, vem de “alfabeto”. Alfabeto € um dos sis: temas de escrita, mas nao € o tinieo. Na China se utiliza um sistema de representagao de morfemas, 1a India, de sflabas. No Japio ha um sistema igual a0 chines e outro em que se representam pequenas Uunidades de som que podem corresponder a uma vogal ou a uma silaba. Ou seja: hi diferentes for suas de representar a linguagem por escrito. Os pi imieiros alfabetos dos povos semitas represeatavam as consoantes, depois os fenicios introduziam a representagio das vogais, que os gregos consoli daram e batizaram de alfabeto ¢ que nos chegou pela via do alfabeto latino (MeGuinness, 2004), As letras sto a matéria prima do cédi 20 alfabético, Teenicamente sao chamadas de grafemas ~ por vezes precisamos de duas letras 1 Para uma anise critica desses desenvolvimentos, vero Relate Educogdo Infant: Novos Caminhos, (Camara dos Deputads, 2003) JOKO BATISTA ARAUJOE OLIVEIRA é presidente do Instituto Aa e Beto e autor de, entie outros, ‘Aprender Ensinar (Global. Dossié Educagao (ch, lh) para formar um grafema. Os grafemas sio as unidades menores do cédigo escrito, usados para representar os fonemas, que so as unida. des menoves da fala, Um grafema representa um fonema ~ mas um fonema pode ser representado por diferentes grafemas. A comespondéncia dos grafemas com os fonemas nio é biuaivoca ou de uma relagio conjugal estivel (Lemle, 1991), (© que torna essencial conheser e processar essas conrespondéncias para poder ler E ai entra o cérebro. Conforme demonstram os estudos revistos, compiladas @ aprofundados por Dehaene (2012), 0 mecanismo cerebral que analisa os componentes das palavras eseritas ndo se limita aos grafemas: 0 oérebro le grupos de le tras ~ como 0 digrafo “br", ditongos, como “0”, ‘ou silabas, Também identifica prefixos e sufixos. Esse conjunto de mecanismos constitui 0 nosso léxico mental — pardmetros de comparagao que uusamos para identificar as representagées fonol6. gicas ou ortogréficas, que aparece numa palavra a ser lida. E isso precisa ser feito independente- mente da forma gréfica (foate, tipo ou tamanho de letra), de outra forme a leitura se tornaria im. possivel. Um “a” € um “a” qualquer que seja 0 tamanho, a fonte ov a forma em que aparece. © cérebro também aprende a simplificar 0 entendimento das diferentes representagoes fono- logicas. E isso que nos permite entender a mes- ma palavra dita por diferentes falantes, sotaques, sitmos ¢ entonagtes. As pesquisas sobre 0 oéte bro to cosoboram a defesa das idiossincrasias regionais e do triunfo do particular sobre o geral © cérebro é adaptavel e foi feito para sobreviver em diferentes ambientes, inclusive linguisticos. O dominio do eddigo alfabétice nos permite tanto twanscrever a linguagem padrio quanto os diale- tos, mas 0 conhecimento gramatical e 0 dominio ortogrifico sto competéncias a serem adquitidas ao longo da eccolaridade. A existencia de um lin _guajar local nao justifica a necessidade de estraté- gias ou métodos locais. 0 desafio da alfabetizagao nao consiste em aprender fonstica ov fonologia: consiste simples ‘mente em tomar-se capaz de representar mental- menteas diferentes consoantese vogais, de mane: raaidentifiearas diferentes combinagoes silabicas. iar um alfabeto constitui uma invengao for smidavel: trata-se de estabelecer combinatérias en. 24 REVISTA USP -

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