Você está na página 1de 32
Antropologia iF) Memoria —— CAPITULO 5 MEMORIAS E AMNESIAS COLETIVAS MEMORIA COLETIVA, MEMORIA SOCIAL, MEMORIA PARTILHADA Poderemos realmente partithar a intimidade de uma meméria? (Os homens, refere o bidlogo Steven Rose, «no so ménades isola- das, com a existéncia confinada as suas respetivas cabecas, mas seres profundamente sociais, interagindo continuamente com 0 ‘mundo extemo das coisas e das pessoas», Por consequencia, «por mais individuals que sejam as nossas memérias elas io apesar de tudo estruturadas, e até 0s seus mecanismos cerebrais 0 afe- tados pela natureza coletiva, social, do nosso modo de vida de seres humanos» (1994: 81), Com efeito, acrescenta ele, na nossa sociedade impregnada pelas suas proprias produgdes culturais, a meméria «ultrapassou 5 limites do individual e do pessoal, ¢ tornou-se coletivay, Serd que verdade, sera assim tao simples? Em ciéncias humanas e sociais, nos média ou nos discursos, politicos, € frequente recorrer as nodes de meméria coletiva, nacional, profissional, familiar, etc. Todas pressupdem que 0s individuos, um grupo inteiro ou mesmo o conjunto de uma socie- dade, partitham recordagées de um passado comum, Contudo, a ideia de uma meméria partilhada permanece conjuntural. Com efeito, 56 a meméria individual é uma faculdade atestada, cujo substrato neuronal é hoje bem documentado gracas as contri- 3 suigdes das neurociéncias cognitivase das imagens cerebra, ta partir daf, de um ponto de vista esttamen Pe ist, partir uma recordagdo, para um sujito dado, at em induzi (ou em reforcar) no cérebro de uma outta po f mesmo tipo de conexdo sindptica que aquela que, pees {o emisor), permitiu o armazenamento da informagig maa le za, Esta transmissio € 0 fruto de trés apts naturais eget ficas do Homo sapiens: 0 seu instinto social, a sua capacidac a exteriorizar 0 seu pensamento (capitulo 4) e um instinty nico extaordinariamente desenvolvido. Entetanto,o resi (btido~ a partilha ~ nao é garantido. Com efeito, desde o nae mento cada oérebro humano ¢ tinico, e uma vida de aprendi de experiéncia tende sempre a acentuar as suas particular fo mesmo tempo genéticas e epigenéticas. Isto tem uma Gquéneia de grande importancia: a «produgo» memorial de ae, individuo 6 em parte singular e, mesmo em certos casos, indie vel» (Capdevila, 2003: 70) Em La Mémoire, histoire et Youbli, Paul Ricocur engue-secon- tra a tradigio flosofica que fez prevalecer esse «lado egologicn da experitncia mneménica». «Ge dizemos muito facilmente que ¢ sujeito de meméria & 0 eu na primeira pessoa do singular iz tle, a nogio de meméria coletiva s6 pode fazer figura de eon: ceito analdgico, ou mesmo de corpo estranho na fenomenologia dda meméria» (2000: 3), O antropélogo da meméria pensa evi dlentemente de outra forma, jé que ele admite ao mesmo tempo {que a meméria 6 uma faculdade individual e que a razSo de ser, da sua pesquisa é o estudo das representagbes partilhadas do, pasado, Ele precisa assim de assumir teoricamente essas duas Tepresentagies, 0 que nos encarregaremos de fazer aqui em trés momentos: a discusso, nesta secqio, das teses de Maurice Halb- wachs, depois a apresentagio na seccHo seguinte de duas formas dde meméria onde esta pode ser partilhada, segundo modalidades muito diferentes: a protonemra ea metameméria DDeve-se a Maurice Halbwachs o facto de se ter forjado e depos imposto a nogio de memsria coltiva como conceito explcativo de "mento rimero de enémenos socias relacionados com a meméta. ‘Nunca nos lembramos sozinhos: pode-se resumir desta forma a tese de Halbwachs. Um individuo volta-se sempre para 0 pas pists. au individual ¢ pois sociaimente onentgi sariamente ser partthada. £ prince saint mo significa neces: obras, Les Cadres sociaux de la mémoire (1925), Le es oes Légendaire des Evangiles en Terre sainte. Etude de meray Sen (1941) e La Mémoire collective, publicada eerie que Maurice Halbwachs propoe wna em 1950 titulo péstumo, nogio de meméria coletiva definigdo sociolégica da UMA NOGAO VAGA, Um ponto de vista extremo consistria em ver na me coletiva uma entidade inteiramente exterior aos individigs que ela dominava a partir de um céu platénico, Ou entio, ce seria uma reproducio perfeitamente autdnoma do pasado, que emergiria de um conjunto de memorias individuais funco. nando de forma muito paralela, para utilizar uma metéfors informatica, ou ainda como uma sedimentacio coletiva das aluvides de memérias individuais, para utilizar desta vez um vocabulério geol6gico. Este ponto de vista, que nlo éo de Hall. wachs, mesmo se a influéncia de Durkheim esté patente na sta obra, jé no é defendido hoje pela maioria dos investigadores em cigncias humanas e sociais que se interessam por este domi- rio. Uma vez afastada esta perspetiva, que podemos reter da nogio de Halbwachs acerca da meméria coletiva? Fla perma- rece vaga e, contudo, bem pratica. Ea ét3o vaga quanto a nocio de consciéncia coletiva (e, a fortiori, de inconsciente coletivo), como 0 conceito das mentalidades em histéria, como as teorias da identidade cultural coletiva ou que o fantasma de uma salma do povo» se nos referirmos a Volkskunde alema, Ela é na verdade 'o vaga como todas as retéricas comunitaia, to ambygua quanto todas as concegdes holisticas da cultura, das representacdes, dos comportamentos e das atitudes. Isto explica que a meméria coletiva possa ter sido considerada como qualquer outra coisa de «misteriosa», Jocelyne Dakhlia (1990) deparou-se com este mis- \ério quando, tendo partido para investigar a memoria coletiva 5 itantes dos odsis de Jérid, no Sul da Tunisia, ouviy peace en de historia genealdgica e privada poucg < e favels com a evocagao de um destino comum, Com fat ogo de meméra coletiva é objeto de uma tiple conaag thes armadihas raramente evitadas em ciéncias humanas ese, ‘A primeira consiste em confundir as recordages memey das e as recordagées manifestadas. Ora estas diltimas nag necessariamente 0 reflexo exaustivo e fiel das recordagges Como elas se conservaram e cujo contedio permanece ing incluindo para os primeiros interessados. Flas no passam lima expresso parcial entre varias outras possfveis. Obsery, se variagdes da rememoracao aquando de um inquérito sobye tecordagoes do levantamento de 1947 em Madagéscar, Maures Bloch (19950) retirou a conclusio de que no se devia em cqcs algum «confundir uma narrativa de um acontecimento com are Cordlagio que os participantes guardaram dele». A parte da aco que 6 verbalizada (a evocagio) nao é a totalidade qq recordagio. A descoberta da multiplicidade das narrativas Siveis de um mesmo acontecimento, estimuladas pelos contexton muitaveis, tem um alcance antropol6gico consideravel: ela moy. tra que «a presenga do passado no seio do presente é bastante ‘mais complexa, bem menos explicita, mas pode ser muito paderosa do que a existéncia de narrativas explicitas © poderia fazer erer» (op. cit: 65). O que nao € expresso nas recordasies ‘manifestadas, acrescenta Bloch, «possui por esse facto uma sig- nificagao social uma vez. que se trata de um recurso posto em reserva para futuras representagdes sociais». Importa contudo distinguir entre competénecia e performance memorial. Desde logo, qualquer tentativa de descrever a meméria comum a todos os membros de um grupo a partir das tinicas recordagées manifes: tadas s6 pode ser prejudicial porque ela cleixa na sombra aque- las que, precisamente, no 0 sao. ‘A segunda armadilha consiste em induzir a existéncia de uma ‘meméria partithada a partir da constatacao de atos memoriais: coletivos, constatacfo facilitada na presenca de numerosos dados empiricos: comemoragdes, construgio de museus, mitos, narta- tivas, visita familiar a um ttimulo no cemitério, etc. Mas, estes ndo sao suficientes para atestar aqueles. Frequentemente, n6s somos ito, as 86 ‘enganados por um efeito de falgo ‘assume as mesmas referénciag comemoragio diante de um m novembro), nés pensamos qu, ham as mesmas representa, podemos dizer nada acerca dos atos de mem: consenso "memoriais (po ‘onumento 208 mortos ok lo I de todos os seus memos pane bes do passado. Na realidad ni isso, porque a simples observarto Euma tural que weria uma cor nidade de interesses mas no opinides» (Sterber sy com (0 facto de se rememorar) é geralmente elevada - exes partilha empiricamente verficdvel: desde um decreto de 3 deers de 1985 existe por exempio em Frac um da nace oe morativo das perseguicdes racistas © antissemitas eomenhog pelo regime de Vichy que dé lugar t eae V todos os anos a diversas ma- nifestagbes oficiais © coletivas - jé tudo ¢ diferente quanto do representagdes associadas a estes atos, quer dizer, aquilo que &reme- morado: neste caso, a probabilidade da parila total ¢ rule ea da partitha parcial fraca ou média. Mesto se as recordagtes se rutrem da mesma fonte, a unicidade de cada espiito-cérebra faz com que eles nao utilizem necessariamente © mesmo ean niho. Os atos de meméria decididos coletivamente podet deli- mitar uma érea de circulagdo das recordagdes sem com isso ddeterminar a via que cada um vai seguir. Algumas vias si0 alvo dde uma adesio maioritaria, mas as memérias dissidentes prefe- rirdo caminhos secundérios ou seguitio outras vias mal delinea- das. Nestas condigées, a partlha memorial seré fraca, ou quase inexistente. Para além disso, se existir numa dada sociedade um conjunto de recordagdes partithadas pelos seus membros, as sequéncias individuais de evocagio dessas recordagbes tendo todas as probabilidades de serem clferentes tendo em conta as escolhas que cada espirito-cérebro pode fazer dentro de um grande nimero de combinagées da totalidade das sequéncias. Quando ele invoca «a multiplicidade das séries causais» como origem de um ato de meméria, Halbwachs nao tem razio a0 nio distinguir agao inicial da recordagao (a lembranga de tal ou tal aconteci- a7 mento a partir de indices efetivamente fornecidos pela g. dade) eo desenvolvimento da anamnese, sempre idiossingrett tanto pelo contetido como pela maneira como esse contetghe Jntegrado no conjunto das outras representacdes do indiyyaelt E mais ou menos certo, afirma Leach, «que dois obseryaqt® nao parlilham munca exatamente a mesma experiéncay (gh 35536). Nada indica que duas pessoas alguma vez produzart mesma interpretagio de um mesmo acontecimento, refere mye justamente Frederik Barth (em Kilani, 1994: 4), associangos® Misi a0 neurologista Gerald Edelman que recorda que a ey riéncia fenomenal «é uma questo que se trata na primeia peg. Soa» € que, por esta raza0, nio pode ser partlhada com outyes pessoas (1992: 176-177). Por fim, existe uma tendéncia para se confundir 0 facto de dizer, de eserever ou de pensar que uma meméria coletiva exige facto facilmente atestado nos discursos contemporaneos, medi ticos e politicos, em particular ~ coma ideia de que o que é ditg cscrito ou pensado dé conta da existéncia de uma meméria cole, tiva. Esta confusdo, notemos de passagem, tem uma fungdo mut importante - uma fungio metamemorial - acerca da qual volta. remos mais adiante: ela reforca a crenga de cada individuo na exis: ‘éncia de uma memséria coletiva. UMA NOGAO PRATICA A nogio de meméria coletiva, por outro lado, € prética, por que nao hé outra forma de designar algumas formas de cons- ciéncia do passado (ou de inconsciéncia no caso do esquecimento) apatentemente partilhadas por um conjunto de individuos. Foi ‘assim que Marie-Aimée Duvernois (1986) descreveu um fené- ‘meno curioso junto dos «brancos» da Borgonha, minoria religiosa anticoncordatéria. Quase dois séculos depois da Concordata, este grupo é mais vitima de marginalizagao, de aleoolismo, de depressGes nervosas e de doengas psicossométicas do que o resto da populagéo. A sua consciéncia exacerbada da adversidade, que ao que parece esté na origem desses males, poderia funda- ‘mentar-se na meméria trégica da antiga oposigao entre brancos 38 ce catslicas. Esta «meméria longa de Touraine reputada «por ter dado asile spy No VS10". tegiio bando de sarracenos, sobreviventes da batathrde rane 2 8 meio de um discurso partilhado» Fe ener, zada por volta de 1900 pelos camponesee ding mobile dos Trinta Anos relativo a sua aldeia, mesino que tin esquecido as circunstancias gerais e a data do'ucoteve setgaestemat eae d de keminen creve a conversa que ele teve logo apds a Segunda Guana M dial com trés judeus que falavam ladino em Sofia, Denne te A ee Oi rimentou em espanhol: eles compreenderam'e reeerdecny ‘numa forma de espanhol muito estranha. Cockburn prosseye, «Eu notei que era um tanto bizarro encontrar espanhdis equ (em Sofia). Eles explicaram-me. Nao eram espanhis, mas diz ‘um deles, “a nossa familia vivia em Espanha antes de se estabe., lecer na Turquia. Agora, n6s instalimo-nos na Bulgaria”. Imag nando que eles se tivessem talvez."deslocado’ de Espana comm as convulsdes da guerra civil, pergunteithes quanto tempo tinha decorrido desde a sua partida. Ele respondeu que tinham sido mais out menos quinhentos anos. Fe falava desses acontecimen tos como se tivessem acontecido uns dois anos antes» (citado em Finley, 1981; 27-28). Igualmente, Anna Collard (citada em ‘Tonkin, 1992: 116) descreveu o modo como os habitantes de uma aldeia grega falavam pouco de acontecimentos histéricos importantes ocorridos trinta anos e cinco anos antes, durante 05 periodos de guerra civil, entre 1940 e 1950, ao passo que, em compensagao, desereviam com muitos pormenores, como se 05 tivessem testemunhado, 05 acontecimentos que remontavam a ‘ocupagio otomana que nao podiam ter conhecido pessoalmente Mas esta referéncia a um periodo historico longinquo era tam- ’bém uma forma desviada de falar dos acontecimentos dos anos, de 1940, mais dolorosos porque mais proximos. Esse telescépio 39 entre perfodos hist6ricos foi descrito, segundo uma modal; ccnsielmente diferente, por Jennifer Cole (2001). Na ouead grafin da rememoragio das populagdes betsimisaraca da reg dde Madagascar, ela mostra que para além do esquecimenty © rente do passado colonial € dos massacres que se seguinares rebeliso de 1947, esses acontecimentos continuaram a trabal subterraneamente as memérias a0 ponto de ressurgir em, quando 0 contexto social se prestou a isso, aquando do mor mento de democratizagio de 1992, em que a oposicao ao porte central - ou do local versus global ~ foi uma espécie de anamy da luta contra o poder colonial. Entrecruzam-se entio ressurpese cias memoriais, historia, ancestralidade,rituais, jogos politcas sociais, econémicos. 3 Num outro registo, Simon Schama mostrou 0 quanto os cam. poneses podiam contribuir para organizar uma meméria parti Ihada e, igualmente, influenciar 0 sentimento de identidade nacional. Assim, a tradigéo pottica da «doce Franca» conduz 4 ‘uma geografia (campos cultivados, pomares, vinhedos, bosques e rios harmoniosamente ordenados, etc.) da mesma forma que a ‘uma hist6ria, a mitos e narrativas lendarias relativas a tal ou tal lugar particular, sempre constituido por diversas camadas de me- ‘moria (Schama, 1995: 15). O mesmo se passa com o lugar ocupada pela floresta germénica na mem (2000; 184), A mesma constatagig fara por Anne Muxel a propdsito do universo domestic ny tan, toda a familia gostaré de evocar as mesmas reconda Ge peti as mesmas historias. Esses lugares lendstos,reerey, setae com a ajuda de-um mesmo mapa e decifrados coms sjuda do mesmo Iéxico, nfo se discutem eles impsemse comp dima meméria coletiva que cada tum subscreve» (1996: 56) ‘Quando um individuo ¢ atingido por afasia, sustenta Halp., wachs, a natureza desta deficiéncia (verbal, nominal, sintaticg bu semantico) explica-se, em graus diversos, «por uma alteragsg profunda das relagdes entre 0 individuo e o grupo» (1925; 68), {quer dizer, por uma rutura com os quadros sociais da mem: vla. Esta tese a respeito da afasia tornou-se muito contestvel 3 luz dos progressos registados na bioquimica da memséria, mas podemos entretanto reter a ideia de que, segundo as modalidae les variaveis, esta faculdade humana se exerce sempre em qua- dros estabelecidos pela sociedade e que em parte a determinam, “Nao existe meméria possivel fora dos quadros de que os ho- ‘mens que vivem em sociedade se servem para fixar e reencon- trar as suas recordagdes» (Halbwachs, 1925: 79). Esses quadros rio so apenas um envelope para a memoria mas integram eles priprios antigas recordagSes que vdo orientar a construgdo das novas. Sdo indispensdveis a partilha memorial. Assim que esses quadros sao modificados, os modos de memorizagio de uma dada sociedade e dos seus membros transformamtse para se adaptarem aos novos quadros que serao estabelecidos. Quando eles sido destruidos, quebrados, deslocados - o afundamento da- quilo que Pierre Nora chama os meios de memaria (1984: XXILI) = a peesiii da partilha memorial diminui ou até desaparece totalmente, 96 (05 SOCIOTRANSMISSORES. ‘A multiplicidade dos quadros sociais ¢ issdo que eles encerram pode resumin transmissores> (Candau, 20046), ou seja, todas as coises que mobilam © mundo (objets tangiveiyitangice ees oe cexemplo 0s lugares de meméria, os seres animatlos, os seus eee portamentos € 0 que eles produzem) que permitem estabelecer {uma cadeia causal cognitiva (Sperber, 2000) entre pelo menos dois espiritos-cérebros. Metaforicamente, os sociotransmissores preem Chem entre individuos a mesma fungdo que os neurotranemis, sores (ot seja, 08 aminoscidos e os seus derivados que difundidos no espago sinéptico) entre neurénios: eles favorecem as cone x05. Numeros0s trabalhos etnolégicos e sociolégicos oferecem tuma descrigéo minuciosa destes sociotransmissores indispen- saveis a transmissiio memorial. Pensemos, por exemplo, nos trabalhos de Yvonne Verdier acerca das mulheres de Minot (Cote- d'Or) que «fazem o costume» (Verdier, 1979), Um artigo de Josiane Massard-Vincent (2003), publicado na revista L’Homme, da um apanhado particularmente rico do papel primordial dos socio- transmissores no trabalho partithado da meméria. Na pequena cidade das Midlands, em Inglaterra, as associagdes (Royal British Legion, Saint-John’s Ambulance), os movimentos de juventude, ‘0 cleto, 0s hinos, canticos e poemas, os média, os monumentos, 0s objetos (bandeiras, sinos), etc., procedem todos do processo de construgdo social de iniciativas partilhadas em torno da ques- tio da cboa» comemoracao do armisticio do 11 de novembro de 1918. Em todas as discusses da nocéo da meméria coletiva, encon- ‘ramos 05 velhos debates acerca da relagdo entre o individuo e o ‘grupo, mal colocada uma vez que se imagina poder pensar um dos dois termos excluindo 0 outro, Deste ponto de vista, Roger Bastide define a meméria coletiva de forma mais satisfatoria do ‘que Maurice Halbwachs: para ele, esta & um «sistema de inter -relagdes de memérias individuais. Se é necessério um outro para se lembrar, como o diz e muito bem Halbwachs, ndo é contudo porque «eu e 0 outro« mergulhamos no mesmo pensamento socal, 6 porque as nossas recordagées pessoais so articuladas com as dos objetos de trans- 8e na nogdo de «socio- 95 recordagdes das outras pessoas num jogo bem regulado dej gens reciprocas e complementares». O grupo ndo conserva a coat tra das conexGes entre as diversas memoria individuais Bastiqg 1994), Esta estrutura é a dos sociotransmissores, " De facto, ndo existe nem memoria estritamente individyay rem meméria estritamente coletiva, observagao que os psieg, nalistas fizeram desde ha muito tempo a propésito do sure mento memorial. Aquando cle uma lufada de meméria, esta indy bem o desejo do sujeito, mas ela nio se pode propagar sendo ang tecido das imagens e da linguagem» (Le Poutichet, in Jeudy, 1999, 170) proposto pelo grupo. Para germinar, a «semente de remo. moragéo» evocada por Halbwachs (1950: 5) necessita de um terrico coletivo. E, alids, possivel que a germinacao que nio ¢ bem-sucedida por causa de uma incompatibilidade entre esse terrigo e 0 trabalho pessoal da meméria (pouco importa aqui o sentido da rejeigdo), resulte ent3o em sintomas nevréticos, numa meméria selvagem e instavel por estar mal enraizada no social (Pottier, 1994: 179). ‘0 chomem nu» nao existe porque nao ha indivéduo que nio carregue o peso da sua propria meméria sem que ela seja mistu- rada a da sociedade a qual ele pertence. Mesmo que o possamos censurar por ter autonomizado demasiado a meméria coletiva em relagao as memérias individuais, Halbwachs teve contudo 0 imenso mérito de insistir nesta impossibilidade para o homem de memorizar fora da sociedade: «Os quadros sociais da meméria encerram e associam os nossos pensamentos mais intimos uns a05 outros. Nao é necessdrio que o grupo os conhea. Basta que nn6s nao 05 possamos perspetivar de outra forma sendo pelo ado de fora, ou seja, colocando-nos no lugar dos outros, e que, para os encontrar, devamos seguir 0 mesmo andamento que no rosso lugar eles teriam seguido» (1925: 145). Esta ideia é reto- mada na sua obra péstuma, ao definir a meméria individual como «um ponto de vista sobre a meméria coletiva» (1950: 33) conce- bida como uma combinagio de influéncias de natureza social. Num momento ou noutro, a meméria individual tem necessidade ddo eco da meméria dos outros e um homem que se lembra sozinho daquilo de que os outros nao se recordam corre o risco de passat 96 um «alucinado» (1925; 167). Ne meméria Tidal tem sempre uma dimensiooleteg vee ag dos acontecimentos memorizados pelo sujeito seme nats pelo diapaséo da sua prépria cultura, Assim, um spore se rmeméria» pode ver-se dotado de prestigio pelo grepo susak (ele ¢ entao aquele de quem ninguém quer saber), O mea ie Gn a aun ign gu ae O mana ‘casos, Surge como uma fungio puramente individual, ¢ insepa, ravel das interagdes sociais. ig oe Para concluit, os fundamentos teéricos da nocio de memé- ria coletiva revelam-se frégeis, contrariamente a dos quadros sociais da meméria. Se uma teoria é uma proposicdo que tem tum certo valor explicativo do real, ndo podemos verdadeitamente falar de teoria da meméria coletiva. Com efeito, esta nocio é mais expressiva do que explicativa, Ela exprime bem uma parte da realidade. Alguns acontecimentos parecem memorizados ou esquecidos por uma dada sociedade, existem competéncias me- rmoriais diferentes entre gerag6es, entre classes sociais, entre sexos, ete. Mas ela ndo explica de que forma as memorias indi- viduais, que 20 as tinicas atestadas biologicamente (36 0s indivi duos memorizam efetivamente, nunca uma sociedade), se podem aiglomerar para constituir uma meméria coletiva, de que forma cesta meméria coletiva se pode conservar,transmitr, modifica, etc. Anogdo de «quadros sociais», como a de sociotransmissores que a pode substituir, ajuda-nos a compreender como as recor- dlagoes individuais podem receber uma certa orientagio propria de um grupo, e como essas orientagdes se podem tornar seme- Ihantes a0 ponto de produzir uma representacio partilhada do passado que adquire entio a sua propria dindmica no que diz respeito as memaérias individuais. Deste ponto de vista a nogl0 cde meméria partlhada parece mais operatéria do que a de me- ria coletiva, no sentido que ela sugere a existencia de pro- cessos concretos de convergéncia, de encontro e de agregagao de recordagoes, tornadas possiveis pela presenga dos sociotrans- rissores. PROTOMEMORIA E METAMEMORIA ‘APROTOMEMORIA. No seio de uma dada sociedade, os comportamentos ods covets bao wsled GaaTeltD WrETERS aoegat ea so considerados como «uma segunda natureza». Os comport rmentos protomemoriais (Candat, 19982: 11-14) estao inched nesses. A protomeméria é uma meméria de baixo nivel, angles tottpepenatenon hs Dunne fete a mento que «nio pode ser desligado da atividade em curse dg suas citcunstancias» (1991: 118). Grosso modo, poclemos englobar neste termo a meméria pro. cessual - a mem6éria repetitiva ou meméria-habito de Ber (1939: 8687), a inteligéncia profunda que, segundo Marcel Jowee permite ao cavaleiro debaterse «sem se preocupar coma mag tada em que vai» (1974: 75) - ou ainda a meméria social incon porada, por vezes marcada ou gravada na carne, assim como ag Imiiltiplas aprendizagens adquiridas aquando da socializagio precoce e mesmo durante a vida intrauterina: técnicas do corpo {ue sio 0 resultado de uma maturagio ao longo de varias gers. bes, condutas «convenientes» memorizadas sem reservas (Zona. bend, 2000: 510), meméria do gesto que, no sistema nervosa central, resulta do reforgo ou do enfraquecimento de conexdes singpticas, esquemas sensGrio-motores de Piaget, rotinas, estate ras habitos cognitivos, cadeias operatGrias inscritos na lingua gem gestual e verbal, transmissio social e costumes que arrastam ‘co espifito sem que ele pense nisso» (Pascal, Pensées, Brunschvicg, 252), tragos, marcas e condicionamentos constitutivos do ethos e, ‘mesmo, alguns conceitos que nao so nunca verbalizados (Bloch, 1995« 52-53), Infraconscientes, as modalidades da protomeméria cescapam-nos quanto ao essencial, Com a nogio de habitus, Pie Bourdieu descreveu bem «esta experiéncia muda do mundo como ocortendo naturalmente dando sentido prético», as apren- dizagens primérias que «tratam o corpo como um animal-pen- sate», as montagens verbo-motoras que fazem funcionar compo linguagem como «depésitos de pensamentos diferidos» e tudo aquilo que provém do hexis corporal, disposigao incorporada 98 permanente, inculeada, forma durvel de ye de comin como de sete de prs atin sauna desligada do corpo que o carreyn, ona sacia era por essa razdo, provém daquilo a que le geo 129)€ ae, mento corporal (1997: 163) Esta forma de onan ou conheci- ticd» & de conhecimento ou to pitco» &o que permite agircome epee ee execttar tm é precisor, Nesses canon Feore a eae em sado nto 6 representado mas age através dacorpe seg a tamente, spermanece presente e atuante nea gaa ele produziv». © habitus como aquisie incorporn es Senga do passado ~ ou no passado = se nie aay ns BE sad» (1997: 166,79 ©251) A protomeméria coma Pa meméria em tomada de consciéncia: ela influencia oa sem ele dar por isso. Fla € esta forma de memiva ta gene crit por Anne Mune que tala o corpo sem pra ocean para fazer dele um corpo minesise que € valine faainwe, ta identidade> (1996: 116 ¢ 130). Em suma, esta poe thud as ti Scares ate tone, maticamente a dado momento» (Nicolas, 2003.5) contin y saber ea experiencia mais rssteniese melhor pathos pele membros de uma sociedade. A esse tuo, ela di uma fone similhanca 3 hipétese de uma meméria comum. segurar, de falar, sen- AMETAMEMORIA ‘Uma outra forma memorial, a metameméria, tem também: ‘vocagao para ser partilhada. Os seres humanos nao se contentam 4 Jembrar-se; eles também tem conscitncia e falam disso. A meta- meméria é por um lado a representagio que cada individuo cria dda sua propria meméria, o conhecimento que ele tem dela e, por outro lado, o que ele diz dela. Ela é uma memoria reivindi- ‘ada, ostensiva. Mais exatamente, na sua forma coletiva, ela 6a reivindicagdo partilhada de uma meméria que se supe que 0 seja. A diferenca entre metamemariae meméria da mesma ordem ‘que a que Ricoeur queria insttuir na linguagem entre a memoria como objetivo e a recordagio como coisa visada» (2000: 27). No ‘segundo caso, 0 objeto ¢ a coisa de que nos lembramos enquanto, ‘no primeiro, ele é o proprio ato de nos relembrarmos. 9 E porque ela é uma meméria reivindicada, a metamem, uma Munsdo essencial da construgdo da identidade individ Ou coletiva, Frequentemente, confunde-se a afirmacto da exit tencia de uma meméria coletiva ~ facto banal se é que 0 6 eons fealidlade da existéncia ela propria. Em suma, confunde-g 4 facto de o discurso com aquilo que se supde que ele descreye ‘Quando diversos informadores afirmam lembrar-se como «leg ereditam que os outros se lembram, em que a tinica coisa ates. fada € a sua metameméria coletiva: eles dizem e acreditam tod, Jembrarse como eles creem que 0s outros se lembram. O facto de o dizer 6 evidentemente verdadeiro, O facto de crer, igualmente, O contetido do dizer e do crer pode sé-lo ou ndo. Ora esse meta, discurso tem, como qualquer linguagem, efeitos sociais extra. mamente poderosos. Ele alimenta o imaginério dos membrog do grupo ajudando-os a pensarem em si préprios como uma Connidade, e contribu para modelar um mundo em que a par- filha memorial se torna ontol6gica. Ele faz entrar nas memérias individuais a crenga em raizes e num destino comuns, como ‘onseguem maravilhosamente o discurso patrimonial ou as ideg- logias comunitaristas. Esta dimensdo é sugerida por Auguste Comte no seu Calendrier postiviste. A comemoracao, diz ele, & des- tinada a desenvolver no seio de uma geragdo «0 sentimento de ‘continuidade» (1849: 11). Gragas a ela, os participantes acredi- tam partilharem uma representagao de um passado que se supe omum e, mesmo se os inguéritos empiricos permitem duvidar disso, eles partilham pelo menos essa crenga. Por exemplo, quando a comemoragao reveste a forma daquilo que Olazabal (2000: 157) chama de narragao «cerimonial» a partir de um local concreto do drama, ela coloca «0s sujeitos coletivamente teuni- ‘dos numa disposigao psicol6gica que Ihe permite visualizar os factos “como se eles estivessem 1a». O autor acrescenta: «Mesmo se as imagens que desfilam na cabeca dos participantes diferem sem qualquer diivida, o filme permanece 0 mesmo.» Deste ponto de vista, as comemoragdes so constitutivas da metameméria © 6 também por essa razdo que elas sao «garantias da sobrevivéncia dos grupos» (2000: 157). Enquanto fenémenos metamemoriais, elas contribuem para a ilusao holistica, ou seja, para a represen tagio do grupo de pertenca como um todo homogéneo inte- 100 grado. A partilha da metameméri sao, pati de mame uma et vers Em definitivo, a partitha objtiva do sentimen aque veicula acrenga de que esse sentimento se forge ee panlha real. Nés no acreditamos apenas no que secag pensamos e dizemos também que acreditamoc ions oe Gar mais autoridade aquilo em que se acredita, Pr goa tate a es tends oe accel Te ada rencia do mundo social nao advém portano apenas dst gone cério «das ilusdes partilhadas» (Dosse, 1995: 147) mas et do que os membros de um grupo dizem dessa partilha e dos fet tos desse discurso sobre a propria iusto, Eases efeitos slo evidentes se considerarmos 0 «tio legado de recordagBes» que recebem, segundo Renan, os ciladton Gory tum 6rgo capaz de o unificar, assinala, a ese propésito, Michel Oriol, «a meméria popular, entregue asi propria, no conseuitia produzir esse esquema da” possessdo em comun’” de um onico t igrande passado. Faltathe af o discurso escola, ainstauracto pelos monumentos, as fests rituals de uma tradicao a comeno, fat que € preciso reunie com cuidado nos texts oficial para {que se disperse e nfo vena a dvidiro grupo que ela eve unite (984, vol. 1 120) A unidade simbolica do grapo € asim «uma criagio continuaday na qual cada individuo tem uma parte ativa, tal como é manifesto nas espostas de uma informadora de 18 anos proveniente da imigragio portuguesa, interrogada na regio pai Siense onde vive desde a infancia: a fst, diz ela, «a identdade de toda a gente ~ é a meméria coletivar (198, vol: 107). Tai pressupostos, afirmando explictamente que exstem no seio do grupo de pertenca formas de identidade e de memsria partitha- das, propagam e unificam (focalizam) as crengas na partlha, desde «que eles sejam suficientemente repetidos.Igualmente, prmitem 4 emergéncia de uma partilha real, a da crenga adotada pelos ‘membros do grupo. Foi um procedimento similar que observou Halbwachs na sua andlise dos discursos normativos acerea da sneméria familiar: «Quando se diz: "na nossa familia, vive-se mui tos anos ou: somos desconfiados, ou: no enriquecemos’, falas de uma propriedade fisica ou moral que se supde ser inerente 101 a0 grupo, e que passa dele aos seus membros» (1925: 151), realidade, & bem mais a crenga nesta propriedade partithags aque étransmitida ~e desde entao partilhada ~ do que'a prop dade propriamente dita. ie Com efeito, de cada vez que no interior de um as memérias ndividuais por um lado querem e poder sea facilmente uns aos outros ~ nos casos em que existe uma wesc, partilhada» (Détienne, 1981: 86)-, por outro tendem a visar og mesmos objetos (por exemplo, estimulos, monumentos, obj tos, lugares que tiveram um papel de sociotransmissores) existe focalizacio cultural e homogeneizacio parcial das represent, Ges do passado, processo que permite supor uma partilha da ‘memoria em proporgdes mais ou menos grandes. Esta memérig parcialmente partilhada constréi-se e reforca-se deliberadamente, por triagem, acrescentos ¢ eliminagdes nas herancas. Consequentemente, a existéncia de um discurso metamemo- rial deve despertar a atencao do antropologo. Em primeito lugar 6 um indicador precioso, revelador da relacio particular que os ‘membros do grupo considerado mantém com a representagio que fazem da memoria desse grupo. Em segundo lugar, esse discurso pode ter efeitos de interpretacao sobre esta meméria: retomado por outros membros, ele pode reuni-los no sentimento de que a meméria coletiva existe e, por esse mesmo movie mento, dar um fundamento relativo a esse sentimento, Existe af uma espécie de ratificagdo de registo do trabalho de construgio de uma realidade memorial. Entretanto, cabe ao investigador indo se enganar no nivel de andlise assimilando esta metameméria a memoria coletiva. Para isso, num primeiro tempo, ele deve cuidadosamente distinguir entre o facto de se dizer que existe ‘uma meméria coletiva e a existoncia desta meméria. Encontramos na excelente obra de Jean-Hughes Déchaux sobre Le Souvenir dles morts um exemplo de confusio entre as duas ordens de rea- lidade. Muito justamente, ele repara que «a concegao holistica da meméria nao pode ser tida em conta» porque «0 grupo no se lembra e néo pode recordar-se por si mesmo». © investiga- dor, acrescenta, deve considerar que «a memoria familiar ¢ uma ‘memoria plural que se desdobra sobre diversos registos: individual, que pode variar de uma pessoa para outra, e coletivo, 0 que 102 consagra 0 grupo organizado que const Tiare (Dechatx 1997157) Nacnea rat clo procedimento retérico: «a meméia fant ses sto na realidade os discumee, eee rmeméria familiar, apresentada passo a paseo ence coletiva, quejogam com esses diferentes region, Em conclusio, a prudéncia deve inctaraantopologi a con dderat a priori a meméria como heterogl nolgia que Andrea Sith ia de Mikel Ral diversos pontos de vista sobre o mundo e veiculando represen, tages do passado divergentes e até antagénicas (Smith. 200%) Quando elas convergem —o que acontece frequentemente~ hep Aeve-se as propriedades proprias do mundo soil, propriedads propriamente miraculosas: «no se nase, tomamo-nos pereidon, lembrava Tarde (1993: 78) e, se 0 fazemos, & porque acreditamos firmemente nisso, itui a comunidade fami- Podemos deixar abusar aqui DIREITO, DEVER E NECESSIDADE DE MEMORIA. Comemoragies, celebragdes, aniversérios, devogbes do pas- sado, culto do patriménio e outras formas ritualizadas da temi- niscéncia, tudo se passa como se a sociedade no seu todo se esforgasse por satisfazer o imperativo bibico Zakhor! (Lembra-t!). Por toda a parte, e por vezes até & saturacdo, manifestam-se os sinais de uma inflagdo de meméria, de uma febre comemorativa e de um «produtivismo arquivistico» para retomar uma expresso de Pierre Nora. Uma «vaga memorial» espalhada pelo mundo inteio, sustenta ele (1994). Esta irrupcao espetacular da memé- ria no debate puiblico, refere Michel Wieviorka, ¢ «indissociével de um fenémeno que a transporta e que Ihe confere todo 0 seu sentido: a emergéncia da vitimay (200: 89).A meméria das tra- 1gédias, acrescenta ele, constitufda por uma parte da meméria da destruigio, é feita igualmente por uma meméria de afirmacio, a de um grupo que se mantém ou se constréi na persisténcia da recordagao e no reconhecimento dos seus softimentos. Outros, referem tum desejo de meméria que procederia sobretudo do 103 medo do vazio de sentido, Outros ainda pretendem que n época marae pela subida do individualism haveria gue Se tiplicar os dispostivos memoria visando manter 0 sentine it de partilha, mais ou menos ilus6ria e sempre proviséria, jj yin? ‘com estas duas tiltimas teses, explicagdes «prontas a Pensaprat maior parte dos fenémenos sociais contemporsineos, Na realidade, as causas do mnemotropismo generation so mulipls, Para I da sua funciocivca e pedaggien no memorials de guerra ou da Resistencia ~ Péronne (history inaugurado em 1992), Caen (1988), Verdun (Centro Mundial Paz, aberto na toalidade desde o verdo de 1995); Oradourae® -Glane (um «Centro da meméria» foi aberto em 1998) ~ cartadas polticas e econdmicas, organizando as coletividadg, locais em certos casos um verdadeiro turismo da meméra: ao iniciativas crescentes dos militantes da meméria s30 por ves, dificeis de canalizar e nao impedem um certo desvio pataa cone moragio-espetéculo (A. Wieviorka, 1993). O colocar em eon dda meméria é aids, claramente reivindicado em manifestagbee como a representagao do combate na Vendée, em Puy-di-Fou a dia vida de Jaurés em Carmaux ou a, menos conhecida, de tculos hist6ricos na cidade de Meaux (Rouxel, 1995) em que tum Carnaval criado no principio dos anos 1980 foi apresentad, como a restauracio de uma tradicio, Este fenémeno nao é exclusivo da Franga. Também poderia- mos falar de uma América comemorativa: a inauiguragao do Vietnam Memorial Hall, a7 de novembro de 1982, comemoragio de Martin Luther King desde 1986, bicentendrio da Constituigao em 1987, Columbus Day a 12 de outubro, inauguragio do Holo- aust Memorial Museum em 1993, etc. Segundo Marita Tarken (2004: 321), os Estados Unidos conhecem atualmente um entu- siasmo sem precedentes pela memorializacdo (athe rush fo memo- rialization»). O projeto de um memorial no Ground Zero fot evocado quase instantaneamente, desde o dia seguinte aos aten- tados de 11 de Setembro de 2001, A mesma constatagao é valida Para a Alemanha (comemoragio dos 750 anos de Berlim em 1987, aitiplas celebragbes relativas ao fim da Segunda Guerra Mundial, da libertagdo dos campos, da reunificacdo, etc.) e para muitos outros paises europeus 108 «ATIVISTAS DA MEMORIA, ne en vnc 5 oe 2 0m es (einai any ans ms rie ee es aa an = certs apa nie ners oem inom cespantola. Ele descreve iuaimente a agso da Asoeocan tt 8 Gea ci Em Franca, contudo, parece sero pas intiro que comemora, rum processo em que o que ¢ exaltado é finalmente menos passado do que a comemoracio em si propria, Se acumularmos todas as celebragdes de todos os aniversétios em todas as cd des de Franga, chegaremos a um total de 1571 celebragoes enlace 1986 ¢ 1998 (Gasnier, 1994: 93). Paris abriga perto de 1600 places comemorativas das quais 40 por cento estio ligadas aos aconte. cimentos da tiltima guerra (Sauber, 1993), As comemoraydes cone, tituem um recurso e um instrumento de agéo politica: a lista oficial das comemoracées estabelecida pelo Estado para 2004 (existe uma delegacéo para celebragées nacionais) inventaria 81 datas (86 para celebragdes de cinquentendriose centendtios), desde © nascimento do eédigo civil ao cinquentenério da morte de Henri Matisse. A lista previa os 1650 anos do nascimento de Santo Agostinho, os 1200 anos da morte do pregador anglo-saxénico Alcuino, os 350 anos do Tratado do Tritngulo Artmiético de Blaise Pascal publicado em 1654, 0 tricentenério da morte de Bossuet, o bicentendrio da morte de Kant, ocentendrio do nascimento de Jean Gabin. O ano de 2004 foi gualmente marcado pelo 60° ani versétio do desembarque da Normandia e da Provenca, o ci quentendrio do prinefpio da guerra da Argélia, o cinquentendio 4a batalha de Dien Bien Phu, o centenério do entendimento cor- dial franco-britanico, O ano de 2008 serd igualmente rico com 0 centenério da lei de 1905 sobre a separacio das Igrejas e do Estado, oda SFIO, etc. 105 As clebragies naconas,referia Thierry Gasnier (1594) uma dezena de anos, tendem a evacuar 05 aniversétios dle 4, forte carga memorial (guerra da Argélia, genocidio dos judeyn tomo seo projeto da nagio fosse o de impor uma meméra sory ama imagem consensual de si propria. Esse jé ndo 6.9 hoje em dia. Com efeito, assistimos desde hé alguns anos a ultiplicagao das declaragSes de arrependimento e de perdag tia parte de Estados de Igrejas, de corporacdes profissionais (poly tia, justica, exército) e de «comunidades». Uma orquestracig planetéria do perdio vem a eco da afirmacio universal de um Fever de meméria, Na América Latina, depois das ditaduras ¢ ddas exagdes dos anos de 1970 e de 1980, a «meméria obstinaday (titulo de um documentério politico, em 1997, do cineasta chileng Patricio Guzman), faz a sua caminhada no Chile, na Argentina e zno Uruguai. Em Buenos Aires, a Escola mecanica da M; antigo centro de tortura sob a ditadura, vai ser transformada em ‘museu. E o mesmo se passa no Camboja, em Phnom Penk, com ‘a prisio de Tuol-Sieng ou $-21, onde pereceram mais de 10 009 ‘pessoas, transformada hoje num museu. Em Marrocos, a Instance Equité e Réconciliation caminha inspirada nos pasos da Comis- sio Verdade e Reconciliagao na Africa do Sul. Sem reconhecer 9 ‘genocidio arménio, a Turquia acaba de aceitar constituir com a ‘Arménia uma comissio de estudo dos acontecimentos trégicos de 1915. Em Franca, uma comissao ad hoc propés-se fazer do dia 10 de maio o dia «da meméria partilhada a propésito da escra- vatura», sendo esta a data da adogao da proposta da lei sobre 6 reconhecimento da eseravatura ¢ do trato negreiro como crimes contra a humanidade. A Franca «descobriu» hé pouco tempo que ela tinha instalado no coragéo de Paris «zoos humanos», visitados por dezenas de milhdes de pessoas (Bancel et al, 2002). Por um lado, esta recuperagao memorial obedece, 20 que parece, a tim sentimento de urgéncia. Orgaos de comunicag30 & ‘comentadores politicos sublinharam a amplitude do 60.° aniver sirio da libertagao de Auschwitz pelo Exército Vermelho. Cul minou a 27 de janeiro de 2005, com as ceriménias no local vizinho de Birkenau reunindo 45 delegacies oficiais do mundo inteiro, incluindo diversos chefes de Estado europeus. Como tinha sido feito para 0 60.” aniversirio do desembarque, 0 eco da comemo- 106 ragio deveseprovavemente 8 imingniad dos tiltimos sobreviventes. Dos 76 000 judieus de Franga depor, thos s0b a Ocupacto (dos quas 1.000 cranes) ae ane saram dos campos e em janeiro de 2005 ndo restavam mee de 4400, Esses so as titimas testemunhas, as iltimas palavras vivas, Esta sensibilidade memorial aguda nao exclui a transigso para uma meméria mais institucionalizada e, talvez, uma patrimo. nializagao. Nos Estados Unidos, desde 0 ano 2000, 0 Veterans History Project colige e conserva (no Ambito do American Folklife Center, na Biblioteca do Congresso) testemunhos ora, corres: idéncias, didrios pessoais junto dos veteranos das duuas guer- ys mundiais e das guerras posteriores (Coreia, Vietname, Golfo) Criada em 1994, a fundagdo de Steven Spielberg («Survivors of the Shoah Visual History») recolhew mais de 50 000 testemu- nnhos, em 32 linguas diferentes, de pessoas origingrias de 56 pai- tes. Desses, 90 por cento sao testemunhos de sobreviventes do Holocausto mas os arquivos contém igualmente entrevistas de ‘outros que sobreviveram aos campos: Testemunhas de Jeové, Sint, romani, homossexuiais, deportados politicos. Em Franca, a crenga na necessidade de um registo memorial é igualmente notiria, Esta expressa-se no seio cle miltiplas associagdes (anti- {gos combatentes, resistentes, deportados, citculos histéricos, ttc.) bem como a0 mais alto nivel do Estado. Ela esté na origem die numerosas publicagdes, de emissGes radiofdnicas ou televisi- ‘vas, de monumentos, de estelas, ete. A25 de janeiro de 2008, em Paris, o presidente da Repiiblica inaugurou 0 Memorial a Shoah, no Marais: sobre um muro de pedra estio gravados os nomes dos judeus deportados de Franca. Por iniciativa da Fundagio para a Meméria da Deportacio, criada em 1990, foi publicado tem 2004 pelas edigdes Tirésias o Liove-mémorial des déportés de France arvétés par mesure de répression. Em quatro volumes © 5548 paginas, a publicagio apresenta a lista de 86 827 pessoas depor- tadas por «aquilo que elas fizeram, a acrescentar aos deportados «pelo que eles eram, ou seja, principalmente os deportados ju- deus. Por outro lado, desde 1997, a FundacSo reine os testemunhos ‘orais de antigos deportados ou internados. No fim de 2004, 247 testemunhos ja haviam sido recolhidos e depositados no Centro Hist6rico dos Arquivos Nacionais que os numerou, Este trabalho lo desaparecimento 17 & apresentado como uma contribuigio a0 dever da (Tanésie, 2004). MeTGrig Se os Estados e 0s povas esto menos inclinados do uma vintena de anos a evitar 0s acontecimentos mais oy baviow da sta historia recente, ndo é menos verdade que a” ‘uma forma geral, a comemoracao oficial se quer (com ca ia de ini dficuldades tendo em conta a «batatha das memdriasy) 2 {bum de imagens muito sAbias», uma «autocelebragio» (San in Jeudy, 1990: 284), organizada de tal forma que 0 passado, 4 meméria no possa colocar em causa 0 presente. Deste ponto de Vista, & sensato inteessar-se tanto por aquilo que tuma sociedadg ao comemora como por aquilo que ela comemora, pois, ume Ver mais, a auséncia (0 esquecimento) tem uma importancia tag grande como a presenca (a comemoracio). 'h vista de um mesmo acontecimento hist6rico, a celebraggo cestabelece uma hierarquia das memérias ~ materializada nog fromes das ruas, nas placas comemorativas, na colocagio de esté- uss e monumentos ~, 0 que bem demonstrou Gérard Namer no sou estudo sobre as comemoragbes politicas em Franga do 26 de fagosto de 1944 a0 II de novembro de 1945 (1987: 191-215). Estas, fracas a uma habil encenagao dos simbolos, permitiram confe- fir tima posigao dominante & memoria da Franca resistente - uma visio unificada de uma Franca combatente e eterna ~ em rela- {ao A do resto da populagio. Cada meméria pode ser ela pré- pria definida em relevo, pelasfalhas, os qo, cla apo {rade\naghogio mca fl et oro que dove sera sab momar Peay Ite comoreiur aber cone pradOraneno para doar as eg fos A ppt os dete qe s rou squando des gone do ay, Us" gunaden com om do vata on campo de extemaerao nas {lance stm rma do dover e mena po vozes encarta aos ea ‘ezrnas ow eta repre ram condos para eses gees eigen Ue con um on pro de prepreg ipartant anlo rletal como peas Sha Nee tos hoje 0 dats do ever Qe tas ages slam cntprodcetn tin voc ue essa fram serie por eras vsen (Lo Monde oe joa Go 208) Frere, iro da mem preg 8 enogdo lt Sr aroro a oto, rau a emoo = indvual~ Sever ene daa Ertan» Marcom ua tea parpata da dates (ex. as Yagens e 3¢ fore). carga que vl as anconto du process ite Nea ree {argo una bute So lbidave do fendmenosextwados. A economa a imma endo ene a conemorages sncerae, marfestages de una ‘Cra © ah do urna compssso memoral gereaiza, « a9 eneeogies ‘memoria oq 0 cmporament do guns tos plicos conti a utero drotnce Es obsic antumaune lojea mus wezes dae de ana {ove da denanc. soe, queromos qe toda agente ja capada,soereu Shona Wo arse nga inn not sam az Geronga (ete os naz Air) como unm dma vob fer na, nao surf 05 RES ‘esis anaum so cat [| Wnson Cure Rosa no sto Hil oe ‘afew onal bcs Le No, 8 jaro do 2008) Sts pepe dss foros Ge vista de carpi, opens fro cons. AD mes 9, Dathmos guint oa forays no aso plan exten ints mors o cago Gos cpson Po exons, os june dara a poplar de Seen ser capa jos plo pesamento iia al deco «sie agas torr, on ea sume eae como pla sm ar, ‘ero tanaiatos em eertages mora staat consoouns 03M0 CO ‘otis sr ncaa ss tment aricado uaa 90 Su P= no do?) Evocando a8 «devastaries do daver de meméxian, {Se no tun speio Shean o deve’ omens nose Te enna ‘ anisms porgue Comemars © desapareconts de viceag ano? ote ‘Sosassinio da um ovo cts representantes esto hao anda ne Ta: 8B 0 age ‘lidade no odo de exteinio reakzato pelos nals. Per ins o come nets seeerbatunn gam aSronen Sse i oar leks tan a RETO ‘ine sro o oes mats Gen omens as om cana Sdn nen acorns ean sons Sua «ines we seoas ert eS Sr creche asic eel eae ee ae ‘Sormmcn maa ro roma shia Gouna sone cas es wr cneajreel epee ate ee ty orate Po ere ei ry ‘sien Alle « hat to & ste Got seston eevee ‘asc ota aeiees eS Res eases ae ee wares habedsnete ana tn et tovpeesenin sens ert oe es ee eee cians Ot ee eal ena a ae SEV care are Tonsta sates» rues peo Bice vines esau remmiecs nea hee ease Sazalats Con uo nevmltowe ts amp eochonese Risin a ‘Si nut cocina erties neces Soren ax vr mune rr Fagen om tie isa os ‘sive tos eee enna ets pe ice eerass pease pe ee Fares an preom por wes eign do Secs hts 6 saa ¢ Cireosa in ge pate oer a a eee peer ey ae ee ee eee ee a ee fan Qrardsds ou cabs) eb Gere priate Ort a. ‘ee gamete a Pea ee oe ce NECESSIDADE DE ESQUECER, AMNESIA COLETIVA, «ABUSO» DE MEMORIA? «um efeito da malignidade humana», esceve Técito, «que aquilo que € antigo seja sempre louvado e o presente desdenhaco» (Dit m tao dos orares, XVII). Todo 0 cult do pasado € um aby, dlo passador afirma em eco Finley (1981: 7), Face a obsessig de pessado que ndo passa» (Conan & Russo, 1996), as sorted fem tanta necessidade de uma as oblvionis (Weinrich, 1999) 4S dde uma ars miemoriae. Qual & 0 bom equilibrio entre a soma moses recondagbes ea dos esquecimentos? E-uma questo diy Colocada por Ricoeur quando ele tenta definir aquilo que poste fia ser uma meméria justa, que nfo aprisionasse tudo no cult do passado deduzindo toda a responsabilidad face a este Poderd a memria ser abusiva? Para 0 50° aniversstio da Pay de 1945, 0 Conselho Regional da Baixa Normandia organ rho més de maio 1995, em Caen, um col6quio intitulado «© dever de meméria, a tentacio do esquecimento». Sera preciso ver some pre no esquecimento uma tentagio? Jules Renard escrevia no {idvio: cfenho uma meméria admiravel, esqueco tudo! E muita comodo!» Esquecer, ser c6modo? Na narrativa de La Maladie ide Cuchulain, 08 druidas dio a esse personagem um elixir de es (Nietzsche, 1993: 219-220) presentes, m3 Podera a meméria ser uma corrente, um entrave d acao @ 3 dade? Alguns monumentos, como o «Vietnam Veterans Mey die Washington, podem ter sido considerados como instru tos de catarse, permitindo & meméria coletiva desfazerse qt fardo que representam as recordagdes particularmente. enosas. ‘Acomemoragio poderd ser entZo um esquecimento disfargarhy ‘As grandes convulsdes histéricas nunca se podem complete, sem uma vontade de depurar e mesmo de erradicar qualquer traco e qualquer simbolo dos regimes politicos anteriores, Ser necessario, em certos momentos, colocar o pasado entre parent tesis,e chegar até ao «esquecimento dos n0ssos crimes» (revisty Autrement, 1994)? Ou ainda, nio nos perdemos a nés préprios assim que noy esquecemos? A amnésia de Matsyendranath, um dos Mestiey joguis mais populares da Idade Média indiana, fez-lhe perder 4 sua identidade, o que Ihe custou perder a imortalidade que sg a anamnese, assimilada a um despertar, lhe permite de salvar (Eliade, 1963: 145-146). Os perfeitos, que nunca perdem a visio da verdade, nao precisam, alids, desta virtude que é a rememo- racio porque eles esto sempre despertos: 0 Buda é o desperto por exceléncia e, por isso, ele possui, como Mnemésine, a omnis- cigncia absoluta. Hipnos ¢ o irmao gémeo de Tanatos, e se ambos podem assustar ndo seré porque ambos séo portadores do esquecimento, um provisoriamente, e o outro definitivamente? Vigiar & nio esquecer e, logo, ndo morrer: porque como ele fra- cassa de ficar acordado seis dias e seis noites, Gilgamesh nao pode alcancar a imortalidade. Segundo o Diglikiya (I, 19-2), os Deuses caem do Céu quando a «memoria Ihes falta e a sua meméria se desvanece» (Eliade, 1963: 147). Pelo esquuecimento, a alma pode «deixar fugir 0 seu contetido» (Gorgias, 498 c), expondo-se entio as piores maldigdes: «Tu esqueceste o ensinamento do teu Deus, por minha parte vou-me esquecer dos teusfilhos» (Os; 4/6). Esque- cet, nfo é também a perda do outro? Esquecer um perfodo da sua Vida, efere Maurice Halbwachs, «é perder contacto com aqueles que entao estavam a nossa volta» (1950: 10). E, por vezes, também abandonar 0 outro, afirma ha quarenta anos uma organizaga0 ‘como a Amnistia Internacional que tem por missdo lutar «contra ‘esquecimento», liber, "Moria, ms Estas questdes so colocadas por qual Jada. Contudo, seria demasiado sinoiaa sociedades da meméria que se agarram 4 reseed tengo das tradic6es, 4 estabilidade das hiersanine en fra te i dc ac dades «heterGnomas» para retomar uma dstingio de Gorey, Castoriadis. O proprio exemplo da sociedade francesa nats que aquilo a que se convenciono chamara moderna pote tagio do passado: «uma temporalidade civil, nacional e local, eam co seu calendirio eo seu mito fundador, versus uma temporalidad cris, de valor universalista, dotada de uma liturgia ede um mite de origem préprios» (2003: 83). Neste tipo de conflito, aquilo que os membros de cada um ddos grupos antagonistas dizem da sua meméria e da memérig ddos outros tem uma grande importancia porque estes discutsos tém fortes efeitos socais. De novo, 0 discurso metamemorial pro. cede da emergéncia de uma meméria partilhada. «Na definicao das questdes partilhadas, uma querela inscrita no tempo e con. tida nas fronteiras do burgo parece agit, paradoxalmente, como fator de integracio: os newtonianos apropriam-se desse desa- cordo ¢ reconhecem-se nele» (2003: 84). O inquérito de Andrea Smith (2004) sobre a meméria de antigos colonos da Argélia, de origem nao francesa (malteses,italianos, espanhéis) também pie tem evidencia 0s efeitos unificadores do discurso metamemorial, para ld dos conflitos reais ott aparentes. Um discurso oficial que tenalteca o melting pot (cadinho) colonial conjuga-se com um outro curso, contrastado, que revela a dificuldade de assimilagio ddesses colonos de origem nao francesa (principalmente os malte- ses) no seio da sociedade colonial. Esto presentes das formas dlistintas de interpretar um passado colonial complexo e ambiva- lente, a primeira alimentando-se da representagdo oficial e de Estado desse passado, representagio segundo a qual todos esses refugiados pieds-noirs chegados a Franca em 1962 seriam igual- ‘mente franceses, quaisquer que fossem as suas origens, a segunda alimentada pelas recordagSes da vida quotidiana (sociabilidade, casamento, ete) desses colonos na Argélia e da sua experiéneia «de uma segregacio para com eles. (s informadores de Smith partilham pelo menos este duplo dliseurso,o primeito que celebra o cadinho, eo segundo que 0 ate 134 rua, e até o contesta, Segundo Smith, como ddecorre mais da meméria semintica eo sepa ees episédica, a sua coexistencia aparentemente renege mnt senta dificuldade: eles procedem de dois earn 0 2P tintos, cada um mobilizado em fungio dascherenn natureza das interagies sociais em que a8 pessons es neh marcados do que no passado. Neste jogos de mernéra, nenleong posicio estésalvaguardada definitivamente. Enquanta os depor, tados resistentes ocupavam o primeito lugar na meméria sical imediatamente a seguir a 1945, a sua lembranea fica hoe rds dda dos deportados judeus. A celebracio da Comuna de Paris atualmente abandonada, ao passo que no centendtio, em 1971 em Paris, desfilaram diversas dezenas de milhares de manifes- tantes, poderd decorrer do sentimento de que essa pagina da historia esté definitivamente voltada ou dever-se«t ver af a ex. pressio da astenia, ou mesmo da atonia, do espirito evolicio- hiio no nosso pats, hipétese que parece confrontar-se com a sespetacularizagdo» do bicentenério da Revolucio Francesa, transformado num acontecimento consensual e quase apoitco? Outras memorias permancaem muito ativas. Ada Ocupagio, dias demtincias e dos ajustes de contas aquando da Libertacio, por exemplo, volta periodicamente a marcar as campanhas ele torais (Zonabend, 1980: 306). Em Oradoursur-Glane (Haute- Vienne), apesar de haver um «Centro de meméria», aparecem conflitos a propésito do massacre de 642 pessoas, a 10 de junho dle 194, por uma divisio $5. OpSem-se a vontade de uma cele- bbragio ecuménica do acontecimento, visando promover a uni- dade nacional e a ideia de uma Franga resistente, eo trabalho de ‘uma memaria local, que no se reconhece necessariamente nesta perspetiva e que ficou, sobretudo, indignada com a amnistia, fm 1953, dos 14 soldados alsacianos condenados pela sua parti cipagao nas exagies da divisto Das Rec (em que 18 dees tinham sido incorporados 8 forga). (© passado que nao passa provocaferidas de meméria tanto mais dolorosas quanto os problemas memoria se conjugam com ‘os problemas identitis. Em Franc em certasturmas do secur 135 drio com forte representacio de alunos originétios da in; ‘0, 0 conflito israclo-palestiniano e as referéncias a uma 8 hidade» érabe e muculmana parasitam o ensino acerea da on™ Em alguns meios politicos ou associagdes, € oposta i fobia ao antssemitismo,o trato negreio ou a stuacio dos pat tinianos a Shoah, a meméria dos colonos a dos colonize fenémenos que so depois objeto de uma construcdo social medistica etiquetada de «concorréncia» ou «competighos doe vitimas. No més de jutho de 2004, uns sessenta parlamentes® da UMP indignaram-se com a vinda de Abdelaziz Bouteflin ‘Toulon, a 15 de agosto de 2004, para a comemoracao do 60° anj, versdrio do desembarque na Provenca. Segundo eles, esta visity constituia «um insulto a memériay dos harkis e dos tepatriadse (Le Monde, 13 de agosto de 2004), Aquando dos combates ng porto sobre 0s sfmbolos religiosos na escola, quando algumes escolas do Pas-de-Calais proibiram figurinhas em chocolate de Sio Nicolau, quando um liceu de Lagny-sur-Marne se espantou com a presenca no estabelecimento de uma drvore de Natal, alguns comentadores consideraram que esta ofensiva laica amea. ava «a nossa histéria cultural» e a «nossa memGria coletivay (Labouret, «’'Laicité” et mémoire collective», Le Monde, 25 de de- zembro de 2004). MANIPULAGOES DA MEMORIA. Frequentemente, 0 Estado tem muitas dificuldades em impor um monopélio da meméria legitima e a Franca balanga entre a amnésia coletiva e o dever de meméria, como fazem, alids, outros paises europeus: a Alemanha, a Italia, a Rdissia pos-comunista u ainda os pafses libertados de ditaduras militares (Argentina, Chile), Esta tarefa ¢ tio mais dificil quanto a meméria agonistica gosta de tomar os seus materiais de empréstimo a longa dura- Ho. Em setembro de 2004, quando era comissério europeu para © mercado interno, e no contexto da candidatura da Turquia & Unido Europeia, Frits Bolkestein reagiu as propostas do historiador americano Bernard Lewis que previa uma Europa mugulmana no fim do século xxt: se isso acontecer, diz ele, «a libertagio de Viena 136 «em 1689 ndo teré servido para nadav (Le » (Le Monde, de 2004), fazendo assim alusio a batatha pes 108 que cercavam a aquando da expedigao do Suez em 1986, ad Golfo ou ainda por ocasiao do nono centeries zada de Clermont. No mundo érabe, Salading ~ Nevces ct comparado =, a queda de Jerusalém e a sua retomada conte, nuam a alimentar a memoria coletiva e Israel pode ser asin lado a um novo Estado cruzado (Maalout, 1983: 304303), Fare sentimento é igualmente alimentado pelos discursos belicowos que apresentam a luta contra oterorismo ou ointegrismo muah mano como uma nova Cruzada, Mas as referéncias a Grande Hist6ria no sio 0s tinicos pretextos para batalhas de memoria ‘ou para contflitos em torno da memoria. Celebragées a primeita sta anédinas podem perfeitamente fazer o mesmo, em 1935, 0 tricentendrio da morte de La Fontaine deu lugar na sua cidade natal (Chateau-Thierry) a vivos confrontos politicos entre aqueles que viam no fabulista um «petainsta» e aqueles que sublinha- vam o seu cardter universal e popular ‘A meméria, pessoal ou coletiva, empenha-se constantemente em onganizar ¢ reorganizar o passado, Porque € que os gover- nos, 05 partidos politicos, os grupos de pressio nao haviam de tentar infletir esse processo numa direcio que lhes fosse favo- rivel? Patrick Geary descreveu bem aeficdcia das comunidades textuais de monges e de escribas que, no fim do primeito milénio, forjaram uma memoria coletiva ~ meméria partilhada essen: cialmente pelo clero e os principes, mas era o bastante ~ 20 manipularem as Cartas (modificagties, destruigbes, acrescentos, dissimulagdes, ete). As memeérias individuais abriam-se umas 4s outras para visar um mesmo objeto que era 0 poder e, a0 concentrar-se, produziam uma meméria parilhada, «espécie de bbanho no qual se forma a identidades. Mas se a memi6ria cole- tiva € essa, precisa Geary, existe para isso uma boa azo: «longe dle sera partilha espontanea de uma experiéncia vivida e tans mitida, a meméria coletiva tem também ela sido orquestrada, duas guerras do io do apelo a Cru- 137 indo menos do que a meméria hist6rica, como uma favorecendo a seidariedade e a mobilizagio de um grapes vés de um processo permanente de eliminagio e de cocci (1996: 31). Conhece-se o papel das manipulagdes massivas dq ‘memaria na aparigao e na manutengdo de sistemas totalitar no século xx. No conflito irland@s, os ingleses e alguns intelee tuais tentaram infletir a memoria da grande fome de meados do século x0, utilizada pelo IRA como uma arma anti-inglesa, Da ‘mesma forma, 0 conilito na exJugoslévia foi alvo de manipu. lagées sisteméticas da meméria com o fim de fazer esquecer a recordagio de solidariedades antigas (Sorabji, 1994). As tenta- «Ges de turvar, de manchar ou de profanar as memérias baseiam. “Ne ainda neste caso em memérias muito mais antigas, tais como as das longinquas partlhas histéricas (éreas da ortodoxia, ocupa- fo romana, etc.) ‘Aevocagio da Shoah permite diferenciar bem as manipula- oes da meméria do trabalho normal da recordagao. Assim, a Contagem precisa das vitimas passa por um «dilacerante traba- Iho» (Lanzmann, citado em Vidal-Naquet, 1987: 185) da memé- ria consistindo em fazer admitir que o ntimero de um milhao cem mil mortos em Auschwitz - 960 000 homens, mulheres e criangas judias deportados dos paises da Europa ocupados pelos nazis, 75.000 polacos, 21 000 ciganos e 15 000 soviticos ~ é uma hipdtese muito mais realista do que os quatro milhdes de mor tos anunciados numa placa anteriormente colocada a entrada do campo, Igualmente, o facto de Serge Klarsfeld ter tomado a iniciativa de restabelecer a verdade hist6rica sobre o niimero de resistentes fuzilados pelos nazis no Mont Valérian (1007 nomes devidamente registados aos quais se devem acrescentar as vitimas nio identificadas, e no 4500, ntimero indicado antigamente numa placa comemorativa) representou 0 culminar de um traba- ho doloroso da meméria ao longo de uns cinquenta anos. Num ‘outro registo, colocou-se a questio de saber se se deveria mostrat todas as fotografias tiradas por Henryk Ross (2004) no gueto judeu de Lodz, durante a ocupacao da Polénia pelo Iil Reich, € depois o campo de exterminacio pelos nazis de 75 000 judleus que viviam no gueto. Algumas destas fotografias, com efeito, da0 conta dle momentos de descanso numa vida quotidiana, em co” 138 rapartida, trégica: jovens que riem, amor api es or a em ans cama ritivo pela quase totalidade dos habitantes do gueto, uma parte nunca deveriam ter sido mostradas porque esses instantes de “despreocupacio arriscavam fazer esquecer os sorimentos reals (Le Monde, 8 de janeiro de 2005). Temos aqui uma imagem exemplar da oposigdo entre dois tipos de meméria, uma hist6- fica, movida pela vontade de mostrar tudo aquilo que fazia parte da realidade do gueto, 0s seus raros momentos de ale sim como 0 Seu sofrimento incontavel; a outra é uma memoria Emocional, preocupada antes de mais com a recegio e a inter- pretagio destas fotografias pela opiniao pablica, Contariamente, Musurpacio revisionista que visa negar a realidade do genoct- dio ndo tem mais nada a ver com uma maigutica da meméria porque por natureza ela é negacionista da propria meméria. Foren muita justiga que se pode falar neste caso de assassinio da memoria: antes mesmo de a manipular, a parte da verdade Gque toda a meméria carrega em si é a priori negaca. Grosseira thas sem divida eficaz, a tentativa de manipulagao da meméria C evidente quando, por ocasiao do 60." aniversério da libertagio ide Auschwitz, 05 eleitos nazis do NPD no Parlamento regional da ‘SaxGnia apelaram 4 comemoragio «do Holocausto» com bom- bas «Bomben-Holocaust») dos dias 13 e 14 de fevereiro de 1945, datas do bombardeamento da cidade de Dresden pela aviagio ‘anglo-americana que matou 35 000 a 40 00 habitantes. "As distorgdes da meméria provocadas por estes confitos en- sinam-nos provavelmente mais sobre uma sociedade ou um individuo do que uma meméria fiel. E preciso ver na deforma: ‘Go aplicada a um acontecimento memorizaclo um esforgo de ajustamento do passado as representagies do tempo presente [No caso dos grandes acontecimentos coletivos, adivinha-se entso © interesse de uma pesquisa sobre a meméria conduzida con juntamente pelos historiadores e pelos antropélogos, ajudando {quer uns quer outros a medir os distancamentos memorais Por Com a tealidade hist6rica, e propondo antropélogos Tae riadores uma interpretagio desses distanclamentos 4 1G Bo

Você também pode gostar