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Disgur ai iliscur sO Apresentacao es Novo livro de Dominique Maingueneau é bastante diferente dos anteriores. Algumas de suas obras foram tematicas, e diversas conti- nham bom numero de anilises ou, no minimo, um corpus que sem- pre era mais do que uma ilustragao de suas teses. Trata-se de nova apresentagio da analise do discurso (AD), depois de varias de carater semelhante, também diferentes entre si, fundamentalmente porque a anilise do discurso se move e, assim, nao é a mesma apresentada nos outros “manuais” de Maingueneau. Nao s6 os corpora se multipli- caram. Diversas tendéncias cresceram, e todas, de alguma forma, se alteraram, mais ou menos. O livro é um verdadeiro mapeamento da analise do discurso um sobrevoo, que confirma em parte mapas anteriores, mas também descobre novos morros, rios, cidades, estradas. E sugere meios de ex plorar tudo, ou, pelo menos, sugere algumas viagens. O livro, de certa forma, passa por todas as questdes cla tedricas e metodolégicas, e acrescenta outras, como a proposta de considerar a analise do discurso uma vertente especifica no interior dos estudos do discurso, a discussao sobre se o carater critico da AD é eventual ou se é constitutivo das diversas teorias do diseurso. Alem disso, o livro expoe de forma refinada a relagao da AD com as cién cias humanas e sociais. Vale mencionar também a agudeza do olhar de Maingueneau sobre 0 que implicam para a analise do diseurso a sicas, internet e as redes sociais. Os numerosos temas abordados nao tratados em detalhe, mas impdem desafios nada fa mente interessados em pesqui: Em suma, © autor faz uma apresentagio do campo da ar do discurso. Por um lado, é obra de apresentagao, ©, assim um conjunto variado de conceitos, com destaque para os relat : construgao de um corpus para anilise. Retoma conceitos com lary tradigaéo no campo, como o de formagao discursiva, acrescenta ox em pé de igualdade, como os de género e autoria, atento nao aper a uma questao, seja a do sentido, seja a da circulagao, mas a todas » que afetam o discurso. Conceitos que 0 autor ja expusera voltam ma bem integrados: discursos constituintes, paratopia, frases sem text Sendo obra de introdugao, supde, para que assim funcione leitor que ja conheca bastante os detalhamentos do que aqui é expe to brevemente. Por exemplo, 0 autor publicou ha dois anos um |) sobre Frases sem texto. De certa forma, sua leitura é requerida pa que a retomada aqui exposta seja de fato significativa. O mesmo se da em relacao a outros temas, como 0 leitor vera. Assim, este é um livro de introdugao, mas, paradoxalmente, para que se tirem dele todos efeitos, é melhor que o leitor ja esteja bastante informado. A tradugao foi a mais literal possivel. Uns acharao que o foi ew excesso. Também procurei respeitar 0 tom do origi m outras obras do autor, relativamente informal. Em certos mor tos, pedi socorro a Lidia L. Maretti e a Luciana Salazar Salgado quais agradego por quebrarem alguns galhos. Aproveitei passagens de tradugdes existentes no mercado, px cialmente no caso de citagdes de Foucault, de Pécheux, do pri Maingueneau, particularmente quando fretomava passagens de trade Thos recentes, alguns dos quais tinham Passado por minhas mio» \ veres, modifiquei alguns detalhes, achando que melhorava o tex Que o livro permita debates, a recepgio que tis para Os real -los. » que é, cor a merece Stnio Poss Campinas, julho de 2015 tae con camscet Prefacio Howve na msroria grandes conjuntos de saberes e de praticas desti- nados ao estudo dos textos: no Ocidente, lembramos logo da retorica e da filologia, que chegaram até nds. Desde os anos 1960, um novo campo de pesquisa se desenvolveu com o nome de “analise do discur- so” ou, mais recentemente, de “estudos de discurso”. Nao se trata de uma simples extensao da linguistica a dados que até entao ela nao levava em conta, como se, para retomar os termos de Saussure, uma “linguistica da fala” tivesse vindo completar uma linguistica da “lin- gua”. Trata-se antes de um empreendimento fundamentalmente trans disciplinar, para alguns, p6s-disciplinar, que, atravessando 0 conjunto das ciéncias humanas e sociais e das humanidades, vai contra a ten déncia da divisio do saber em dominios cada vez mais especializados E dificil nao associar a aparig&ao deste campo a fendmenos como a terceirizagaéo crescente da economia e o desenvolvimento das mi dias audiovisuais pés-internet, que aumentam de maneira inegavel a importancia das interag6es verbais e multiplicam as técnicas de pro cessamento dos signos. Essas evolugdes sao acompanhadas, alem dis so, por uma “tecnologizacao do discurso” (Fairclough, 1992): seja ne mundo corporativo ou em setores como o da satide, da politica ou da educagao, pretende-se aumentar sua “eficacia” analisando sua propria “comunicagao”, interna e externa, a dos concorrentes, incluinde os enunciados produzidos sobre as pessoas comuns, Outra face desse controle é a vigilncia exercida sobre as produgdes verbais, seja no; call centers, onde o exercicio da fala é submetido a normas estritas ¢ se torna objeto de um controle permanente, seja em nome do “poli camente correto”, da “luta contra 0 terrorismo” ou “a criminalidade seja em uma perspectiva de espionagem industrial, de marketing, «, propaganda... Todas essas atividades mobilizam atores muito diver sos, obrigados a se apoiarem em técnicas mais ou menos sofisticada de coleta, de exploragiio e de interpretacdo dos dados verbais. Vex, igualmente multiplicarem-se os espacos destinados ao comentario ¢ fala: programas de radio ou de televisio que analisam a comunicaca, dos politicos nos espagos interativos de “discussao”, de “reagao’ “opiniao”... que a internet propicia, passando pelas instituigdes, part cularmente as de ordem psicoterapéutica, que incitam os sujeitos a exprimirem sob o olhar de especialistas, que analisam e avaliam su falas. Mesmo que nao estejam diretamente a servigo dessas Praticas 9s estudos do discurso participam, a sua maneira, desse mundo en que no se cessa de refletir sobre os poderes da fala. O campo da anilise do discurso, hoje globalizado e em expansix continua, resulta da convergéncia de correntes de pesquisa provin das de disciplinas muito diferentes (linguistica, sociologia, filosofia psicologia, teoria literdria, antropologia, historia...) e, em contrapar tida, exerce sua influéncia sobre elas. Falou-se muito de uma “virada linguistica” na filosofia, na historia e nas ciéncias sociais na segunda metade do século XX. Poderiamos falar também de uma “virada dis cursiva”. De fato, no hé nenhum setor das ciéncias humanas e sociais ou das humanidades que nao possa apelar a suas problematicas, con ceitos ou métodos. O estudante que necessite ter uma ideia mais precisa desse imer so campo de pesquisa nao esta diante de uma tarefa facil. Certamente existe no mundo um nimero consideravel de manuais de introdugio. maior parte deles em inglés, cuja tendéncia é levar em conta apenas os trabalhos que pertencem a sua prépria area cultural ou mesmo a sua propria corrente, e a privilegiar esse ou aquele tipo de uso do discu" (a conversacao, as midias, a Web, os discursos institucionais, os texto> escritos...), ignorando a diversidade das manifestagdes do discurso. O livro que apresentamos aqui nao procura substituir tais ™* nuais de introdugao, mas completé-los. Seu objetivo é ajudar aque! que, por uma ou outra razao, se deparam com os estudos de discul” 10 Discurso ¢ andlise do discurso tae con camscet a melhor apreender as linhas de forga que estruturam esse campo, a identificar as categorias sobre as quais repousam seus métodos de analise, a tomar consciéncia da heterogeneidade do discurso. O estu- dante nao vai, pois, encontrar, neste manual, métodos imediatamente operatérios, mas pode recuar o necessério para orientar-se eficazmen- te no labirinto das terminologias e dos métodos. O livro se divide em trés partes. A primeira esta centrada no campo de estudos de discurso: sua historia, a definigao de termos como “discurso” ou “texto”, as grandes divisdes que o estruturam. A segunda parte se interessa pelas unidades de base com as quais tra- balham os analistas do discurso (género, tipo de discurso, formagao discursiva...); em outras palavras, com a construgao de seus objetos A terceira se esforga para medir, ao mesmo tempo, a unidade e a di- versidade do universo do discurso, para fazer surgir os regimes da fala que nele se entrecruzam. Em ciéncias humanas e sociais, nao poderia existir, alias, o olhar sobranceiro e neutro, sobretudo quando se trata de refletir sobre um saber recente. Este livro nao é 0 de um historiador ou de um socidlo- go das ciéncias, mas o de um praticante da analise do discurso que a viu evoluir consideravelmente desde os anos 1970 e que se esforga para refletir sobre suas condigées de possibilidade, suas principais categorias e suas tens6es constitutivas. Ele repousa sobre trés pressu- postos principais: * mesmo que as problematicas de analise do discurso desenvol- vidas na Franga tenham exercido indiscutivelmente um papel fundador e continuem a apresentar certo ntimero de tragos caracteristicos, atualmente elas se encontram inseridas em um espaco de pesquisa globalizado, no qual as hibridagde conceituais se multiplicam; * o campo dos estudos de discurso deve ser distinguido de ou- tro, mais restrito, o da andlise do discurso, que define um ponto de vista especifico sobre o discur: * ouniverso do discurso, o material a partir do qual trabalham os analistas do discurso, é profundamente heterogéneo: nao se pode unificé-lo em torno do modelo dominante da comu- nicagao oral face a face. Prefacio 11 tae con camscet PARTE | Estudos de discurso e analise do discurso Alguns elementos de historia a em uma obra de cara- Em GERAL, quando se apresenta uma disciplin: al ter didatico, comega-se por fazer um rapido percurso historico no qué se para em um (as vezes dois ou trés) pensamento(s) fundador(es) que delimita(m) firmemente os contornos do campo de saber em questao. Tratando-se da analise do discurso, é muito dificil escrever tais rela- tos: nao existem equivalentes de Newton, Pasteur ou Durkheim, per sonalidades cujo papel determinante seja reconhecido pelo conjunto da comunidade. Trata-se de um espago de nao pode ser remetido a um lugar de emergéncia exato. Atribui-se fre quentemente um papel fundador a pensadores tais como E. Goffman L. Wittgenstein, M. Foucault ou M. Bakhtin; indubitavelmente, eles tiveram um papel importante, mas @ abordagem de cada um deles abrange apenas parte desse imenso campo, e nenhum deles recortou, mesmo com outro nome, um territ6rio que recobrisse mais ou menos o da atual analise do discurso. $6 poderiamos construir uma historia quase linear se nos restringissemos a determinadas correntes. pesquisa fervilhante e que 1.1 © Convergéncias € jagdes O termo “analise do discurso” foi introduzido pelo linguista dis tribucionalista Zellig S. Harris (1909-1992), em um artigo intitulado exatamente “Discourse Analysis” (Harris, 1952), no qual “discurso” a) Quando, nos anos 1960, emergiram as problematicas que, em se- guida, entrariam no campo da anilise do discurso, nao se tratava, de forma alguma, de um projeto unificado. Nos Estados Unidos, 0 estudo do discurso foi alimentado por correntes muito diversas: em particu- Jar, pela etnografia da comunicagao! (Hymes [1927-2009], Gumperz [1922-2013]), que era muito proxima da antropologia, da etnometo- dologia® (Garfinkel [1917-2011]), que se dizia uma teoria sociolgica, da andlise conversacional (Sacks [1935-1975]), que, como o nome in dica, propunha um método de analise das interagdes orais. A isso se juntavam os trabalhos de pensadores singulares, tais como Goffman [1922-1982], que estudava os “rituais de interagdo” na vida cotidiana, cm particular por meio da “apresentacao de si”. Essas diversas cor- rentes, a despeito de suas divergéncias, partilharam progressivamente um mesmo espago de pesquisa. Em seguida, ele foi enriquecido pelos aportes das teorias pés-estruturalistas do discurso, muito influentes nas ciéncias politicas (M. Foucault, E. Laclau) e nos “Cultural Studies”, particularmente no que diz respeito ao género sexual (ef. J. Butler). De maneira mais ampla, a reflexao sobre o discurso se beneficiou de contribuigées provenientes da filosofia e da linguistica. Ao longo do século XX, a filosofia se preocupou com a questao da linguagem. Falou-se de um linguistic turn, de uma “virada linguistica”, baseada na ideia, defendida particularmente por L. Wittgenstein, de que o traba- tho conceitual da filosofia supde uma anilise prévia da linguagem; os trabalhos de J. Austin sobre os “atos de fala” se inscrevem nessa pers- pectiva. Por sua vez, a linguistica foi sendo cada vez mais impregnada pelas correntes pragmaticas, que abordavam a fala como uma ativida- de e acentuavam o carater radicalmente contextual da construgi0 do sentido. Paralelamente, a partir dos anos 1960 — isto é, simultanea- mente a analise do discurso — desenvolveu-se uma nova disciplina, a linguistica textual, que, visando encontrar regularidades além da frase, fornecia aos analistas do discurso instrumentos preciosos para a apreensao da estruturagao dos textos. 1 (2003). * Sobre a etnometodologia, podem-se consultar Coulon (2002) ¢ de Fornel, Ogien e Queré (orgs.) (2002), ‘Para uma sintese das principais contribuigdes de E, Goffman, ver Joseph (2002), Nizet e Rigaux (2005). Sobre a etnografia da comunicagao, ver Bachman, Lindenfeld, Simonin 1.~ Alguns elementos de historia 17 terceiro, com 0 objetivo de melhorar nossa compreensao das relagdes entre 0s textos e as situagdes sécio-historicas nas quais eles so pro- duzidos. Essa concepgao muito consensual da andlise do discurso vai se difundir amplamente na Franga. Autor de uma Andlise automdtica do discurso, Michel Pécheux (1938-1983) nao participou do namero especial de Langages; seu pro- jeto é diferente. Ele nao é um linguista, mas um filosofo marxista especialista em hist6ria das ciéncias, que pretende contestar os pres- supostos “idealistas” das ciéncias humanas; ele era, entao, pesquisa- dor em um laboratorio de psicologia social. Com Pécheux, a analise do discurso se ancora, ao mesmo tempo, no marxismo do filésofo L. Althusser, na psicanalise de J. Lacan e na linguistica estrutural, trés empreendimentos que dominam, nesse momento, a cena intelectual. Seu procedimento é o de uma espécie de psicanalista do discurso animado por um projeto marxista, cujo alcance é simultaneamente politico e epistemolégico: procedendo a uma analise — leia~ composigio” — dos textos, procura-se revelar a ideologia que eles estao destinados a dissimular; significativamente, a palavra “analista” designa igualmente os psicanalistas e “analise”, a psicanilise. A influéncia de A arqueologia do saber, de M. Foucault, sobre a analise do discurso francesa foi bastante mais indireta que a de J. Dubois ou a de M. Pécheux, mas foi expressiva. Se estes tiltimos pre- tendiam apoiar-se na linguistica, o autor de A arqueologia do saber a recusava. O que ele chamava de “discurso” nao tinha relagio direta com o uso da lingua. Estas linhas sao reveladoras: e “de- O que se descreve como “sistemas de formacao” nao constitui a etapa final dos discursos, se por este termo entendermos os textos (ou as falas) tals como se apresentam com seu vocabulario, sintaxe, estrutura ldgica ou orga~ nizacdo retérica. A analise permanece aquém deste nivel manifesto, que ¢ da construcdo acabada (1969: 100/83). Uma posigao como esta é dificilmente compativel com os postu- lados de numerosos analistas do discurso, para quem 0 vocabulario, a organizagao textual e as estratégias interacionais devem estar no coragéo da analise. Como o sublinha Hart, em Foucault, “discurso” nao é um conceito linguistico: 1= Alguns elementos ge mistoria 19 produziam enunciados raticas que interessava eram as regras € as p! u ae diferentes periodos da dotados de sentido e que regulavam o discurso em historia (1997, in Wetherell et al., 2001: 72). O procedimento de Foucault contrastava com o de M. Pécheux também em outro ponto: ele refutava os procedimentos que procura- vam desvelar uma espécie de inconsciente textual. Trata-se de aprender 0 enunciado na estreiteza ¢ na singularidade de seu acontecimento; de determinar as condigdes de sua existéncia, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlagdes com os outros enunciados que podem estar ligados a ele, de mostrar que outras formas de enunciacdo ele exclui. NGo se busca, sob 0 que estd manifesto, a conversa semissilenciosa de outro discurso; deve-se mostrar por que nao poderia ser outro que ele nao era [..] (1969:40)*. Vé-se, desde 0 comego, mesmo em um espago assim restrito como o de Paris em 1969, que surgiram simultaneamente visdes mui- to diferentes da anilise do discurso. Devemos, entretanto, distinguir os casos de Pécheux e de Foucault, dois filésofos cujas contribuig6es derivam mais daquilo que hoje se chama teoria do discurso, e 0 caso do linguista J. Dubois, que se ancora nas ciéncias da linguagem para analisar as praticas verbais de uma sociedade; suas perspectivas vio, sobretudo, suscitar pesquisas sobre 0 discurso politico, estimuladas pelo contexto social dos anos que se seguem a 1968 (Guespin et al., 1971; Demonet et al., 1975; Guespin et al., 1976). Passado o periodo de fundagio, a analise do discurso francesa vai rapidamente mesclar as contribuigGes dessas trés problematicas iniciais’ e abrir-se a conceitos advindos das correntes pragmatica: nas teorias da enunciagao, da linguistica textual para abordar corpora diversificados. Podem-se citar os trabalhos de P. Charaudeau (1983, 1997) sobre as midias, os de S. Moirand sobre o discurso cientifice ° Nos sublinhamos. ” Vése, por exemplo, os conceitos de Foucault e de Pécheux se combinarem estreltamente nos estudos do discurso politico em um mimero eapecr gages a pecial da Lan (Courtine, 1981) consagrado ao discurso politico, terreno de pesquisa privilegiado dos colaboradores de J. Dubois, que entio dirigia a revista. 20 Parte | - Estudos de discurso e andlise do discurso (1988) e sobre a imprensa escrita (2007), os meus sobre o discurso religioso (1984) ou o discurso literério (1993). Todas essas pesquisas atribuem um papel central a nogao de géneros do discurso e se apoiam macigamente sobre as teorias da enunciacao linguistica, que forne- cem um quadro metodolégico comum. Paralelamente, os trabalhos de inspirag&o norte-americana se difundem na Franga, em particular através dos estudos das conversas (Kerbrat-Orecchioni, 1990, 1992). 1 ~ Alguns elementos de histor A nocao de discurso Avstasiipape do campo da analise do discurso encontra correspon- déncia na propria nogao de discurso. Nenhuma obra de introdugao0 esquece, alias, de demorar-se neste ponto, seja para deploré-lo, seja para celebra-lo. Circunstancia agravante, “discurso” se emprega de duas maneiras: * como substantivo ndo contdvel (“isto deriva do discurso”, “o discurso estrutura nossas crengas * como substantivo contdvel que pode referir acontecimentos de fala (“cada discurso é particular”, “os discursos se insere- vem em contextos”...) ou conjuntos textuais mais ou menos vastos (“os discursos que atravessam uma sociedade”, cursos da publicidade”...). Tal polivaléncia permite que “discurso” funcione, ao mesmo tem po, como referindo objetos empiricos (“ha discursos”) e como algo que transcende todo ato de comunicagao particular (“o homem é sub- metido ao discurso”). Isto favorece uma dupla apropriagao da nogio: por teorias de ordem filosdfica e por pesquisas empiricas sobre o fun cionamento dos textos. ‘os dis: 2.1 © Para os linguistas Para os linguistas, que opdem tradicionalmente o sistema lin- guistico a sua atualizagio em contexto, 0 discurso € comumente 23 definido como “o uso da lingua” (ver, por exemplo, Gee [2005: Ix] ou Johnstone [2008: 3]). Alguns acrescentam a isso uma dimensio comunicacional, como B. Paltridge (2006: 2), para quem o discurso é “a linguagem além da palavra, do grupo de palavras e da frase”, agen- ciado de maneira a que a “comunicagao alcance éxito”. Mais precisamente, em linguistica, “discurso” entra em trés oposi- g0es principais: entre discurso e frase, entre discurso e lingua e entre dis- curso e texto (abordaremos esta ultima distingao no proximo capitulo), * Quando se opde discurso e frase, o discurso é considerado como uma unidade linguistica “transfrastica”, isto é, consti- tuida de um encadeamento de frases. Vimos que é neste sen- tido que Harris (1952) péde falar de “discourse analysis”. £ também nessa interpretagao de “discurso” que se apoiam hoje os pesquisadores que, em uma perspectiva cognitiva, se inte- ressam pela maneira pela qual um enunciado é interpretado apoiando-se em enunciados anteriores e posteriores. Mas este nao é o emprego mais frequente de “discurso”. A oposigéo entre discurso e lingua pode ser apreendida de diversas maneiras, mas todas elas opdem a lingua concebida como sistema a seu uso em contexto. Encontra-se aqui, em certos aspectos, a dupla “lingua’/“fala” do Curso de linguisti- ca geral de F. de Saussure. A nogao de “language in use”, frequente na literatura anglofona como parafrase de “discurso”, associa estreitamente as duas oposigdes que acabamos de destacar: textual (discurso vs, frase) e contextual (discurso vs. lingua): O discurso € frequentemente definido de duas maneiras: um tipo particular de unidade linguistica (além da frase) e uma focalizagao sobre 0 uso da lin~ gua (Schiffrin, 1994: 20). 2.2 © Fora da linguistica As acepgées de “discurso” ancoradas nas ciéncias da linguagem interagiram com certo ntimero de ideias provindas de correntes ter cas que atravessam o conjunto das ciéncias humanas e sociais: a filo- sofia da linguagem ordinaria (1. Wittgenstein) e a teoria dos atos de fala (J. L. Austin, J. R. Searle), a concepgaio inferencial do sentido (H. 24 Parte | - Estudos de discurso € anilise do discurso P. Grice), o interacionismo simbolico (G. H. Mead), a etnometodolo- gia (H. Garfinkel), a escola de Palo Alto (G, Bateson), 0 dialogismo de M. Bakhtin, a psicologia de L. Vigotsky, a arqueologia e a teoria do poder de M. Foucault, ele proprio integrado a uma corrente identifica- da nos Estados Unidos com 0 nome de “pés-estruturalismo”, em que é associado a pensadores como J. Derrida, G. Deleuze, J. Lacan, E. La clau, J. Butler... A nogao de discurso entra igualmente em ressonancia com certas correntes construtivistas, particularmente a sociologia do conhecimento de P. L. Berger e T. Luckmann, autores de A construcdo social da realidade (1966). Quando se fala de “discurso”, ativa-se, assim, de maneira difusa um conjunto aberto de leitmotiven, de ideias-forga: O discurso é uma organizagao além da frase Isto nao quer dizer que todo discurso se manifeste por sequén- cias de palavras de dimensdes obrigatoriamente superiores 4 frase, mas que ele mobiliza estruturas de outra ordem, diferentes das da frase. Um provérbio ou uma proibigaéo como “Proibido fumar” sao dis- cursos, formam uma unidade completa, embora sejam constituidos por uma tnica frase. Os discursos, quando sao unidades transfrasti- cas, como é 0 caso mais frequentemente, séo submetidos a regras de organizagao. Elas operam em dois niveis: as regras que governam os géneros de discurso em vigor em um grupo social determinado (con sulta médica, talk-show, romance, tese de doutorado...) e as regras, transversais aos géneros, que governam um relato, um didlogo, uma argumentagao, uma explicagao... O discurso é uma forma de acdo Considera-se que falar é uma forma de agdo sobre © outro, © nao apenas uma representagéo do mundo. Nesse ponto, & linguistica retoma a tradicao retorica, que constantemente acentuou os poderes da fala. A problemitica dos “atos de linguagem” (também chamados “atos de fala” ou “atos de discurso”), desenvolvida a partir dos anos 1950 pelo filésofo da linguagem J. L. Austin (1962), e depois por J. R. Searle (1969), mostrou que toda enunciagio constitui um ato (pro- meter, sugerir, afirmar, perguntar...) que visa modificar uma situagao. 2- Anogto ae siscurso 25 atos elementares se integram a géneros de Num nivel superior, tais s de atividades social. discurso determinados, que sao outras form mente reconhecidas. Inscrevendo assim 0 dis des, facilita-se relaciona-las com as atividades nao verbais. curso entre as ativida- 0 discurso ¢ interativo A atividade verbal é, na realidade, uma interatividade que en- volve dois ou mais parceiros. A manifestagao mais evidente dessa in- teratividade 6 a troca oral, onde os interlocutores coordenam suas enunciagdes, enunciam em fungao da atitude do outro e percebem imediatamente 0 efeito que suas palavras tém sobre ele. Poder-se-ia objetar que existem também tipos de enunciagao oral que nao pare- cem de forma alguma “interativas”: é 0 caso, por exemplo, das confe- réncias, e, a fortiori, dos textos escritos. De fato, nao se pode reduzir a interatividade fundamental do discurso 4 conversagéo. Qualquer enunciagéo, mesmo que produzida na auséncia de um destinatario ou na presenga de um destinatario que parece passivo, se da em uma interatividade constitutiva. Qualquer enunciacao supde a presenga de outra instancia de enunciagao, em relagdo a qual alguém constréi seu proprio discurso. Nesta perspectiva, a conversacao é um dos modos de manifestag&éo — mesmo que seja sem divida fortemente dominan- te, do ponto de vista quantitativo — da interatividade fundamental do discurso. Se for assim, um termo como “destinatario” parece insa- tisfatério, porque pode dar a impressao de que a enunciacao é apenas a expressao do pensamento de um locutor que se dirige a um destina- tario passivo. £ por isso que alguns preferem falar de “interactantes”. de “colocutores”, ou, ainda, de “coenunciadores”. O discurso é contextualizado Nao diremos apenas que o discurso interyém em um context, como se 0 contexto nao passasse de uma moldura, de um cenario: fore de contexto, nao se pode atribuir um sentido a um enuneiado. Fala-se. frequentemente, a este propésito, de “indicialidade”. Em filosofie da linguagem, express6es indiciais (eu, tu, ontem, ai...) tem como carac teristica serem por natureza semanticamente incompletas, de so terem referente mediante a enunciagao singular em que sio empregadas. 26 Parte | - Estudos de discurso € anilise do discurso Por extensao, a indicialidade permite representar a incompletude ra- dical das palavras, que devem ser indexadas a uma situagao de troca linguistica, um contexto particular, para aleangar um sentido que se poderia dizer “completo” (0 que nao implica que esse sentido seja cla- ramente determindavel). 0 discurso ¢ assumido por um sujeito CO discurso sé é discurso se estiver relacionado a um sujeito, a um EU, que se coloca ao mesmo tempo como fonte de referéncias pessoais temporais, espaciais (EU-AQUI-AGORA) ¢ indica qual é a atitude que ele adota em relagio ao que diz e a scu destinatario (fendmeno da “modalizagio”). Ele indica, especialmente, quem é 0 responsavel pelo que ele diz: um enunciado bem elementar como “Chove” é estabelecido como verdadeiro pelo enunciador, que se situa como o responsavel como o fiador de sua verdade. Mas esse enunciador poderia ter modu- lado seu grau de adesio (“Talvez possa chover”), atribuir a responsabi lidade pelo enunciado a outro (“Segundo Paulo, vai chover”), comentar sua propria fala (“Sinceramente, acho que choye") etc. Ele poderia ate mesmo mostrar ao coenunciador que apenas finge assumir © enun- ciado (no caso de enunciagdes irdnicas). Mas, de uma perspectiva da analise do discurso, esta dupla assungao nao implica que se considere © sujeito como o ponto de origem soberana de “sua” fala. A fala ¢ de- minada pelo dispositivo de comunicagao do qual ela provém. 0 discurso é regido por normas A atividade verbal, tanto quanto qualquer comportamento se cial, é regida por normas. No nivel elementar, cada ato de linguagem implica normas particulares; um ato aparentemente to simples como uma pergunta, por exemplo, implica que 0 locutor ignore a respos ta, que essa resposta o interesse, que ele acredite que o individuo a quem a pergunta é feita possa respondé-la ete. Existem, além disso, normas (“maximas conversacionai ” “leis do discurso”, “postulados conversacionais”...) que regem todas as trocas verbais: ser compreen- sivel, nao se repetir, dar informagdes apropriadas a situagao ete. Além disso, como vimos, os géneros de discurso séo conjuntos de normas tos engajados na atividade verbal. ie suscitam expectativas nos suje’ 2~Anogto de iscurso 27 Mais fundamentalmente, nenhum ato de enunciagdo pode ocorrer sem justificar de uma forma ou de outra seu direito de se apresentar tal como se apresenta. Trabalho de legitimagao inseparavel do exer. cicio da fala. 0 discurso é assumido no bojo de um interdiscurso O discurso s6 adquire sentido no interior de um imenso interdis- curso. Para interpretar 0 menor enunciado, é nec ssario relacioné-lo, conscientemente ou nao, a todos os tipos de outros enunciados sobre 0s quais ele se apoia de miltiplas maneiras. O simples fato de orga- nizar um texto em um género (a conferéncia, o jornal televisivo...) implica que o relacionemos com os outros textos do mesmo género; a menor intervengao politica so pode ser compreendida se se ignorarem 0s discursos concorrentes, os discursos anteriores e os enunciados que entio circulam nas midias. Algumas correntes defendem o primado do interdiscurso sobre © discurso. E em particular 0 que se da com os pesquisadores inspi- tados em M. Bakhtin, que inscrevem todo enunciado num “dialogis- mo” generalizado; este principio recusa 0 fechamento do texto, aberto aos enunciados exteriores e anteriores, cada enunciado participando assim de uma cadeia verbal interminavel. £ também o caso de nume- Tosos analistas do discurso franceses inspirados em J. Lacan ou em L. Althusser, para os quais qualquer enunciagdo é dominada por um interdiscurso que a atravessa sem que ela se dé conta disso; algo que uma formula de M. Pécheux resume bem: “Isso fala sempre alhures antes’. Nesses dois casos, existe uma relagao estreita entre a afirma- gao do primado do interdiscurso e certa concepgao do sujeito falan- te; a fala nunca é concebida como o lugar em que a individualidade se pde soberanamente: cada locutor esta tomado pela sedimentagéo coletiva das significagées inscritas na lingua (Bakhtin), © sujeito esta submetido a um descentramento radical, cle nao pode ser orien do sentido (Pécheux). 0 discurso constréi socialmente 0 sentido Este postulado diz respeito tanto as interagdes orais entre dua’ Pessoas quanto as produgdes coletivas destinadas a um publico ample. 28 Parte | - Estudos de discurso ¢ andlise do discurso © sentido de que se trata aqui nao é um sentido diretamente acessi- vel, estavel, imanente a um enunciado ou a um grupo de enunciados que estaria esperando para ser decifrado: ele é continuamente cons- truido e reconstruido no interior de praticas sociais determinadas. fissa construgao do sentido é, certamente, obra de individuos, mas de individuos inseridos em configuragées sociais de diversos niveis Segundo a perspectiva que lhe é prépria, cada corrente, ou cada pesquisador, vai por em primeiro lugar um ou outro dos leitmotiven associados ao termo “discurso”, sem com isso excluir os outros, que ficam em segundo plano. A nogao de discurso constitui, assim, uma espécie de invélucro comum para posigdes as vezes fortemente diver- gentes. Estamos mais numa légica do “clima familiar” do que na de um nucleo de sentido que seria comum a todos os usos. Mas, mesmo sendo muito instavel, 0 uso de “discurso” € carre- gado de desafios. Ele permite que os pesquisadores se posicionem, tracem uma fronteira com os procedimentos concorrentes. A natureza dessa fronteira varia, evidentemente, conforme as correntes implica- das. Por exemplo, os adeptos de psicologias de inspiragao discursiv (Potter e Vetherell, 1987; Bronckart, 1996) rejeitarao as concep¢6: da psicologia que, centradas no estudo dos estados mentais de indivi- duos, marginalizam os processos de comunicagao: ‘Aanalise do discurso é uma perspectiva radicalmente nova que tem implica~ Ges sobre o conjunto das questées psicossociolégicas [..] os outros métodos se recusaram a levar em conta ou mascararam o carater ativo, construtor do uso da linguagem na vida cotidiana (Potter e Wetherell, 1987: 6). Vé-se que o emprego de “discurso” tem um duplo alcance. Permit ao mesmo tempo, designar objetos de anilise (“o discurso da impren- sa”, “o discurso dos médicos”...) € mostrar que se adota um determina do ponto de vista sobre eles. Dizer, por exemplo, que esse pantleto ou aquele jornal sto um discurso é também mostrar que eles sdo consi derados como discursos, mobilizadores de certas ideias-forga. Falando do “discurso do panfleto”, indica-se que nao se vaio analisar somen- te contetidos, uma organizagao textual ou procedimentos estilisticos, mas que se vai relacionar este enunciado a um dispositive de comunt cagiio, as normas de uma atividade, aos grupos que dele extraem sua legitimidade etc. Da mesma forma, quando se olha para a literatura 2 Anogao de discurso 29 se levado a contestar a divisao {uas vertentes: uma que se volta outra para 0 contexto (a vida do como discurso (Maingueneau, 2004a), tradicional dos estudos literarios em 4 para 0 texto, encarado em si mesmo, autor, um ou outro aspecto da época na qual ele viveu). j Para dar uma medida da plasticidade do termo “discurso”, con- vyém evitar duas atitudes que poderiam ser qualificadas, uma de “eeti- ca”, outra de “terapéutica”. A atitude cética consiste em renunciar a dar a menor consisténcia semantica a palavra “discurso”, em contentar-se com 0 registro de seus usos, explicando-os pelos interesses dos que a utilizam. A atitude terapéutica, por sua vez, acaba por desqualificar ‘os empregos de “discurso” que nao seriam definidos rigorosamente e univocos. De fato, é inevitavel que, nas ciéncias humanas e sociais, mul tiplas correntes ou disciplinas se alicercem sobre diversas “palavras- -chave”, cujo significado os pesquisadores nao possam controlar to- talmente. E isso é ainda mais evidente quando se trata de uma nogao que atravessa multiplos campos do saber. Da mesma maneira, nos anos 1960, a nogao de “estrutura” oscilava entre os usos relativamente técnicos, particularmente em linguistica, e os usos pouco controlados no conjunto das ciéncias humanas e sociais e na filosofia. O que nado o impediu de renovar as abordagens de varias disciplinas. 2.3 © Teoria do discurso e analise do discurso Quem se considera filiado 4 problematica discursiva associa in- timamente lingua (mais amplamente, os recursos semidticos dispo- niveis em uma sociedade), atividade comunicacional e conhecimento (0s diversos tipos de saberes, individuais e coletivos, mobilizados ne construgéo do sentido dos enunciados). Fazendo isso, a analise do discurso se distingue de outras disciplinas, que privilegiam uma sO das trés dimensées: os socidlogos acentuam a atividade comunice cional; os linguistas privilegiam o estudo das estruturas linguisticas ou textuais; os psicdlogos enfocam as modalidades ¢ as condigdes do conhecimento. Refletir em termos de discurso é, entiio, necessariamente, articy lar espagos disjuntos, como ja o sublinhava Foucault em A argueol gia do saber, quando situava seu empreendimento entre *realidade” © “lingua”, “as palavras” e “as coisas”; 30 Parte | - Estudos de discurso ¢ a Gostaria de mostrar que 0 discurso nao € uma estreita superficie de contato, ‘ou de confronto, entre uma realidade e uma lingua, o intrincamento entre um léxico € uma experiéncia; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os discursos propriamente ditos, vemos se des- fazerem os lacos aparentemente tao fortes entre as palavras € as coisas, ¢ destacar-se um conjunto de regras, proprias da pratica discursiva. Essas regras definem nao a existéncia muda de uma realidade, no 0 uso candnico de um vocabulario, mas o regime dos objetos. [...]. Tarefa que consist em no — nao mais — tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a contetidos ou a representacdes), mas como pra- ticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente, os discursos so feitos de signos; mas o que eles fazem € mais do que utilizar ‘esses signos para designar coisas. Aqui, 0 “discurso” nao é apresentado como um territ6rio cireuns- crito, mas como um espago incerto entre dois maci¢gos, 1a onde se “desfazem os lagos aparentemente tao fortes entre as palavras e as coisas”, entre a linguagem e 0 mundo. A proliferagao incontrolavel da nogao de discurso aparece como o sintoma de uma abertura, nas iiltimas décadas do século XX, desse espago incerto. A situagao dos “discursivistas”, dos especialistas em discurso, esta longe, entao, de ser confortavel. Eles tém de fazer esforgos cons tantes para nao reduzir o discursivo ao linguistico ou, inversamente, para nao deixé-lo ser absorvido pelas realidades sociais ou psicologi- cas. Essa posigdo constitutivamente desconfortavel nao deixa de evo- car o estatuto singular da filosofia. Nao por acaso alguns dos princi- pais inspiradores da andlise do discurso so filosofos, ou pensadores errados em uma disciplina. Como a analise que nao podem ser enc do discurso, a filosofia é um espago de alguma maneira suplementar em relacao as disciplinas que tem um objeto circunscrito; 0 que lhes confere ao mesmo tempo um potencial critico consideravel ¢ as expde & suspeita daqueles que operam no interior de territérios delimitados. Nao é de se estranhar que se tenha desenvolvido uma “teoria do discurso” — distinta da andlise do discurso propriamente dita — que participa da discussao filos6fica. Esta “teoria do discurso” agrupa projetos intelectuais que com- binam de diversas maneiras preocupagées advindas do pés-estrutu- ralismo, dos “cultural studies” e do construtivismo. Eles questionam 2 = Anogio de discurso 31 s, em particular sobre os pressupostos das ciéncias humanas ¢ soc a subjetividade, o sentido, 0 poder, a diferenga sexual, a escrita, & dissidéncia, 0 pés-colonialismo... A principal referéncia, nesse senti- do, é, sem dtvida, Michel Foucault. Podem-se também mencionar os trabalhos de J. Butler (1990, 1997) ou de G. C. Spivak (1987, 1990, 1999) que, no cruzamento da filosofia, do feminismo e do marxis- mo, se dedicam a criticar os paradigmas ocidentais. No dominio das ciéncias politicas, evocaremos a teoria pos-marxista da “hegemonia”, defendida por E. Laclau e C. Moutfe (1985), muito influenciados por L. Althusser e J. Lacan. Essa orientacao filosofica critica esta presente desde as origens dos estudos de discurso. Vimos que, na Franga, no final dos anos 1960, coexistiram abordagens de orientagao linguistica ¢ abordagens como a de M. Pécheux, que visava fundar “uma teoria do diseur- s0 como teoria da determinacao historica dos processos semanticos” (Pécheux e Fuchs, 1975: 8), uma teoria que nao se deixava encerrar em nenhuma disciplina ou teoria constituida, mas que pretendia in- tervir nelas, Pode-se igualmente aproximar dessa “teoria do diseurso” a filosofia da comunicagao de J. Habermas, que desenvolve, com base em uma pragmatica transcendental, uma “¢tica da dis dro de um “agir comunicacional” (1981). Mas a maioria absoluta dos discursivistas nao trabalha no cam- po da teoria do discurso; sdo analistas do discurso, que, com auxilio de miltiplos métodos, estudam corpora. Sao os que me interessam nesta obra. Eles podem ser distribuidos em duas populagdes com objetivos distintos. Para a primeira, a analise do discurso é somente uma caixa de ferramentas no vasto conjunto dos “métodos qualitativos” das ciém cias humanas e sociais. Esses pesquisadores trabalham no interior de gquadros definidos para a disciplina 4 qual pertencem: sociologia, his toria, ciéncias politicas, geografia... Eles apreendem o discurse come: opabe hes oferece indicios que franqueiam ao pesquisador 0 acesse a Tealidades” fora da linguagem. Tal procedimento tende a atenuar & fronteira entre as abordagens propriamente discursivas ¢ outros mete dos qualitativos, especialmente as técnicas de “analise de conteddo™. ssii0” no qua- 1 Neste dominio, ae obra de referéncia ¢ a do especialista americane ds comm niicagao B. Berelson, Content Analysis in Communication Research (1952). Ver tam bém o manual de L. Bardin, L’Analyse de contenu (PUP, 2007, 1977). 32 Parte 1 - Estudos de discurso ¢ andlise do discurso tae con camscet que extraem sentido dos documentos criando categorias ligadas a seu fontetido ou ao contexto de sua produgio (a data ou o lugar de pro: dugaio, 0 Sexo dos produtores etc.). Isto levanta dificuldades; de fato, as problematicas do discurso se legitimaram frequentemente por 0po sigdo aos pressupostos da analise de contetido. £ 0 caso, por exemplo. de M. Pécheux, que a recriminava por pretender “ter ac: do de um segmento do texto, atravessando sua estrutura linguistica” (1969: 4), ou de N. Fairclough, para quem a analise de contetido tem “tendéncia a considerar a linguagem transparente, [...] a crer que 0 contetido social dos dados linguisticos pode ser lido sem prestar aten- gio a linguagem propriamente dita” (1992/2001: 20). A segunda populagao agrupa os analistas do discurso que pode dizer que sao “candnicos”, os que se interessam pela maneira pela qual, em uma sociedade determinada, a ordem social por meio da comunicagao. Eles se esforgam para manter um equi librio entre a reflexio sobre o funcionamento do discurso ¢ a com preenséo de fenémenos de ordem sécio-histérica ou psicologica maioria desses pesquisadores se ancora fortemente nas ciéncias da inguagem. Sua pesquisa pode visar esclarecer uma questo estrita mente discursiva (sobre a definigdo ou a tipologia dos géneros de dis curso, a pertinéncia de tais métodos etc.), mas pode também ter como propésito responder a problemas sociais (em particular de ordem edu cacional, politica, sanitaria) ou de questionar outros campos de saber (por exemplo, 0 que é a filosofia quando apreendida como discurso?) (Cossutta, 1995). 0 ao senti se I se constroi A 2- Anogto ée dcurso 33

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