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STELLA MARIS BORTONI-RICARDO 0 professor pesquisador Introducao a pesquisa qualitativa Os pesquisadores que se pro- Prey eee ee ean cone eny Pe Ret Mecretset ee Tecate nec ea eeetneU ty Tres O que esta acontecendo aqui? Ol ee ecu rene raas pessoas envolvidas nelas? eT Le eS ese tivas interpretativas dos agen- tes envolvidos nessas a eee Oe eee tee te eeu a gees PRC ae Scr ry cael came Cae K ZT pe tenescee Ron Rca Sone ue oe Renee CeO Ren Soe Cae Ratton seen te omer te Coos Ed Quando se voltam para a.andlise CRS ToC OMI Uno ss sm Secs eee cS PYM Cece oS MECOM cele es) do que no produto. Também nao PETE a atre ee CM Tet Rony Te Cater tra -explicativa, mas sim dos signi- Le teehee COR Sector Tea NOM Gop MEE LT eM sate teta tas) OER eel omens Coed CER Meme OM rons ened significativas desses atores. ORES Ea Meee emer ett Core ER eT Econ eretirateae [Perec ates eee ee Rarer fe tonceer nent ens ea SA eae etter ett) Série Estratégias de Ensino 8 EDITOR Marcos Marcionilo ‘CONSELHO EDITORIAL ‘Ana Stahl Zilles (Unisinos} ‘Angela Paiva Dionisio (UFPE] Carios Alberto Faraco [UFPR] Celso Ferrarezt Jt [UNIFAL] Egon de Oliveira Rangel [PUC-SPI Henrique Monteagudo (Universidade de Santiago de Compostela] José Rlbamar Lopes Batista Jr. [UFPUCTF/LPT] Kanavilll Rajagopalan (Unicamp} Marcos Sagno (Un6] ‘Maria Marta Pereira Scherte [UFES Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha] Roxane Rojo [UNICAMP] Salma Tannus Muchail [PUC-SPI Sirio Possenti [UNICAMP] Stella Maris Bortoni-Ricardo Un] Tommaso Raso (UFMG} ‘Vera Lcia Menezes de Oliveira e Paiva [UFMG/CNPq] STELLA MARIS BORTONI-RICARDO 0 professor pesquisador introducao a pesquisa qualitativa Capa e Projeto Grafico: Anoatia Cust0o0 CIP-BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ 8748p Bortoni-Ricardo, Stella Maris, 1945 - © professor pesquisador: introducao & pesquisa qualitativa / Stella Maris Bortoni-Ricardo, - S4o Paulo: Parabola Editorial, 2008, 136 p. ; 23 om. (Estratégias de ensino ; 8) Inclul bibliografia e indice ISBN 978-85-88456-89-1 1. Pesquisa Educacional, 2. Pesquisa - Metodologia . Titulo. Il Série. 08-4698 coo 37078 cou 370154 Direitos reservados & PARABOLA EDITORIAL Rua Dr. Mario Vicente, 394 - Ipiranga (04270-000 So Paulo, SP pabx: [11] 5061-9262 | 5061-8075 | fax: {11] 2589-9263 home page: www.parabolaeditorialcom.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reprodu- ida ou traniitida por qualquer forma e/ou qualsquer melas (eletrénico ou _mecBnico, incluindofotocépiae gravacdo) ou arquivada em qualquer sistema ‘ou banco de dados sem permissao por escrito da Pardbota Editorial Lida ISBN: 978-85-88456-89-1 1° edicdo - 7° reimpressio: novembro de 2020 © do texto: Stella Maris Bortoni-Ricardo, 2008 © da edicdo: Parébola Editorial, S40 Paulo, novembro de 2008 Dedico este livro a meus filhos, a meus netos Sumario Introdugao: A pesquisa cientifica Postulados do paradigma positivista Exemplo de pesquisa quantitativa experimental Postulados do paradigma interpretativista O professor pesquisador As rotinas da pesquisa qualitativa Coleta e andlise de dados Elos entre assergdes e dados Pesquisa colaborativa na formacao continuada de professores Projeto de pesquisa qualitativa . Pré-projetos de pesquisas qualitativas Referéncias bibliograficas Indice onomastico e de assuntos 9 13 19 31 41 49 57 65 71 79 99 . O paradigma de redes sociais para a andlise qualitativa 121 129 133 Introdugao: A pesquisa cientifica ste é um livro de introdugao & metodologia da pesqui- sa qualitativa, dirigido especialmente a professores em atividade e aos professores em formacao inicial e con- tinuada. A medida que o texto foi sendo elaborado, era submetido a apreciagdo de alunos de pés-graduagao em educacado e em lingufstica e a alunos de graduagao do curso de pedagogia'. Muitos episddios de conversa entre a autora e esses leitores cola- boradores foram gravados, e alguns fragmentos da interagao estao incorporados ao texto para que os leitores possam transitar da re- flexdo teérica sobre a pesquisa qualitativa para fragmentos de con- versas coloquiais motivadas pelos temas abordados*. O pensamento cientifico permeia todos os aspectos da vida moderna: o alimento que consumimos é resultado da pesquisa em agronomia para a produgao de cereais, verduras e frutos e da pes- ' Agradeco a meus alunos de pos-graduagao em educacao e em lingufstica e a meus alunos de graduagao em pedagogia, todos da Universidade de Brasilia, que contribut- ram com comentarios ao texto € com a cessao de dados de seus projetos para a ilustra 10 de temas aqui abordados. Este trabalho foi desenvolvido com uma dotagao da Universidade de Bras Funpe, 2006. Participaram do projeto como assistentes de pesquisa as alunas licen- ciandas em pedagogia: Thais de Oliveira e Tatiana de Oliveira ia - (0 PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Sortoni-Ricardo UT quisa genética para a produgao de protefnas animais; a roupa que vestimos, os meios de transporte que usamos, os cuidados com a satide, os eletrodomésticos de que nos servimos e, em especial, os meios de comunicagao — que experimentaram uma verdadeira re- volugao no final do século passado com o desenvolvimento da in- formatica e o advento da internet —, enfim, tudo o que nos cerca em nossa rotina didria é produto da evolugao cientifica. 0 conhecimento do mundo em que vivemos, a Terra e para além dela, alterou-se profundamente com 0 desenvolvimento da as- trofis ica e da tecnologia da exploragao espacial. Da mesma forma, 0 conhecimento de nosso corpo vem se beneficiando constantemente dos progressos das ciéncias fisicas ¢ biolégicas e do refinamento da tecnologia que deles decorre. Também nosso conhecimento sobre as mais diversas culturas humanas, sobre as mais diversas etnias que povoam a Terra vem se acumulando. A educacao e, mais propriamente, o trabalho escolar de ensino e aprendizagem também tém sido objeto de pesquisa sistematica. Por tudo isso, é desejavel que os professores e todos os atores en- volvidos com a educagao tenham uma postura pré-ativa na produ- 40 de conhecimento cientifico (cf. G. Spindler & L. Spindler, 1987; Bogdan & Biklen, 1998). A pesquisa em sala de aula insere-se no campo da pesquisa social e pode ser construida de acorde com um paradigma quan- , que deriva do positivismo, ou com um paradigma qua- litativo, que provém da tradigao epistemoldgica conhecida como interpretativismo. O positivismo e o interpretativismo sao as duas principais tradicdes no desenvolvimento da pesquisa social. O positiv depois importado pelas ciéncias sociais, a partir do inicio do século XIX, desfrutando desde entao de grande prestigio. titati mo comegou a ser empregado nas ciéncias exatas e foi O objetivo deste livro introdutério é permitir que os leitores se apropriem dos principios basicos da metodologia da pesquisa qualitati- va e também estejam aptos a ler, com razoavel compreensao, relatérios de pesquisa em geral e artigos em periddicos cientificos especializados. 10 JILLUIELLETTITITITTITIITLL | INTRODUCAO: A PESQUISA CIENTIFICA OS OBJETIVOS E O PUBLICO LEITOR ©. (letra inicial do nome da aluna) - Ah, sim, primeiro eu queria saber pra quem ... este texto aqui, o publico que vai ser dirigido, se é pras alunas de Projeto 3, ou se é para pes- quisadoras e qual o objetivo deste texto, Assim, pra quem ele foi dirigido, porque eu acho que ficou meio... P (professora) - interlocutor, quem é nosso interlocutor? Quem é nosso leitor? .-E segundo, qual é 0 objetivo deste texto? P. - Perfeito, Todo texto tem que ter... ele é direcionado a alguém, nao 6? Todo texto 6 direcionado a alguém. A... a carta é destinada ao destinatario da carta, o... jornalista que escreve no jornal jé esta se dirigindo aos leitores daquele jor- nal. Al 6 que esta, vocé faz uma pergunta muito instigante e uma critica muito boa ao texto, porque o texto nao, nao...Quem é que eu tinha em mente quando escrevi isso? Entdo, ah.. em principio quem vai ler... Este texto foi direcionado a professores. Agora ah... o que vocé esta sugerindo... ©.- Que a gente primeiro diga a quem o texto se dirige. P, - Se ele se dirigir a professores, vocé acha que esta bem como esté, merece alterag6es? E se ele se dirigir a alunos, pensemos nessa outra possibilidade, se ele se dirigir a alunos, entao quer dizer, professores em formagao inicial, alunos que esto em curso inicial de formagao de professores, Entdo este pode ser um texto lido na formagao inicial e pode ser um texto também para professores que sejam alunos de formacao continuada, ou seja, é um texto para professores em formagao inicial ou continuada. Entao o que nés vamos fazer é definir bem o pu- blico leitor e vamos definir objetivos, que... que vocés acham que eu devo colocar em termo de objetivos? Qual ¢ o objetivo deste texto? T. - Acho que seria ensinar como pode fazer pesquisa, né? Acho que ajuda a fazer uma pesquisa. A. - Ajuda até mesmo nés a fazer um p6s-doutorado. P.- Um pés... um mestrado, ta, um mestrado. T, - E quanto ao piiblico, eu acho que é interessante a gente fazer isso no infcio, porque a gente jé tem uma nogao de como fazer. P.- Ah. Uma sugestao deT,, ela acha que nés podemos... que pode ser no inicio da formagao inicial, né? Durante o século XX, a humanidade avangou mais na produ- Gao de conhecimento cientifico do que em todos os milénios de sua existéncia até agora. As ciéncias, desenvolvidas nas universidades e em centros especializados mantidos pelos governos e pelas grandes corporacoes, estao organizadas em associacoes cientificas, guardidis da tradigao e da fidedignidade da produgao dos cientistas e respon- a (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Borto PUTT Aveis pela intensa divulgacao de seus progressos. Mas nao se pode imaginar que 0 nascedouro das ciéncias seja contemporaneo das modernas tecnologias. O conhecimento cientifico tem avangado jun- tamente com a histéria da humanidade. Contudo, ha alguns perio- dos nessa histéria em que 0 avanco foi mais rapido e mais intenso. Ha muitos registros de atividade cientifica entre os povos an- tigos. Exemplos sao os conhecimentos de astronomia dos maias, pré-colombianos; a técnica de mumificagao e de construgéo das piramides no antigo Egito; a tecnologia nautica entre os fenicios e outros povos navegadores. Mas foram os gregos, no século IV a.C., que usaram extensivamente a escrita para registrar a evolugado de pensamento nas diversas ciéncias. Essa heranga esta, praticamente, nas raizes de todo o acervo cientifico ocidental. Datam dessa época os registros escritos sobre a geometria de Euclides (*360-285 a.C.); a matematica de Arquimedes (*287-+212 a.C.) e a medicina de Hi- pécrates (*460-+377 a.C.) entre muitos outros. Por muitos séculos, 0 Ocidente permaneceu ignorante dos pro- gressos cientificos entre os povos orientais. Quando o viajante vene- ziano Marco Polo (*1254-+1324 d.C.) visitou a China e pafses vizinhos, trouxe consigo informagées e artefatos que surpreenderam a Europa. Encerrada a Idade Média, as nagdes europeias experimen- taram um grande desenvolvimento cientifico. Nos séculos XVI e XVII, Galileu Galilei (*1564-+1642 d.C.) construiu telescépios, ja de grande precisao, e conduziu experiéncias s velocidade e aceleracao. Nesses dois séculos, foram também cons- truidos outros instrumentos para pesquisa, que permitiram o pro- gresso cientifico: microscépios, binéculos e instrumentos nauticos, como astrolabios, mapas e barémetros. obre movimento, peso, Foi ainda Galileu quem ofereceu evidéncias de que a Terra ¢ os demais planetas deste sistema giravam em torno do Sol e refutou a teoria aristotélica de que os corpos pesados caem mais rapidamente que os leves. Conta-se dele a histéria de que havia subido na torre de Pisa e feito sucessivas experiéncias de lancar do alto objetos de pesos diferentes, observando a rapidez de sua queda. Com esse processo de sistematicas experimentagoes, devidamente registradas, Galileu provou que objetos leves e pesados caem na mesma velocidade. 12 Postulados do paradigma positivista ntes de refletir sobre a metodologia da pesquisa qua- litativa, temos de tracar, em esboco, um quadro descri- tivo do conflito das duas vertentes das ciéncias sociais a ‘partir do século XX: a tradigdo logico-empirista— que estamos denominando paradigma positivista — e a tradigao inter- pretativa ou hermenéutico-dialética— que denominamos paradigma interpretativista. A primeira privilegia a razdo analitica, buscando explicagdes causais por meio de relagées lineares entre fendmenos. A segunda pressup6e a superioridade da razao dialética sobre a analiti- cae busca a interpretacao dos significados culturais (J. Hughes, 1980). A tradigao explicativa ou cientificista eswuturou-se a partir do po- sitivismo de Auguste Comte (*1798-+ 1857) no século XIX e vai ter gran- de influéncia em toda a atividade cientifica e cultural, no senso comum e no modo de vida a partir do século XX. De fato, desde meados do século XIX, a teoria da ciéncia comegou a confundir-se com a propria teoria do conhecimento, de tal forma que todo o conhecimento consi- derado legitimo passou a ter sua fundamentagao na pesquisa cientifica. en a ~ Diario de bordo Pesquise em livros ou na internet definicdes para of Pg ~positivismo e interpretativismo. Lembre-se de registrar suas respostas em um caderno ou arquivo digital. 13 (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo SETH Entre os precursores intelectuais da tradigao cientificista, desta- cam-se dois nomes: Francis Bacon (*1561-+1621) e René Descartes (*1596-+1650). Bacon representa a heranca aristotélica do empiris- mo como fonte de conhecimento, enquanto Descartes alinha-se a tra- digdo racionalista platonica. A partir de Bacon, desenvolve-se uma escola que privilegia a experimentacao, a indugdo e a observacao exaustiva. Pertencem a essa escola, entre outros, John Locke (*1632- $1704), David Hume (*1711-+1776) e John Stuart-Mill (*1806-+1873). %, De acordo com o paradigma positivista, a realidade > é apreendida por meio da observagao empirica, As © descobertas se dao pela via da inducdo, que é 0 pro- ~~ c cesso de chegar a regras ¢ leis gerais pela obser- vw we vagao das regularidades. Pode-se também trabalhar ' nesse paradigma pelo processo hipotético-dedutivo, que concilia a interpretagao empirica com as certezas da logica de- dutiva. Para entender melhor os principios que regem a pesquisa positivista, consulte o livro de Pedro Demo, Metodologia cientifi- ca das ciéncias sociais. S40 Paulo: Atlas, 1980. Cf. também o livro de Anténio Gil, Como elaborar projetos de pesquisa. Sao Paulo Atlas, 1988. Para Descartes, por outro lado, a matematica, com seus princi- pios atemporais e imutdveis, era a linguagem mais adequada para guidores os filésofos racio- nalistas como Baruch Spinoza (*1632-+1677) e Gottfried Wilhelm Leibniz (*1646-+1717) que tiveram grande influéncia sobre Comte. a investigagao da natureza. Sao seus s As reflex6es sistematicas sobre a teoria da ciéncia tiveram ini- cio com as afirmag6es ontolégicas dos filésofos gregos no século IV a.C., isto 6, afirmagées sobre tudo o que existe. Relacionadas a reflexao ontoldgica estao as reflexdes epistemoldgicas, a respeito de como o mundo vem a ser conhecido pelo ser humano. E no bojo dessas reflexes epistemolégicas que podemos encontrar as rafzes da teoria das ciéncias, em particular, as raizes do paradigma posi vista, que é marcado pelos seguintes postulados principais: “4 UU» POSTULADOS DO PARADIGMA POSITIVISTA * Certeza sensivel: a realidade consiste naquilo que os senti- dos podem perceber. Na evolugao da historia das ciéncias, foram sendo criados instrumentos, como 0 microscépio, 0 telesc6pio, a radiografia e a ecografia, que ampliam a per- cepcao dos sentidos humanos. © Certeza metédica: a investigagao cientffica procede de acor- do com métodos rigorosos e sistematicos. * Antinomia entre o sujeito cognoscente e o objeto cognosci- vel. A percepgao objetiva do mundo tem de estar dissociada da mente do pesquisador, que nao se apresenta como siste- ma de referéncia. As categorias postuladas devem ser livres de contexto, isto é, independentes das crengas e valores do proprio sujeito cognoscente e de sua comunidade. A ortodoxia positivista também postula uma aversdo 4 metafi- sica e A propria filosofia e prevé uma distingao fundamental entre fato e valor (cf. J. Hughes, 1980). Outra distingdo importante que se constituiu com o avango da teoria da ciéncia foi entre o senso comum e 0 raciocinio cientifico. Este tiltimo pressupée a observancia dos postulados que acabamos de mencionar, especialmente, a certeza metédica, isto é, 0 emprego rigoroso da metodologia cientifica. Por exemplo, se um de nds pas- sa por uma rua e vé uma longa fila formada a frente de um 6rgao governamental de atendimento ao piblico, podera exclamar: “E sé no Brasil que o cidadao precisa ficar em fila para ter seus direi- tos contemplados”. Essa observagéo nao decorre de um rigoroso raciocinio cientifico, 6 apenas uma observacdo baseada no senso comum. Seria dificil confirmar cientificamente a assercao porque terfamos de obter dados empfricos em todos os paises do mundo para confirmar se, de fato, somente no Brasil os cidadaos tém de ficar em fila. Se tal pesquisa fosse realizada, estaria sendo conduzi- da pelo processo de indugo. Dificuldades como essa na produgéo de evidéncia cientifica levaram alguns epistemélogos, como Karl Popper (*1902-+1994) e Thomas Kuhn (*1922-+1996) a repensar a légica subjacente ao modo de fazer ciéncia. Sua contribuicao é co- nhecida como pés-positivismo. 1s ‘PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo HTT Segundo eles, a l6gica de verificacao deve ser trocada por uma logica de falsificacao. Assim, 0 processo de indugao também sera substitufdo pelo processo de dedugao hipotética (Kamberelis & Di- mitriadis, 2005). Seguindo essa reviséo de postulados, seria po vel testar cientificamente a hip6tese sobre as filas no Brasil. Bas- taria para tal comegar a coletar dados em outros paises. Se fosse identificada a existéncia de filas em qualquer outro pais, a hipotese postos, um deles, por exemplo, é que haja uma total... uma precisao total e também um distanciamento total entre 0 sujeito cognoscente, 0 pesquisador, ¢ aquilo que ele est pesquisando, que é 0 objeto cognoscivel. Nas ciéncias exatas, é¢ assim. Nas ciéncias do homem, nas ciéncias humanas, isso ja pode ser mais dificil, porque a simples presenca do pesquisa- dor ja pode alterar o comportamento e a postura de quem esta sendo pesquisa do. Quando surgiu uma alternativa para o paradigma positivista, era justamente uma alternativa que nao buscasse necessariamente a explicagao, de tal maneira gue vocé tenha uma varidvel explicagao e uma varidvel explicada, né? Vocé quer estabelecer uma relagao entre, entre... vejamos, vejamos... entre o consumo de... de agticar e... 0 consumo de agticar, chocolate... e problemas de flutuagao no hu- ‘mor, por exemplo. Ou alguma coisa um pouco mais facil de medir. Ah, consumo de agticar... uma coisa que eu vi esses dias, consumo de refrigerante na base de cola e certos tipos de doenga, t6 tentando me lembrar qual era a daenca, Pepsi- -cola, Coca-cola essas coisas, esses, esses, o consumo desses refrigerantes certas doengas, certo? Consumo de refrigerante como a Coca-cola, Pepsi-cola, né? Ea varidvel explicada seria a doenca que se quer pesquisar, como, por exem- plo, algumas doencas autoimunes, umas doencas assim. Ah... na perspectiva po- sitivista quantifica-se, quer dizer, vocé trabalha com dois grupos, um grupo que esta sendo sub... que consome, séo consumidores é...? (Entdo, qual é a varidvel explicagao?) Consumo de refrigerantes, dividido em dois niveis: restaria “falsificada” e poderia ser descartada. POSTULADOS DA PESQUISA QUANTITATIVA-1 P. - O positivismo foi justamente 0 que vocés leram: ele < tem alguns principios, algumas premissas, alguns pressu- Um grupo que consome um alto nivel de refrigerantes e um outro que nao con- some e depois, durante um periodo, e depois vocé vai ver a incidéncia daquela moléstia, se o consumo de tal refrigerante é... teve uma, uma, uma consequén- cia na incidéncia daquela doenga. Isso é uma possibilidade, entao 0 que se faz? 16 [JUTHITEIITIIIITHIL POSTULADOS DO PARADIGMA POSITIVISTA Geralmente faz-se assim, vocé tem um... dois grupos, um que esta consumindo bastante aquele produto, outro que nao consome e ai depois ambos os grupos s4o acompanhados pra ver qual foi 0... 0 resultado em termos daquela doenga. Ah... como € que se faz isso? Faz-se assim: primeiro vocé tem um grupo que consome muito, altas doses, e pode ter um grupo que consome medianamente e um grupo que nao consome, vocé quantifica o consumo, Ou voce pode ter dois grupos, um que consome, outro que nao consome. E depois vocé vai avaliando, vai contando também quantas pessoas do, daquela amostra total adoeceram e ai vai ver se houve uma correlag&o positiva entre o consumo do refrigerante e a doenga. Isso quer dizer, se aquele grupo que consumiu mais adoeceu mais, quem consumiu menos adoeceu menos. Se isso aconteceu... ndo é em termo de grupo, é de quan- tos membros daquele grupo adoeceram, né, Depois se faz uma, uma... um teste estatistico pra ver se aquela correlagdo ndo é uma... Nao pode ser atribuida ao simples acaso, ao simples azar. Uma coisa que poderia ter acontecido de qual- quer forma. Se ha uma comprovacao estatistica de que aquela correlacao existe. SO oe _ Didrio de bordo ¥ Para fixar 0 que aprendemos até aqui, responda a Ff --pergunta: o que caracteriza uma pesquisa cientifica A x ho Ambito do paradigma.positivista? Dé exenyplos A ortodoxia positivista valoriza o pensamento cientifico e con- sidera o senso comum destituido de qualquer valor significativo. Mas, a partir do século XX, acompanhando as criticas a essa or- todoxia, surge uma tendéncia a se conferir relevancia também ao senso comum. Considera-se que esse é diferente em sua natureza do processo cientifico, mas é importante nas culturas humanas. Ve- jamos um exemplo: de acordo com o Cédigo de Transito Brasileiro, podem-se evitar colisées e atropelamento calculando-se a distan- cia entre um carro ¢ o veiculo da frente, denominada distancia de seguimento. E possivel calcular essa distancia por meio de uma complicada formula cientifica (matematica), que leva em conta a velocidade dos veiculos em questao, 0 seu peso ¢ comprimento, o atrito com a superficie da via, a velocidade do vento, entre outros s quando estamos no tran- sito, podemos, alternativamente, prevenir colis6es com vefculos 4 fatores. Como nao é€ vidvel fazer calculo: v7 (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo PUTO frente usando 0 senso comum, isto é, mantendo um espago razoa- vel entre os dois vefculos. A medida que se aumenta a velocidade, essa distancia também tem de ser aumentada. JA vimos que 0 senso comum na vida contemporanea também é influenciado pelo pensamento cientifico. Ja vimos também que esses dois tipos de conhecimento sao distintos. O ponto que esta- mos defendendo aqui é que 0 senso comum representa uma dimen- séo do conhecimento que nao deve ser descartada como primitiva ou produto da ignorancia. Pelo contrario, 0 senso comum é um componente valioso em nosso conhecimento de mundo. O cientis- ta social pode valer-se dele para interpretar as agdes socialmente organizadas e a forma como 0s atores sociais as veem, posicionam- -se em seu interior e constroem seu sistema de interpretacao. Por 0 de conhecimentos exemplo, ao examinar como se da a transmi: de uma geracao para a geragao seguinte, tanto nas familias quanto nas escolas, os pesquisadores vao levar em conta evidéncias cientifi- camente comprovadas, mas também a influéncia do senso comum. A pesquisa que segue o paradigma positivista pode ser experi- mental ou nao experimental. Em ambas, o pesquisador esta procu- rando relagées causais entre dois ou mais fendmenos, isto é, entre variaveis. Ele procura explicar a varidvel denominada dependente (ou variavel explicada) estabelecendo uma conexéo com uma ou mais varidveis independentes (ou varidveis explicagéio). Podemos dizer também que, com essa metodologia, o pesquisador esta bus- cando uma correlagaéo entre os fenémenos, mais propriamente, uma variacéo concomitante: alterando-se o fendmeno antecedente — varidvel independente — é de se esperar uma alteragao paralela no fenémeno consequente — varidvel dependente. Quando se ob- tém evidéncia confidvel dessa relagao, pode-se generalizar a evidén- cia para casos andlogos. Na pesquisa experimental, também denominada pesquisa de la- boratério, ha um alto grau de controle sobre as variaveis. O pesqui- sador tem de controlar as diversas varidveis independentes, ou os di- versos niveis de uma varidvel independente, para que possa estabele- cer com certeza a relagao causal entre eles ¢ o fendmeno pesquisado. 18 Exemplo de pesquisa quantitativa experimental Tirvio na Pesautsa: Reagées de falantes de portugués A concordancia ver- bal nao padrao'. sileiro contemporaneo, ha uma tendéncia a Jusniricariva: no portugués nao se fazer concordancia entre sujeitos plurais de 3° pessoa e a forma verbal a eles relacionada. © fendmeno constitui uma regra varidvel porque convi- variante tradicional, pre- jadaos do Timor foram vemos com duas realizagées dessa concordancia: ta pela gramatica normativa (por exemplo: “Os ontem As urnas”) ¢ a variante substituta, que é muito empregada, principal- mente em nossas interagées informais (por exemplo: “Chegou uns envelopes pra voce”), regra varidvel de concordancia verbal tem sido mui- to estudada por sociolinguistas em universidades brasileiras, como Anthony Naro, Marta Scherre e Maria Luiza Braga (cf. Scherre, 2005). Esses estu- dos mostram que a escolha entre uma variante ou outra nado 6 com- ar mais a variante tradicional pletamente aleatéria. Tendemos a u: quando a forma verbal de 3* pessoa do plural é mais distinta da forma verbal de 3* pessoa do singular (por exemplo: “ele foi/ eles ' Exemplo baseado na primeira parte da dissertagao homOnima de mestrado apre- sentada por Stella Maris Bortoni-Ricardo ao programa de pés-graduagao em linguis- tica da Universidade de Brasilia em agosto de 1977. A autora agradece a Luiz Pasquali pela supervisio dos procedimentos metodolégicos da pesquisa. 19 © PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Borteni-Ricardo: CUE foram”; “ela vai/ eles vao"). Também tendemos a usar essa variante tradicional quando o sujeito é um ente animado e quando vem ime- diatamente antes do verbo. Em resumo, os especialistas demonstra- ram que usamos mais a concordancia verbal prevista na gramatica normativa em contextos que sao mais salientes, mais perceptiveis. Em contextos menos perceptiveis, ha uma maior ocorréncia da va- riante substituta, que nao é abonada por essa gramatica. O conceito da saliéncia, tao importante no uso dessa regra vari- vel, parece estar diretamente relacionado ao conhecimento que os falantes tém da gramatica normativa. Usando 0 senso comum, pode- mos prever que falantes com maior grau de escolarizacao tenderao a usar mais a variante tradicional da regra que falantes com menor grau de escolarizacao, se as demais circunstancias se mantiverem iguais em ambos os casos. Foi para confirmar essa asser¢ao, construida com base no senso comum, que realizamos esta pesquisa quantitativa ex- perimental sobre as reagdes dos falantes as duas variantes da regra. MeropoLocia: a metodologia consistiu numa variagao da técni- ca de estudos de atitudes denominada no Canada “matched guise”, em que os estimulos foram gravados por uma tinica pessoa e apre- sentados oralmente. Foram observadas as condigdes basicas para a anélise de varidncia, ou seja, os tratamentos foram aplicados em amostras independentes, garantindo-se sua homogeneidade por meio de escolha aleatéria. VariAveEIs: na pesquisa foram estabelecidas as seguintes varia- veis independentes: a) dialeto padrao e dialeto nao padrao b) escolaridade A variavel es : universita- colaridade compreendeu dois nivei rios e alunos de supletivo. A varidvel dependente consistiu na percepeao da concordancia nao padrao (variante substituta), medida por meio de uma escala de sete pontos. DEFINICOES OPERACIONAIS: para efeito da pesquisa, as varidveis re- ceberam as seguintes definigdes operaciona’ 20 SIMI EXEMPLO DE PESQUISA QUANTITATIVA EXPERIMENTAL a) Dialeto padr&o: nove sentengas da norma culta do portu- gués brasileiro onde nao se verifica a ocorréncia de qualquer variante nao padrao de regras variaveis. b) Dialeto nao padrao: as mesmas nove sentence empregada a variante substituta da regra varidvel de concor- nas quais foi dancia verbal, que nao € abonada pela gramatica normativa. c) Universitarios: alunos calouros de diversos cursos da Uni- versidade de Brasilia. d) Alunos do curso supletivo noturno da Escola Classe da Su- perquadra Norte 411, em Brasilia. e) Percepeaio da concordancia nao padrao indicada numa es- cala de 7 pontos, na qual a extremidade 1 correspondia a “absolutamente correto” e a extremidade 7 a “absolutamen- te incorreto”. Quanto mais proximo da avaliacdo 7, maior a estigmatizacao. DESENHO DA PESOUISA: a pesquisa seguiu o seguinte delineamento Escolaridade Diaietos padrao nao padrao Universitarios @-u 1-u Supletivistas @-s 1-s Figura 1, Del reamento da pesquisa Na figura acima, tem Grupo @ — u: Universitarios que ouviram o dialeto padrao Grupo @ - s: Alunos de supletivo que ouviram o dialeto padrao Grupo 1 - u: Universitarios que ouviram 0 dialeto nao padrao Grupo 1 -s: Alunos de supletivo que ouviram o dialeto nao padrao ‘Hiroreses: foram postuladas para a pesquisa as seguintes hipoteses: a) De efeito principal de dialetos Hi= Qu+@s < lusts 2 2 Independentemente da escolarizacao do sujeito, o dialeto pa- dro ser menos estigmatizado do que o dialeto nao padrao. b) De efeito principal de escolarizacao 21 ‘© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo TOE H'= @u+lu > Qs+Is 2 2 Independentemente do dialeto, os universitarios estigmatiza- rao mais a concordancia verbal ndo padrao do que os alunos do curso supletivo. c) Hipstese nula H’= Qu+ts = lu+Os 2 2 Nao havera efeito de interacao entre dialetos e escolarizag4o sobre a percepgao da concordancia nao padrao, visto que o dialeto padrao serd menos estigmatizado do que o dialeto nao padrao, tanto entre os sujeitos universitarios quanto entre os sujeitos de curso supletivo. —*— Universitarios —+—Supletivistas os norkaan Padrao Nao Padrao Figura 2, Demonstrago das hipéteses Amosrra: 0 universo da pesquisa é a populagao brasileira adulta residente em Brasilia, que frequenta universidade e curso supletivo. A amostra se constituiu de 24 alunos (11 homens e 13 mulhe- res) da disciplina introdutéria de produg4o de textos aberta para alunos de todos os cursos da Universidade de Brasilia, escolhidos por meio de sorteio aleatério, e 24 alunos (11 homens e 13 mulhe- res) de curso supletivo noturno da Escola Classe da Superquadra 411 Norte em Brasilia, igualmente escolhidos por meio de sorteio aleatorio. A média de idade do primeiro grupo era de 20 anos e seis meses ¢ a do segundo grupo de 25 anos e sete meses. 2 ILLITE EXEMPLO DE PESQUISA QUANTITATIVA EXPERIMENTAL a se oe Didrio de bordo Pesquise na internet ou em um livro de introduciio “Gi estatistica o que é “sorteio aleatério”. INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS: a) Da amostra: Na turma da disciplina referida foram sorteados 24 alunos. Os alunos de ntimeros pares ouviram o tratamento zero (@: sentengas do dialeto padrao). Os de ntimero impar ouviram 0 tratamento um (1: sentengas do dialeto nao padraio). O mesmo procedimento foi adotado na turma de supletivistas. b) Da variavel independente: Foram gravados por uma professora de lingua portuguesa, em um ambiente a prova de ruido, dois textos compostos de nove sen- tengas cada um. As sentengas dos dois textos so idénticas, exceto pelo Lato de que, no segundo, havia uma ocorréncia da variante nao padrao da regra de concordancia verbal’. O primeiro texto ficou assim constituido: 1. Quando acordei, os raios de sol penetravam pelas frestas do barracao. 2. As aves devem ser mais felizes do que nés. Acho que entre elas existem amizade e igualdade. 3. A vida numa casa sem conforto e a falta de boa alimentagao trazem problemas para o desenvolvimento da crianga. 4. Nem quando sao consultados, eles se exaltam ou provocam briga. Nao fazem estas pessoas nenhuma arruaca na favela. 5. Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo querem saber. A lingua delas € como os pés de galinha que espalham tudo. 6. Estas criangas sao as mais maltrapilhas da cidade. O que elas vao encontrando nas ruas vao comendo. As sentencas foram retiradas do livro de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo. ‘Sao Paulo: Francisco Alves Editora, 1960. 23 © PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo COC 7. Em janeiro, quando as Aguas que desceram do morro invadi- ram os armazéns, vi os homens jogando sacos de arroz no rio. 8. Eu me levantei as 7 horas. Estava alegre e contente. Depois é que vieram os aborrecimentos. 9. Minha falecida mae era muito boa. Queria que eu fosse professora. Isso foi o que me disseram minhas tias que a conheceram. O segundo texto ficou assim: 1. Quando acordei, os raios de sol penetrava pelas frestas do barracao. 2. As aves devem ser mais felizes do que nds. Acho que entre elas existe amizade e igualdade. 3. Avida numa casa sem conforto e a falta de boa alimentagao traz problemas para o desenvolvimento da crianga. 4, Nem quando sao consultados, eles se exaltam ou provocam briga. Nao faz estas pessoas nenhuma arruaga na favela. 5. Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer saber. A lingua delas é como os pés de galinha que espalham tudo. 6. Estas criangas séo as mais maltrapilhas da cidade. O que elas vao encontrando nas ruas vai comendo. 7. Em janeiro, quando as Aguas que desceram do morro invadiu os armazéns, vi os homens jogando sacos de arroz no rio. 8. Eu me levantei as 7 horas. Estava alegre e contente. Depois € que veio os aborrecimentos. 9. Minha falecida mae era muito boa. Queria que eu fosse profes- sora. Isso foi o que me disse minhas tias que a conheceram. c) Da varidvel dependente: Os sujeitos receberam um questionadrio com as instrugées es- critas, onde indicaram sua idade, sexo e o curso. Em seguida, ouvi- onde, & extremidade 1 foi arbitrada a avaliagdo “absolutamente correta” ram a gravacao e a avaliaram usando uma escala de 7 pontos eA extremidade 7, a avaliagao “absolutamente incorreta”. Além das instrug6es escritas, os sujeitos ouviram, antes da audigdo das sen- tengas, as seguintes instrugdes gravadas pelo mesmo falante: 24 (JULIETTE EXEMPLO DE PESQUISA QUANTITATIVA EXPERIMENTAL “Vocé vai ouvir, apenas uma vez, a leitura de 9 sentengas isola- das, retiradas de um texto. Preste bastante atencdo e, quando ter- minar de ouvir as sentengas, dé sua avaliag&io quanto a correcéo delas, assinalando apenas um item da escala que vocé encontra na folha que recebeu. Vocé esta avaliando a corregao gramatical. Nao se preocupe com 0 contetido”. Ambos os grupos, divididos em subgrupos de 6 alunos, ouvi- ram as gravacées em ambiente a prova de rufdo, usando audio- fones. Dessa maneira, as condigdes de aplicagao do experimento foram homogeneizadas 0 mais possivel. A mesma pesquisadora conduziu todos os eventos. ANALISE DOs pabos: os dados obtidos no experimento estao des- critos nas tabelas 1 e 2 seguintes e no grafico ntimero 2. Escolaridade Soma dos escores | Média Universitarios 36 3,0 Supletivistas 34 28 Tabela 1, Resultados para o dialeto padrao Escolaridade Soma dos escores_| Média Universitarios 68 56 Supletivistas 30 2.5 Tabela 2, Resultados para o dialeto nao padrao Os dados foram analisados por meio de um procedimento es- tatistico denominado anilise de variancia. A andlise confirmou que existe efeito principal da variavel dialeto. O dialeto padrao (média = 2,9) foi avaliado como sendo mais correto que o dialeto nao padrao (média = 4,05). A hipétese foi confirmada ao nfvel de significancia p< 0,01, isto 6, ha somente 1% de possibilidade de que a diferenga nas médias deva ser atribufda ao acaso. Foi, portanto, rejeitada a hipétese nula ao nivel de 0.01 de significancia. Encontrou-se também efeito principal da varidvel escolari- dade. Os universitdrios apresentaram uma média de avaliagao de 4,3, superior apresentada pelos supletivistas, de 2,7. A hipétese nula referente a varidvel escolaridade foi rejeitada ao nivel de 0,01 de significancia. Isso indica que a distingao entre os dois dialetos 25 O PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo CUCU ocorre significativamente mais entre falantes universitarios do que entre falantes do curso supletivo. Foi encontrado também efeito de interagao entre as duas varia- veis independentes porque, ao contrario do que se havia previsto, 0 dialeto padrao nao foi mais bem avaliado do que o dialeto nao pa- drao em ambos os grupos. A percepgao das diferencas entre os dois dialetos, representadas pelo emprego das variantes da regra de con- cordancia verbal, ocorreu entre os universitarios, mas nao ocorreu entre os supletivistas. Os resultados estao apresentados na figura 3 a seguir, em que se pode observar que, para os universitarios, ha uma grande distancia na avaliagdo dos dialetos. Para os supletivistas, a distancia na avaliacéo desses dialetos é muito pequena. A figura 3 mostra ainda 0 efeito de interacao na sobreposi¢ao das linhas. —s—Padrao —+—Nao padrao oa NoRaD Universitarios Supletivistas Figura 3, Relagao entre escolaridade e dialetos sobre a avaliagao da variante nao padrao da regra de concordancia verbal A pesquisa que descrevemos permitiu demonstrar que a per- cepcao do uso das duas variantes da regra variavel de concordancia verbal depende do nivel de escolarizacao dos falantes. Para falantes com nivel mais alto de escolarizagao, a regra é mais saliente que para falantes com pouca escolarizagao. Ja vimos no capitulo anterior que a pesquisa quantitativa pode ser de natureza experimental, como a que acabamos de ilustrar, e nao experimental. Nessa ultima, as varidveis nao podem ser contro- ladas. Apenas se constata sua existéncia em seu ambiente natural. Por isso esse tipo de pesquisa também é chamado de pesquisa ex post facto (depois do fato, ou seja, considerando-se 0 fato preexistente). 26 . ILLITE EXEMPLO DE PESQUISA QUANTITATIVA EXPERIMENTAL PESQUISA QUANTITATIVA NAO EXPERIMENTAL (ex post facto) - 1 P.—Houve um momento que eu queria chamar a atengfo de voces, aqui na p. 3: "Pode-se conduzir uma pesquisa quan- itiva para se explicar a relagaio que existe entre o grau de escolaridade dos pais e 0 desempenho dos alunos em testes de interpretacao de leitura, como 0 SAEB". Af o que nés queremos saber? Se ha uma correlagao entre 0s dois fendmenos. O grau de escolaridade dos pais sera a varidvel explica- go, que também é chamada de independente. O desempenho é a variavel expli- cada, ou dependente. Ah... é muito possivel que os testes estatisticos entre esses: dois fenémenos, entre os dados referentes ao nivel de escolarizacao dos pais @ 08 dados referentes ao resultado do SAEB, mostrem que ha uma correlagao positiva, essa pesquisa vai constatar de forma sistematica uma correlagao, né? PESQUISA QUANTITATIVA NAO EXPERIMENTAL (ex post facto) - 2 C.- Eu também relacionei, gostei deste texto, relacionei com outra matéria que eu fiz. Era uma pesquisa quantitati- va, ea gente colheu dados, fez uma pesquisa bibliografica e foi... foi muito interessante pra mim essa experiéncia pra poder entender a pesquisa quantitativa e esse projeto também... P- Qual era a tematica? C.- O meu foi a influéncia... a influéncia dos pais, a influéncia socioeconémica na... agora eu me esqueci, até escrevi aqui. E, a influéncia socioeconémica... P.-A influencia do status socioeconémico dos pais. C.-Isso, 6 P- No rendimento das criangas? C-E, No- nao, nao, no rendimento no, lembrei, agora eu me lembrei. A influéncia dos pais na escolha do curso. Na escolha pro curso da faculdade, eu fiz isso, a gente fez pesquisa aqui, aqui na pedagogia e lé na medicina pra saber por que eles escolheram isso. Qual era o intuito deles com esse curso, né? E ver se os pais deles influenciam nisso. Af eu consegui entender. P- E qual fol a sua conclusao da pesquisa? Na pesquisa quantitativa que voce fez? C- Na pesquisa quantitativa? Que, assim, tem certa influéncia dos pais no caso dos médicos, dos que escolhem medicina tem certa influéncia quando tem pais médicos ¢ tal e tem influéncias socioeconémicas sim. A gente vé que aqui na pe- dagogia tem mais alunos que... que assim, sao de mais de baixa renda, porque nao t@m oportunidade. E como 0 curso de pedagogia ele é mais acessivel, ai escolhem ‘o.curso de pedagogia, né? E mais acessivel por causa da nota, do vestibular. 27 © PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo Tn PESQUISA QUANTITATIVA NAO EXPERIMENTAL (ex post facto) -3 P. - Porque, no paradigma positivista, vamos... néds vamos < medir, criar medidas, escalas de medidas. Entao temos la, “criangas cujos pais tém até a 4° série, criangas...tém até a 8 série, criangas cujos pais tém ensino médio, criangas cujos pais tém curso superior, Ai nés teremos 4 grupos, e vamos usar algum instru- mento, pode ser até o proprio SAEB, pra ver 0 desempenho médio dos quatro grupos, e vamos procurar relacionar estatisticamente esses desempenhos, ver se ha diferencas, se a diferenca na média dos quatro grupos é significativa. Pra isso existem testes. Se a diferenga dos quatro grupos for significativa, estatis- ticamente significativa, nés vamos ter uma... uma indicagao bastante robusta de que a diferenga na escolaridade dos pais ¢... tem implicagées na leitura, na capacidade de leitura dos meninos. PESQUISA QUANTITATIVA NAO EXPERIMENTAL (ex post facto) - 4 P. - Agora vocés vejam a pesquisa quantitativa, nés esta- mos sempre estabelecendo uma relagao entre dois fend- menos, que a gente chama de: varidvel explicagao e variavel explicada, né? Entao o que a gente acaba querendo saber é se aquela varidvel explicagao realmente explica 0 que se passa com a varidvel que nés queremos explicar. Quem é que pode dar um exemplo? C. - Eu té fazendo um outro projeto de pesquisa e a gente... eu t6 trabalhando com... com ntimeros, por exemplo, diferenga de g@nero ao assistir televisdo, os pro- gramas. Eaf pelo que eu ja percebi a minha pesquisa td mais pro lado quantitativo. P.- Esse levantamento quantitativo, bem preliminar, porque nao é uma pesquisa quantitativa experimental propriamente, é uma... 6 uma contagem. Vocé esta né, voc esta vendo quantas criancas... Vocé esta trabalhando com um ntimero de criangas... como é que 6? Quantas criangas? C.- Sao 15 meninas e 18 meninos. P, - 15 meninas e 18 meninos. E ai vocé estd vendo quais os programas que as meninas assistem e quais os que os meninos assistem. C.-E. P. - E af vocé esta tabulando, né? “Meninas” ai voc8 pée os programas e faz aquela tabela e soma né, e chega @ conclusao que as meninas assistem mais tais programas. Ah, entao, como vocé falou, a gente pode comecar um trabalho 28 IIMITIIIIIIEIIL EXEMPLO DE PESQUISA QUANTITATIVA EXPERIMENTAL fazendo um levantamento e a gente pode e deve, porque uma forma de nés ini- ciarmos uma pesquisa é a gente refletir sobre isso. Além de refletir e ler, a gen- te pode também procurar levantar alguns dados. Esse levantamento de dados, para comecar, pode ser um levantamento de natureza quantitativa no sentido de n6s estarmos contando, entao ainda nao estamos usando técnicas estatisticas, nds estamos apenas contando,/.../ Que mais que voce poderia enfocar na sua pesquisa? Idade? Talvez nao, porque vocé definiu uma faixa etaria. Poderiamos trabalhar também 0 qué? Classe social: classe trabalhadora, classe média etc. E nesse caso terfamos estas varidveis, por exemplo, género, faixa etaria, classe social e até zona de residéncia. Se vocé quiser ver o que acontece aqui no Plano Piloto, comparando com que acontece em Santa Maria, por exemplo, ou em Sa- mambaia ou em outra cidade qualquer... Essas varidveis, no caso, seriam varia- veis explicagdo ¢ a varidvel explicada seria a escolha do programa 29 Postulados do paradigma interpretativista o inicio dos anos 1920, um grupo de pensadores, entre os quais devemos nomear Theodor Adorno (*1903-71969) e Jiirgen Habermas (*1929-), se reti- ne na chamada Escola de Frankfurt e apresenta as primeiras criticas sistematicas ao positivismo classico de Comte e ao neopositivismo que se constituiu nessa época em torno de ou- tros pensadores, como Ernst Mach (*1838-+1916) e Rudolf Carnap (*1891-+1970), permitindo a emergéncia de um paradigma alterna- tivo para se fazer ciéncia: o paradigma interpretativista. Ao desenvolver uma filosofia positivista, Auguste Comte (*1798- +1857) propés que as ciéncias sociais e humanas deveriam usar os mesmos métodos e os mesmos princ{pios epistemolégicos que guiam a pesquisa das ciéncias exatas. A reacdo a essa postura veio, entao, no inicio do século XX. Argumentavam os criticos de Comte e de seus seguidores que a compreensao nas iéncias sociais nao poderia negligenciar 0 contexto sécio-histérico, como, por exem- plo, o grande impacto do desenvolvimento da tecnologia, que al- terou as rotinas tradicionais. Citando Eric Vogelin, Hughes (1980, 109) afirma: Quando 0 te6rico aborda a realidade social, encontra 0 campo anteci- padamente ocupado pelo que pode ser chamado de autointerpretagaio da sociedade. A sociedade humana nao é meramente um fato, ou um. 31 © PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo |THE acontecimento do mundo exterior, a ser estudado por um observa- dor como um fenémeno natural... E um pequeno mundo integral, um cosmos, iluminado de significado a partir de seu interior pelos seres humanos que incessantemente 0 criam e conduzem como forma e condigao da sua autorrealizagao. Na mesma linha de pensamento, rejeitando a sociologia posi- tivista fragmentaria, baseada na metodologia das pesquisas de sur- veys (levantamentos), Silverman (1972, p. 4) assim apresenta 0 foco da sociologia: Nosso foco é particularmente 6 mundo partilhado de significados so- ciais, por meio dos quais a aco social (entendida no sentido de Weber como toda agao que leva em conta os motivos dos outros) é gerada € interpretada. Como socidlogos /.../, procuramos, entender as regras utilizadas para localizar (fixar tos e pensamentos dos outros. gnificados nas ages, expressdes, ges- Segundo o paradigma interpretativista, surgido como uma al- ternativa ao positivismo, nao ha como observar 0 mundo indepen- dentemente das praticas sociais e significados vigentes. Ademai ,€ principalmente, a capacidade de compreensao do observador esta enraizada em seus proprios significados, pois ele (ou ela) nao é um relator passivo, mas um agente ativo. Esse e outros postulados do paradigma qualitativo serao retomados ao longo deste livro em nossa reflexdio sobre a pesquisa qualitativa e, muito particularmen- te, sobre a pesquisa etnografica. Na area da pesquisa educacional, o paradigma positivista, de natureza quantitativa, sempre teve maior prestfgio, acompanhando © que ocorria nas ciéncias sociais em geral. No entanto, as escolas, e especialmente as salas de aula, provaram ser espacos privilegia- dos para a conducao de pesquisa qualitativa, que se constréi com base no interpretativismo. Nos pr6ximos capitulos, vamos aprofundar essa reflexao, espe- cialmente a que os professores poderao conjugar com seu trabalho pedagégico. O docente que consegue associar o trabalho de pesqui- sa a seu fazer pedagégico, tornando-se um professor pesquisador de sua prépria pratica ou das praticas pedagégicas com as quais 32 LLL POSTULADOS DO PARADIGMA INTERPRETATIVISTA convive, estara no caminho de aperfeicoar-se profissionalmente, desenvolvendo uma melhor compreensao de suas agdes como me- diador de conhecimentos e de seu processo interacional com os educandos. Vai também ter uma melhor compreensao do processo de ensino e de aprendizagem. CONCILIAGAO ENTRE PESQUISA QUANTITATIVA E PESQUISA QUALITATIVA P.- Bem, assim é que se trabalha no paradigma positivista. Parece bom. Por que entao trabalharmos com 0 paradigma interpretativista? Porque o interpretativismo, nés vamos fa- lar muito dele, pode complementar dimensdes que nao fiquem claras no controle de variaveis, principalmente se estivermos trabalhando em sala de aula, Por exemplo, se quisermos estabelecer correlagao entre pais separados, que nao vivem juntos, o pai e a mae que nao vivem juntos, e o desempenho do alu- no... Sera possivel estabelecer uma correlagao entre esses dois fenémenos? Pais que sao tradicionais, 0 pai e a mae numa casa, e casais que nao tém mais esse vinculo ou que se constituiram em novos casais etc. E ai a pessoa quer ver se ha uma correlacao entre o status, ah... marital dos pais e o desempenho dos filhos. E complicadissimo, muito complicado. Porque se vocé... vocé vai... talvez, 86 medir, ver quantos... talvez nao seja muito aconselhavel... uma pesquisa interpretativis- ta permitiria o qué? Permitiria que vocé trabalhasse com a....turma e fosse exami- nando, é... acompanhando... o desempenho daquelas... daquelas criangas, em lei tura por exemplo. E depois se voc8 fosse percebendo, por exemplo: a aluna Rosa No caso dela, 0s pais vivem juntos, mas ela teve um desempenho muito ruim, mas vamos ver que outras circunstancias... vamos tentar interpretar pra entender que outras circunstancias podem estar afetando, né? Além disso, a pesquisa qualita- tiva permite que se pesquise momento a momento, a gente grava, a gente filma, para fazer uma andlise, porque esses fendmenos, como por exemplo, o bom apro- veitamento, nao se dao assim no vacuo, eles se dao no dia-a-dia, e essa pesquisa qualitativa permite a... acompanhar melhor, certo? Analisar assim um grupo. Ver o que eles efetivamente esto... como é que eles efetivamente esto... o que é que esta acontecendo com eles, né? Sob a denominagdo interpretativismo, podemos encontrar um conjunto de métodos e praticas empregados na pesquisa qualitativa, tais como: pesquisa etnografica, observagdo participante, estudo de caso, interacionismo simbélico, pesquisa fenomenolégica e pesquisa construtivista, entre outros. Interpretativismo é uma boa denomina- 33 O PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo CUTE cdo geral porque todos esses métodos tem em comum um compro- s sociais e com o significado que misso com a interpretag&o das ag as pessoas conferem a essas agdes na vida social (cf. Erickson,1990). A pesquisa quantitativa procura estabelecer relagées de causa e consequéncia entre um fenémeno antecedente, que é a varidvel explicacdo, também chamada de varidvel independente, e um fend: meno consequente, que é a varidvel dependente. Ja a pesquisa qua- sas relagées de causa e consequéncia causais que podem ter Ao. A pesquisa qualitativa procura en- litativa ndo se propée testar es entre fenémenos, nem tampouco gerar leis um alto grau de general) interpretar fendmenos s 72 is inseridos em um contexto. tender, t Didrio de bordo k Na pesquisa quantitativa, trabalha-se com varidveis procurando estabelecer uma relacdo entre elas. A varidvel dependente ¢ a que é explicada: a varidvel independente € a explicaciio. Na pes- quisa qualitativa, nao se procura observar a influéncia de uma varidvel em outra. O pesquisador esta interessado em um pro- cesso que ocorre em determinado ambiente e quer saber como os atores sociais envolvidos nesse processo 0 percebem, ou seja: como o interpretam. 4 Para que essas diferengas fiquem mais claras, vejamos mais um exemplo: pode-se conduzir uma pesquisa quantitativa para explicar a relagdo entre o grau de escolaridade dos pais e o desempenho de alunos em testes de interpretacaio de leitura, como o SAEB. A pesqui- sa ser delineada para verificar se ha de fato uma correlagao entre fenomenos. O grau de escolaridade dos pais sera a varidvel siderada entao variével independente. os doi que fornece a explicas O desempenho dos alunos é a variavel explicada, ou variavel depen- dente. E muito possivel que os testes estatisticos entre os dados re- ferentes ao nivel de escolarizagao dos pais ¢ os dados referentes ao resultado do SAEB mostrem que ha uma correlagao positiva entre esses dois conjuntos de dados: pais com alto nivel de escolarizagao 10, COr 34 HHIIMIIIIIITIIILIL » POSTULADOS DO PARADIGMA INTERPRETATIVISTA > filhos com bom desempenho nos testes. Essa pesquisa vai consta- tar de forma sistematica, e comprovada por meio de ntimeros, mais um efeito perverso do cardter intergeracional das injusticas sociais na comunidade. Isto é, familias pobres tém indices mais baixos de escolaridade e esse problema tende a se perpetuar na medida em que seus filhos tenderao a ter um desempenho escolar menos expressivo. Uma pesquisa como essa, de natureza macrossocial, pode ser complementada com uma pesquisa qualitativa, que se voltara para uum microcosmo, uma sala de aula, por exemplo. A motivagao para se produzir uma pesquisa qualitativa voltada para 0 mesmo problema jd identificado deriva da cor.vicgao de que os efeitos nefastos interge- racionais da mA distribuicao de renda no aproveitamento escolar de alunos no pais nao ocorrem num “vacuo” social. O problema toma corpo e forma a cada minuto da acdo educativa em sala de aula. Uma pesquisa qualitativa no microcosmo da sala de aula, que se volte para a observagdio do processo de aprendizagem da leitura e daescrita, vai registrar sistematicamente cada sequéncia de even- tos relacionados a essa aprendizagem. Dessa forma, poder mostrar como e por que algumas criancas avangam no processo, enquanto outras sao negligenciadas ou se desinteressam do trabalho condu- zido pelo professor, ou ainda veem-se frustradas porque fr na tarefa de ler ¢ entender os textos que Thes sao apresentados. sam 7 i a Didrio de bordo \ ~-Pense numa sala de aula em uma escola de periferia frequen tada por jovens provenientes de familias de baixa renda. Ima- gine os alunos recebendo unt texto para leitura e discussio 9 _-€ 0s problemas de compreensiio do texto que poderao & z Gs surgir, seja porque o tema nfo faz parte do universo R a deles, seja por outras razbes. Para refletirmos mais sobre os beneficios de se conjugar uma pesquisa qualitativa e uma pesquisa quantitativa, vejamos outro exemplo. Podemos partir da seguinte questao de pesquis: 35 (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo ELL Sera que os alunos de ensino médio em uma escola onde os professores de todas as disciplinas atuam como agentes letradores vao se sair melhor no ENEM do que os alunos de uma escola onde o trabalho com a leitura compreensiva é de responsabilidade exclu- siva do professor de lingua portuguesa? Entendemos por agentes letradores professores que constroem uma mediagao de maneira a facilitar para os alunos uma leitura compreensiva dos textos dida- ticos de suas disciplinas'. Podemos delinear uma pesquisa quantitativa para responder a essa pergunta escolhendo duas escolas em fungao do compromis- so dos professores com o desenvolvimento de habilidades de leitura dos alunos. Em uma das escolas, esse compromisso é assumido por todos os professores. Na outra, os professores acreditam que a res- ponsabilidade no desenvolvimento de habilidades de compreensaio dos textos lidos é exclusiva do professor de portugués. Na linguagem das variaveis, o compromisso dos professores com a compreensao da leitura é a varidvel explicagao, ou independente. O desempenho dos alunos no ENEM é a variavel explicada, ou dependente. Uma pesqui- sa qualitativa voltada para esse mesmo tema vai deter-se na andlise sistematica do processo de tratamento de textos didaticos nas duas escolas, verificando como os professores trabalham a atribuigao de e alunos percebem esse ionadas a ele. significados aos textos e como professo: ses que estao rele trabalho e interpretam a: Didrio de bordo ~ pense em um tema que pode ser desenvolvido por meio de uma] pesquisa quantitativa. No projeto, voce vai relacionar dois fato- res, por exemplo, a formacéo de professores de biologia em nivel superior e a aprendizagem dos alunos de biologia nas aulas..| Registre a hipdtese principal que vai funcionar como guia de sua pesquisa. Em seguida, descreva uma pesquisa qualitativa | sobre 0 mesmo proklema, que poderd camplementar.a pesqui- Esta questaio de pesquisa foi desenvolvida por Patricia Vieira da Silva Pereira. 36 [IMITATE POSTULADOS DO PARADIGMA INTERPRETATIVISTA, ’ sa quantitativa anterior, na medida em que podera 9 revelar dados da interacio dos professores de biologia 6 we com os seus alunos, que néio apareceriam nos x resultados quantitativos da primeira pesquisa. No inicio do século XX, os princfpios da pesquisa positivista de natureza quantitativa j4 estavam bem consolidados, especial- mente em ciéncias exatas, ou ciéncias da natureza. No entanto, alguns pesquisadores colocaram em dtivida os pressupostos des: se tipo de pesquisa para as ciéncias do homem — ciéncias hu- manas ou sociais, Um deles foi o polonés Bronislaw Malinowski (1884-71942), que era aluno de antropologia na Universidade de Oxford. Ele foi enviado por seus mestres para as has Trobriand, hoje oficialmente denominadas como Ilhas Kiriwina, situadas na Papua Nova Guiné, no Oceano Pacifico, onde permaneceu um longo perfodo, Durante sua permanéncia entre os habitantes da ilha, que eram considerados pelos colonizadores britanicos como um povo primitivo, ele procurou descrever 0 modo de vida na- quela cultura. Procurou também entender as crengas e a visdo de mundo daquele povo, combinando um longo periodo de ob- stas. Procedendo assim, Malinowski foi capaz de desenvolver uma teoria sobre o conhecimento cultural implicito dos trobriandenses, do qual eles préprios nao tinham muita consciéncia porque estavam comple- tamente imersos na propria cultura. Em suma, 0 jovem antrop6- logo conseguiu construir uma interpretagao da percepgao que os habitantes das ilhas tinham de seus valores culturais, seus cos- 0 as servacao participante com conversas e entrev! tumes, suas crengas, seus ritos, enfim, conseguiu ter aces: perspectivas interpretativas daquele povo em relacéo a sua vida em sociedade, a sua espiritualidade e a todos os demais aspectos constitutivos de sua cultura, que ele descreveu no livro Argonau- tas do Pacifico Ocidental, publicado em 1922. O relatério da pesquisa de Malinowski foi considerado por muitos como acientifico, por faltarlhe a objetividade, que é um dos preceitos ba- 37 (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo UE sicos da pesquisa cientifica positivista. Mas outros pensadores entende- ram que aquela experiéncia representava uma maneira alternativa de tra- balhar com o conhecimento, maneira essa que era, em esséncia, interpre- tativista e, por isso mesmo, podia levar em conta também as impressOes subjetivas do pesquisador. Desde entao, outros pesquisadores adotaram © interpretativismo e passaram a conduzir pesquisas qualitativas. Entre cles, devemos citar Margareth Mead (1901-71978) da Universidade de Columbia, a quem se atribui a primeira monografia etnografica, produ- zida em 1928. Depois da Segunda Guerra Mundial, um ntimero maior de etnégrafos voltou sua aten¢ao nado mais para comunidades isoladas e muito diferentes das comunidades urbanas europeias, mas sim para am- bientes educacionais. Esses pesquisadores foram diretamente influencia- dos pelos trabalhos pioneiros, como os de Malinowski e Mead. eh Mais 3 7, O termo etnografia foi cunhado por antropdlogos no < nfs final do século XIX para se referirem a monografias & q / — % quevinham sendo escritas sobre os modos de vida de Oe .. povos até entdo desconhecidos na cultura ocidental. Cry we A palavra se compée de dois radicais do grego: ethno, ' que em grego antigo significa “os outros", “os ndo-gre- gos” © graphos que quer dizer “escrita” ou “registro”. Para conduzir sua pesquisa, 0 etnégrafo participa, durante extensos perio- dos, na vida didria da comunidade que esta estudando, observando tudo 0 que ali acontece; fazendo perguntas e reunindo todas as infor- mages que possam desvelar as caracteristicas daquela cultura, que 6 0 seu foco de estudo, Hoje em dia, as pesquisas qualitativas, espe- cialmente as pesquisas conduzidas em instituic6es, como presidios ou escolas, ndo sdo_necessariamente desenvolvidas por extensos periodos de tempo. Quando ouvimos mengao a “pesquisas etnografi- cas em sala de aula”, por exemplo, devemos entender que se trata de pesquisa qualitativa, interpretativista, que fez uso de métodos desen- volvidos na tradigao etnografica, como a observagao, especialmente | paraa geracdo e a andlise dos dados. E assim que devem ser entendi- | das também neste livro as referéncias a “etapas”, "procedimentos" @ “métodos” da pesquisa etnografica em sala de aula Antes de concluirmos esta revisao das raizes intelectuais da pesquisa qualitativa, vamos ainda mencionar dois pesquisadores: 38 UUUUUIITILL — POSTULADOS DO PARADIGMA INTERPRETATIVISTA, Clifford Geertz (*1926-+2006) e Dell Hymes (*1927-72009 ). O trabalho de Geertz teve inicio a partir dos anos 1960 e ficou conhecido como antropologia simbélica. Para ele o estudo das miiltiplas e variadas formas simbélicas de cultura podem pro- ver ao pesquisador uma visao da lgica dessa cultura do ponto de vista de seus membros. oe Mage 3 %, Em seu principal livro A interpretacdo das culturas = eye (1973), Geertz argumenta que “o homem é um ani- 24 B mal sustentado em redes de significados que ele Sc) proprio tece; 0 estudo da cultura ¢ em esséncia o Say 38°” estudo dessas redes”; para ele a leitura da cultura era como a leitura de textos. A propésito compare essas ideias de Geertz com as ideias de Paulo Freire sobre a leitura do mundo e a leitura das palavras. Dell Hymes é um sociolinguista de formacao antropolégica que, a partir de 1962, estabeleceu as bases programaticas de uma dimensao da pesquisa qualitativa denominada etnografia da co- municagao, voltada para a anélise dos padrées do comportamen- to comunicativo em uma cultura (cf. Saville-Troike, 1982). Pode- -se sintetizar 0 objeto da ctnografia da comunicacgdo com estas simples perguntas: 0 que um individuo precisa saber para comu- nicar-se apropriadamente em uma comunidade de fala? Como ele ou ela adquire esse saber? Essas questdes esto associadas a um conceito educacional muito importante: a competéncia comu- nicativa. A competéncia comunicativa permite ao falante saber © que falar e como falar com quaisquer interlocutores em quais- quer circunstancias. O principal componente na proposta de Dell Hymes é a inclu- sao da nogao de adequacgao no ambito da competéncia linguistica. Quando faz uso da lingua, 0 falante nao s6 aplica as regras estru- turais di ssa lingua para obter sentengas bem formadas, como tam- bém observa normas de adequagao definidas em sua cultura. 39 (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo a Mage CH < o, 4, A competéncia comunicativa de qualquer pessoa vai- 8 -se ampliando a medida que se ampliam também o % 101 de ambientes em que ela interage e as tarefas. ZF comunicativas que tem de desempenhar nesses Sry we ambientes. Mas 6 na escola que o individuo tem a oportunidade de desenvolvé-la de forma sistematica e de agregar novos recursos comunicativos que Ihe permitirao construir sentengas bem formadas. Sentengas bem formadas sao sentengas de acordo com o sistema da lingua. Nao devemos en- tender esse conceito como sendo sentengas que seguiram todas as exigéncias da gramatica normativa Quer saber mais sobre competéncia comunicativa e recursos co- municativos? Quer entender melhor a diferenga entre o conceito de sentencas bem formadas e 0 conceito de correcao gramatical de acordo com a gramatica normativa? Entao leia o livro de Stella Maris Bortoni-Ricardo, Educa¢ao em lingua materna. Parabola Edi- torial, S40 Paulo, 2004, em especial o capitulo 6: "Competéncia co- municativa”. Quando 0 aluno avanga do ensino fundamental para © ensino médio, carrega consigo uma competéncia comunicativa bem desenvolvida. Mas no ambito de cada disciplina que compée o curriculo escolar, nas sucessivas fases da escolarizacao, ele tera oportunidade de conhecer novas areas de saber e incorporar vo- cabularios especificos dessas areas, que agregara a seu acervo de recursos comunicativos. A forma como os professores de cada disciplina introduzem novos conceitos e terminologias, apoiando- -se em ilustragées, em experimentagao laboratorial ou em outros recursos um bom tema para a condugdo de pesquisas qualitati- vas em sala de aula. Pode-se pesquisar, por exemplo, como os pro- fessores associam as novas informagées a conhecimentos ante- riores, inclusive os relacionados as rotinas de vida dos alunos. Foi um trabalho dessa natureza que a etnégrafa Shirley Brice-Heath, professora da Universidade de Stanford, desenvolveu com os alu- nos de ciéncias nas escolas em que ela e seus alunos de um curso de formagao de professores trabalharam, como veremos nos capi- tulos subsequentes (Brice-Heath, 1983). CUE 4 O professor pesquisador ssim como os pesquisadores que pesquisam culturas estranhas A sua, os pesquisadores, em especial os etné- grafos que se propdem a interpretar as ages que tém lugar em uma escola ou em uma sala de aula come- cam seu trabalho de pesquisa procurando responder a trés perguntas: 1. O que esta acontecendo aqui? 2. O que essas acées significam para as pessoas envolvidas ne- las? Ou seja, quais sAo as perspectivas interpretativas dos agentes envolvidos nessas agdes? 3. Como essas agdes que tém lugar em um microcosmo como a sala de aula se relacionam com dimensoes de natureza macrossocial em diversos niveis: 0 sistema local em que a escola esta inserida, a cidade e a comunidade nacional? (Erickson, 1990) Quando se voltam para a andlise da eficiéncia do trabalho peda- g6gico, esses pesquisadores estdo mais interessados no processo do que no produto. Também nao esto 4 busca de fenémenos que tenham status de uma varidvel explicacao, mas sim dos significados que os ato- res sociais envolvidos no trabalho pedagégico conferem as suas agées, isto é, estdo a busca das perspectivas significativas desses atores. Conforme explica 0 etnégrafo Frederick Erickson (1990), a ta- refa da pesquisa interpretativa é descobrir como padrées de organi- za¢ao social e cultural, locais e nao locais, relacionam-se as ativida- 41 (© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricarco LOL des de pessoas especfficas quando elas escolhem como vao conduzir sua agao social. A pesquisa interpretativista nao esta interessada em descobrir leis universais por meio de generalizagoes estatisticas, mas sim em estudar com muitos detalhes uma situacdo especifica para comparé-la a outras situagées. Dessa forma, é tarefa da pesqui- sa qualitativa de sala de aula construir e aperfeigoar teorias sobre a organizacao social e cognitiva da vida em sala de aula, que é 0 con- texto por exceléncia para a aprendizagem dos educandos. Nos préximos capitulos deste livro, vamos nos familiarizar com procedimentos que nos habilitem a conduzir pesquisa qualita- tiva, especialmente pesquisa de natureza etnografica. Mas antes de passar a discussdo desses procedimentos, comen- taremos rapidamente duas pesquisas que se tornaram modelos. Na década de 1970, a etndgrafa norte-americana Shirley Brice-Heath conduziu uma importante etnografia em comunidades do sul dos Es- tados Unidos, no perfodo de 1969 a 1978, enfocando a vida social nas comunidades e no interior de suas escolas (Brice-Heath, 1983). Ela estava interessada em saber como as pessoas usavam artefatos de le- tramento, como livros de histérias, jornais, mapas, cartas, papéis de parede etc., em atividades e eventos em sua vivéncia social. Seu foco de pesquisa foram os modos de falar e de aprender de criancas em trés comunidades: uma comunidade negra, rural, de classe trabalha- dora, uma comunidade branca, rural, de classe trabalhadora, e uma comunidade de classe média urbana, etnicamente mista. Ela exami- nou a interacao de adultos e criangas e de criangas entre si na escola, na rua, em pracinhas e outros espacos puiblicos. Como professora de linguistica e de antropologia em um curso de formagio de pro- fessores de uma faculdade, transformou seus alunos em verdadeiros etndgrafos, levando-os a entender as maneiras como as criangas li- davam com artefatos de letramento em suas familias e comunidades. Dessa forma, induziu a adogao, em salas de aula das escolas locais, de praticas familiares aos alunos, que facilitassem sua aprendiza- gem da lingua. Os estagidrios, j4 investidos na funcao de etnégrafos, voltaram-se para a observacao de como as criangas construfam suas narrativas, como interpretavam recomendacées e perguntas feitas pelos professores, entre outros aspectos. Os estagidrios e as criangas 42 (UHI © PROFESSOR PESQUISADOR também foram motivados a prestar atencdo a tracos da pronuncia local dos grupos étnicos, muitos dos quais sao marcas identitarias para esses grupos. Além de observar os tragos tipicos da prontincia, e os estagidrios também observavam as mudangas espon- tAneas que as pessoas faziam em sua fala, dependendo do contexto. as criant Com os alunos da 5* série, Brice-Heath e seus professorandos desenvolveram um projeto que ela denominou “Tornar-se tradutores de ciéncias”, cujo objetivo era observar os saberes tradicionais sobre a agricultura, hdbitos alimentares e a vida das plantas. Eles visita- vam os moradores e os observavam em suas hortas e jardins e os entrevistavam. Iam também colecionando documentos e artefatos, como livros de receita, fotografias e historias de vida. Seu objetivo era observar como as pessoas da comunidade procuravam traduzir seu conhecimento tradicional em conhecimento cientifico ao dar seus de- poimentos. Os dados que recolhiam, como depoimentos e¢ histérias, eram datilografados pela professora e foram compondo um livro. Os alunos, além de melhorarem muito seu desempenho na disciplina de ciéncias, aprenderam a falar sobre modos de obter e verificar infor- magoes. Eles nao sé fizeram uso de métodos de pesquisa etnografica, como aprenderam a falar sobre eles. Ao final do projeto, estavam ap- tos a traduzir o discurso da oralidade da tradigao local em um discur- so cientffico (escolar) comparando categorias de um e de outro. Didrio de bordo ‘ ¥ 0 termo letramento & geralmente empregado para indicar um acervo cultural preservado por meio da escrita. Podemos usar 0 termo letramento no plural, ou entéo nos referir a culturas de letramento para preservar a ideia de que nao existe sé uma cul- tura de letramento. Nas comunidades sociais, convivem culturas de letramento associadas a diferentes atividades: sociais, cientifi- cas, religiosas, profissionais etc. Também existem manifestaces -eulturais letradas associadas a cultura popular, como a literatura de cordel, por exemplo. Uma cultura de A letramento é constituida de praticas sociais em que oY as pessoas se apoiam em textos escritos e lidos ou % Ay lidos e preservados ng meméria, ‘© PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo CE Outra pesquisa de natureza etnografica que se tornou um mo- delo é a que foi conduzida pela professora de Harvard, Courtney Cazden, no inicio dos anos 1980. Cazden (1988) focalizou as di- mensoes de continuidade e descontinuidade entre o lar e a escola na vida das criancas, dando atengao especial aos processos intera- cionais em sala de aula. Assim como Brice-Heath, ela mostra que certos grupos sociais desenvolvem em casa atividades de letramen- to afins as atividades das escolas. Quando isso acontece, a transi¢éo das criangas do lar para a escola é mais facilitada. Cazden também divulgou o conceito de andaimes, proposto originalmente pelo psicélogo americano Jerome Bruner com base na teoria vigotskyana. 72, Andaime é um termo metaférico que se refere a as- 0 sisténcia visivel ou audivel que um membro mais ex- % periente de uma cultura presta a um aprendiz, em ® qualquer ambiente social, ainda que o termo seja Ty we mais empregado no ambito do discurso de sala de i aula. Na tradigao do discurso de sala de aula, os andai- mes sao associados as iniciagdes de um evento de fala pelo professor e a suas avaliagdes das respostas dos alunos. Uma ca- racteristica basica do processo de andaimes é 0 estabelecimento de uma atmosfera positiva entre professor e alunos, por meio de agées simples, como a de se ouvirem e se ratificarem mutuamente, como aprendemos na pedagogia de Paulo Freire. Cf., entre outros livros de Paulo Freire, Pedagogia da autonomia, de 1996. Um trabalho de andaime, ou andaimagem, pode tomar a for- ma de um prefacio a uma pergunta, de sobreposigao da fala do professor a do aluno, auxiliando-o na elaboragao de seu enuncia- do, de sinais de retorno, comentarios, reformulagée: co e pardfrase e, principalmente, expansao do seu turno de fala. Todas essas estratégias dao ao aluno a oportunidade de “recon- ceptualizar” o seu pensamento original, seja na dimensdo cogni- tiva seja na dimensao formal (Bortoni-Ricardo & Sousa, 2006). reelabora- Cazden (1988) associa a reconceptualizagao ao turno de fala do professor reservado & avaliagao, mas alerta para o fato de que a4 (/U/LUUTTUTTITTTEITEEITTTIEEE © PROFESSOR PESQUISADOR esse turno nao deve ser apenas um veredito sobre a corregéo ou a incorregao da contribuicao do aluno. Antes, é uma oportunidade de induzi-lo a novas formas de pensar, de analisar, de categorizar. Segundo a autora, ha uma diferenga crucial entre’ajudar um aluno a dar uma resposta e ajuda-lo a atingir uma compreensao conceitual que lhe permitiré produzir respostas corretas e pertinentes em situa- Ges semelhantes. O trabalho de andaime pode ser feito por profes- sores de qualquer disciplina e em qualquer situagao de sala de aula. A andlise desse processo em sala de aula pode-se constituir em um bom tema para uma pesquisa qualitativa, baseada na observagao. Cazden enfatizou também a necessidade de reproduzir na escola ele- mentos da cultura original das criangas, como cantigas, jogos, cha- radas etc, Ela recomenda, em conclusao, a integragao das dimensdes macroanaliticas e microanaliticas na pesquisa educacional. Didrie de berdo Vocé pode pensar na interacio entre professor e alunos em uma sala de aula do ensino fundamental ou uma sala de aula do ensino médio de qualquer disciplina, procurando identificar estratégias do professor que se caracterizam como andaimes, pois facilitam ao aluno uma melhor compreenstio do que "9 estéi sendo apresentado. Outra possibilidade é observar sh andaimes construidos pelos alunos entre si quando estéio fazendo um trabalho conjunto Pg : 5 No comego dos anos 1980, dois aspectos na didatica de sala de aula ganharam relevancia, especialmente, em paises industria- lizados: a interagao professor-aluno e a qualidade do processo de aprendizagem. Essas duas tendéncias motivaram os professores a criar o habito de investigar seu proprio trabalho pedagégico, visan- do identificar a melhor forma de apresentar um assunto ou t6pico em sala de aula e a acompanhar o processo de aprendizagem dos alunos. Eles comecaram a investigar suas proprias turmas e a trocar experiéncias, 0 que hes permitiu identificarem achados equivalen- tes ou contraditérios. A medida que aprofundavam essa experiéncia, comecaram a desenvolver pesquisa cientifica e a escrever monogra- 45 © PROFESSOR PESQUISADOR | Stella Maris Bortoni-Ricardo (00 fias e estudos de caso, em que descreviam suas estratégias. Surgia assim a énfase na figura do professor pesquisador, cujos trabalhos tém trazido contribuigdes para um melhor entendimento do proces- so de ensino-aprendizagem (Kamberelis & Dimitriadis, 2005). Diario de bordo -Reflita e responda: 1) O que significa ser um professor pesquisador? 2) Que aspectos de sua acho pedagogica constituem pro- blemas que mereceriam investigacio? 2. F°3) Que beneficios a investigacao desses problemas poderig ff trazer a seu trabalho? Néio se esqueca de registrar suas respostas! Sobre 0 professor pesquisador leia as seguintes Pl B obras: O papel da pesquisa na formagao e na prética = © dos professores, organizada por Marli André, e O > _ professor e a pesquisa, coordenada por Menga Ludke. Sey ys O professor pesquisador nao se vé apenas como um usuario de conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas se pro- poe também a produzir conhecimentos sobre seus problemas pro- fissionais, de forma a melhorar sua pratica. O que distingue um professor pesquisador dos demais professores é seu compromisso de refletir sobre a propria pratica, buscando reforgar e desenvolver aspectos positivos e superar as préprias deficiéncias. Para isso ele se mantém aberto a novas ideias e estratégias. Um problema que se pode apresentar ao professor pesquisador é como conciliar suas atividades de docéncia com as atividades de pesquisa. Uma forma de contornar esse problema é adotar métodos de pesquisa que possam ser desenvolvidos sem prejufzo do traba- Iho docente, como 0 uso de um diario de pesquisa. Escrever em um 46 [JUN TMU © PROFESSOR PESQUISADOR diario é uma pratica muito familiar aos professores e é possivel fa~ zer anotagOes entre uma atividade e outra, sem que isso tome muito tempo. O diario também € uma antiga pratica de letramento bem consolidada em nos culturas. Um exemplo citado por Altrichter e¢ al. (1993) sao as Confissdes de santo Agostinho. Outro exemplo ver do trabalho de Malinowski, j4 comentado. Esse pesquisador fez uso de diarios, registrando com riqueza de detalhes suas observagGes so- bre a comunidade que investigava. A producao de um diario de pesquisa varia muito de pessoa para pessoa, mas a literatura especializada traz sugestdes para o contetido de diarios dessa natureza. Os textos mais comuns que s&o incorporados aos didrios séo descritivos de experién- cias que o professor deseja registrar, antes que se esque¢a de de- talhes importantes. Sequéncias descritivas nos didrios contém narrativas de atividades, descrigdes de eventos, reprodugées de didlogos, informagées sobre gestos, entoacdo e expressdes fa- ciais. Esses detalhes podem ser muito importantes. Falas do pr6prio professor ou de outra pessoa devem ser reproduzidas 0 mais fielmente possivel. Além das sequéncias descritivas, constam também dos didrios as sequéncias interpretativas, que contém interpretagdes, avalia- gdes, especulagées, ou seja, elementos que vao permitir ao autor desenvolver uma teoria sobre a acdo que esta interpretando. A releitura das notas de um diario é muito util porque pode propiciar a inclusao de mais detalhes que voltem a meméria. O diario pode incluir também notas teéricas, que ajudem o pro- fessor a construir sua teoria, bem como notas sobre a sua me- todologia ja posta em pratica, ou propostas para uma atividade futura. E aconselhavel que, ao escrever um diario, seja manual- mente, seja no computador, o autor deixe uma margem razoavel a esquerda, onde podera acrescentar observagées ou lembretes. Note-se ainda que 0 professor pesquisador pode tomar notas si multaneamente as suas atividades ou apés 0 trabalho; no pri- meiro caso, ele vai precisar desenvolver algumas estratégias de abreviagao para agilizar a escrita. 47

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