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mo ¢ performance: aspectos da alianca dos corpos nas ruas Activism, performativity and bodies in alliance on the streets Carlos Henrique de Lima: ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3004-404X Resumo: Estudos zecentes invocam o termo performance paca se referir & manifestagdes politicas realizadas em espagos piblicos que transformam consideravelmente formas tradicMionais de protestos. O objetivo deste artigo & discutir parte da literatura a esse respeito, pois consideramos 4 performance uma nogao reveladora do caréter simbélico e cultural identificado em ciclo recente de ativismo urbano ocorrido em metrOpoles brasileiras. O termo & abordado a partir de uma angulacio teérico-empirica. Parte-se de estudos sobre as facetas simbélica e cultural das manifestagdes politicas em Charles Tilly e Judith Butler. Em seguida, tratamos de coletivos urbanos que surgiram em favelas do Rio de Janeiro entre 2011 e 2015, cujas demandas envolviam melhor compartilhamento dos beneficios da urbanizacao, a reafirmagao do carater publico dos espacos e seu pleno usufruto, Espera-se que esta discussio ajude a compreender possiveis avancos ¢ limitagdes face a poténcia do ativismo performitico como fonte questionadora da pritica urbanistica Palavras chave: Ativismo urbano; Performance; Repertério: Complexo do Alemio. Abstract: Recent studies invoke the term performance referring to political manifestations held in public spaces that considerably transform traditional forms of protests. The purpose of this article is to discuss aspects of the literature in this regard, as the performance is considered here as a revealing notion about the symbolic and cultural character identified in a recent cycle of turban activism in Brazilian metropolis. The term is approached from a theoretical-empirical angle. It starts with studies on the symbolic and cultural facets of political manifestations in Charles Tilly and Fudith Butler. Then, we try to address a brief discussion about urben collectives that appeared on the slums of Rio de Janeiro between 2011 and 2015, whose demands invalved a better sharing of the benefits of urbanization and the reaffirmation of the public character of the spaces and their full enjoyment. It is hoped that this discussioa will help to understand possible ‘advances and Limitations in the face of the power of performative activism as a questioning action of the urbanism. Keywords: Urban activism: Performance: Repertory; Complexo do Alemto. 2 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo — FAU, Universidade de Brasilia - UnB. E-mail: carlos.bsbr@ RUA, Carlos Henrique de Performance & termo que ocupa espaco relevante em anilises de estudiosos dedicados a pensar ages contestatorias no espago urbano de hoje. A palavra deriva do conceito “repertério de aco coletiva”, elaborado por Tilly ao longo de varios anos, mas que se refere a conjuntos determinados de rotinas apreendidas, compartilhadas colocadas em movimento por processos relativamente deliberados de escolha. ‘Repert6rios so criagdes culturais assimiladas, mas que nfo so herdados de filosofia abstrata ou tomam forma como resultado da propaganda politica; eles emergem da luta.” (TILLY, 1995 [1977], p. 26). O conceito foi gradualmente se tomando maledvel suficiente para remeter a modos de acdo notadamente diversos e mutaveis empregados por ativistas ao se manifestarem. No campo de estudos sobre a cidade contempordnea, interessa pensar o termo como elemento potente na compreenstio sobre como ativistas refletem os principios de coletivos organizados. Ainda: de como tais.principios confrontam praticas urbanisticas que apresentem cariter hegeménico e supressivo. Assim como diversas metrépoles em diferentes regides do Brasil, o Rio de Janeiro da tiltima década foi alvo de diversos projetos urbanos conduzides com intuito de ‘ransformar sua feigdo e dinamica — nem sempre positivamente. Ao menos é 0 que se identifica no “ciclo de protestos” (TARROW, 1993) que percoreu diversas regides da cidade ao final do ciclo desenvolvimentista do Programa de Aceleragio do Crescimento (PAC). Manifestacdes mais amplas expressavam franco desacordo com o direcionamento de gastos piblicos, remogdes forgadas de familias para dar espago aos novos empreendimentos uzbanos, demoligio de edificios culturalmente relevantes para grupos minoritarios ~ caso da Aldeia Maracana, Nas areas mais vulneraveis da cidade, onde os projetos de urbanizacao sao raros, os discursos por parte de ativistas eram semelhantes, embora agravados pelo contraste entre a precariedade do contexto existente e 0 carater perdulario dos projetos. Obras como os teleféricos do Complexo do Alemao e do Morro da Providéncia sofreram fortes sangdes de associacdes communitérias consolidadas. A essas vozes dissonantes, somaram-se ativistas cuja mobilizagao reiine trés aspectos principais: (a) sua manifestacdes ocorrem na maioria das vezes em espacos ptiblicos; (b) suas agdes sao produzidas a partir de transformagao inventivas dos repert6rio de protesto; (c) 0s coletivos apresentam composigio heterogénea e seus membros io mantém entre si vinculos Guradouros. $30 representantes do “ativismo insurgente” (RIBEIRO, 2006) que amalgama uma nova composicao social e aprofunda a radicalidade impulsionada pelas consequéncias das transformagdes figuradas em projetos urbanos recentes. Em suas Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 218 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas ages, desdobram-se os nexos entre cultura e politica, produzindo uma nova topografia para os conflitos urbanos. Jovens, periféricos e negros formam a maioria dos desafiantes que articulam ages fragmentadas e imediatas, revelando sua revolta ante o artificialismo dos acordos sociais expressos em formulagdes ténues e distendidas elaboradas no campo hegeménico (Estado, empresas, governos). Os protestos da juventude em favelas cariocas explicitaram, além das desigualdades sociais gritantes, que a troca e o convivio comum entre diferentes regises da cidade sio indispensiveis para qualquer democracia urbana, Além disso, mostraram que hi grande interc4mbio nas imagens de protesto oportunizadas pela difusto das tecnologias de informagiio e comunicagio (RIBEIRO, 2006). Este aumento das trocas de informagdes incorpora novas vozes e novos repertérios aos espacos de decisiio — consequentemente, nos investimentos puiblicos e privados nos espacos metropolitanos. A performance esta associada a este incremento. O termo é recorrentemente mobilizado para tratar de uma mobilizagio politica que cuja forma de agir & recombinada continmamente no curso contencioso. Neste artigo, recorre-se & procedimentos de cunho tedrico e empirico para elaborar uma reflexao a respeito da performance no ativismo de ma, O tema é abordado a partir de dois angulos e as partes deste trabalho obedecem a um percurso globalmente temético-cronolégico. Charles Tilly e por Judith Butler servem de ponto de partida e, embora nao estejam excluidas outras referéncias, as escolhas bibliogrificas refletem a vontade de estabelecer tanto quanto possivel uma leitura detida e vertical a respeito do problema. Ha em Tilly um carster macro-histérico a respeito do repertorio de ago que gradualmente & convertido para explicagdes circunstanciadas em que o carter cultural ¢ ampliado; Butler efetua uma abordagem a partir de fendmenos sociais recentes, mais precisamente, aqueles que envolvem a perda direitos de grupos minoritirios ¢ a alianga que realizam para afirmar a expresstio de direitos. Apesar de alicergado em autores da sociologia urbana e filosofia, este texto se vincula as analises centradas no urbanismo como pritica ampliada, como saber compartilhado em determinado contexte politico ou como conjunto de discursos e ideias em circulagdo em determinado tempo. Nesse sentido, a construcao de performances politicas organizadas por desafiantes nas ruas vem para agucar o entendimento a respeito dos desacordos entre experiéncias coletivas e projetos urbanos neste ciclo de protesto identificado nos estertores do PAC. A performance é termo que auxilia a investigar a Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 279 RUA, Carlos Henrique de emergéncia e ressignificacao das maneiras de organizacao e conducio de performances politicas. Privilegiou-se a aco de grupos que dio grande énfase as priticas urbanisticas, enfrentando-as. E 0 caso do Barraco 55, grupo atuante no morro da Alvorada, Complexo do Alemio, entre 2010 e 2014. Performance: emergéncia do termo Desde os anos 1960, as questdes disparadoras de conflitos na cidade foram sensivelmente ampliadas. Tdentidades, memérias e experiéncias passaram a ser consideradas na conjuntura. No campo da sociologia, as ondas de greve, os movimentos sociais e as mobilizagdes Stnicas e de género forgaram as fronteiras das teorias e explicagdes. Nos estudos dos ativismos ¢ movimentos sociais urbanos, 0 termo performance guarda relagao com esse campo ampliado de problemas. O termo deriva das interpretagdes dedicadas a compreender o ativismo e a acto coletiva nfo apenas a partir da mobilizago de recursos (como o mimero de participantes ou os meios de financiamento para campanhas), mas como algo atrelado ao processo politico. Leituras macro-histéricas se mostraram incapazes de explicar o lugar da cultura no processo de mobilizagao politica, dando origem a reflexdes que “se insurgiam contra explicades deterministas e economicistas da aco coletiva e contra a ideia de um sujeito histérico universal” (ALONSO, 2009, p. 3). Com efito, foi dada maior relevancia as concepgdes praticas e discursivas dos atores em situagio sem excluir as criticas a explicagées vagamente conectadas que ignoravam, por exemplo, como redes_ interpessoais influenciavam no éxito ou duragao de uma mobilizagao coletiva (McADAM; TARROW; TILLY, 2001) O que esta manifesto nas primeiras nogdes de repertorio e suas reconfiguracdes sao formas politicas de agir afetadas por dimensdes culturais, pois a volatilidade das conjunturas demanda escolhas continuas (ALONSO, 2012). Nas cidades, por exemplo, ativi iweis. Além disso, a catilise tas alternam passeatas com acdes menos visi proporcionada pelos fendmenos urbanos & ampla e afeta, em variagdes de escala e intensidade, grupos distintos. As identidades, relacionadas diretamente 4 alteridade e a ‘maneira que se lida com 0 outro, ganham importancia na explicagao sobre ativismos. Nos anos 1990, estas cousideragdes se tomaram ainda menos consistentes para explicar conjunto consideravel de movimentos sociais e demais ativismos de menor escala. E quando surgem compreensdes a respeito do amadurecimento e ganho compartilhado nfo regidos pela rivalidade, o que desembocou nas explicagdes sobre os novos movimentos Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 280 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas sociais. Desde ento, os modos de organizacao e as experiéncias dos ativistas (mais do que as estruturas politicas previamente configuradas) passaram a ocupar lugar destacado. E necessario reprisar que sdo muitas e variadas as modalidades de ativismo. Ha ativismo no Ambito institucional como casas legislativas, assembleias e sindicatos, por exemplo; tanto quanto nas ruas, pragas e lugares que nao esto previamente configurados para o exercicio politico. A énfase das andlises elaboradas sobre as performances refere- se a "politica contenciosa’, isto é, de cariter episodicos e nao continuo, que “ocorre em piiblico, envolve a interagéio entre os proprios demandantes e outros atores [...] sendo que © governo atua como alvo ou mediador” (McADAM, TARROW e TILLY, p. 5, tradugaio do autor). Aprofundado: © termo "episédico" exclui eleigdes, por exemplo; "publico", como dito, remete ao que ocorre fora de organizagdes bem definidas (igrejas, associagdes etc). Portanto, © foco recai nas ramificagdes politicas de mobilizagio abertas e imprevistas Vale dizer que isso niio caracteriza as formas predominantes de ativismo, pois boa parte acorre dentro de eventos processuais e democraticos, em lugares formalizados como comunidades, sindicatos e partidos. Deve-se ressaltar que tais acdes “contenciosas” — muito numerosas nos ciclos recentes de protestos que tematizaram a cidade como objeto de disputa, no Brasil e alhures ~ se interseccionam a episdios maiores de confrontagao. Movimentos sociais, revolugdes, ondas de greves, ciclos de nacionalismo, processos de democratizacao, dentre outras — so fendmenos contrastantes, mas que resultam de mecanismos e processos similares (McADAM, TARROW, TILLY, 2001). Nos interessa discorrer sobre a performance a partir de ativismos independentes, de organizagdes prévias. Nesses casos, nem todas as partes esto dadas de antemiio, pois © curso conflituoso emerge na matriz urbana a partir de grupos sem programa nitido, cuja interago é muitas vezes momentnea. Interessa pensar a performance por meio de agdes de grupos que criam vinculos ténues e provisérios, mas que guardam semelhanga nos meios empregados para proliferagaio de prineipios, cujos vocdbulos so semelhantes € as formas téticas muito aproximadas — mesmo referindo-se a amplissimas demandas. © principal ponto de partida para as discussdes sobre a performance sio as contribuigdes de Charles Tilly a respeito das mutacGes observadas nos repertorios de ago politica. Na emergéncia do conceito, Tilly (1976) afirma que um repertério de agdes esta 4 disposigdo das pessoas e sio empregados conforme oportunidades politicas. Sua reflexdo se desenvolve a respeito de mobilizagdes politicas num amplo arco histérico em Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 281 RUA, Carlos Henrique de que gupos empregam repertérios para perseguir fins comuns (TILLY, 1978). Teorias pioneiras sobre os movimentos sociais consideravam os recursos divididos por preceitos de competicao; nas interpretagdes focadas no processo, os ativistas estariam em constante disputa nos cenirios politicos, buscando ampliar sua representatividade em instancias deliberativas ou agregando novos membros, por exemplo. Repertérios softem mudancas lentas associadas & transformagdes sociais modernas, como a urbanizagao. A esse respeito, cabe situar que a diversidade de taticas empregadas por ativistas em disputa — no dizer de Tilly (2008), “demandantes” — correspondente a formagao social heterogénea e diversa que caracteriza muitos movimentos coletivos no presente. Ao historiar o conceito, Alonso (2012) apresenta trés passos: 0 repertorio de agdes, coletivas (anos 1970); 0 repertério de confronto (anos 1990); repertério e performance (anos 2000). Na década de 1990, o repertério & compreendido como estrutural e estruturante, experigncia social sedimentada em acordos e memérias. Inicialmente, é algo que apresenta contomnos bem definidos: posteriormente, Tilly compreende que repertérios sto ativados por rorinas que se produzem nas interagdes conflituosas repletas de contingéncias ~ 0 que impede sua repeticdo automitica (idem), Nos anos 1990, o termo é inflado pelo aspecto da difuisio e da mudanga, produzindo modificagdes parciais nas franjas das formas de agir ja conhecidas. E quando as mobilizacdes so postas em movimento levando-se em conta a dindmica implicada em seus mecanismos. As “estruturas de oportunidades” nao derivam somente de determinagdes objetivas. Por exemplo, nao foi apenas a urbanizacao —um “um mecanismo ambiental” — que levou ao boicote da populacdo negra de Montgomery aos énibus da cidade, apés _gesto desafiante (e performatico) de Rosa Parks; e sim percepgdes acumuladas no interior do movimento de serem mao de obra e mercado consumidor capaz de exercer pressao em instancias representativas do Estado e setores da economia. E preciso considerar que ativistas e governos esto em reconfiguragdes continuas, 0 que leva a interpretar o ativismo além das experiéncias moduladas para outra, transgressiva, em que a performance ajuda a explicar melhor desdobramentos e nuances nos movimentos. ‘Na década de 2000, num conjunto teérico que retine reflexdes nessa direcao — bem. como revisdes de escritos anteriores — a performance suplanta a rotina como chave explicativa (ALONSO, 2012). As interacdes entre ativistas, piblico e autoridades (assim como entre grupos rivais) procedem de conexdes anteriores e da experiéneia acumulada. “Por esse motivo, podemos pensar no repertério como performances — interagdes roteirizadas na maneira do jazz ou teatro de rua” em vez do aspecto repetitivo de cangdes Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 282 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas enuditas ou ritualisticas (McADAM, TARROW, TILLY, 2001, p.49, traducao do autor). Em outro texto: ativistas interagem como grupos de improviso em que pessoas participam de diferentes politicas de claro confronto (Tilly, 2006, p. 35) com grande capacidade de por parte dos atores. Nos ciclos de protesto e ao longo de crises, hé variagdes rapidas nas "estruturas de oportunidade politica que, apreendidas diferencialmente pelos atores conforme a posi¢ao que ocupam, geram clivagem." © ativismo urbano que emergiu na tltima década em metrépoles no Brasil & formado por grupos que efetuam intervengdes no espaco piblico, Apresentam base social diversa e no se organizam em estruturas sociais prévias ~ a exemplo de lutas populares como a dos sem-teto, Por isso, nio ha identidade comum e relativamente estivel entre seus integrantes. Observados em conjunto, identificamos nesses movimentos agdes que envolvem intervengdes de aspecto performitico, fluida e variada, Sao priticas e colaborativas que envolvem atividades culturais, em sentido amplo, ¢ que buscam uma nova vivéncia politica, formada por um entrelinhado em que cada ponto se apresenta como uma experigncia de intima proximidade. Em nossa perspectiva, ao tecerem essa trama e se posicionarem em franco contraste com a pritica urbanistica, a performance ativista agua suas contradigdes. Esses movimentos produzem a instabilidade ¢ a incerteza mais do que a possibilidade de substituir uma pritica por outra. Questionam, sobretudo, principios. Revelam lacunas e, por isso, apontam possi is alternativas para o processo de produgao urbana. © aspecto performatico desse ativismo estimula novas conexdes e deixam residuos nas formas de agir que so gradualmente assimilados por grupos em diferentes espagos € contextos urbanos, numa confluéneia continua dissimile e plural. As performances se modificam a partir de repertérios herdados. Nesse curso, incorporam-se reivindicagdes, selecionam-se meios, surgem novas representagdes. As agdes coletivas se transformam como resultado de improvisagaio e luta, embora formas de interagao estejam limitadas ao que ¢ inteligivel e vidvel para ativistas (McADAM, TARROW, TILLY, 2001). E também nessa diregio que se movimentam os argumentos de Judith Butler sobre ‘uma politica da performatividade. Judith Butler: politica da performatividade Ainda que sujeita a metamorfoses e transformagSes, a ideia de performance sempre conservou, tanto quanto se pode interpreté-la numa dimensfo urbana, duas Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 283 RUA, Carlos Henrique de caracteristicas essenciais: tencionar os espacos ja constituidos; a reciprocidade e reconhecimento do outro. Em trabalhos recentes, Butler (2018, p.95) vem tentando demonstrar a capacidade que mobilizagdes nas mas tem de formar uma alianga entre os corpos para construgao de novos espacos ¢ a favor da alteridade. Essa alianca se efetua diante da constatagdo de que nfo ha a declarada igualdade entre falantes na esfera piiblica, @ so muitas as assimetrias que a atravessam. Isso é muito nitido num pais gravemente marcado por desigualdades sociais como o Brasil. Butler apresenta a desigualdade entre falantes como primordial conduzir sua interpretaco a respeito da performance na politica. Trata-se das minorias, cujos corpos foram historicamente subtraidos de seus direitos de expressdo, interferirem justamente na organizagao espacial do poder para produzir uma esfera de “aparecimento”. Butler tece reflexdes sobre estas politicas da corporeidade e seu aspecto performatico para se referir 08 dispositivos de controle, & apropriaglio de espacos fisicos e outras dimensdes P. 11) dialogam sobre como os “regimes contemporineos de biopolitica” — em suma, relacionais da vida coletiva. Em formulagées preliminares, Butler e Anathasiou (201, aparatos autoritirios de controle e apropriagio da espacialidade, mobilidade que afetam negativamente a vida de diversas populagGes no campo e nas cidades — resultam conjuntamente em “expropriagées”2 e resisténcias, Pegando de empréstimo uma nogio do filésofo Jacques Derrida, as “expropriagdes” so formas agudas carater “ontopoldgico”s, isto é em que se vinculam o valor ontolégico do sujeito a um determinado ropas, lugar. Com isso, as autoras sugerem rastrear as maneiras pelas quais a desapropriagao carrega em si praticas regulatorias relacionadas a quem pode ou nfo ocupar determinadas posigdes, gerando, consequentemente, deslocamentos e remogdes. O que nos leva a refletir como politicas urbanas recentes foram conduzidas nos morros cariocas com 0 intuito de remover casas que estavam atravancando as pretendidas transformagdes urbana Isso significa que a légica da desapropriacao esta intrinsecamente associada aos corpos, em corpos situados, agindo por meio de priticas associadas a raga, género, sexualidade, economia e cidadania, +2 O termo empregado recorrentemente por Butler ¢ “dispossession”, 4 No original: “dispossession emerges a3 a critical force of ontopological modes of prefigured bodies, subjectivities, communities, identities, truths, and political economies of life. Taking cue from Dezrida's notion of "ontopology", which links the ontological value of being to a certain determinated topos, locality, ‘or territory, we might track the ways in which dispossession carries within it regulatory practices related t0 conditions of situateduess, displacement, and emplacement, practices that produce and constrain human intelligibility. This means that the logic of dispossession is interminably mapped onto our bodies, onto particular bodies-in-place, through normative matrices but also through situated practices of raciality, gender, sexuality, economy, and citizenship” (Butler e Anathasiou, 2013, p. 18) Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 284 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas ‘Nese cenario, surgem resisténcias alinhadas performat lade politica, em que se incitam esforgos por autodeterminagao por parte dos corpos excluidos, que empreendem a construgio de praticas desestabilizadoras (ibid, p. 18). A performatividade esta associada ao esforgo por refutar e desfazer estas esferas de controle ou coerg4o, mobilizando percepgdes para tornar produzir uma “esfera de aparecimento” (ibid, p. 120). Para as autoras, a “performatividade” produz o que denominam “topologia multe- localizada do acontecimento politico”, quer dizer: quando grupos minoritirios se veem implicados no que foi desposado de outros e envolvem-se “em uma comunidade de resisténcia politica e ago transformadora — no entanto, sem que suas proprias aliangas afetivas cedam & reivindicagdes particulares de identidade.”s (BUTLER e ANATHASIOU, 2013, p. 193, tradugdo do autor). Trata-se de engajar outros corpos contra a vida “dada, passiva e opaca e, portanto, excluida da definicao convencional do politico” (BUTLER, 2018, p. 97). Ha certa proximidade com o que apresentamos na primeira seco a respeito de espacos no configurados previamente para o exercicio politico (TILLY, 2008). Em Butler, estas formas de resisténcias procuram embargar a alocagio diferencial do regime biopolitico e, assim, produzir o que a autora denomina ianga entre os copos”; em resumo: forma social da resisténcia produzida por grupos vulneraveis e minoritérios que incorporam como principio a ideia de agir junto e em condigao de igualdade (BUTLER, 2018, p. 98). Em tltima instancia, a alianga entre os corpos nao ¢ igualdade radical, mas a exigéncia de uma vida possivel de ser vivida que envolva os direitos bésicos da autodeterminagao € o reconhecimento piiblico de direitos. A performance é 0 meio de corporificar experiéncias minoritérias e produzir intervengdes nos meandros das estruturas politicas ~ e isso inclui a vida urbana, Por meio da alianga, grupos minoritérios corporificam modos de vida francamente opostos as solugdes gestadas no ambito do controle hegem@nico. Nao se trata de algo a ser instituido, e sim praticado, Produzir esse conjunto de condigdes ¢ 0 proprio objetivo da agao politica das ruas, fora das instituigdes previamente configuradas (BUTLER, 2018, p. 146). Ou seja, as condigdes de igualdade no podem simplesmente ser enunciadas, mas efetivadas “precisamente quando os corpos 4No original: “As we are affected by dispossession, the affect of dispossession is not quite our owa. And as we are rendered vulnerable to another dispossession, we engage in a commonality of political resistance and transformative action - albeit not letting our affective alliances cede to claims of similitude and community” (Butler ¢ Anathasiow, 2013, p. 193). Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 285 RUA, Carlos Henrique de aparecem juntos, ou melhor, quando por meio da sua ago eles fazem 0 espaco de aparecimento surgiz” (idem). A autora se refere a grandes manifestagées e assembleias de carater revolucionario, em que os patti antes se opuseram de maneira explicita a0 “capitalismo monopolista, a0 neoliberalismo e & supressio dos direitos politicos” — os movimentos occupy, as revolugdes da primavera arabe -, 0 que atinge com maior intensidade os direitos humanos de populagées inteiras. Entretanto, corremos o risco aqui de propor derivar a ideia da reivindicagao performética para movimentos menores. Nas cidades, parece haver uma nova interacao entre atores minoritarios que lutam para serem escutados e compreendidos. As ages acomodaticias de grupos dominantes so conftontadas por ‘um outro ativismo, que retine lutas urbanas e lutas que, mesmo com origem noutros espagoss, ocorrem no urbano (Souza ¢ Rodrigues, 2004). Para Ribeiro (2006, p. 28), este ativismo urbano de dificil conceituagao tem construido um campo politico de fronteiras indefinidas. Aliangas entre populagdes precarizadas foram um projeto de radicalidade urbana e democritica, uma vez que os direitos nio se restringem, a priori, a populagdes & identidades, Para Butler (2018), lutas urbanas recentes certamente expandiram 0 que se entende por és a0 envolverem mistura de grupos contrastantes em aspectos como classe e identidade. Recomeu-se aqui a dois autores para tentar elaborar, genericamente, a ideia da performance como repertério politico articulado a formas compartilhadas de pensar ¢ fazer. Isso resulta em vasto mtimero de taticas em determinado curso contencioso. No campo analitico-conceitual, performance & expresstio que amplia 0 entendimento a respeito do continuo processo de elaboracao da disputa na arena piiblica (nas ruas), em que caracteristicas como a flexibilidade das demandas é acompanhada da grande diversidade de seus praticantes. Performatividade nas ruas do Alemio Antes de avancarmos no aspecto performativo do ativismo no Alemao, é prudente colocar brevemente alguns acontecimentos em perspectiva. O Complexo do Alemio esta situado na zona norte do municipio do Rio de Janeiro, em uma regiao vulnerivel do ponto de vista ambiental, e atravessada por vias expressas. Nos anos 1920, a regitio possuia + Os movimentos indigenas pelo direito as suas terras e os movimentos de sem terra sio dois exemplos claros dessa situagdo, uma vez que, a garantia de justice no campo, repercute em fenomenos que interim diretamente na vida urbana, devido a migragoes, produgao de alimentos, dentre outros. Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 286 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas papel importante na dinamica econdmica da cidade por sua atividade industrial e portuiria. © Curtume Carioca, no bairro da Penha, que funcionou do inicio daquela década até sua faléncia, em 1998, da pistas do desenvolvimento econdmico nos primeiros anos de sua ocupagdo. A Serra da Misericérdia foi gradualmente ocupada a partir dos 1950 formando hoje 0 Complexo do Alemao e Penha: uma “conurbagdo de favelas” (BOTELHO, 2013) que abrange os bairros da Penha, Inhatima, Bonsucesso, Ramos e Olaria, No Rio de Janeiro, o proceso de favelizagiio se intensifica nas décadas de 1940 ¢ 1950, e, a partir da década seguinte, isso despertou interessa da administrago publica em intervir por meio de remogGes e construgio de habitagdes em lugares afastados das reas mais valorizadas da cidade. Essa politica vigorou até os anos 1980 quando o entendimento predominante era melhoras as condigdes urbanas das areas ocupadas. No Complexo do Alemfo essa virada € assinalada pelos projetos de saneamento e luz realizados nos mandatos do governador Leonel Brizola (1983-1987), que contraiu empréstimo junto ao BID para a melhoria ¢ urbanizagao de favelas. Mas até 2011, quando receben grande aporte de investimentos do Programa de Aceleracao do Crescimento (PAC), capitaneado pelo governo federal, esta area densamente habitada nao havia recebido nenhum projeto urbano abrangente e de grande escala, Décadas de negligéncia por parte do Estado representam violacdes consideraveis populagdo carioca habitante de favelas, gerando uma zona apartada do tecido urbano propicia a pratica de crimes e violagdes. Mas formou também tenses politicas de variada intensidade e com diferentes graus de vinculagao e alinhamento a esferas representativas. Associagdes comunitirias desempenham hi décadas papel fundamental na organizagao politica do Complexo do Alemdo, exigindo junto ao poder instituido em assembleias direitos relativos as condigdes de vida na cidade Sao organizagdes politicas com base social delimitada e que militam por meio de formas estabelecidas da via politica (assembleias) ou empregam repertérios tradicionais para divulgar suas demandas (passeatas, protestos, bloqueio de vias). auge do PAC coincide com as chamadas jornadas de junho de 2013, disparada por uma pauta urbana e urbanistica. Naquele momento, o ambiente politico estava permeado pelo tema, que se estendia para o direcionamento de gastos ptiblicos com grandes eventos esportivos de 2014 e 2016. O Rio de Janeiro era tervitério particularmente afetado nesse sentido, 0 que resulton numa pratica urbanistica em que © projeto Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 287 RUA, Carlos Henrique de planejamento da cidade estava intrinsecamente vinculado a légica policialesca coercitiva. O Programa das Unidades de Policia Pacificadora (UPPs) foi a grande bandeira do periodo, tendo sofrido, assim como os projetas urbanos, grande resisténcia por parte de moradores. Uma nova articulagfo parece entrar em cena nesse momento, forjando um ciclo de pritica politica no Complexo do Alemao e em demais conjuntos de favelas que foram alvo da combinacio entre urbanismo e aco policial. Refere-se aqui a uma agregacto politica formada por uma geracdo influenciada pelos protestos que ocorriam nas ruas brasileiras e alhures. Empregando cédigos assimilados a partir de novas tecnologias de comunicagdo, fazem borras as fronteiras do exercicio politico, formando aliangas se efetuam uma ética de coabitagaio, dos vinculos abertos e descentralizados, da auséneia de ritos e hierarquias definidas, fazendo das ruas e vielas do Alemao o topos da experiéncia conjunta em favor da luta por direitos urbanos. Neste ativismo de cariter performitico, "os corpos congregam, e se movem e falam juntos, reivindicando um determinado espago como piblico.” (BUTLER, 2018, p.80). Portanto, nao assumem que este espago est dado e é reconhecido como tal por todos. Gobn (2014, p. 71) observa que muitos ativistas de 2013 “autoproduzem imagens com discursos sem referéncia a tempos do passado, como se nio tivessem outras memérias incorporadas além de si proprios”. No Complexo do Alemio, talvez um sintoma da urgéncia do presente, um modo reativo de lidar com um espago fraturado com o tempo acelerado em que as posicdes se reconfiguram ali. A permanéncia acaba se tomando algo circunstancial, ¢ presente torna-se a referéncia mais forte. No discurso, 0 que os ativistas evocam sdo mais as imagens de protesto, mas a necessidade de falar por si, de dar um caréter ao espaco até entdo nao vislumbrado. "Organizam e animam a arquitetura [por meio] da apreensto e da reconfiguracdo dos ambientes materiais" (BUTLER, 2018, p. 80)" Trata-se de performance, de reconfigurar e refuncionalizar os espacos urbanos. As ruas nfo so apenas o Icus da ago, mas aquilo que esti sendo tematizado na disputa. O espaco 6 criado pela acao plural. Como resultado, investem em usos imprevistos como modo de revelar uma cidade potencial e latente, muito contrastante com as categorias bindrias predominantes nos projetos urbanisticos que procuram confrontam. A performatividade nao apenas a fala, mas também as reinvindicagdes feitas por agdes de cariter cultural, do gesto, do movimento, da congregacio, da persisténcia e da exposicao possivel violéncia (BUTLER, 2018 p. 84). Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 288 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas Diversos coletivos atuaram no Complexo neste periodo, cada qual elegendo para si titicas e temas proprios, dentre os quais citamos a violéncia policial, 0 problema das familias removidas e a condugao de politicas habitacionais, necessidade de lugares para usufiuto coletivo. Em comum, guardam as conexdes ampliadas que supendem os confins temporais ¢ dissolvem as limitagdes espaciais, que ndo esto restritas ao Complexo do Alemio, repercutindo em outros conjuntos de favelas ou mesmo em favelas de outras cidades. O modo de fazer torna-se to importante quanto 0 que fazer — propriedade do ativismo performative. Vejamos como estas agdes se dio no tertitério. © projeto urbano proposto incluia a melhoria habitacional, a qualificagio de espacos piblicos e a reconfiguragio do sistema vidio para garantir 0 acesso de servigos piiblicos a todas as dreas do Complexo ~ coleta de lixo, ambulaucia, transporte coletivo —¢ implantagdo de um teleférico conectado ao sistema de tres e metr6. No entanto, apenas este iiltimo foi privilegiado. Obra mais vistosa e simbolica do conjunto de intervencées, 0 teleférico forte resisténcia por parte considerével da populago, que alegava, ao menos, a pouca abrangéncia do sistema e a dificuldade de acesso das estagdies, situadas nos topos dos morros. Outros muitos problemas foram relatados, analisados e discutidos por pesquisadores de diversas reas e pelos proprios ativistas (FONTES). Mas para discussdo ora em curso é possivel ater-se a alguns pontos principais. ‘Nao deveria surpreender que ha uma consideravel heterogeneidade entre as éreas do Complexo do Alem&o. Um dos espagos de maior movimentagio é a Rua da Assembleia, na favela Alvorada, onde hé uma pequena praga proxima ao vigésimo pilar do teleférico (contando a partir da estagao de trens de Bonsucesso). A rigor, trata-se de ‘um espago residual, um vazio urbano que resultou da demoligao de casas, vias e comércio. Esp6sito-Galarce e Coutinho (2016) mostraram a inventividade envolvida na apropriagaio esos dos espagos que resultam ca maneira parcial e incompleta pela qual o poder puiblico realiza intervengdes. E é justo nessas espécies de fiestas que os coletivos resolvem produzir suas ages de cariter performético. Uma breve descrigaio de suas ages pode contribuir para situar 0 problema, Durante as obras do PAC, Coletivos como Ocupa Alemio, Barraco #55 e Raizes em Movimento produziram mobiliirios e hortas urbanas em diferentes favelas do Alemfio. As reas residuais séo ao mesmo tempo o resultado concreto ¢ a expressdio metaforica consistente de uma pratica urbanistica preocupada operagées de grande escopo. As vilosidades urbanas tomam-se propicias a intervencao ativista. Circulando Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 289) RUA, Carlos Henrique de pela s 0 pode-se perceber que, nao fosse essa atitude, estas areas vazias poderiam ser convertidas em lixio ou estacionamento dos moradores. Vale ressaltar que entre 0s efeitos mais sensivel decorrentes da pacificagao, das modificagdes urbanas e da ampliagio de crédito de varejo no periodo aqui em questo esté a aquisigiio de mobiliario, eletrodomésticos e veiculos. A proposta de abrir espago nos intersticios da favela alimenta a possibilidade de tornar 0 espaco em algo comm a todos. Havendo 0 cenério, ha a ago, e muitas foram as, atividades conduzidas nesses lugares formados a partir da agregagao coletiva. Ribeiro (2014) reflete que ao contrario das atividades que reiteram a percepcfo roteirizada do mundo, as agdes abrem espago para 0 que ainda nao se vislumbrou no horizonte, sendo 0 ativismo agio situada contra a “passividade frente & torrente das. representagdes dominantes da vida coletiva que alimentam 0 senso comum” (Ribeiro, 2012, p. 62) As ages repercutem de modo mais evidente nas metrépoles periféricas — e com vigor redobrado nas periferias destas, poderiamos acrescentar — onde as precariedades das condigdes de vida impulsionam hibridagdes entre as disputas diversas enfrentadas em seu territérie, © actimulo destas contradigdes proporciona acizramento nas diferentes experiéncias de sociabilidade em areas como o Alemio. Nesta perspectiva, mesmo diante das dificuldades de organizagao social e politica, os espacos formulados nessas tensdes & embates, permitem que atores reelaborem continuamente seus modos de agio. E esse refazimento que Ribeiro (2014, p.78) denomina criticamente pela categoria ativismo, ou Figura 1. Evento musical na “Pracinha do Barraco’ Fonte: fotografia elaborada por ativistas do Barraco #55 Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 290 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas Figura 2 — Construgdo da “Pracinha do Barraco”. na Alvorada. Fonte: fotografia elaborada por ativistas do Barraco #55 Assim, os jovens no Complexe do Alemio, nesse periodo de movimentadas intercorréncias, demandam a transformacio do presente e realizam trabalhos para suprir Jacunas — por exemplo, houve instalago de pontos de énibus, bancos para que passageiros esperassem as vans e moto taxis do sistema alternativo de transporte — quanto almejam uum horizonte futuro mais abrangente para a vida na favela. Os espagos transformados pelos ativistas nao se limitavam a atividades (pegar énibus, coletar o Lixo), pois abrigaram debates piblicos, exposicdes de arte e urbanismo, oficinas urbanas, apresentacdes musicais e outras, cujo valor fundamental produzir visibilidade e aparecimento. Algo nada desprezivel mum contexto marcado pela segregacio e pelo tempo regulado sobretudo por fungdes produtivas, materiais, e a sociabilidade & dependente dos acordos instiveis entre as estruturas de poder: facgées do crime, estado policial. Constrangimentos protagonizados pela policia e o assédio que exercem sobre as ‘reas vazias sfo frequentemente relatados por moradores. Qualquer espaco livre tende a ser visto como algo sem uso. Segundo ativistas, estar na rua sem propésito & algo mal visto por este poder ali constituido, Com efeito, o que os ativistas procuram produzir stio lugares potenciais, vivos, capaz de reunir atividades, revertendo assim a logica restritiva, miilitarizada e autoritaria que impera nesse temmitério. Segundo Facina (2013, p. 9). as priticas de controle policial ocorrem justamente num dos poucos tertitérios da cidade do Rio de Janeiro onde a rua possui um significado contrastante com os processos de ‘os mais abastados. A privatizagdo que afetam fortemente a vida urbana de b performatividade ativista tenta fazer emergir sentido positivo em estar nas ruas, mas sfio nuitos os obsticulos se apresentam na trajetdria desses coletivos Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 291 Figura 3 — Primeizas agbes sealizadas na Alvarada pelo Coletivo, em associagAo a outros grupos de ativistas. As performances empregam formas diversificadas de fazer politica Fonte: fotografia elaborada por ativistas do Barraco #55 Primeiramente, pode-se dizer que a nogdo de pertencimento em relagio aos espacos livres nio é igualmente compattilliada por todos. Ha vozes que apoiam as ages policiais como alternativa violenta ao cotidiano do tréfico. No auge da politica pacificadora, o enfrentamento armado foi reduzido e estabelece-se regras minimas para realizagao de bailes e demais eventos musicais. Ou assim argumentava parte dos moradores. Seja como for, encontramos um limite a performance como nogao agregadora de perspectivas e trajetérias diversas, 0 que limita sua desvinculagio & questées de identidade enunciadas por formulacdes teéricas. A linguagem articulada por meio de acdes culturais e intervencdes temporarias tem grande apelo, mas pouca duragdo. Em 2012, o Coletivo holandés Cascoland, rede colaborativa que retine artistas, designers e arquitetos, realizou obra “palco piiblico” em parceria com 0 coletive Barraco #53. Trata-se de pequeno tablado multifincional e acessivel situado numa trincheira aberta para durante as obras do teleférico, Em sua curta Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 RUA, Ativsmo e performance: aspectas da alianea dos corpos nas ruas existéncia 0 palco foi utilizado principalmente por criangas. Hoje, resta do equipamento apenas alguns poucos vestigios e seu exemplo nao foi replicado para demais favelas. Este exemplo reforgam uma limitagdo relativa efetividade implicada neste ativismo. Embora as consequéncias de longo prazo jamais possam ser previstas, as ages coletivas perderam folego até arrefecerem por completo. No entanto, propde-se focalizar aqui que os jovens ativistas do Complexo langaram mao do que tinham a seu alcance para aprimorar repert6rios, praticados em contextos muito diversos e variantes quanto a0 propésito. Com efeito, incorporaram formas de agir seja de movimentos diretamente atrelados & cidade, ou de outros que utilizam as ruas para protestar e demandar. ‘Nessa mesma direciio, ressalta-se que caracteristicas e propriedades de cada lugar influenciam nas mudangas e improvisos operados nos repertérios. A ripida transformagio fisica identificada no Complexo do Alemfo exigiu acomodagées por parte de ativistas na tentativa de atingir maior mimero de aderentes aos problemas em questio. As performances potencialmente contribuem para desfazer nogdes assentadas, mas podem também ser limitadas por condicionantes dificeis de serem desfeitos. Caso do que se compreende a respeito dos limites entre espacos puiblicos e privados em uma area de favela, feita pelo esforco acumnlado de diferentes geracdes. Embora as vielas do Alemao nao sejam espagos previamente configurados para © exercicio politico, tonaram-se uma potencial sinédoque do lugar piiblico a partir destas agdes — 0 que nos remete & expressdo “politica das ruas” aqui mencionada. Por sua poténcia, o termo ajuda a explicar de forma mais aproximada as demandas e percepgdes de ativistas alm daquilo que pode ser formulado por slogans e palavras de ordem. As performances so experiéncias politicas dos corpos. A performatividade & marca de wm ativismo urbano recente que no Alemao ¢ em tantos outros lugares resulta de ampla gama de ideias em circulagio, Formas de agir que pretendem transformar a cidade em lugar possivel da emaneipacio coletiva. Consideragies Come vimos, a nogdo de performance ocupa espago nada irrelevante nas anilises de estudiosos que acompanham aces contestatérias recentes no espaco urbano. O termo nos ajuda a compreender » pluralidade de agdes empregadas por ativistas nas ruas, exercendo uma pritica politica muito distinta daquela verificada nos meios tradicionais para © exercicio politico. As performances esto associadas 4 disposicao dos préprios Revista Rua | Campinas -SP | Volume 26 - Niimero 1 | p. 277-295] Junho 2020 293 RUA, Carlos Henrique de ativistas em produzir uma esfera de aparecimento por meio da reunigo piblica de seus corpos. Com isso, oferecem um potencial grau de visibilidade para suas demandas que escapa as formas de protesto ja assimiladas por movimentos politicos. Ainda: pode-se dizer que performances operam no sentido de superar premissas e enunciados, dentre os quais, a propria ideia de um espaco piblico e de usufimto comum Contextos de favelas sofiem répida e por vezes violenta transformagao, e por isso tentamos justapor algumas perspectivas teéricas ao conjunto de agdes identificadas no Complexo do Alemdo que tinham o propésito de confrontar, por meio de agdes culturais nas mas, os projetos urbanos realizados no ambito do PAC. © campo politico contencioso, isto é, fora das formas institucionais pré- configuradas, e a ideia de performance aparece como forga politica agregadora, E algo que nao nos deixa naturalizar vinculos de sociabilidade e experiéncias nos espacos. Por isso sto ideias produtivas para pensar as metrdpoles no presente e suas assimetrias, em especial, aquelas verificadas em favelas como as situadas no Complexo do Alemio. A alianga entre os corpos acomoda a possibilidade de refletir em contextos como estes, em que espagos se transformam com incrivel velocidade ¢ os atributos stio muito instiveis ¢ indeterminados. © projeto urbano para © Alemio considera desigualdade intra-favelas como aspecto menor numa perspectiva de mudanga ampla e duradoura. As priticas ativistas assinalam que este objetivo nao pode prescindir de uma participacdo ampla e efetiva, que refute toda convergéncia totalizadora. No Alemio, a apropriagaio de repertérios de protesto praticados em contextos por meio da manipulagao de signos urbanos, apesar de seus limites, é forma a ser investigada por outras angulacdes, o que tende a formar um campo contundente de reflexao ¢ aco urbanas. Referéncias ALONSO, Angela. As teorias dos movimentos sociais: um balanco do debate. Lua Nova, So Paulo, n. 76, pp. 49-86, 2009. ALONSO, Angela. 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Fonte: fotografia elaborada por ativistas do Barraco #55 Laboratorio de Estudos Urbanos — LABEURB Niicleo de Desenvolvimento da Criatividade - NUDECRI Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP hitp://Avww Jabeurb.unicamp. br Enderego: LABEURB - LABORATORIO DE ESTUDOS URBANOS UNICAMP/COCEN / NUDECRI CAIXA POSTAL 6166 Campinas/SP ~ Brasil CEP 13083-892 Fone/ Fax: (19) 3521-7900 Contato: http:/‘www.labeurb.unicamp.br/contato

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