HERDER, J. Também Uma Filosofia Da História para A Formação Da Humanidade

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Também uma filosofia da historia para a formacao da humanidade “Teuoonginal ‘Tradupio, nots e posticio capa Fexocomposigio cepaginacio Impressto ‘eacabamento ‘Tiragom Copyright Bigoes Depésito legal 1sEN Auci eis Prmosorte pan Guscruorre un Bapuno er Mescrmer Johann Gottried Herder Jost M. Jus ‘atgora Neograf, Artes Grifias, Lda Lisboa IAG ~ Anes Grificas, Lda Lisboa 1500 exemplares 1 Jose M, Justo Eacoes Antigona Aniigona Aparado 4192 1504 Lisboa Codex N= 85199195 972-608-0827 I | | aaa Filosofia da historia para a formagio da humanidade Primeira Secgao. Quanto mais se clarifica a investigacao das épocas, mais recuadas da hist6ria universal, das suas migragoes, as suas linguas, costumes, inventos € tradigdes*, tanto mais plausivel se torna, a cada nova descoberta, 4 tdeta de que a origem da globalidade clo género humano foi uma $6. Estamos cada vex mais perto de compreender que ditoso clima era esse no qual um tnico casal de seres humanos, sob as mais suaves influéncias da providéncia criadora e assistido pelo inteiro favor das Gircunstincias, péde comerar a entrancar 0 fio que cepois, por entre tamanho emaranhado, tio longe e tao Jongamente havia de se desenrolar, No qual, portanto, cada primitivo acaso pode ser entendido como institute de uma providéncia matemal destinado a promover éesenvolvimento daquela frigil dupla semente da totalidade do género humano, com toda a sabedoria € prudéncia que € nossa obrigacao reconhecer no criador de do nobre espécie € no olhar que langa sobre os milénios até a etemidade. Natural era, pois, que esses primeiros passos do desenvolvimento fossem tio simples, tio delicados € maravilhosos como os que nos sto dadas ver em todas as produgdes da natureza, O gro cai a terra e parece momer; 0 embrido forma-se secretamente — coist que as luneras do fil6sofo dificilmente poderiam aprovara prior! —€ surge jé completamente configurado. Tal como nos € * V4, as modemas investigagdes histricas¢ viagens pela Asia ccontada pelo mais antigo dos livros a historia dos mais, remotos passos do desenvolvimento do género humano pode, pois, parecer-nos to breve e apécrifa que sejamos levados a envergonharmo-nos de com ela nos apre- sentarmos perante 0 espirito filos6fico do nosso século, que odeia precisamente tudo 0 que possa haver de maravilhoso € secreto, quando é por isso mesmo que ela & verdadeira, Bastar, portanto, uma Gnica consi- deragio, Nao € verdade que mesmo o olhar de toupeira deste século iluminadissimo acha necessirio que tenha havido uma maior duragio da vida, uma acgao lenta ¢ continuada da natureza, resumindo, uma idade herdica de wm tempo de patriarcas, para que nos remotos antepassados de toda a posteridade se tenham podido constituir € implantar para sempre as primeiras formas proprias do género humano (fossem elas quais fossem)? Agora, mais nao fazemos que passar pelo mundo de fugida. Quais sombras pairando sobre a terra! © bem e 0 mal que conosco trazemos (e pouco & o que connosco trazemos, porque € apenas aqui que tudo adquirimos) quase sempre esti destinado a desaparecer connosco: (8 nossos anos, 0 decurso das nossas vidas, os modelos que adoptémos, as tarefas que empreendemos, as impresses que tivemos, a soma das nossas acces sobre 0 mundo, tudo isso nao passa de um impotente sonho de uma noite em claro... Palavreado! Ti os levas, etc. Se hoje, em vista da enorme acunmulacao de forcas de capacidades que encontramos jf desenvolvidas & nossa disposi¢io, em vista da répida circulagao das cenergias que nos percorrem e da sucesso acelerada das nossas emogdes, clas fases da nossa vida ou dos planos que vamos arquitectando — sucessao na qual cada etapa se apressa 2 perseguir © a aniquilar a que a antecede, a semelhanga do que acontece com as bolhas de um liquido —, em vista ainda da relagao tantas vezes contraditéria entre a forca ea reflexio, entre a capacidade € a ponderacao, entre as dispasigdes e a boa vontade, ‘como é proprio de um século de decadéncia, se em vista de tudo isto parece ser de uma sabedoria calculada e imtencional 0 facto de um grande conjunto de forcas 8 pueris serem moderadas e a0 mesmo tempo garantidas or uma curacao breve, impotente, do jogo da vida entdo, inversamente, nao tera sido imprescindivel aquela longa vila dos patriarcas, aquela vida comparivel a das Arvores, calma ¢ quase eterna, para que a humanidade se pudesse enraizar e estabelecer no que toca as suas primeiras inclinagdes, aos seus primeiros costumes e instituigoes? Que inctinagées foram essas? Que haviam elas de ser? As mais naturais, as mais fortes, as mais simples! Servindo de eterno fundamento a formacao do homem a0 longo de todos os séculos. Sabedoria em vez de cigncia, temor a Deus em vez de sabedoria, amor pater- nal, amor dos esposos, amor filial em vez de amanei- ramento.e devassido, orenagao da vida, poder senhorial ‘e governacio divina de uma casa, imagem primordial de toda a ordenacao e organizagao social... E experimentar ‘em tudo isto o prazer simples, mas profundo, de se ser humano,.. Como poderia tudo isto ter sido, nao direi criado, mas apenas constituido ou desenvolvido, senao Por intermédio daquele poder sereno ¢ eterno que dimana de um modelo, da autoridade que se espalha a volta de uma série de modelos? Segundo 0 nosso padra0 de vida, cada invencao ter-se-ia perdido de cem maneiras diferentes... Surgiria, como uma quimera, e como quimera logo desapareceria... Que criatura, na Sua permanente menoridade, estaria em condigdes de se apropriar da descoberta? Qual o inventor que, pronto a cair de novo na menoridade, estaria em condigdes de obrigar essa criatura a apropriar-se da sua invencio? F assim, os primeiros lagos da humanidade desmanchar-se-iam no momento da sua origem... Ou entio, como teria sido possivel que fios tio frégeis, tao pouco desenvolvidos como eram aqueles, tivessem chegado a formar estes fortes lagos, sem os quais, mesmo apés milénios de formagao, 0 género humano se desmorona por simples cenfraquecimento? Nao! E uma alegria temerosa que me assalta quando me imagino perante um desses patriarcas do mundo, qual cedro sagrado! A sua volta junta-se uma centena de jovens arvores que florescem, uma floresta ° bela que € ja posteridade e eternizagio! E reparai! 0 velho cedro continua a florir. Langou bem longe as raizes em redor ¢ com a seiva € a forga que por elas circulam da vida a jovem floresta. Onde quer que 0 patriarca tenha ido buscar 0s conhecimentos de que dispée, as suas inclinagdes costumes, por diminutos que sejam esses conhecimentos, sejam eles quais forem, © certo é que, pela mera contemplacdo serena, poderosa, duradoura, do seu exemplo divino, se constituiu © se enraizou ja 2 sua volta um mundo, uma posteridade para tais inclinagdes e costumes! Dois milénios nio ‘contavam mais que duas geragoes Mas, mesmo desviando o nosso olhar desses inicios, heréicos da formacto do género humano, perguntarse-a — observando as meras ruinas da histéria do mundo fazendo sobre elas um rapidissimo raciocinio 4 la Voltaire —que outros estados poderiamos nés imaginar propicios a0 desencadeamento, a formagao e a sedimentagdo das primeiras inclinagdes do coracao humano, que nao fossem aqueles que de facto encontramas jé postos em jogo nas tradigdes da nossa mais antiga historia. A vida de pastoricia no mais belo clima do mundo em que a natureza esti sempre pronta a prevenir ou a satisfazer as mais simples necessidades, a vida nomada, mas calma, das cabanas dos patriarcas, com tudo 0 que da e tudoo que subtrai a vista, © conjunto de necessidades, de ‘ocupagdes ¢ de prazeres dos homens desse tempo, 20 lado de tudo aquilo que, fixado na histéria ou numa fabula, vinha orientar essas ocupagoes e prazeres... Pense- =e tudo isto debaixo da luz natural, da luz viva que Ihe era propria... Que jardim divino nao era esse, escolhido para a educagao das primeiras, das mais delicadas plantas da espécie humana! Veja-se este homem, pleno da forca € do sentimento de Deus, mas sentindo tudo de um modo tao intimo sereno! Como a seiva que anima 0 tronco da arvore, como o instinto que, repartido de mil maneiras pelas criaturas, cada uma delas singularmente 10 anima, com tanto poder como no homem s6 pode agir este impulso natural, silencioso € so, que nele se concentra! Em redor © mundo inteiro, pleno das gragas de Deus: uma imensa e valorosa familia do pai de todos 1iés constintinda a especticulo quotidian desse homer! Preso a esse mundo pelas suas necessidades € pela respectiva satisfacao, defrontando-o esforgadamente com © seu trabalho, com os seus cuidados, com as suas defesas mais apropriadas.... Que forma de pensamento no havia de se constituir, que coragao nao teria que se Formar debaixo desse céu, em meio de um tal ambiente de vitalidade! Enorme e impido, como a natureza! Como ela, sereno € decidido em todas os seus passos! Na perspectiva de uma longa vida, experimentanclo do modo mais unitario o prazer de ser 0 que era, aceitando 4 divisto do dia estabelecida pelo repouso e pela fadiga, pela necessidade de aprender e de fixar, vede, assim era ‘um patriarca por si 6... O qué, porsi si? Onde poderia ele experimentar de modo mais intimo a béngao divina que atravessava toda a natureza do que na imagem de uma humanidade que, desenvolvendo-se progres sivamente, prolongava 0 seu sentir? Na mulher, para ele ceriada, no filho, imagem sua semelhante, na espécie por Deus preferida que em seu redor ¢ depois dele devia povoar a terra. A béngio de Deus era pois a béngio que ele proprio distribuia: seus eram os que ele governava, seus aqueles que educava, seus os filhos € 45 filhos dos filhos, até a terceira ou a quarta geracao, que a sua volta se juntavam para por ele serem conduaidas dentro da religito e da justica, da ordem da felicidade... £ este o ideal — que nada tem de artifi- cioso — de um tempo de patriarcas em que tudo agia dentro da natureza; fora deste ideal nao € pensével uma finalidade da vida, nao € concebivel um momento de conforto ou de aplicagio das energias... Meu Deus! Que estado podia ser mais apropriado formacio de uma natureza nas suas mas simples, mais necessirias, mais daveis inclinagdes? Ser humano, homem, mulher, pai, mie, filho, herdeiro, sacerdote, govemante € patrarca de uma linhagem... Assim constituido para entrar nos milénios un que se haviam de seguir! E assim — sem se confundir com 0 reino de mil anos nem com as elocubragdes dos poetas — o territorio do patriarca, a tenda que ai ergueu, continuara a ser para todo o sempre a idade de ouro da infazncia da humanidade. Que desse mundo de primitivas inclinagdes faziam também pare certos estados de vida que, por uma enganosa visio ditada pelo nosso tempo, somos frequen- temente levados a imaginar terem sido demasiado estra- nnhos € pavorosos, é coisa que poderia mostrar-se com duas ou trés indugoes. Por exemplo, concebeu-se um despotismo oriental a partir das manifestages. mais exageradas ¢ mais violentas de impérios, quase sempre fem decadéncia, que s6 no derradeiro pavor perante a aniquilag’o eminente dele se socorreram (mostrando precisamente com tais medidas despéticas 0 seu pavor perante a aniquilac2o). Ora como, segundo os nossos conceitos (¢ talvez mesmo sentimentos) europeus, nao se pode falar em coisa mais horrenda do que despotismo, consolamo-nos com este gesto de o afastar de nds e de © situar em circunstancias em que certamente nao era a coisa horrivel que, com base no nosso actual estado, ncle imaginamos", Sera possivel que debaixo da tenda do patriarca, onde reinavam exclusivamente 0 respeito, © exemplo, a autoridade, fosse 0 medo — na estreiteza do vocabulério da nossa politica — a mola propulsora da governagio..” Oh homem, nao te deixes enganar pela palavra do fil6sofo profissional”* ¢ trata antes de ver que respeito, que temor era aquele! Nao é verdade ‘que na vida de cada homem ha uma idade em que tudo ‘se aprende pela indinagao, pela formagao orientada pela autoridade, e em que nada se adquire pelo frio e seco * Boulanger, Du despotieme riontal Velie, Philasaphie de Fis: Ioire, De a Tolerance, ec; Helvetius, Del sprit, Disc. Il, A mulidio de seguidores de Montesquieu © imitarorum sersom plecus 2 exercicio da razao? Uma idade em que as especulagoes, as reflexées sobre 0 bem, a verdade ¢ 0 belo nao onseguem penetrar os nossos ouvidos, reter a nossa tengo, acordar 0 nosso espirito, € em que, pelo contra rio, estamos inteiramente receptivos aquilo a que é costume chamar preconceitos e impressoes inculcados € despertadas pela educacdo? Vé bem! Como sio fortes € profundos, como sio necessirios ¢ impereciveis esses ppreconceitos assimilados sem barbara celarent nem demonstragdes de direito natural! Pilares que suporam tudo © que sobre eles vier a ser depois construido! Melhor ainda, germes a partir dos quais se desenvolve tudo 0 que € posterior e mais fraco — por glorioso que seja o nome que se the atribua —, ja que cada um na0 raciocina sendo segundo as suas impresses interiores, Esses preconceitos so entdo os tragos mais sélidos, perenes, quase divinos, que encantanti ou destioem toda a nossa vida e com os quais, se nos abandonam, tuclo nos abandona. Vé agora como 0 que € necessidade incontomavel na infancia de cada individuo nao 0 € certamente menos na infancia da giobalidade do género humano. Vé como aquilo a que, nesse tenro germinar da huma- niidade, chamas despotismo — e que de facto mais n20 era que autoridade patemna aplicada na governacio do lar e da descendéncia — conseguia realizar coisas a que hoje, equipado com a frigida filosofia do teu século, te vés obrigado a renunciar! Como conseguia, por certo nao demonstrar, mas antes fixar em formas eternas 0 {que era justo e bom, ou pelo menos o que parecia sé-lo! E como sabia, adicionando a justiga e a0 bem um brilho dle coisa divina, de frato do amor paternal, envolvendo- -08 no doce tegumento dos habitos primitivos, juntando- -lhes toda a vivacidade das ideias da infancia que eram asdo seu mundo e todo o deleite das primeiras experién- cis da humanidade, conferir-lhes 0 poder magico de uma recordacao, de um memoravel sinal, a0 qual nada, nada neste mundo se pode comparar! De um modo tao necessario, to bom, téo util a globalidade da espécie, langavam-se os fandamentos que por outra via nao B teriam podido ser langados, nao teriam sido langados com a mesma facilidade e profundidade... ¢ que permanecem langados! Séculos € séculos foram depois edificando sobre esses fundamentos, a sucessio tempestuosa das eras soterrou-os — como as areias do deserto soterraram a base das piramides —, sem contudo conseguir abali-los... Permanecem langados! E bem langados, pois que tudo sobre eles repousa. E tu, Oriente, que és solo de Deus, foste justamente ‘escolhido para tal fim! A delicada sensibilidade propria desses territérios e a ligeireza de uma imaginagao que oa e que tanto agrado experimenta em tudo revestir de ‘um brilho divino, 0 respeitaso temor face a tudo o que é poder, autoridade, sabedoria, forca, marca de Deus, € a0 mesmo tempo aquela entrega pueril que neles muito naturalmente — mas de modo incompreensivel para ‘Gs, europeus — vem misturar-se ao sentimento de respeito, 0 estado de vida do pastoreio, despreocupado, disperso, pacifico, idéntico afinal 20 do rebanho, e que nada mais pretende do que ser vivido suavemente ¢ sem fadiga sobre uma planicie abengoada por Deus, tudo isto, recebendo, umas vezes mais, outras menos, 0 apoio das circunstincias, ndo podia por certo deixar de vir a oferecer mais tarde importantes materiais 20 despotismo dos conquistadores, € to importantes que talvez 0 despotismo se eternize de facto no Oriente, porque até hoje nunca houve nenhuma governacdo despética oriental que tenha sido derrubada por forcas exteriores, estrangeiras, e sempre aconteceu que, quando tais governagdes cairam, foi debaixo do seu proprio peso, Precisamente porque nada se Ihes opusera e tinham podido desenvolver-se desmesuradamente. F certo que ‘esse despotismo produziti muitas vezes os mais terriveis efeitos e, como dird 0 filésofo, 0 mais terrivel de todos & © facto de nenhum oriental, enquanto oriental, ter ainda ‘uma nogio aprofundada de uma constiuigao politica melhor, verdadeiramente humana... Mas, mesmo admi- tindo tudo isso, que merece ser examinado posterior mente, ndo seri verdade que, nos primordios da humanidade, sob a equilibrada governacio patemal, era 4 precisamente o oriental, possuidor daquele seu delicado sentido de crianga, quem tinha as melhores condigées para aprender com felicidade ¢ obediéncia? Tudo era saboreado como se de leite materno ou de um néctar fermentado pelo pai se tatasse! Tudo era guardado num coragio filial e fechado com o selo da autoridade divina (© espirito humano recebeu as primeiras formas de sabedoria ¢ de virtude com uma simplicidade, uma imensidade e uma elevacao que hoje — para dizer de modlo abreviado—, no nosso mundo eurapeu, filaséfico € frio, nao tém absolutamente nenhum termo de comparacdo. E @ precisamente porque jd nao somos capazes nem de compreender essas formas, nem de as sontir (para nao falar da nossa incapacidade de as saborea’), que as sidicularizamos, as negamos ou as interpretamos mal. E com isso fornecemos a melhor as provast [Nao haja divida de que a religito era parte integrante desse estado de coisas, ou melhor ainda, a religiao era -o elemento em que tudo isso vivia e se movia». Mesmo que desviemos 0 nosso olhar daquela marca divina sensivelmente impressa pela criagao e pelos primeiros cuidados dispensados 20 género humano (tao necessarios Aeespécie como. cada crianga sdo necessrios 08 cuidados dos pais logo apés © nascimento), e uma vez que o ancio, © pai, 0 rei representava Deus de um modo tao natural, e que, com a mesma naturalidade, a obediéncia a vontade paterna, a fidelidade aos antigos habitos ¢ a submissto respeitosa 20 minimo sinal do superior — que consigo transportava a meméria das tempos mais antigos* — se misturam com uma espécie de sentimento religioso infantil, pergunto entao se sera obrigatorio que tenham sido (como, cheios de certeza, somos levados @ fantasiar pelo espirito ¢a sensibilidade do nosso tempo") auténticos impostores, verdadeiros criminosos a impor tais ideias, a inventa-las astuciosamente, a usi-las desen- freadamente em proveito proprio. £ bem possivel que, Montesquieu, Fort des fois 24, 25. * Voltaire, Philosophie de 1histoire; Helvetius, Boulanger, et. 15 para 0 nosso continente filosofante, para a nossa época cultivada, para a nossa constituigéo politica de livres pensadores, um tal sentimento religioso, se se tornasse © elemento dentro do qual se movimentassem as nossas accdes, fosse, no plano extemo tanto quanta no interna, ‘extremamente desonroso € prejudicial (creio bem que, Por infelicidade nossa, € mais que isso: € inteiramente impossivel). Admitamos, pois, que os mensageiros de Deus, se hoje nos aparecessem, seriam impostores ‘riminosos... Mas Sera que nao vemos que para o espirito daquele tempo, daquele lugar, daquele estidio do género humano, tudo era completamente diferente? Basta ver ‘que, em toda a parte e com toda a naturalidade, a mais antiga filosofia e a mais antiga forma de governagao teve ‘que ser teologia! O homem comeca por se espantar com todas as coisas para s6 depois chegar de facto a vé-las. S6 por meio do maravilhamento chega depois a ideia clarificada do verdadeiro e do belo, 86 por meio da submissdo € da obediéncia consegue chegar a possuir pela primeira vez a nogio do bem. E decerto que 0 mesmo se passa com o género humano na sua globa- lidade. Ja alguma vez fizeste uso da gramatica filos6fica para ensinar uma crianga a falar? Ou da teoria abstracta do movimento para a ensinar a andar E usccte alguma demonstragao da teoria da moral para the poderes dar a compreender um qualquer dever, os mais ficeis € os mais dfceis? Foi-te necessério usar de tais coisas, sentiste- vie no direito de as usar, pudeste usé-las? Deus seja louvado precisamente por ninguém ter esse dircito ¢ rninguém poder fazer tal coisa! Quereris censurara divina ctiagao a natureza delicada desta sua criatura, ignorante € por isso mesmo curiosa de tudo 0 que a rode crédula € por isso desperta para todas as impressbes, confiante e décil e portanto sempre disposta a scr ‘conduzida na direcea0 do bem, sempre pronta a tudo captar com imaginagio, espanto e admiracao, e, consequentemente, a apropriar-se de maneira deveras sOlida e maravilhosa de todas as coisas, da fé, do amor, dda esperanga, que «no seu tenro coracao desempenham © papel de sementes tinicas de todos os conhecimentos, 16 de todas as inclinagées e de toda a felicidades. Ou sera que nao consegues ver em cada um dos teus eros — como thes chamas — 0 veiculo, 0 tinico veiculo de todo ‘0 bem? Que loucura a tua... Quereres marcar essa ignorin- cia que € toda ela admiracdo, essa imaginacao que € respeito, esse entusiasmo que & sentido infantil das coisas, com o ferro ignominioso das mais negras e diabélicas imagens do teu século, com as marcas da mentira e da superstigao, da estupidez e da servidao, € inventares um exército de diabélicos sacerdotes, de tirinicos fantasmas que s6 existem no teu espirito! E que loucura mil vezes maior nao seria a tua se generosamente pretendesses conceder a uma crianca, de acordo com 0 refinado gosto do teu tempo, o teu deismo filosofico, a tua virude ¢ a tua honra estéticas, o teu amor geral pelos povos, todo ele carregado de uma tolerancia que €opressao, exploracio e iluminismo! A uma crianga? Ah! Es tu a crianga, crianga ma e esttipida como nenhuma utra! Querias roubar-Ihe as suas melhores inclinagoes, a solidez ¢ a espiritualidade da sua natureza! Querias transformé-la, se 0 teu insensato plano triunfasse, na coisa mais insuportavel deste mundo: um anciao de trés anos de idade! © nosso século gravou sobre a testa, com agua forte, uma palavra: Filosofia! Uma palavra que parece exercer uma forga profunda no interior da cabega Precisei pois de responder ao olhar de relance que € proprio dessa critica filosdfica exercida sobre os tenipos ‘mats antigos — e do qual andam hoje cheias, como sabido, todas as Filosofias da Historia © Historias da Filosofia — com um outro olhar de relance (por muito que tal me contrarie € repugne), sem que me sinta Obrigado a ocupar-me das consequéncias de um © do outro, Vai, leitor meu, avanga e sente, ainda hoje, milénios depois, como se conservou pura a natureza criental, deixa que a hist6ria dos mais remotos tempos te oferega essa natureza como coisa viva, e «encontrariis inclinagdes que 56 podiam ter-se constituide naguelas Paragens, daquela maneira, destinadas a servit os grandes designios ao género humano reservados pela (providéncia..» Que enorme retébulo, se eu conseguisse ‘mostrar-to tal como era! Continuou depois 4 providéncia a desenrolar 0 fio do desenvolvimento: do Eufrates, do Oxo, do Ganges, até a0 Nilo e até as costas fenicias... Passos enormes! E quase sempre um sentimento de respeito 0 que me deixa o antigo Egipto, cada vez que interrompo BS minhas observacdes sobre 0 papel que desem- penhou na histéria do género humano. Essa terra em que havia de se ir formando nas:suas inclinagdes € hos ‘seus conhecimentos uma parte da _adolescéncia da humanidade, tal como no Oriente se tinha formado a respectiva infancia! Do mesmo modo quase imper- ceptivel, com a mesma facilidade com que ai se produzira a génese, produzia-se agora aqui a meta- morfose. No Egipto ndo havia pastagens nem pastoreio. Perdeu-se pois 0 espirito patriarcal que reinava nas tendas dos primitivos némadas. Mas havia, quase com a mesma facilidade, a possibilidade de uma riquissima vida agricola, proporcionada pelas lamas do Nilo € fertilizada pelas suas Aguas. E assim se transformou 0 mundo pascoril — € com ele os respectivos costumes, inclinagdes e conhecimentos — num territério de agricul- ores, Extinguiu-se o nomadismo e surgiram as habitagoes fixas e a propriedade fundiéria, Foi preciso medic as cerras, determinar 0 que pertencia a cada um, proteger os bens de cada um, Passou portanto a ser também possivel encontrar cada um junto dos bens que Ihe pertenciam. E passou entio a haver seguranga do territrio, administraczo da justiga, ordem, policia, tudo © que nunca teria sido possivel na vida nomada do Oriente. Surgiu assim um novo mundo. Consttuiu-se de seguida uma indkstria, coisa que a vida abengoada do ocioso habitante das tendas, desse eterno estrangeiro em peregrinagao pelo mundo, nao tinha podido conhecer. Inventaram-se as artes, das quais os pastores nio tinham 18 tido nem a necessidade nem o desejo, E, como nao podia deixar de ser, dado o espirito de exactidio dos cegipcios e a sua laboriosa entrega a agricultura, tais artes atingiram um grau muito elevado de perfeigao mecanica ‘Tudo era atravessado pelo sentido do zelo mais diligente. da eeguranga e da ordem. Todos tomavam parte na criagio das leis e cada um estava obrigado a obedecer- -lhes, por necessidade e por prazer. E assim, 0 homem fencontrava-se limitado por essa legistago: as inclinagdes {que noutro tempo tinham sido simplesmente as de um pai, de um filho, de um pastor, de um patriarca, tornavam- se agora inclinacdes de cidadaos, de habitantes de uma mesma aldeia ou de uma mesma cidade, A crianga tinham-the sido retiradas as vestes dat inacéncia. Agora cera j4 um rapaz que se sentava na carteira da escola para aprender a ordem, a aplicagao a0 trabalho e a moral dos cidadaos. Um rigoroso confronto do espitito oriental com 0 espirito egipcio deveria mostrar que nao € um mero jogo esta analogia que estabelego com a sequéncia das diferentes idades da vida do individuo. £ evidente que, por muito que esta segunda idade tivesse em comum ‘coma anterior, j se no apresentava sob aquela tintagem celestial que caracterizava a primeira e que estava agora substituida por uma atitude terrena € pela coloragao propria dos campos cultivados. Os conhecimentos dos egipcios nao tinham mais aquele caricter de oréculos paternais da divindade, antes revestiam jé a forma de leis, de regras politicas para proporcionar a seguranca, € ‘0 que daqueles ainda sobrava tornara-se apenas imagem sagrada pintada sobre as tibuas, para nao desaparecer por completo e para que o jovem viesse deter-se perante ela, alimentar com ela o seu desenvolvimento e dela aprender a sabedoria, As inclinagdes dos egipcios ja nao tinham aquela dogura infantil do Oriente: tinha enfra- quecido 0 sentimento da familia, transformando-se em preocupagio com a familia, com a condigto social & com 0 talento artistico, que — a semelhanga do que acontecia com 0s terrenos agricolas e com a habitagao era transmitido por heranca juntamente com a condigo » social. A tenda ociosa de outros tempos, em que o homem dominava, tinha-se transformado agora numa casa de trabalho, na qual a mulher passara a ser também ‘uma personalidade e onde o patriarca, tornado artista, ia ganhando a sua vida, A liberdade dos prados de Deus, repletos de rebanhos, tinha sido substituida por um imenso campo cutivado, ponteado por aldeias e cidades. A crianga que se alimentava de leite e mel era agora um Fapazito que recebia bolos como recompensa pelo ‘cumprimento das suas obrigagoes... £ certo que tudo era animado por uma nova virtude, a que poderiamos chamar a entrega, a aplicaga0 20 trabalho, a lealdade civica egipcia, mas jf nao era o modo de sentir dos orientais, Veja-se como, ainda hoje, repugnam ao oriental a agricultura, a vida da cidade, a escravidao das oficinas! © pouco que se iniciou em todas essas priticas a0 longo de milénios! Continua a viver ea agir com a liberdade de ‘um animal dos campos. Pelo contrario, veja-se como era detestavel e repugnante aos olhios do egipcio a vida do pastor € tudo 0 que dela faz parte! Tal como depois 0 ‘rego, mais refinado, se clevou também acima do egipcio que Ihe parecia um animal de carga. Era apenas a repugndncia do rapazito pelas fraldas da crianga, 0 6dio do adolescente pela escola que aprisiona o rapaz, Mas Fo seu Conjunto sto ts momentos sobrepostos numa insepardvel sequéncia. O egipcio nao teria sido egipcio sem 0 ensino ministrado a crianga no Oriente e 0 grego nndo teria chegado a ser grego sem a aplicagao escolar dos egipcios. A repugnancia dos que vém depois s6 mostra que houve desenvolvimento, progressao, que se foram subindo 05 degraus da escada! Espantosos, na sua simplicidade, 03 caminhos da providéncia! Captou e educou a crianga pela religiao para proporcionar ao rapaz o desenvolvimento mais no precisou do que atribuir-lhe necessidades e darlhe a benfazeja obrigacdo escolar. O Egipto mio dispunha de astagens; consequentemente os habitantes tinham que aprender a agriculura, E a providéncia facilitouslhe amplamente essa dificil aprendizagem dando-the a fertlidade do Nilo, © Egipto nao dispunha de madeiras, 20 r era preciso aprender construir com pedra, E nao faltavam nem as formagdes rochosas de onde a retirar nem a comodidade das aguas do Nilo para a transportar. E veja-se a que alturas se elevou a arte de trabalhar a pedra! E como promoveu o desenvolvimento de outras artes! O Nilo transbordava; eram precisas medicdes, desvios do curso das Aguas, represas, canais, cidades, aldeias... De quantas maneiras estavam aqueles homens presos & terra! Mas quantas solugdes nao the oferecia também a propria terra? Uma terra que, quando olho para 0 mapa, me parece um auténtico quaciro cheio de figuras em cada uma das quais todos os sentidos frutificavam. Tao original eram este territério € os seus produtos que 6 podia ter nascido af uma panticular espécie humana! Muito aprendeu ai 0 entendimento humano ¢ talvez nao haja nenhuma outra regiao do mundo em que essa aprendizagem tenha sido to manifestamente uma cultura enraizada no solo. A China representa uma COpia do que af Se passou: Compare-se € condlua-se. ‘Também aqui volta a ser loucura querer isolar das Grcunstancias de lugar © de tempo, daquela idade juvenil do espirito humano, uma Ginica virtude egipcia € avalié-la com o instrumento de medica proprio de um tempo diferente! Se € verdade que, como disse atrés, jé 6s gregos se enganavam tio flagrantemente sobre os egipcios e se os orientais detestam os egicios, parece-me que © nosso primeiro pensamento deveria ser 0 de os ver apenas no seu lugar proprio, porque doutro modo, sobretudo na nossa perspectiva de europeus, nao conseguiremas ver mais do que uma caricatura totalmente deformada. O desenvolvimento fez-se a partir do Oriente ¢ da infancia, Era natural, portanto, que a religido, 0 temor, a autoridade e 0 despotismo continuassem a ser © veiculo da formagao cultural; porque com um garoto de sete anos ainda nao é possivel discorrer racionalmente como se faz. com um homem adulto ou com um ancido. E natural € também que, para 0 nosso gosto, um tal veiculo de formacao parega estar envolvido por uma casca demasiado rija, dando frequentemente origem a a contrariedades ¢ padecimentos que identificamos com as brigas de rapazes ou com as guerras entre populagdes vizinhas. Poderds descarregar fel 8 tua vontade sobre a superstisao egipcia e 0 poderio dos sacerdotes — como fez, por exemplo, esse magnifico Platdo europeu, que apenas comete o erro de tudo querer moldar em demasia segundo 0 modelo grego... Serd tudo verdade! E tudo estaria certo, se © mundo egipcio tivesse sido feito para 1i, para 0 teu tempo € para o teu lugar. f Obvio que as vestes do garoto sao demasiado pequenas para o gigante! E ao jovem que se faz acompanhar ca noiva repugna 0 cencarceramento da escola! Mas vé bem! Também o teu twaje € demasiado comprido para o rapazinho! Nao compreenderds ta— supondo que alguma coisa conheces do espirito egipcio — que essa tua sagacidade bur- guesa, 0 teu defsmo filosofico, 2 tua frivolidade facil a tua mundanidade, a tolerancia, a gentileza, 0 ireito dos povos € toda 2 tralha que faz parte do teu vocabulirio $6 teria por consequéncia, uma vez mais, \ransformar o rapaz num miseravel anciio de sete anos de idade! © rapaz tinha que estar limitado, Tinha que haver uma certa privagao de conhecimentos, de inclinagées, de virtudes, para que pudesse desenvolver-se 0 que rele existia, para que ele pudesse desenvolver 0 que ‘agora se seguia na ordenagao dos factos do mundo, ou Seja, © territ6rio, 0 lugar! Assim, todas essas supostas desvantagens eram para ele vantagens, ou males incontorniveis, tanto quanto para a crianga 0 S40 as ideias estranhas com que vai sendo educada ou para o rapaz as caminhadas © a disciplina da escola. Porque has-de querer arrancé-lo ao lugar que Ihe € proprio, & idade que é a sua? Para matar o pobre garoto? E como 6 grande a biblioteca dos livros que assim procedem! Umas vezes tomando 0s egipcios demasiado antigos ¢ fazendo esforgos tremendos para encontrar uma enorme sabedoria nos seus hieréglifos, nos primeitos passos que deram nas artes, nas suas sucessivas consti- * Shaftesbury, Characteristicks, TI), Miscellanies, 2 tuigdes policiadas*, outras vezes denegrindo-os profun- damente por comparacao com os gregos™, pelo simples facto de no serem gregos e serem egipcios, como _quase sempre acontece com os amantes das coisas gregas cada vez que abandonam as suas amadas paragens, Bvidentes injusticas! E manifesto que o melhor historiador da arte da antiguidade, Winckelmann, se limitou a ajuizar das obras de arte dos egipcios segundo critérios gregos. Nao ha diivida de que as contestou muito bem nas caracterizagdes que produziu, mas 0 que praticamente nao fez foi caracterizé-las segundo a sua propria natureza e tipo, de tal modo que quase todas as frases que compoem © res- pectivo capitulo se limitam a deixar transparecer a Unilateralidade e a miopia das abservagdes do autor. ‘O mesmo se passa com Webb, quando opde a literatura egipcia 4 dos gregos. E 0 mesmo fazem tantos outros que sobre os costumes ou sobre a governaglo dos egipcios se limitam a escrever com espirito europeu... 0 que acontece com os egipcios € que quase sempre se cchega a eles vindo da Grécia, e portanto com uma visio estritamente grega; e que coisa pior Ihes poderia acon tecer? Mas, meu caro grego... Estas estituas — como, bem poderias perceber em todos 0s pormenores — estavam destinadas a ser tudo menos 0 modelo das belas-artes segundo o tew ideal! Nesse teu ideal nto faltam a seducao, a acco, 0 movimento, tudo coisas que 0 egipcio desconhecia ou de que as seus objectivos precisamente 0 desviavam. As estétuas egipcias s6 podiam, ser idénticas as mvimias! Recordagdes dos pais, dos antepassados falecidos, com 0 méximo rigor das dimer ses € dos tragos faciais, obedecendo a centenas de regras estabelecidas as quais 0 rapaz se encontrava pre- so... E portanto naturalmente sem sedugdo, sem acco € sem movimento, porque estavam na posigdo propria da sepultura em que os membros s6 conhecem a imobilidade * Kircher, D Origny, Blackwell, ec. + Wood, Web, Winckelmana, Newton, Voltaire, defendendo um ou 0 outro ponto de vista, pro loco et tempore 23 € 4 morte. Eternas miimias em marmore! Vé bem, era isso que tinham que ser! E sdo-no de facto! $40-n0, no que a arte tem de mais elevado quanto a reprodugio mecinica! No ideal do respectivo propésito! Fis que se desfaz.0 belo sonho das tuas reprovacdes! Se tomas uma lupa ¢ aumentas dez vezes 0 tamanho do rapaz para o transformar num gigante iluminado pelos teus instru- mentos, deixas de poder explicar seja o que for que Ihe diga respeito. Perde-se por inteiro a atitude caracteristica do rapaz e 0 que fica esté muito longe de ser um gigante! Os fenicios, por muito aparentados que estivessem. com os egipcios, eram em certa medida — ou tornaram- Se — 0 seu contririo em matéria de formacio cultural Osegipcios, pelo menos nas épocas mais tardias, detesta- ‘Yam 05 mares ¢ cs estrangeitos € entregavam-se, dentro das suas fronteiras, a0 «desenvolvimento de todas as aptidées ¢ artes do seu pais. Os fenicios passaram montanhas ¢ desertos, chegaram junto da costa e fundaram um novo mundo sobre as aguas do mar... E que mar? Um mar comparivel a um estreito entre duas ilhas, um golfo entre diferentes paises, que, com as suas costas,ilhas e profusdo de cabos parecia ter sido destinado, ter sido especialmente configurado para faciltar a uma nagdo a tarefa de © sulcar e de procurar outras terras,. Oh Arquipélago, Mar Mediterraneo, que lugar célebre te eservou a hist6ria do espirito humano! Enorme este ovo passo do desenvolvimento! Um primeiro estado de comerciamtes, todo ele fundado sobre a actividade comercial, € que pela primeira vez levava 0 mundo a alargar-se verdadeiramente para além da Asia, semeando Povos e unindo 0s povos! Decerto que este estado que ‘agora surgia quase nao tinha pontos de contacto com a vida pastoril do Oriente. Desapareceram 0 sentimento da Familia, 2 religito e 0 prazer calmo da vida do campo, A forma de govemacio deu um poderoso passo em direcgao a liberdade da repiblica, conceito que, em 24 mes rigor, nem os orientais nem os egipcios tinham tido. Numa orla maritima em que se praticava o comércio era inewtavel que se conser, por assim lier, aistocr- cas, aristocracias de cidades, de casas, de familias. Tudo isto trazia consigo uma transformagao na forma da socie~ dade humana, Assim, 2 medida que ia desaparecendo 0 Gio pelos estangeios e o fechamerto face 2 ues W108 — e por muito que os fenicios nao visitassem ou- snags movidos pol simples amor Iumanidace— ia-se ornando visivel uma espécie de amor entre povos, de conhecimento entre povos, de dircito regulando as relagGes entre povos, e€ perfeitamente natural que uma tribo fsolada, uma pequena populagio da remota Célquida, nao pudesse ter qualquer conhecimento de tudo isso, Alargava-se o mundo: os diferentes grupos humanos tomavam-se mais préximos, mas ligados ene Si Com 0 comércio desenvoiveu-se um conjunto dle anes ¢,sobreno un halide roalmente nove orientada para o que fosse vantajoso € cémodo, para a dpulenet © prt fasto. Deum 8 ole, age dos homens ao trabalho regredia do plano da dificil indGstria de construgao de pirimides e da agricultura para ode um Jogo prazenteio de pequenas ocupacdes- Em vez daqueles obeliscos sem utilidade pritica construidos de uma s6 pega, as tEcnicas de construséo viravam-se agora para os navios, compostos de muitas pega, oda eas om uma iad expecta O sncio imével da pirimide cedia o seu lugar a eloquéncia escultura ¢ dos outros oficios dos egipcios passava-se agora a uma espécie de vantajosa brincadeira com 0 vidro, com metal, purpura ou tela, recortados € dese: nhados, com artefactos trazidos do Libano, com ia: vas0s ou adomos.. Era como se se convidassem as cutras nagoes a usar fodos estes rinquedos.. Vejase ento que mundo de diferentes ocupagdes nio era este! De diferemtes objectives, de diferente sentido da utilidade Ge diferentes inclinacdes e aplicagoes da alma! Era natu- ral que fosse preciso transformar a dificuldade da nisteriosa escrta hieroglfica »na arte facil, simplificada e 25 praticavel dos algarismos e do alfabeto. Aos olhos do habitante das tendas do pastoreio ou das cabanas da agricultura este homem que agora habitava as costas maritimas dentro de navios, este mareante sem patria deambulando por entre os povos, havia de parecer uma Sriatura wralmente estranha, O oriental nao deixaria de Ihe criticar 0 enfraquecimento do sentido da humanidade €0 egipcio a debilidade do sentimento da patria. Censurd- -lo-iam, um pela perda do amor e da vida, 0 outro pelo abandono da lealdade € da aplicagzo 20 trabalho, um Por nada saber do sagrado sentimento da religito, ‘outro por expor publicamente pelas feiras e em farrapos os segredos das ciéncias.- Tudo verdade! $6 que 0 que assim se desenvolvia era por outro lado qualquer coisa de muito diferente (que alias nao gostaria de comparar com 0 que antecede, porque ndo € do meu agrado compara’), a irrequietude e a asticia fenicias, um novo género de comodidades e de prazeres que eram jf a Uransigao para 0 gosto grego, um novo tipo de conhe- cimento dos povos que era a antecimara da liberdade ‘grega. O egipcio e 0 fenicio eram pois, por maior que fosse 0 contraste entre os respectivos modos de pensar, filhos gémeos de uma mesma mée oriental, destinados a colaborar na formacao da Grécia e, assim, na mais ampla formasao do mundo. Um € 0 outro foram portanto instrumentos de transmissio nas maos do destino. F, se ‘me € permitido permanecer na alegoria que tenho vindo @ usar, diria que o fenicio era aquele rapaz um pouco mais crescido que decidiu vagabundear pelas ruclas e elas pracas ¢ que vendeu por poucas moedas os restos da sabedoria e dos talentos ancestrais. Quanto nao deve 2 formagao cultural da Europa aos fenicios e 20 seu espirito de negociante pouco escrupuloso.,..Mas chegou ‘© momento de passarmos a0 belo adolescente grego. Do mesmo modo que com prazer ¢ alegria nos recordamos sobretudo da nossa adolescéncia, pois foi ela que desenvolveu as nossas forcas e 0s nossos 6 membros até 2 flor da vidi, que elevou a8 nossas ‘capacidades até aos deleites da conversagao.e da amizade, {ue orientou todasas nossasinclinagbes para aliberdade € 0 amor, para o prazer e a alegria, e a todas emprestou ‘a dogura de um primeiro acorde, do mesmo modo que somos levados a achar que esses anos da nossa vida foram a nossa idade dourada e permanecem o Elisio das rnossas memérias — pois qual de nds consegue recordar a sua primeira infncia? —, envoltos num brilho incom paravel, precisamente porque nesse momento a flor que rompia estava prenhe de todas as nossas futuras espe- rancas ¢ acgdes, também na historia da humanidade a Grecia hd-de permanecer para sempre o local em que festa mesma humanidade, qual flor entre as mios da jovem noiva, viveu o mais belo periodo da sta juventude. O rapaz cresceu, abandonou ja a cabana e a escola, ci slo... Um nobre adolescente a quem ungiram os membros, amado por todas as Gracas, amante de todas as Musas, vencedor de Olimpia e de todas as competicdes, espirito corpo em unio formando uma nia flor desabrochada! Estavam ja praticamente esquecidos os oriculos da infancia eas imagens didacticas da penosa aprendizagem ‘escolar. Mas era com base em tudo isso que 0 adolescente ia desenvolvendo quanto pudesse fazer falta a sua sabedoria e a sua virtude juvenil, a0s seus cAnticos ¢ a sua alegria, os prazeres ea vida, Desprezava 0 grosseiro das artes aplicadas tanto quanto a mera faustosidade barbara e a demasiada simplicidace da vida pastoril, Mas a tudo isso foi buscar alguma coisa que canaizou pars 0 florescimento de uma nova e bela natureza. Transformou (0s oficios manuais em belas-artes, 2 serviddo do trabalho agricola em associagio livre dos cidados, a complexa profusto de significados das apertadas regras egipcias nas mais variadas, belas ¢ simples fantasias gregas. Que ‘enorme grupo de novas e belas inclinagdes e capacidades, das quais os tempos anteriores nada tinham conhecide embora constituissem o respectivo embriio! Nao sera verdade que era preciso que 0 exercicio da governagao tivesse descido do plano do despotismo patemo orien- tal até ao das corporagées terrtoriais dos egipcios e das semi-aristocracias dos fenicios para que posteriormente Pudesse surgir a beleza da ideia de repiblica, no sentido. rego, «a obediéncia em unido com liberdade enlagadas na palavra pitria? © botdo floria: grécil fenmeno da natureza! Ficou conhecido pelo nome de -liberdace ‘srega! Fui preciso que os costumes se desviassem do ‘seu sentido patemal préprio do Oriente e daquele espitito eaipcio de quotidiana aplicacio 20 trabalho para se ‘suavizarem por intermédio da asticia do viajante fenicio, E veja-se! O botdo floriu em toda a sua beleza! A ~“despreocupacio, a brandura © a amizade entre povos vizinhos-. Foi preciso que 0 amor fosse lentamente diminuindo a espessura dos véus do harém para poder tomar-se 0 belo jogo dos antecessores gregos de Venus, dle Amor ¢ das Gracas. E foi assim que a mitologia, 4 Poesia, @ filosofia, as belas-artes surgiram como slesenvolvimento de antiquissimos germes que aqui encontravam © lugar ¢ a estac4o apropriados a0 seu florescimento e a disseminacio de um aroma que atravessaria 0 mundo inteiro. A Grécia tomou-se pois 0 berco das qualidades humanas, do amor entre os povos, do que pode haver de belo na legislagio, de tudo.o que € agradvel na religito, na moral, no estilo, na literatura, OS costumes e nas artes... Tudo era alegria juvenil, graciosidade, jogo e amor! Houve ja quem desenvolvesse suficientemente, pelo menos em parte, o tema das circunstincias que contri. buiram para esta produslo tinica do género humano, Limito-me a colocar esas circunstancias no contexte mais vasto das conexdes gerais entre as épocas © os POvos. Veja-se este formoso clima grego e a espécie de homens bem constituidos que nele cresceu, a fronte altiva ¢ livre, os sentidos despertos e penetrantes.. Fra autenticamente um terrt6rio de confluéncia da civilizagao ‘no qual convergia tudo 0 que vinha dos dois extremos ¢ ue se tornava objecto de uma transmutagao conduzicia com simplicidade e nobreza. A jovem esposa via-se secvida por dois rapazes, um de cada lado, e tudo 0 que precisava de fazer era idealizar, emprestar beleza a quanto Ine era oferecido. Foi precisamente a mistura dos modos 28 de pensar fenicio e egipcio— mistura em que mutuamen- te se condicionavam naquilo que um tinha de estreiteza nacional e 0 outro de desajeitada teimosia — que formou © espirito dos gregos e 0 preparou para o ideal e para a liberdade. Vede agora as circunstincias particulares que conduziram as suas divisdes e aliangas desde os tempos mais remotos: separados por diferentes populagdes, Tepablle colin, exe clas condo ae rito comum, pelo sentimento de serem uma s6 nacao, tina 6 patia‘€ de flarem ua 56 ingual Vede a3 especinlscondicbes ds formacio deste expito comm, desde a expedicio dos Argonautas ¢ das campanhas contra Tria até a vitéria sobre os persas € a derrota frente aos macedénios que significou a morte da Grécia! Vee a instinuicdo dos jogos de outras competigbes em que todos se reuniam, sempre com pequenas diferengas € alteragées respeitantes a cada populagio € a cada 1 de proveniéncia...! Tudo isso e tantas outras coisas es Golda Une lca us crested le também aqui constituia a mais bela toralidade. Lata e solidariedade, esforgo moderagao. As forgas do espirito, humano atingiam a mais bela proporcio: este a harmonia da lira grega! Mas quem poder negar que assim forgosamente se perdia também uma pane inimaginavel das antigas seivas, da primitiva enengia Hic eommpecceiler pas eect alg epee mento dos hierdglifos egipcios, se tivesse evaporado durante a travessia maritima alguma coisa da profun- didade, da significagao, da naturalidade que constituiam © caricter dessa nacao. O que 0 grego conservou nao ‘era jé sendo uma formosa imagem, um jogo, um deleite para os olhos — ou 0 que se queira chamar-ne por ‘oposigio a severidade egipcia. Também ndo queria mais! A religito oriental tinha sido retirado 0 véu sagrado ¢, muito naturalmente, uma vez que tudo se tinha transportado para o especticulo, para 0 teatro, para a danga e para a praga pablica, pouco demorou para que se transformasse sem fibula e depois, belamente ampliada, envolta num discurso sedutor, poetizada ¢ repoetizada, em sonho ou em lenda destes homens 2 mulheres em idade juvenile, A sabedoria oriental tinha sido subtraido © manto dos mistérios que a cobriam e assim se transformou na conversagio facil, no ensino instituido € nas disputas piblicas das escolas e dos mercados. A arte egipcia tinha sido arrancado o pesado traje do teabalho profissional e cum ele se perdeu tambem tudo 0 que nela havia de demasiado mecinico e de austeridade técnica que no constituia aspiraca0. dos _BregOs. O colosso reduziu-se as proporcoes da estitua e © templo gigantesco transformou-se em palco de fepresentagdes. A ordem e a seguranca egipcias foram- -se gradualmente atenuando no meio da diversidade ‘grea. Podia pois, em mais que um sentido, o velho sacerdote proferir as conhecidas palavras: -Oh criangas, temas criangas que sois, que nada sabeis ¢ tanto falas, que nada fazeis € tanto brincais, que nada tendes ¢ tac belamente tudo apreseniais.» Mais violenta ainda soaria 2 vor do antigo oriental, de dentro da sua cabana de Patriarca, para 05 acusar de terem substituido a religito, a humanidade € a virtude por um amontoado de galanteios proprios para meretrizes. Pois seja. © homem € um vaso onde néo cabe a perfeiclo... Para avangar tem sempre que perder qualquer coisa. A Grécia avancava, logo a industria e a politica egipcias deixaram de Ihe servir, pelo simples facto de que os gregos no eram egipcios, ndo tinham um Nilo, 4 sagacidade comercial , dos fenicios deixou de Ihe servir, porque a Grécia nao tinha 0 Libano ou a India atras de si. E.0 tempo em que tinha sido possivel uma educagao oriental ja tinha assado. Chega! Era 0 que era: a Grécia! Imagem origi- nal ¢ imagem modelo de toda a beleza, de tudo o que € gracioso e simples! Botdo em flor do género humano.. Pudesse ela ter durado eternamente! Greio bem que a posiga0 em que coloco a Grécia contribui também para desenredar +a etema disputa relativa 2 originalidade dos gregos ou a imitagio de modelos oriundos de nagdes estrangeiras:. Como em qualquer outra matéria, se as partes sc tivessem entendido melhor uma a outra, hd muito que teriam também chegado a acordo, Que a Grécia recolheu de outros 30 lados as sementes da cultura, da lingua, das artes e das ciéncias, parece-me coisa indesmentivel ¢ € facil demonstré-lo no que toca a certos exemplos da escultura, da arquitectura, da mitologia, da literatura. Mas que os _gregos nao se limitaram a recolher todos esses elementos, ‘que lhes conteriram uma natureza totalmente nova, que ‘em cada modalidade da sua acco 0 -belo»— no sentido proprio da palavra — foi indubitavelmente produgao sua, creio poder demonstrar-se com a mesma seguranca, se se der algum desenvolvimento as ideias. Nada do que tinha sido oriental, fenicio ou egfpcio conservava ja 0 seu caracter. Tudo isso se tomara grego. E em vérios aspectos pode dizer-se que os gregos quase abusaram da sua originalidade, pois tudo revestiram e recompu- seram a seu moclo. Da maior invengao ¢ da narrativa mnais importante até a palavra ¢ ao sinal mais clementares, tudo est’ cheio dessa sua acco, E a cada passo, em cada nagdo, € 0 mesmo que encontramos... Quem quiser continuar a construir sistemas ou a discutir palavras que ofagat Veio depois a idade adilta das forgas e dos esforcos da humanidade: © tempo dos romanos, Por oposigao 0s gregos, a quem cabiam as belas-artes e os exercicios juvenis, caracterizou-os Virgilio de uma maneira simples: tu regere imperio populos, Romane, memento. ‘Como que simultaneamente andava perto de apontar (© traco caracteristico que 0s distingia dos povos nor- dicos, que talvez.os superassem em dureza barbara, em, vigor no ataque, em bravura bruta. Pelo contrario, com este tw regere imperio populos, © que faz € idealizar a bravura romana. Virtude romana! Sentido romano! Orgulho romano! A generosa 31 disposicao da alma para desviar o olhar da volipia, da brandura e mesmo dos prazeres mais requintados, e agir ‘em prol da patria. A coragem herdica mas serena de esperar, reflectir, preparar e fazer, em vez de avangar temerariamente e correr riscos desnecessirios. Era 0 inquebrantével caminho de alguem que nao se deixa assustar por nenhum obsticulo, de alguém que sabe ser srande precisamente na desgraga e que nunca desespera Era afinal o grandioso plano, sempre acalentado, de nao ‘se darem por satisfeitos enquanto a sua guia nao cobrisse © mundo inteiro... Quem for capaz de cunhar a palavia que possa captar todas estas qualidades e para além delas ainda a equidade viril desse povo, a sua sagacidade, a riqueza dos seus projectos, das suas resolugoes, das svas realizagdes e de um modo geral 0 conjumto de todos os empreendimentos que constituiram @ mundo edificado pelos romanos, que a diga! Por mim, bastard dizer que este era o homem, o homem que aproveitanda € desfrutando embora das qualidades do jovem, ji s6 dlesejava por em pratica maravilhas de bravura e virlidade. Com a cabe¢a, com o coracio e com a forca do braco! A que alturas se elevou o povo romano! Que templo sigantesco levantou sobre esse cume! O seu edificio militar ¢ estatal, os planos e os meios empregues na Tespectiva execugdo, que colosso universal! Poderia cometer-se em Roma urna velhacaria sem que o sangue jorrasse em trés partes do mundo? E os homens grandes € dignos deste império, que influéncia a sua! E onde chegou essa influéncia! E todas as pecas deste enorme mecanismo que, quase sem o saberem, se deixavam ‘movimentar por forcas afinal tao ligeiras! A que pincaros, a que solidez foram levados os instrumentos deste povo! © senado ¢ a arte da guerra, as leis e a disciplina, 0 intezesse romano e 0 vigor colocado na sua execucio..! Tremo perante tudo isso! O que nos gregos era jogo, prova juvenil, era agora organizacao séria e inabalavel Os padroes gregos, dimensionados para um pequeno palco, para um estreito istmo, para uma exigua reptiblica, levados com vigor ao seu ponto mais alto, tomavani-se agora feitos exemplares para o mundo inteizo, 32 ‘Tome-se 0 assunto como se queira, certo € que se tratava da smaturidade do destino do mundo antigor. O tronco da Arvore, tendo atingido o ponto mais elevado do seu crescimento, esforcava-se agora por abranger debaixo das sombras dos seus ramos outros povos & outras nagoes. Rivalizar Com 05 gregos, 0s fenicios, os egipcios ou os orientais nunca foi objectivo principal dos romanos, Mas, 20 terem aplicado com virilidade tudo 0 que antes deles existia, como se tomou grande 0 horizonte do mundo romano! Este nome unia povos e regibes que antes disso nunca tinham ouvido falar uns dos outros. As provincias romanas! Para todas elas se deslocaram os romanos, as legides romanas, a8 leis romanas, os modelos romanos dos costumes, das virtudes € dos vicios. Tinha-se rompido a muralha que separava as nagdes entre si, Estava dado 0 primeiro passo para a destruigao dos diferentes caracteres nacionais, para a assimilagao de todos eles numa tnica forma a que foi dado o nome de -povo romano-. £ evidente que 0 primeiro passo no consttuia ainda a obra na sua total- dade: cada nagio guardava ainda os respectivos direitos, liberdades, costumes e religito, ¢ acontecia mesmo que 6s romanos lisonjeavam esses povos trazendo para Roma fdolas das suas religides. Mas a muralha acabou por cair. Séculos de dominacao romana — coma se pode ver em todas as partes do mundo onde estiveram — exesceram ‘um enorme efeito: uma tempestace que atravessou as Ccimaras mais recénditas do modo de pensar nacional de cada povo. Com o tempo estretaramtse cada vez miais 295 lacos, € por fim a globalidade do império romano havia de se transformar praticamente numa tinica cidade de Roma e todos 0s subditos em cidadiios. Até que 0 r6prio império caiu, Ii pbstenhamo-nos de arescentar set 0 que For sobre vantagens e desvantagens. Falemos apenas da acco do seu efeito, Se, debaixo do jugo romano, todos os povos deixaram até certo ponto de ser os povos que eram e se, desse modo, se assist introxugao de uma politica de estado, de uma arte da guerra e ce um dieito dos povos de que até entio nao tinha havido exemplo. ao entio, enquanto essa méquina se manteve de pé ¢ depois, quando desabou cobrindo com 2s suas ruinas todas as nagdes do mundo romano... Haverd na historia dos séculos um outro momento em que se obtenha uma ‘mais ampla perspectiva? Todas as nagdes empenhadas €m construir sobre essas ruinas ou com o que delac oulam usar! Um mundo inteiramente novo de linguas, de costumes, de inclinagdes, de povos! Uma outra era que comeca! A perspectiva que se nas depara € a de um Yasto e aberto oceano de novas nacdes! Mas, chegados a esta linha de costa, lancemos ainda um tiltimo olhar ara os povos cuja historia tratdmos de percorren, 1. Ninguém no mundo sente mais que euas fraquezas da caracterizagéo geral. Pinta-se 0 quadro de todo um ovo, de toda uma época, de toda uma regio... Quem foi que assim pintémos? Tomam-se povos ou periods que se seguem uns aos outros para os reunit numa etema alternancia como se fossem as vagas de um mar Quem foi que assim pintémos? A quem se aplica a pala. ‘Yea que procura representar? Acaba-se sempre por captar esses povos ou esses periodos com um nada, debaixo de uma palavra geral, perante a qual cada um poder ensar e sentir o que quiser... Que imperfeito é o intra Mento da representagao! A que incompreensdes nos expomos! Quem ter notado que ha de indizivel na tarefa de dizer qual a propriedade especitica de um homem ¢ de assim dizer distintivamente aquilo que o distingue? De dizer como sente € como vive esse homen? De dizer quanto se tomam diferentes e quanto se tomam pertenca desse homem todas as coisas que os seus olhos vitam, quea sua alma avaliou, que o seu coracao experimentou? Ou de dizer a profundidade que reside no caracter de uma $6 nacdo, carcter que, por miais que o tenhamos observado e admirado, nio deixard de escapar a palavra € que numa tal palavra quase nunca se deixart Feconhecer, pelo menos o suficiente para poder ser 34 ‘ser lento, numa palavra, todo o oceano de povos um povo, dos seus habitos, das suas necessidades, da saisagem e do clima em que habita! Seria preciso comegar Sp eacraae a ae See ee ae a ser capazes da inquietude dos fenicios, do amor pela dades activas, em instintos nao contaminados, pees todas as outras inclinagdes, todas as forgas ae 35 pela totalidade da historia ¢ sente-te a ti mesmo em tudo. ‘© que encontrarest 6 entao estaris no caminho que te Poder conduzir & compreensio da palavra. Mas entdo ‘eras também chegado a0 momento em que se desvane- cerd a ideia de -que 0 que se te depara, cada coisa por si ¢ mdo tomado em conjunto, é tu prdprioe Tu, tudo tomado em conjunto? Quintesséncia de todas as épocas. © povos? Bis que se revela bem a loucura do projecto!, Cardcter das nagdes! S40 apenas os dados da respec- tiva constituicdo, da sua historia, que tém que decidir. Sera que um patriarca, para além das inclinagdes que Ihe atribuis, mao possuia outras? Seri que no podia ter possuido outras? E simples a minha resposta a ambas as Questées: “Sim, por certo! Por certo que possuia tragos acessOrios que facilmente se podem entender a partir dos fundamentais que acima indiquei (ou dos que nao ccheguei a indica), tragos que cu, e talvez outros como eu, que temos bem presente a historia dos patriarcas, conseguimos reconhecer logo na palavra. E mais incli. nados ainda estaremos para reconhecer que muitos outros tragos poder ter.. Numa outra regito, num dado tempo, com 0 progresso da sua formacio, sob circunstancias diversas... Por que razio Leonidas, César ou Abraao nao. haviam de poder ser homens galantes do nosso século? Mas nao foram! Sobre isso interrogaris a hist6ria, porque € disso que se trata E assim me deixo igualmente aprisionar nas contra- disdes da mintcia, no enorme pormenor dos povos das eras. Que nenhum povo continuow nem poderia continuar por muito tempo sendo aquilo que era... Que cada um, como acontece com cada arte e cada ciéncia € ‘com qualquer outra coisa, teve 0 seu periodo de cresci- mento, a que se seguiu 0 de florescimento e por fim 0 de declinio... Que cada uma dessas transformagoes durou to somente aquele minimo de tempo que a roda do destino humano Ihe pdde atribuir... Que, por tltimo, neste mundo nao ha dois momentos que sejam idénticos © que portanto nem os egipcios, nem os romanos, nem 5 gregos foram os mesmos ao longo de todas as épocas que atravessaram... Tremo de pensar nas sapientes 36 objecgdes que sobre tudo isto me podem ser feitas por stbias genes, sbretido pelos conhecedores de historia! AGrécia era composta por muitos paises; atenienses € be6cios, espartanos € corinteos eram tudo menos idemicos... Nao se pratcava a agticultura também na Asia? Nao terd0 0s egipcios praticado 0 comércio tao bem quanto os fenicios? Os macedonios nao foram Conquistadores compariveis aos romanos? Aristoteles no teri sido senhor de um espirito especulativo compa- rivel a0 de Leibniz? Nao seri verdade que os nossos povos n6rdicos ultrapassaram os romanos em bravura? Terio sido todos os egipcios, todos os gregos, fodos os romanos... Serio todos os raios iguais? Nao, mas nao deixam de ser todos eles ratos! Que aborrecido se toma falar para um péblico, quando somos obrigados a precavermo-nos constante- mente de objeccdes desta ordem, ou ainda piores, vindas daquela parte da audiéncia que gosta de gritar (porque a parte nobre e que pensa costuma calar-se), apresentadas sabe Deus em que tom, €20 mesmo tempo constrangicdos a defendermo-nos do imenso rebanho que, sem saber conde fica a direita e a esquerda, se poe a repetir as ditas objeccdes! Poderi haver um quadro geral sem hierar~ quizacio € ordenagao do conjunto? Poderse-4 obter uma perspectiva vasta sem se subir a uma certa altura? Se encostas os olhos a0 quadro € se 0 recortas nese ponto, se te poes a dissecar esse pequeno agregado de tinta, nunca veris a totalidade do quadro... Veris tudo menos 0 quadro! E se tiveres a cabega totalmente preenchida por um determinado grupo que tomou conta de ti, seré que o teu olhar esti em condicoes de abarcar, de ordenar, de seguir com cuidado a globalidade da ssequéncia das épocas em tamanha mutagao? Seras capa, de em cada cena isolar apenas 0 efeito principal? De acompanhar em siléncio todas as flutuagdes? E de, em seguida, atribuir a tudo isso © nome? Mas se 0 nio consegues, entao a historia cintila em vacilantes brilhos perante 0s teus olhos, Confusio de cenas, de povos, de eras... Comeca por ler € aprende a ver! De resto sabes, como eu sei, que cada quadro geral, cada conceito geral 7 nao passa de abstracgao... O criador € 0 tinico que pode pensar a unidade global de uma ou de todas a5 nagdes ‘em toda a multiplicidade que Ihes pertence e sem que 20 fazé-lo se desvanega a unidade. Il. Afastemo-nos entio decididamente dessas objec- s0es mesquinhas que ndo nos oferecem nem objective nem perspectiva, Situemo-nos na intengio que preside & grande sequéncia na sua globalidade © verifiquemos Como se tormam miserdveis xantos juizos em moda no nosso século a propésito das vantagens, das virtudes ou da felicidade de nagées tao distantes ¢ 120 diferentes, todos eles estabelecidos com base em meras genera. lidades aprendidas na escola Se a natureza humana nada tem a ver com uma divindade que autonomamente se orientasse para o bem, se tudo tem que aprender, se tem que se ir formando por sucessivos passos, se tem que ir sempre rogredindo numa luta gradual, € natural que se va formando, quase sempre, sendo mesmo sempre, nos dominios em que encontra motivos que a conduzem a virtude, a luta, a0 progresso. Em certo sentido dir-se-a pois que toda a perfeigio humana € nacional, secular e — se observarmos com 0 maximo rigor — individual. Nada se vai desenvolvendo sem que para tanto haja motivagoes préprias de uma época, de um clima, das necessidades, das circunstincias envolventes, do destino. Separadas de tudo o resto, as inclinagdes ¢ as potencialidades que Possam estar adormecidas no coragio nunca se transformam em capacidades priticas, Uma nagao pode, pois, por um lado possuir virtudes da mais sublime espécie € por outro apresentar caréncias, produzir excepgdes, mostrar contradigdes e incertezas capazes de espantar, Mas de espantar apenas aquele que transporta sempre consigo uma falsa imagem ideal da virtude, extraida do compéndio posto em voga pelo seu século, aquele que tem filosofia suficiente para querer encontrar © mundo inteiro quando olha para um pequeno pedago de territério. De resto ninguém se espanta! Para todos aqueles que quiserem reconhecer um coragaio humano a 38 partir dos elementos que fazem parte das respectivas ircunstancias de vida, tais excepgdes e contradigdes serio perfeitamente humanas: proporcdo das forcas € das inclinagées orientadas para um dado objectivo que rnunca poderia ser alcanyauo sem elas, Ou seja, regra, em vez de excepgdes. Dar-se-4 0 caso, amigo meu, de achares que aquela religido oriental, ainda na infincia, aquele apego 20 mais tenro sentimento da vida humana, produziriam a0 mesmo tempo fraquezas que condenas por comparagao com padrdes de outras épocas. Um patriarea no pode ser um her6i romano, um atleta grego, um comecciante dos mares. Menos ainda aquilo em que o ideal da tua citedra ou da tua disposi¢ao de momento gostaria de o transformar para depois 0 elogiar com falsidades ou 0 condenar com desprezo, Dar-se-d 0 caso de te parecer, ‘no confronto com modelos ulteriores, medroso, temeroso da morte, fraco, pouco industrioso, ignorante, supers- ticioso... Talvez até repugnante, se a doenca que te afecta os olhos tiver suficientemente progredido... Mas ele € apenas aquilo para que Deus, o clima, 2 época e 0 estidio de desenvolvimento do mundo puderam faz -1o: um patriareat Possui, pois, contra tudo aquilo que as Epocas posteriores perderam, a sua inocéncia, © seu temor a Deus, a sua humanidade! Nesses aspectos, para as Epocas que se Ihe seguem, permanecerd sempre um deus! O egipcio parecer-te-4 um ser rastejante, servil, um animal supersticioso e triste, duro para com os estranhos, ciiatura sem espirit, filha do hibito, que pdes em contraste umas vezes com a leveza dos gregos € a sua ‘capacidade de emprestar bele7a a tudo 0 que construiam, ‘outras com 0 gosto requintado de um filantropo dos ‘n08s0s dias que transporta na cabega toca a sabedoria € no cora¢ao 0 mundo inteiro, Que figura resulta! E aquela paciéncia inabalavel, aquela lealdade, aquela soberana paz, poderis compari-la com as amizades joviais dos -BtegOS, COM 05 seus jogos de sedugio em torno de tudo (© que pudesse ser belo ou agradavel? E esqueceris a ligeiteza dos gregos, o seu modo frivola de lidar com a religido, a auséncia neles de um certo amor, de uma 3» Certa disciplina e de uma certa honorabilidade, para ires ai buscar um ideal, que nao sei bem a quem pertenceria? Poderiam essas tas perfeicbes gregas ter-se desenvolvido a tal ponto € em tal grau independentemente destas caréncias? Repara bem, pois que a propria providéncia assim 0 no exigiu, ¢ apenas quis atingir 0 seu objective or via de um proceso de transformacdes, por via de luma continuidade que se estabelece & medida que no. vas forgas acordam e outras se apagam... Seri maior a sabedoria que possuis, tu, flésofo desterrado no extrema, norte do vale do mundo, munido da balanga infantil que 0 teu século te pés nas maos, Oh, sentencas arbitrérias de louvor e de condenacao que vamos buscar a um povo da Antiguidade, por nés descoberto, objecto da nossa paixdo cepa, para com elas aspergirmos © mundo inteiro! Qual o direito que vos assiste? Os romanos podem ter sido uma nacio inigua- Jada, podem ter feito 0 que ninguém conseguiu voltar a fazer. Eram romanos. Chegados a uma elevagio que dominava 0 mundo e a volta deles um Gnico vale A partir dessa elevacéo, desde a sua infancia, agiram sobre o vale... Que ha nisto de espantoso? F que hi de espantoso no facto de um pequeno povo de pastores ou de agricultores, vivendo algures no vale, nio se ter \wansformado numa criatura de ferro capaz de agit como eles? Que haveria de espantoso se este outro povo tivesse desenvolvido virtudes desconhecidas do mais nobre romano ou no facto de o mais nobre romano, no lugar elevado que ocupava, pressionado pela neces. sidade, se ter decidido, com sangue frio, pelo uso de crueldades que eram desconhecidas da alma do pastor ‘Ro seu pequeno canto do vale. No cume dessa maquina Bigantesca acontecia com triste frequéncia que o sacrificio de homens fosse considerado coisa de menor impor. Kincia, necessidade incontornavel ou mesmo (a quanto ‘chegas, pobre humanidade) um gesto benfazejo. Precisa- mente a mesma méquina que tomou possivel a ampli- tude a que chegaram 0s vicios, foi capaz de elevar as maiores alturas as virtudes, capaz de levar tio longe a acgdo desse povo. Seré que a humanidade, no estadio fem que hoje se encontra, consegue atingir a perfeigao pura? © cume confina com o vale, A volta do nobre espartano habitam hilotas tratados de modo infra- -humano. triunfador romano traz, juntamente com as cores vermelhas dos deuses, imperceptiveis salpicoe de sangue; A volta do seu carro traz pilhagens, ultrajes, volipias; a sua frente marcha a opressao; atras de si arrasta a miséria e a pobreza... Neste entendimento das coisas, dir-se-A entio que na cabana dos homens a Virtude € a caréncia habitam sempre em conjunto. Oh, bela poesia que cris a maravitha de um povo preferido da terra, envolto em sobre-humano esplendor A poesia também nos é stil, pois que também por interméclio de belos preconceitas se enobrece o homem Mas que dizer quando 0 poeta € um historiador, um filbsofo, como a maior parte se apresenta, € quando tmadel 0 conju dos écuos segundo a forma espe- fica — quase sempre tio pequena ¢ tao fraca — que 0 ae ee vossos classicos fantasmas do crepiisculo! Que sois vés luz da verdade? i ‘Uma erudita sociedade dos nossos dias* propds, por certo com a mais elevada das intengdes, a seguinte questio: -Qual 0 povo mais feliz da historia’ Supondo que bem comprcendo tal questo ¢ que ela se nao situa fora do horizonte de uma resposta humana, mais nao saberia eu dizer que 0 seguince: numa dada época e em dadas circunstincias cada povo ter encontrado um tal momento de suprema felicidade, caso contritio tais momentos nunca existiram. Repito, se de factoa natureza humana no € uma espécie de recipiente destinado a receber uma felicidade absoluta, independente e imuta vel — para usar as palavras com que 0s filbsofos a defi- ‘nem.—, tratari por certo, eem todas as circunstancias, de atrair sobre si tanta felicidade quanto Ie for possivel * Tais senhores deverio ter tido um ideal assustadoramente clevade, jé que, tanto quanto sei, nunca deram por completamente respondida nenhuma das quesioes flosoficas apresentadas 40 pblico, Dir-se-ia uma argila de grande ductildade, disposta a ganhar as mais variadas formas em diferentes sitvacoes, face a diferentes necessidades, debaixo de diferentes PressOes. Até a imagem da felicidade muda com os diferentes estados das gentes e dos tervtrrins em que habitam, pois que outra coisa é essa imagem senao o somat6rio da -satistagdo dos desejos, da realizacao dos objectivos, da dopura alcancada pela libemacao face a necessidades-, sendo que desejos, objectives necessidades se configuram totalmente na dependéncia do pais, do tempo, do lugar em que se vive? No fundo, toda a comparagao se torna duvidosa. Mal se modifique © sentido interior da Felicidade, mal se alterem as incl nagdes, mal aconteca que as circunstincias ¢ as necessidades externas comecem a constituir ea solidificar um diferente sentido... Quem poder comparar entre si diferentes satisfagdes de diferentes sentidos em mundos diferentes? O pastor e pai do Oriente, 0 agricultor e artista, o marinheiro, o atleta, o conquistador do mundo. Quem os poderd comparar? A felicidade néo reside na coroa de louras, na contemplacio do rebanho abencoado, no navio comercial ou nos estandartes arrancados ac inimigo, mas sim na alma que precisou de fazer, que se ésforcou, que conseguiv tudo aquilo que queria alcangar! Cada nacido traz em si o centro da sua felicidade, como ‘uma esfera traz em si o seu centro de gravidade! Tudo providenciou, a nossa boa mae. No coragto Colocou-nos disposicdes para a diversidade, mas cada luma delas em si mesma tdo pouco premente que a alina, mal consegue satisfazer uma parte das suas necessidades, logo toma os sons que nela foram despertados para os reunir na harmonia de um concerto que faz com que no sejam sentidos os que nao chegaram a despertay, a nao ser na medida em que, mudos e obscuros, servem de apoio a0 cAntico que se faz ouvir. Colocou disposigdes ara a diversidade no coragio humano, mas colocou também uma parte da multiplicidade a0 nosso alcance Ro circulo que nos envolve, € dew a0 olhar humang uma tal proporgio que, depois de breves momentos de ‘adaptagao, o circulo se constituiu em horizonte... Para la 2 do qual se nio ve, para i do qual pouco se pode éntico a minha natureza essentir! Tudo o que € idéntic ‘ Todo oque nel pode scr aside, toms-to chert da minha cobiga, do meu desejo, do meu esforso de ‘ y ureza das neces- aproprlagio, Para tanro dotou-me a nat Sirias armas, sficiente insensiblidade, frieze ceguera, 20 ponto de poder despertaro desprezo ea repugndncia Maz su objetivo fo o-somente ode me recondurt amim mesmo, de me fazer encontrar a satisfagio naque Ponto central que me transport. © prego apropriou-se tart quanto hea neces dasprodtes docx, © romano das do grego. Uma vez saciado, 0 resto c por terra, sem Ihe despertar cobiga! Ou entdo veja-se 0 gue se passa quando, neste process de consitvito a fees nacional pari ds nliagdesmacions, distincia entre dois povos se tomnou jé bastante grande © odio do egipcio pelo pastor ndmada, 0 seu desprezo ; 1 E © mesmo acontece com cla ligeireza do grego! E 0 exe co siege dss nade cus ining jo cls dau a que chanam fide s choca. cos tue chamar a sto preconceotendéncia da opal, aaconlsmo lnkadst Nas, no Seu tempo propo, reconsiog bom Porque € dele queef Ele que fa com quem povo se ie pars 0 seu pono central, om que se fortaleca em tomo do tronco a qu pertence, com que floresca no seu caricter proprio, com gue etorne mais dene portato mas ez nas sos nage ¢ ajeties. Neste aspedo,o Powe ms _ € quase sempre ieorame ¢ mais preconceuaso € quase sempre 0 Prmeio. A epoca em qu comers a dese deambulr por paragens distantes, em que deposita as esperangas nas viajens pelo estrangeiro,€ jf um tempo de doenga, de fatuléncia, de riqueza malsa, de pressen timento da moze. século, na sua genera- IIL, E 0 tom tfpico do nosso 2 lade, no seu pendor Fleséfica © flanrépio, gosta Ea eo eet ne reaoen es mals amigas épocas da humanidade, © nosso proprio ideal de virtude e de felicidade! Sente-se G0 capaz a set jui2, de avaliar os costumes alheios @ sua propria imagem! De os condenar! Ou de 0s embelezar poetics. mente! Ser que o bem nao se encontra espalhado pela terra? Precisamente porque o bem nao se deixa conter uma s6 forma da humanidade, num sé territério, ‘muliplicou-se em mil formas, deambula— eterno Proteu = Por todas as partes do mundo, através de todos os séculos... E, 4 medida que assim vai deambulando e {ransformando-se, nao € pela maior virtude ¢ felicidade os particulares que anseia... A humanidade permanece sempre humanidade.,. E contudo ha um plano destes anseios, desta deambulagao, que se torna visivel.. f esse o meu grande tema! Até hoje, quando se procurou tratar 0 tema da rogressio dos séculos, quase sempre surgiu a companhia de uma ideia favorita: progressao orientada para maior virtude © maior felicidade dos individuos particulares Para tanto, houve que enaltecer, sendo mesmo inventar, determinados factos, houve que diminuir ou silenciar os factos contrérios. Cobriram-se cuidadosamente certos Angulos, tomaram-se as palavras por outras palavras, a dlfusto das luzes por felicidade, certas ideias refinacias Por virude... E assim se transformou -0 progressive melhoramento geral do mundo numa quantidade de romances, em que ninguém acredita, ou pelo menos do podem acreditar os verdadeiros discipulos da historia do corag20 humano. ‘Outros houve que, apercebendo-se dos padecimentos de um tal sonho, sem contudo conhecerem melhor pos. sibilidade, trataram de ver 0s vicios e as virtudes nama eterna alterndncia, como os climas, as perfeigées humanas aparecendo e desaparecendo, como folhas caducas, os costumes ¢ as inclinagdes dos homens a voar ao sabor do vento, como folhas do destino... Nenhum plano! Nenhum progresso! Eterna revolugao! Tecido que se faz € desfaz... Trabalho de Penélope! Presos no remoinho, Projectam o seu cepticismo sobre tudo 0 que é virtude, Felicidade e determinacao do homem, injectando-o em toda @ historia, na religio e na moral... O tom mais moderno, mais 4 moda, cos modeinos filésofos, sobre. “4 tudo ds ranceses"éa dvida! A divide sob nl formas diferentes, mas sempre com um ituloofuscante--extraido da histéra’ do, mundow Conradigdes © ondulades.- Naufagase. Edo pouco que da orale ed esos se consegue salvar do naufrigio quase nao vale a p 7 Riper fallen gue etc progpesolet deve volvimento, embora num sentido mais elevado do que aquele que alguns imaginaran? Repast nesta tonente que avangal Ves como mascev de uma pequena fone como cresceu, como arranca aqui um pedago de te que acaba por depositar acoli, como serpenteia para furar mais fundo e depois engrossi Mas permanece sempre égua! Sempre conte! Sempre goa! Gots, a se lang no oceano. Es fosse tambein assim com 0 aggnero humane? Ou reparanaquea rvore que nto pra de cresce! Naquele homem que se agian! Tem que passar por diferentes Wades, sempre em manifesta progressio continua, sempre num exforgo de cont ruidade! Entre cada iade parece baver momentos de repouso,revolugbes,tansformagees! E contd, cad tum dos estédios contém em si mesmo 0 ponto central da sua feliciade! © adolescent no € ma feline a evan satisfeita einocente, nem opactoancito menos fala que o omer sito enpenhado na sues urtt ndulo oscila sempre com a mesma forga, quando a quando com toda a lento se apronina da posicto de repouso. 0 esforgo o amseo, € permanente! Na era em que vive, ninguém est 56: const: sobre 0 que precedeu, €0 que o precedes mas io, maisnio quer ser do que fundamento do futuro... E assim que fala TSiomNo tones, deu 0 te; Bape, © “0 bo Montaigne, ns dulegieo™ rasonneurcjsconaulgesordenadss pelos ngs doa ome pes de en 9S ph ar pare ser cops por crow ov tnt, een 9a ue aolengo de too sea echege ts moment Ss mars sls qv Gee Sa sone epee ate rodiren also Vt Rue op Braco fo wrande seule Gs dvd ed vara son 45 analogia na natureza, imagem de Deus discursando em {odas as obras! E evidentemente também no género humano! O egipcio nao chegaria a poder exist sem o oriental, © grego construiu sobre 0 que egipcio Ihe deixou, o romano elevou-se apoiado sobre os ombros do mundo inteiro... Trata-se pois verdadeiramente de avangar, de progredir, de desenvolvimento progressivo, ainda que nenhum homem particular tivesse ganho com 's80! © processo dlige-se para algo de maior! Toma-se coisa de que a superficialidade dos nossos historiadores tanto gosta de se vangloriar, mas que to mal demonstra — © palco de uma inteng4o condutora na terra! Ainda Que dessa inten¢ao nao consigamos enxergar a intengao ‘ikkima, Palco da divindade, ainda que s6 possamos ve. vlo por entre as aberturas ¢ os destrocos de cenas particulares! Mas, pelo menos, o que assim vemos & bem mais vasto que 0 alcance daquela filosofia que tudo confunde © que apenas se detém aqui e ali no particular de situagdes intrincadas, para tudo wansformar num jogo de formigas, em tendéncias cegas das diferentes inclinagdes e forcas tomadas isoladamente, destituidas de finalidade, ou seja, num caos dentro do qual foreoso se toma duvidar da virtude, da finalidade e da divindade! Conseguisse eu ligar entre sias mais dispares cenas, sem 8 confundir, mostrar como se relacionam umas com as Outras, como crescem umas a partir de outras, como se perdem umas dentro de outras, mostrar que cada uma Por si € apenas um momento, mas que todos os momentos tomados na sua progressio sio meios orientados para fins... Que perspectiva nao obteria! Que aplicagio mais nobre se poderia esperar para a histOria ‘humana? Que encorajamento nao se encontraria ai para 4 aco, para a esperanca, para a fé? Mesmo quando nada se vé, ou quando nio se consegue ver tudo! Adiante 46 Segunda Secgao ‘Também a constituigao universal dos romanos teve 6 seu fim, E, quanto mais elevado 0 ecificio, quanto mais alto implantado, tanto maior o fragor da queda Metade do mundo ficou em ruinas. Sob a érvore haan vivido os mais variados povos e territorios, mas agora, que 2 vor dos guardides sagrados soltara 0 brado do state ies Ug inte Yess Gonm al ola Goa factos universais! Fra preciso que surgisse nada ee que um mundo novo, para colmatar a brecha, Era a Norte que se encontrava. E, sejam quais forem as conjecturas que a partir do estado em que esses povos se encontravam se possam fazer sobre as suas origens ou os respectivos sistemas, a hipstese mais verdadeira parece ser a mais simples: vivendo em paz, eram por assim dizer regimes pattarcais, segundo © modo que ts regimes podiam reves no Norte, Un vez que nesses climas mio era possivel uma vida de ppastoreio 4 maneira oriental, uma ver que a pressao das necessidades imediatas oprimia estes homens muito mais do que em regides em que quase é suliciente a simples acco da natureza, uma vez que essas mesmas neces- dade © eae Son ot Snhatece. autho ats 2 ie ide astcnnon soe fa Be nik ES yomas das estufas do Sul ou do Oriente, muito natural- mente aconteceu que estes homens permaneceram num estado de maior ruceza, as suas sociedades permaneceram mais separadas mais selvagens. Mas, porque 0s lagos que ligavam os individuos conservavam toda a sua fore, porque o sino forga humana conservavam toda a su squeas, o pats pide tomarse aquilo que ‘Técitodescreve. E, quando 0 imenso oceano nérdico d ovos levantou as suas ondas e se pos em movimento, Eons empurraram as ondae, 0s povoslvara 3s

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