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Viso · Cadernos de estética aplicada

Revista eletrônica de estética

ISSN 1981-4062

Nº 8, jan-jun/2010

http://www.revistaviso.com.br/

Carta a Hugo von Hofmannsthal


Edmund Husserl
RESUMO

Carta a Hugo von Hofmannsthal

Nesta carta de Edmund Husserl a Hugo von Hofmannsthal, datada de 12/01/1967, o pai
da fenomenologia esclarece que o método por ele elaborado “exige uma posição
essencialmente diversa da atitude ‘natural’ frente a toda forma de objetividade, estando
muito próxima do posicionamento e da atitude para as quais a sua arte, enquanto algo
puramente estético, nos transfere no que diz respeito aos objetos apresentados e o todo
do mundo circundante”. A tradução é de Marcia Cavalcate Schuback.

Palavras-chave: Husserl - von Hofmannsthal

ABSTRACT

Letter to Hugo von Hofmannsthal

In this letter from Edmund Husserl to Hugo von Hofmannsthal, the fathe rof fenomenology
claims that his method “demands a position essentially different from the ‘natural’ attitude
in regard to any form of objectivity; this position is very close to the positioning and
attitude to which your art, as something purely aesthetic, takes us in respect to the
objects presented to us and to the world around us”. The letter is translated by Marcia
Cavalcante Schuback.

Keywords: Husserl - von Hofmannsthal


HUSSERL, E. “Carta a Hugo von Hofmannsthal”.
Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. In: Viso:
Cadernos de estética aplicada, v. IV, n. 8 (jan-jun/2010),
pp. 35-40.

Aprovado: 22.06.2010. Publicado: 10.07.2010.

© 2010 Márcia Sá Cavalcante Schuback (tradução). Esse documento é distribuído nos


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Accepted: 22.06.2010. Published: 10.07.2010.

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Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.

jan-jun/2010
Viso · Cadernos de estética aplicada n. 8
Göttingen, 12 de janeiro de 1907

Estimado Sr. Hofmannsthal,

O Senhor mencionou1 como a vida ficou difícil com o afluxo de cartas que tem recebido.
Mas como o senhor me ofereceu um presente que tanto me alegrou 2, tenho que agora
lhe escrever de volta para agradecer. O senhor terá assim que arcar com as
consequências desse seu ato malvado e permitir que mais uma carta venha lhe
incomodar. Também quero desculpar-me por não lhe ter agradecido o presente
imediatamente. Sínteses de pensamento, que de há muito buscava, apareceram de
repente como se caídas do céu. Tive por isso muito o que fazer para rapidamente fixá-las
numa forma estável. Os seus “Breves dramas” [Kleine Dramen], sempre ao meu lado,
foram uma grande fonte de inspiração mesmo que não me tenha sido possível ler todos
eles em seu conjunto.

As “situações interiores”, que a sua arte não apenas descreve como puramente estéticas
mas, sobretudo, eleva a uma esfera de pura beleza estética, guardam, nessa objetivação
estética, um interesse particular tanto para o amante da arte que vive dentro de mim
como para o filósofo e “fenomenólogo”. Os muitos anos de esforço para alcançar um
sentido claro dos problemas fundamentais da filosofia e dos métodos para a sua solução
propiciaram-me como aquisição permanente o método “fenomenológico”. Este exige uma
posição essencialmente diversa da atitude “natural” frente a toda forma de objetividade,
estando muito próxima do posicionamento e da atitude para as quais a sua arte,
enquanto algo puramente estético, nos transfere no que diz respeito aos objetos
apresentados e o todo do mundo circundante. A intuição de uma obra de arte puramente
estética cumpre-se mediante uma rigorosa suspensão de todas as posições intelectuais
frente à existência3 e daquelas ligadas às emoções e à vontade pressupostas num tal
posição. Ou melhor: a obra de arte nos transfere (e quase que nos obriga) a um estado
de intuição puramente estética que exclui todas as demais posições. Quanto mais o
mundo do que se toma por existente ressoa e vivamente nos envolve, quanto mais a
obra de arte exige por ela mesma uma posição de existência (algo como uma aparência
sensivelmente naturalista: a verdade natural da fotografia), tanto menos a obra de arte é
esteticamente pura. (E isso diz respeito a todo tipo de “tendência”). A postura natural do
espírito, da vida em sua atualidade, é toda ela “existencial”. Coisas que se colocam
sensivelmente diante de nós, as coisas de que fala o discurso científico atual, são por
nós postas como realidades e é sobre esse pôr-como-existente que se baseiam os atos
do espírito e da vontade: alegre – que isso é, triste, que isso não é, desejável, que isso
pode ser, etc. (posição do ânimo frente ao existente): isso é o polo oposto à atitude do
espírito própria à pura intuição estética e ao estado emocional que lhe corresponde. É
também o polo oposto à atitude puramente fenomenológica do espírito, a única onde os
problemas filosóficos podem ser solucionados. Também o método fenomenológico exige
uma rigorosa suspensão de todas as posições frente à existência. Sobretudo na crítica
do conhecimento.4

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Tão logo a esfinge do conhecimento coloca a sua questão, tão logo olhamos para os

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problemas profundamente abissais da possibilidade de um conhecimento que, não
obstante alcançado pelas vivências subjetivas, possa ainda assim vislumbrar e
apreender uma objetividade existente nela mesma, a nossa postura relativa a todo
conhecimento e a todo ser previamente dado – a toda ciência e a toda presumida
realidade – altera-se radicalmente. Tudo se torna questionável, incompreensível,
enigmático! O enigma só se resolve quando caímos por terra, quando todo o
conhecimento é tratado como algo questionável, quando não se aceita nenhuma
existência como simplesmente dada. Isso significa que toda ciência e toda realidade
(incluindo a realidade do próprio eu) tornam-se mero “fenômeno”. Só uma coisa nos
resta: clarificar numa pura visão (numa análise e abstração puramente visualizantes) o
sentido imanente aos meros fenômenos, sem jamais ultrapassá-los, ou seja, sem
pressupor nenhuma existência transcendente neles presumida; ou seja, só resta
clarificar o que significa conhecimento como tal e objetividade reconhecida como tal e,
portanto, o que significam em sua essência imanente. Isso se aplica a todos os tipos e
formas de “conhecimento”. Se todo conhecimento é questionável, então o fenômeno
“conhecimento” é o único dado, e antes de admitir como válido algum tipo conhecimento
devo ver e investigar de modo puramente visualizante (como se fosse, por assim dizer,
puramente estético): o que significa validade de modo geral, conhecimento como tal,
com e em sua “objetividade reconhecida”. Naturalmente, a fim de investigar o
conhecimento de modo “visualizante”, não devo ater-me a um quasi-conhecer
meramente verbal (pensamento simbólico) mas ao conhecer propriamente “evidente” e
“perspicaz”, uma vez que a relação entre o pensamento simbólico e o saber evidente
também requer uma análise fenomenológica das essências.

A visão fenomenológica está intimamente relacionada com a visão estética na arte


“pura”; sem dúvida, aqui não está em questão uma visão a fim de propiciar um deleite
estético, mas contínuas investigações e conhecimentos com o propósito de constituírem
constatações científicas de uma nova esfera (a esfera filosófica).

E ainda. O artista, que “observa” o mundo com vistas a adquirir “conhecimento” da


natureza e do homem para os seus próprios fins, relaciona-se com o mundo do mesmo
modo que o fenomenólogo. Pois não o faz como o cientista observador da natureza e o
psicólogo e nem como um observador prático do homem, interessado apenas em
adquirir informações sobre o homem e a natureza. Ao observar o mundo, o mundo se
torna para ele fenômeno; tanto para ele como para o filósofo (na crítica da razão), a
existência do mundo é indiferente. A diferença é que o artista, ao contrário do filósofo,
não pretende fundar o “sentido” do fenômeno do mundo e capturá-lo em conceitos mas
dele se apropriar intuitivamente a fim de recolher, na abundância das imagens, materiais
para configurações estéticas criadoras.

Que incorrigível e típico professor! Não consegue abrir a boca sem proferir uma palestra.
Que sorte que à “essência” filosófica de uma palestra pertence não exigir respostas, e o
mesmo se pode dizer da “liberdade acadêmica” pela qual alguém pode sempre cochilar
ou escapar das aulas o quanto quiser.

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Mas eu lhe desejo, estimado Senhor Hoffmannsthal, tudo de bom nesse ano novo. E o

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que lhe desejo, desejo para todo o mundo que nutre um grande interesse pelos brotos e
frutos de seu desenvolvimento e crescimento interiores.

PS. Não pretendo pronunciar-me sobre o seu trabalho. Imagino que todo tipo de elogio
vazio e supérfluo lhe deixa bem indiferente. As três regras de ouro do artista (em sentido
amplo), bem como os segredos abertos de toda verdadeira grandeza lhe são de certo
visivelmente conhecidos, a saber: 1) ter gênio – sem dúvida, pois do contrario não seria
um artista; 2) seguir pura e unicamente o seu próprio daimon e como de dentro ele o
impele para uma ação cegamente visionária; 3) ele sabe melhor do que todos os outros,
pois observa a todos de maneira meramente estética ou fenomenológica.

Com minhas melhores saudações,

Seu devotado

E. Husserl

* Marcia Cavalcante Schuback é professora da Södertörns University College/Suécia.

** O original dessa carta encontra-se em HUSSERL, E. Briefwechsel. Wissenschaftliche


Korrespondenz,vol.VII. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1994, pp. 133-136.

1
Hofmannsthal visitou Husserl no dia 6 de dezembro de 1906 quando esteve em Göttingen para
proferir uma palestra a convite de Theodor Lessing.
2
Provavelmente o volume de Hofmannsthal Kleine Dramen (1906), embora este não tenha sido
encontrado na biblioteca de Husserl.
3
A expressão usada por Husserl nessa carta é existentialle Stellungnahme. O sentido literal é
tomada de posição existencial. Husserl entende aqui uma posição que assume como dado e
inquestionado o sentido de existência como algo simplesmente dado. Essa expressão não possui
nenhuma conotação existencialista. Em questão está o sentido em que se usa, comum e
habitualmente, a palavra “existência” e os pressupostos ontológicos implicados nesse uso. O termo
técnico de Husserl em seus escritos filosóficos é “atitude”, Einstellung, palavra que não ocorre na
carta a Hofmansthal.
4
Deixo aqui de lado os âmbitos paralelos do “prático” e do “estético” na razão crítica e suas
avaliações gerais (nota marginal de Husserl).

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