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PAULO FREIRE: “NAO SOU CONTRA AS CARTILHAS DE ALFABETIZACAO” O autor do famoso método de alfabetizacio explica a sua posigdo em relacao as cartilbas e diz como, na sua opinido, devem ser 0s livros diddticos para o ensino da escrita e da leitura. Depoimento a Oswaldo Coimbra 7 ye Paulo Freire, em 1963, coordenou uma campanha nacional de alfabetizacdo. Preso em 64, viveu 16 anos no exilo, Durante este periodo, seu método de altabetizacéo foi apicado em varios paises. Por seu trabalho, recebeu titulos honordrios de universidades estrangeiras e o prémio internacional de Educagao da Unesco. 48 NOVA ESCOLA magine um operdrio chegando, depois de uma jornada macha de trabalho,nasaladeaula e tendo que repetir no meio da noite: ‘Eva viu a uva, A ave é do Ivo, Iva vai na roca’.” Este convite 4 imaginagdo é feito por Carlos Rodrigues Brandao no seu livro O que E 0 Método Paulo Freire. Com ele, Bran- dao pretende mostrar 0 quan- to o uso da cartilha contraria os propésitos do método de alfabetizagdo criado por Pau- lo Freire e que se caracteriza pela valorizagéo do universo cultural dos educandos. No entanto, foi baseada no Méto- do Paulo Freire que a profes- sora Luiza Teodoro criou a Cartilha da Ana e do Zé, que jé alfabetizou mais de 350 mil criangas no Cearé, como ela propria reconhece. Na carti- Iha de Luiza hé palavras liga- das @ realidade da crianga nordestina, a qual ela ¢ dirigi da. Estas palavras servem, se- gundo a autora, para estimu- lar a crianga a pensar e a for- mar uma consciéncia critica da sua realidade, exatamente que Paulo Freire busca com © seu método. Existiria, entdo, uma ponte entre o método Paulo Freire e algum tipo de cartilha como esta, regionali- zada, de Luiza Teodoro? Esta pergunta foi feita ao préprio Paulo Freire. A seguir, 0 que ele responde: ce “No comeco das minhas pesquisas, na década de 50, eu adotei uma posicao critica em relagdo as cartilhas e le- vantei até mesmo a possibili- dade de os educandos se al- fabetizarem sem elas, Havia analisado todas as cartilhas que pude conseguir, usadas para alfabetizar criancas e adultos, no Brasil e em ou- tros pafses latino-americanos e hispanicos, Eu as estudei minuciosamente e apenas um dos problemas que encontrei j4 era suficiente para me co- locar numa posigéo radical, embora nao sectéria, contra elas. O problema era o se guinte: as cartilhas apresenta- vam palavras e frases que ele ou ela, autor ou autora, sem nenhuma pesquisa sobre o universo vocabular dos seus educandos, considerava co- mo as melhores para o aprendizado da leitura e da escrita. Essa escolha de pala- “As cartilhas apresentavam palavras e frases sem nenhuma pesquisa sobre o vocabulario dos educandos” vras @ frases ora feita a partir das necessidades fonéticas da Lingua Portuguesa e nao le- vava em conta a relagéo que estas palavras tinham com a vida dos alunos. A realidade vivida pelo aluno nunca contava “Vamos admitir, como exemplo, que em certo mo- mento a autora, trabalhando em sua biblioteca, se defronta- va com a questéo da consoan- a iecari 3k iat lie aca Salis eae ae ea te v. Entéo, era o v que ela queria introduzir no aprendi- zado do seu aluno, associado a uma vogal. Af, imediatamente, batia na cabeca dela uma frase maravilhosa que possibilitaria ao educando 0 dominio do v junto com as vogais. A frase, naturalmente, era Eva viu a uva. Nela tem-se o v em Eva, ov em viu, eo v em uva. Acontece que este critério de escolha de palavras — que leva em consi- deraco apenas os sons conso- nantais e vogais a serem ensina- dos — 6 absurdo. Na cartilha, tudo ja estava feito pelo autor “De um lado, ¢ verdade, néo se pode dispensar estes sons no trabalho de alfabetiza- do. Mas, de outro, s6 se pode procurar estes sons em pala- vras que tenham ligacéo com a vida dos educandos, com a regiéo em que eles moram e até mesmo com a classe social a que eles pertencem. Este foi um dos problemas que encon- trei nas cartilhas. O outro: tu- do {4 estava feito pelo autor, na cartilha. Ele no s6 esco- Ihia as palavras e as frases que iam entrar na cartilha ©, por tanto, nos cursos de alfabeti- zacéo, mas ainda decompu- nha ele proprio as palavras om suas silabas ©, depois, fa- zia a combinacéo fonética de- las, Resumindo: ao educando 86 cabia memorizar mecanica- mente todo esse exercicio que o autor ou a autora da cartilha realizava para ele, Ora, no meu trabalho como alfabetiza- dor, eu partia de uma posigéo contréria a tudo isso. Eu dizia que o educador devia > NOVA ESCOLA 49 PAULO FREIRE... transformar o ato de ensinar alguma coisa para alguém num ato de conhecer alguma coisa com alguém. Ensinar, para mim, 6 conhecer com. “Esses eram os problemas que eu encontrava nas carti- Thas e que me faziam fugir delas. O resultado das expe- riéncias de ensino que fiz sem as cartilhas, naquela época, foram bons. Mas, em pouco tempo, descobri que era preciso comecar a ofere- cer ao alfabetizando aquilo que, entdo, chamei de mate- rial de apoio. Quando eu e 0 grupo de pessoas que traba- Ihava comigo estavamos pen- sando em como organizar es- tes materiais de apoio acon- teceu o golpe militar de 1964, Depois, nao foi mais possivel fazer isto no Brasil. Um material bem diferente das cartilhas tradicionais “Portanto, é esta, em pou- cas palavras, a minha posicéo a respeito desta questdo, jé ha algum tempo: sou contra qual- quer material (ndo apenas de alfabetizacdo, mas também de pos-alfabetizagao) que sirva para a domesticacéo do edu- cando. E sou inteiramente a favor da existéncia de mato- tial de apoio, util ao cresci- mento do educando. Todo processo de alfabetizagao de- veria, desde 0 seu comego, ter uma preocupagéo com a cria~ ao destes materiais. Alguns destes materiais de apoio para os cursos de alfabetizacéo fo- ram criados nas experiéncias 50 NOVA ESCOLA ~ Jie de ensino de que participei na Africa: os Cadernos de Cultu- ra. Hé diversas diferengas en- tre os Cadernos de Cultura e a cartilha tradicional. Primeiro, as palavras que estéo nos ca- dernos foram pesquisadas en- tre o povo e nao escolhidas apenas pelo autor. Depois, nos cadernos hé espacos para que os educandos formem as suas proprias palavras. Além disso, 6 s6 entre a 4." e a 6." palavra que comegam a apare- cer algumas palavras decom- postas. Hoje, a propria equipe que dirijo em Sao Paulo, a Ve- redas, esta elaborando uma série de materiais de apoio para a alfabetizagao e pés-al- fabetizagao. Os nordestinos tém de ler os recados do Centro-Sul “A posigdo que eu assumo, hoje, em relagao as cartilhas, me leva a um outro aspecto desta questao, Este aspecto 6 0 seguinte: considero como cientificamente absurda e po- liticamente autoritéria a im- posigéo do uso de um unico texto de alfabetizacao, produ- zido numa determinada re- gido, em todas as outras re- gides do pafs. Em todos os paises onde vi esta universali- zagio de material didético de contetidos programiticos, ela sempre foi feita a partir da regido onde estava instalado 0 centro do poder politica & econémico. Assim como no Brasil, onde esses materiais contetidos sio escolhidos pe- los educadores do Centro-Sul do pafs, 0 centro do poder. Entdo, 0 nordestino 1é no Ma- ranhdo, em Pernambuco, no Piauf, tem de ler os recados que estes educadores do Cen- tro-Sul mandam. E estes edu- cadores pensam que sabem quais s4o as necessidades que hé por la. As peculiaridades regionais precisam estar nos cursos “EB verdade que, num pats como o Brasil, ndo se pode abrir mao de temas funda- mentais para 0 pats inteiro, que tém de estar nos textos didéticos. Por exemplo, a gente, hoje, tem de discutir a Constituigdo e a Constituinte. Mas, ao lado disto, tem-se de compreender as diferengas re- gionais do pafs. Os educado- res das diferentes regides tem que ser chamados e 0 povo tem de ser ouvido. Digo isto ndo por ser nordestino, mas porque sou um homem que pensa.”

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