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> CAPITULO 82 Abordagem a violéncia doméstica Ana Flavia P. L. d’Oliveira Lilia Blima Schraiber Aspectos-chave » A violéncia nao é evento natural, nem acidental; tem como caracteristicas ser um ato intencional e de uso instrumental do poder em relagdes hierarquicas. E determinada por fatores relacionados a estrutura social, as instituigées e aos servicgos, as familias e as comunidades e por fatores relacionados ao comportamento e aos valores dos individuos, dimensées que sao interligadas e historicamente determinadas. A violéncia pode ser evitada, e seus riscos podem ser diminuidos se for adequadamente abordada e trabalhada. » Avioléncia doméstica nao é algo banal: possui altissima prevaléncia, atinge todas as camadas sociais e tem diversas repercussdes importantes na satide fisica e mental de criangas, mulheres, idosos e pessoas com deficiéncias fisicas ou mentais. Pessoas que vivem ou viveram em situagdo de violéncia doméstica tem mais problemas de satde e utilizam mais frequentemente os servicos de satde. » Avioléncia doméstica ainda é invisivel para o trabalho nos servigos de satde, 0 que traz diversas dificuldades: os problemas de satide séo percebidos de forma insuficiente, e as propostas terapéuticas podem ser ineficazes e muitas vezes reforgadoras de um uso repetitivo e inadequado dos servicos, gerando custos, riscos e frustragdes. Alem disso, a invisibilidade contribui para a banalizagdo e a perpetuagaio da violéncia. » Avioléncia doméstica € um problema complexo e necessita de agao intersetorial, multiprofissional e interdisciplinar. E preciso visibilidade e acées de todos os setores da sociedade, incluindo os médicos de familia e comunidade, no sentido da compreensdo da importancia da garantia dos direitos humanos e da ética nas relagées interpessoais. Uma postura atenta para a violéncia doméstica, acolhedora e que recuse o julgamento e a vitimizacao é fundamental para o cuidado & sade das pessoas, das familias e das comunidades. A agao consequente e efetiva nesses casos inclui o conhecimento e a coordenagao do cuidado efetuado na rede intersetorial de servicos especificos para a violéncia, e a mobilizagéo do aparato legal existente Caso clinico Joana, 46 anos, vem ao servigo para a primeira consulta com sua médica de familia e comunidade e traz dois encaminhamentos diferentes de um servico de emergéncia com a hipotese diagnéstica de “nervosismo". Em reuniao de equipe, a agente comunitaria de satide (ACS) conta que a familia é moradora na regiaéo ha poucos meses. Joana trabalha como doméstica, 2 dias por semana, e vive com os 3 filhos, o marido, com o qual é casada ha 18 anos, e a mae dele, de 82 anos. A filha mais nova de Joana tem sindrome de Down, e os dois meninos est&éo tendo problemas de muitas faltas na escola. A comunidade comenta que eles estariam envolvidos com drogas. O marido de Joana, segundo a ACS, era trabalhador e nao deixava faltar nada em casa, mas, no momento, faz bicos como pedreiro, porque perdeu seu emprego ha 6 anos e tem dificuldade para arrumar trabalho, porque ja tem 52 anos. Frequenta bastante o bar local, mas, segundo a ACS, “nao arruma confusao”. Ele nunca veio a unidade, nem as criangas. A senhora de 82 anos frequenta um convénio pago pelos filhos. A violéncia doméstica nao é natural nem inevitavel © tema da violéncia passou a ser de interesse da rea da satide apenas recentemente. Embora 0 abuso de criancas tenha sido abordado por profissionais de satide desde a década de 1960, embora o tema geral das mortes por “causas externas” (violéncias e acidentes) tenha gerado atengaéo no campo da satide publica desde os anos 1980, e embora as repercussées da violéncia por parceiro intimo sobre a satide das mulheres tenham sido pautadas pelo movimento feminista e tenham mobilizado investigaces desde a década de 1990, apenas recentemente iniciou-se em nivel global uma integracao das diversas formas e expressdes da violéncia como um fenémeno complexo e multifacetado e uma coordenagao das iniciativas no sentido de seu enfrentamento pelo setor da satide. Em 2002, a Organizagio Mundial de Satide (OMS) ressaltou a importancia do tema e langou o primeiro Relatorio Mundial sobre Satide e Violéncia, no qual define violéncia como o “uso intencional da forga fisica ou do poder, real ou em ameaga, contra si préprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha a possibilidade de resultar em lesdo, morte, dano psicolégico, deficiéncia de desenvolvimento ou privacéo”,? destacando a intencionalidade do ato violento e 0 uso da forca fisica ou do poder na sua definigao, independentemente do resultado produzido. O relatério retine evidéncias que reforcam a violéncia como agio humana intencional, social e historicamente produzida. Como tal, a violéncia pode e deve ser contida e evitada na vida em sociedade. A violéncia pode ser de diversas naturezas (negligéncia, violéncias fisica, psicolégica e sexual e assédios sexual e moral) e ocorrer em diferentes cenarios, como nas guerras, no terrorismo, na delinquéncia urbana, nos domicilios, nas escolas ou nos locais de trabalho. Pode ser a violéncia cometida pelo Estado contra os cidadaos, a violéncia que uma pessoa comete contra si mesma, a violéncia entre desconhecidos na rua, entre pessoas conhecidas e até intimas ou familiares, ou a violéncia de certos grupos contra outros grupos de individuos. Sera abordada neste capitulo uma forma especifica de violéncia interpessoal, que tem articulacio com as outras, muito comum e paradoxalmente bastante invisivel: a violéncia doméstica, que congrega a violéncia interpessoal cometida por pessoas intimas, como parceiros, filhos, pais, responsdveis, irmios, tios, Sogros e outros parentes ou pessoas que vivam juntas. Também é tratada, muitas vezes, como violéncia intrafamiliar, ressaltando a relagdo de lagos familiares entre os envolvidos. Esta profundamente arraigada na vida social e, muitas vezes, é banalizada, percebida como situac4o normal ou inevitavel. O perverso da violéncia doméstica 6 que ela ocorre no exato local em que se espera, via de regra, cuidado e protecfo: o lar, a vida privada, o seio da familia. A violéncia doméstica denuncia a extrema iniquidade existente no interior da estrutura doméstica e familiar e 0 quanto o mundo privado pode significar a privagao de direitos a fala e A acdo dos sujeitos ali “submetidos“a opressao. Sabe-se que na vida cotidiana as situagdes familiares sao diversas, e, ao contrario do mito da familia sempre harménica, como um espaco permanente de amor e de prote¢ao para todos, precisa-se dar conta de um grande leque de variagao das familias, Encarar sua realidade concreta em cada caso particular é muito importante para que se possa reconhecer o quanto essa instituigao social encerra as contradicées da sociedade que a gerou. A familia recria, constantemente, valores e crengas dessa mesma sociedade, e é nesse proceso dinamico, como parte do processo social, que se encontram as origens da violéncia doméstica e a chave para sua reducao. Quando o enfoque é na familia e na estrutura de poder, é muito importante levar em consideracao os aspectos relacionados as relagdes de género, ou seja, a construcao social e cultural dos atributos e significados do masculino e feminino em cada sociedade, que constitui diferentes atribuigdes ou papéis sociais aos homens e as mulheres e que transforma diferengas sexuais em desigualdades sociais. Os médicos de familia e comunidade precisam estar atentos a essas desigualdades, no sentido de evitar evidencid-las e de buscar promover a emancipagao das pessoas com as quais se relaciona. Para isso, 6 necessario evitar a naturalizacéio dessas atribuicdes tradicionais de género que sao, muitas vezes, de forma mais ou menos consciente, reforcadas pelos servicos. Isso se da pela perpetuacao acritica de preconceitos, como, por exemplo, a ideia de que a maternidade, 0 cuidado, a docura e a monogamia sao caracteristicas inatas e naturais da mulher, e de que a falta de controle sobre os impulsos sexuais e violentos e a forca fisica, assim como a maior autoridade na casa, sio caracteristicas naturais dos homens. Essas ideias levam a consequéncias cotidianas no trabalho dos servicos de satide, como a sobrevalorizagao do trabalho masculino em relagdo ao feminino ou a dupla moral sexual (a condenagao moral muito mais severa sobre a miiltipla parceria sexual das mulheres do que dos homens). Outra consequéncia relacionada a naturalizagao acritica das normas culturais de género 6 a sobrecarga sobre as mulheres da responsabilidade sobre o cuidado de si, das criancgas, dos idosos e de toda a familia em contraste com a negligéncia no cuidado dos homens e um baixo incentivo ao seu cuidado consigo mesmos e com os outros. Essas normas tradicionais de género podem levar a violéncia, seja para a perpetuacdo de uma situacgaéo de dominacao ja dada, seja em situagGes de tensdo e mudanga atuais, para restaurar uma hierarquia que é percebida por muitos como necessaria e sendo incorretamente alterada.’ Uma caracteristica distintiva da violéncia doméstica em relacgdo a outras formas de violéncia é a populacao afetada e a natureza do dano: os homens respondem pela massiva maioria dos agressores e das vitimas de homicidios (aproximadamente 90% das vitimas de homicidios so homens), ao passo que na violéncia doméstica as pessoas mais atingidas so mulheres, criangas e idosos. A violéncia doméstica pode ser fatal, mas, diferentemente de outras formas de violéncia reconhecidas, que tém os homicidios como principal repercussao para a satide, a violéncia doméstica tem principalmente efeitos insidiosos na satide dos envolvidos, causando grande e perene morbidade, continuada ao longo do tempo, ja que o agressor, em geral, convive com a vitima.? O Relatério Mundial sobre Violéncia e Satide? possui diversos capitulos, entre os quais um sobre abuso infantil e negligéncia por parte dos pais e responsdveis, outro sobre violéncia perpetrada por parceiros intimos (enfocando as mulheres como as principais vitimas) e um terceiro sobre abuso de idosos. Essas serao as principais formas de violéncia abordadas neste capitulo, sempre que os atos de negligéncia, agressao psicolégica, fisica ou sexual forem realizados por pessoas em relagao de intimidade. Os homens, além de principais perpetradores, podem também ser vitimas de atos de violéncia doméstica. No entanto, em menor prevaléncia, os atos sao menos graves e as consequéncias na sua satide parecem ser menores. Também é importante considerar as motivagGes envolvidas nos atos de violéncia doméstica: muitos atos violentos contra criancas e mesmo mulheres e idosos sao compreendidos como necessérios a disciplina ou A educagio dos envolvidos, ao passo que os atos de violéncia cometidos pelas mulheres contra homens sao muitas vezes reacées de defesa ou vinganga contra violéncias anteriormente produzidas. A OMS? propée um modelo que chama de ecoldgico (Figura 82.1) para a compreensio da determinagéo da violéncia, com fatores relacionados a diferentes niveis da sociedade, articuladas em circulos concéntricos. Fatores ligados ao individuo, como escolaridade, renda ou historia pregressa de ter sofrido abuso fisico ou sexual ou ainda ter realizado abuso de substancia, determinam e séo determinados pelas relacdes familiares (relacional), pelos locais de trabalho, pelos servicos de satide, pelas igrejas, pelas escolas, entre outros contextos (comunitdrios) e pela estrutura maior da sociedade, suas leis, instituigdes e normas culturais, que podem apoiar a resolucao violenta de conflitos e o dominio masculino sobre mulheres e criangas, por exemplo. Esse modelo é importante para que a violéncia doméstica seja vista em sua complexa determinacao, evitando-se a reducéo do problema apenas ao individuo e sua consequente culpabilizagéo ou vitimizacéo, além de fornecer elementos importantes para a potencial prevengao do fendmeno, que necessita de atuagao em diferentes niveis. erase El { Comunidade & Figura 82.1 Modelo ecoldgico para compreender a violéncia. Fonte: Krug colaboradores.? Diversas formas de violéncia doméstica ocorrem de forma interligada, e 0 problema deve ser integrado de uma perspectiva que considere as desigualdades de género, de geragao e de etnia, além de classe social. Avioléncia doméstica nao é banal: dimensao do problema e suas repercussées sobre a satide Uma primeira caracteristica que unifica a violéncia doméstica é sua peculiar capacidade de tornar-se invisivel ao olhar da sociedade e dos servigos de satide, apesar de sua imensa prevaléncia. Estudos recentes demonstram que, em uma amostra representativa da populacao urbana do Brasil, 11,8% das mulheres e 5,1% dos homens declararam algum ato de violéncia sexual cometido pelo seu parceiro intimo(a) na vida.4 Na pesquisa coordenada pela OMS, Multi-country study on women’s health and domestic violence,® realizada no Brasil com amostra populacional representativa com 940 mulheres de 15 a 49 anos na cidade de Sao Paulo (SP), e 1.188 na zona da mata de Pernambuco (ZMP), a prevaléncia de violéncia psicolégica cometida por parceiro intimo durante a vida foi de 41,8% em SP e 48,8% na ZMP, e a de violéncia fisica e/ou sexual foi de 29% em SP e 34% na ZMP. Isso equivale, grosso modo, a uma mulher em cada trés tendo vivido essa situacéio durante a vida. Esses dados colocam o Brasil em uma posicao intermediaria ao redor do mundo: em 48 pesquisas realizadas com populacées do mundo todo, de 10 a 69% das mulheres relataram ter sofrido agressao fisica por um parceiro intimo em alguma ocasido de suas vidas.? O parceiro intimo aparece, no Brasil e em outras pesquisas ao redor do mundo, como o principal agressor contra as mulheres, sendo outros familiares o segundo agressor mais frequente. Quando as pesquisas so realizadas em populacio usudria de servicos de satide, no entanto, esses mimeros podem ser ainda maiores, j que a populagao que vive ou viveu em situagdo de violéncia doméstica tem mais problemas de satide e frequenta mais as unidades de satide. Pesquisa realizada com 3.193 usuarias de servicos de atencao primaria do Sistema Unico de Satide® na regiao metropolitana de SP encontrou 52,9% das mulheres entre 15 e 49 anos referindo alguma forma de violéncia psicoldégica. A violéncia fisica e/ou sexual cometida por parceiro intimo na vida foi de 45,3% (40,3% violéncia fisica e 20,3% violéncia sexual).° Em relacao as criangas, existem estudos no Brasil realizados em amostras de base populacional ou escolares. O abuso fisico grave também é bastante comum, @ as taxas variam de 3,1 a 58,2%, ficando, em muitos estudos, ao redor de 15%. Quando abusos moderados também sao considerados, as taxas sao ainda maiores, podendo passar dos 50%. Tanto pais quanto mées sao referidos como agressores, e a magnitude é varidvel, sendo, em alguns estudos, as maes, e em outros, os pais considerados os agressores mais frequentes. Apesar de a negligéncia ser um tema bastante valorizado pela literatura, existem poucos dados sobre sua prevaléncia populacional.” Dados de agressio fisica grave no Brasil so mais baixos do que na China (22,6%), mas mais altos do que na Italia (8%).2 Na violéncia sexual contra criancas e adolescentes, pais e padrastos foram os principais agressores. Um dos estudos, em Porto Alegre, encontrou 2,3% de relato de violéncia sexual entre 1.193 estudantes de 8% série de escolas estaduais.® Estudo de 474 estudantes de 14 a 19 anos de escolas ptiblicas e privadas em Manaus revelou 6,9% de abuso sexual perpetrado por pai ou padrasto.? No estudo multicéntrico da OMS,’ jé referido, foi encontrado 7,8% de relato de violéncia sexual contra meninas menores de 15 anos em SP quando perguntado diretamente, taxa que subiu para 11,6% quando a revelacio foi feita de forma anénima. A violéncia contra criangas tem diferencas entre meninos e meninas, relacionadas as expectativas sociais de género: meninas sofrem mais violéncia sexual, e meninos sao mais submetidos a abuso fisico grave. Em relagao a violéncia contra idosos, ha muito menos estudos e as estimativas so ainda mais vagas, mas confirmam a tendéncia a grandes prevaléncias. Dois estudos de base populacional mostram uma prevaléncia de aproximadamente 10% no caso de abuso fisico contra idosos perpetrado por algum membro da familia ou cuidador.” Aqui, trata-se de prevaléncias extremamente elevadas, medidas em porcentagem, quando a maioria das patologias, mesmo as mais prevalentes, sao medidas em relagdo a 1.000 ou 100.000 pessoas na populacaio. A determinacaio da magnitude exata, no entanto, encerra diversas dificuldades, como a definigéo de 0 que seja violéncia e a vergonha da revelacao, que é claramente demonstrada pela diferenca das cifras de abuso sexual quando a pergunta é feita diretamente ou de forma anénima. As pesquisas relatadas aqui utilizam, como instrumento de medida, perguntas sobre atos concretos, sem utilizar a palavra violéncia na pergunta, para evitar interpretagdes subjetivas. As perguntas realizadas em alguns dos estudos citados sao apresentadas nos Quadros 82.1 e 82.2 e na Figura 82.2, a titulo de exemplo dos atos definidos como violéncia no contexto de pesquisa, que pode orientar também o seu reconhecimento em contextos de servicos de satide. O problema tem sido consistentemente demonstrado pela literatura cientifica como sendo associado, em termos estatisticos, a problemas de satide fatais e néo fatais de diversas naturezas, além de apresentar repercussdes para os servicos de satide, conforme descrito de forma sintetizada no Quadro 82.3,? no que tange as repercussées da violéncia cometida por parceiro intimo. Quadro 82.1 | Violéncia por parceiro intimo — perguntas da OMS ~ Multi- country study on women’s health and domestic violence PES erie » Insultou-a ou fez vocé sentir-se mal a respeito de si mesma? » Depreciou ou humilhou vocé diante de outras pessoas? » Fez coisas para assusté-la ou intimidé-la de propésito? » Ameagou machucé-la ou machucar alguém de quem vocé gosta? Violéncia fisica » Deu-lhe um tapa ou jogou algo em vocé que poderia machucé-la? » Empurrou-a ou deu-Ihe um tranco ou chacoalhao? » Machucou-a com um soco ou com algum objeto? » Deu-lhe um chute, arrastou ou surrou vocé? » Estrangulou ou queimou vocé de propésito? » Ameagou usar ou realmente usou arma de fogo, faca ou outro tipo de arma contra vocé? NCTE ctr] » Forcou-a fisicamente a manter relagdes sexuais quando vocé nao queria? » Vocé teve relagdo sexual, porque estava com medo do que ele pudesse fazer? » Forcou-a a uma pratica sexual degradante ou humilhante? ec ie ne Quadro 82.2 | Violéncia fisica contra criangas - questées do World studies in the family environment (Worldsafe) Parente ees » Bateu na crianga com um objeto (ndo nas nadegas) » Chutou a crianga > Queimou a crianga Espancou a criangca » Ameagou a crianga com uma faca ou um revolver ’ Pre On MUCcietLy » Espancou nas nédegas (com as mos) » Bateu na crianga nas nédegas (com um objeto) » Deu tapas no rosto ou na cabeca da crianga » Puxou o cabelo da crianga » Sacudiu a crianga Socou a crianga Beliscou a crianga Torceu a orelha da crianga Forgou a crianga a se ajoelhar ou a ficar em pé em uma posigao desconfortavel » Colocou pimenta na boca da crianga Fonte: Krug e colaboradores.? Quadro 82.3 | Violéncia contra a mulher por parceiro intimo Perea ane ecu en Meu eee ce eC ee eMC Cee een) PSU Umea) ee Reet adit) nue Tren Peecuruey Paty Pecoraro) PUT CRUCucl violéncia Contusées € Disturbio Abuso de alcoole Ansiedade edemas ginecolégico drogas Depressao Sindrome de dor _ Infertilidade Depressao e Baixo rendimento crénica DIP ansiedade escolar Invalidez Complicagdes da Transtornos Baixa autoestima Fibromialgia gravidez alimentares io Pesadelos Fraturas oma istirbios do sono a Distiirbios espontaneo Sones aimee gastrintestinais _Disfungao sexual VeTgonhae culpa Te sil (ea Fobias e sindrome . do panico Laceragées e Hiviaids Pence Recaincse ‘Abortamento aixa autoestima Dano ocular inseguro Lae Funcionamento —_Gravidez pier fisico reduzido indesejada eS aloes Tabagismo Ideagao suicida Comportamento sexual inseguro homicidio, suicidio e mortalidade infant Pe ee : Sete ee transmissivel; TEPT, transtorno de estresse pés-traumatico; HIV, virus da imunodeficiéncia humana; aids, sindrome da imunodeficiéncia adquirida. A violéncia por parceiro intimo esta na base de diversas consequéncias, que sao watadas sem se considerar sua potencial condigdo subjacente. As consequéncias da violéncia doméstica e sexual para a satide das mulheres abrangem problemas relacionados a satide sexual e reprodutiva (aborto provocado, infecgGes sexualmente transmissiveis (ISTs) e HIV séo muito mais prevalentes nesses casos, e o inicio do acompanhamento pré-natal tende a ser mais tardio e com menor numero de consultas), 4 satide mental (incluindo depressao, abuso de substancias e tentativa de homicidio), a queixas somaticas e a dores crénicas. Essas consequéncias podem persistir mesmo apés o término das situacées de violéncia.2 Pergunta face a face: antes dos 15 anos, vocé se lembra se alguém tocou em vocé sexualmente ou obrigou-a a uma atividade sexual que vocé nao queria? Pergunta anénima: Foram fornecidas cédulas anénimas com faces tristes e alegres que indicavam, respectivamente, a ocorréncia ou nado da violéncia e foi pedido as mulheres que, independentemente do que haviam dito até ali, marcassern a carinha triste se houvera algum episodio e a feliz, se isso nunca acontecera com elas, e depositassem a cédula (como a que segue) anonimamente em uma urna a Figura 82.2 Abuso sexual de meninas — Perguntas da OMS — Multi-country study on women's health and domestic violence. Fonte: Schraiber e colaboradores. Nao 6 de causar espanto, portanto, que mulheres que vivem (ou viveram) violéncia doméstica apresentem utilizagao muito mais frequente dos servigos de satide, sendo muitas vezes percebidas como usuarias excessivas, incOmodas ou impertinentes: trazem queixas confusas e que nunca sao resolvidas, gerando impoténcia e insatisfacio nos profissionais de sade e sendo por vezes desqualificadas e desacreditadas na sua demanda. Por outro lado, tém um padrao de menor aderéncia as praticas de prevengo, como menor uso de preservativo ou realizagio de Papanicolau.2 A violéncia entre parceiros intimos tem também diversas consequéncias para a satide das criangas que testemunham as agressdes, como depressao, ansiedade, enurese noturna e transtornos de comportamento. Também é importante notar que a violéncia afeta a capacidade das mulheres de cuidado sobre si e sobre os outros (criangas e idosos). Mulheres que sofrem violéncia por parceiro intimo apresentam menor cobertura de imunizacio e maior prevaléncia de diarreia e mortalidade infantil entre seus filhos, comparadas com mulheres que néo vivem ou nao viveram violéncia doméstica. As violéncias estao integradas e se reforg¢am mutuamente: ser testemunha de violéncia entre seus pais ou sofrer violéncia fisica (meninos) e sexual (meninas) durante a infancia séo importantes fatores de risco para que essas criangas experimentem violéncia por parceiro intimo na sua vida adulta, criando o que tem sido chamado de reprodugao intergeracional da violéncia® e reforcando a importancia da intervengao nos casos atuais como prevengao de novos casos nas geracées futuras. As consequéncias da violéncia contra as criangas para a sua satide podem manifestar-se em diferentes aspectos do crescimento e do desenvolvimento, e podem, como visto, estender-se & idade adulta. Além dos efeitos diretos dos traumas fisicos, como hematomas, fraturas e outras lees, estudos brasileiros mostraram associagdes entre abuso infantil e transtornos psiquiatricos em geral, uso de drogas, depressiio e baixa autoestima na adolescéncia, transtornos de conduta, transtorno de estresse pds-traumatico (TEPT) e comportamento transgressor na idade adulta.” Em relacio ao abuso de idosos, ha poucos estudos investigando suas consequéncias para a satide, a maioria realizada em paises desenvolvidos. Os raros estudos existentes demonstram maior taxa de depressio e maior mortalidade entre os idosos submetidos a negligéncia. Entre o visivel e o invisivel: a escuta Dra. Sandra: “Bom dia, Joana, como vocé vai?” Joana: “Mal, doutora. Tenho uma dorméncia de todo este lado aqui (aponta o lado direito do corpo), que nunca melhora, da manha a noite, ja ha uns 5 anos. Tenho ido a muitos lugares, mas ninguém descobre o que esta errado comigo. A médica do hospital me deu este remédio aqui (mostra uma caixa de amitriptilina, 25 mg) mas ja tomo ha 1 més, certinho, e nado esta adiantando nada. Acho que preciso de um bom especialista que faga uns exames modernos que descubram meu problema.” Dra. Sandra: “O que vocé pensa sobre esse seu problema, Joana? Qual vocé acha que pode ser a causa, 0 que vocé acha que esta errado com vocé?" Joana: “Ah, doutora, acho que tem um problema muito sério dentro da minha cabega, algo que pode estourar a qualquer momento, sinto dor de cabeca de vez em quando. Tenho muito medo de morrer e deixar meus trés filhos, de 11, 13 e 15 anos, sem mae. Tenho certeza de que sofro de pressdo alta e posso ter um derrame a qualquer momento, mas minha pressAo se esconde, nado aparece nas medidas dos médicos. Eu gostaria muito de fazer uma ‘tomografia da cabeca’, para poder ver o que ha de errado.” A pressao arterial (PA) de Joana é 140/90 mmHg. O exame neuroldgico é normal. © que é ou nao considerado pelas pessoas e pelos profissionais como violéncia pode variar bastante: das mulheres entrevistadas nos servicos de satide da regio metropolitana de Sao Paulo, apenas 39,1% das que relataram qualquer episédio definido como violéncia pela pesquisa consideraram ter vivido violéncia na vida, observando-se registro de algum episddio de violéncia em apenas 3,8% do total de prontudrios dos servicos, em claro contraste com os 45,3% de prevaléncia de violéncia fisica ou sexual por parceiro intimo encontrado pela mesma pesquisa.? A detecc&io da violéncia doméstica 6, portanto, bastante limitada: muitas mulheres nao reconhecem o vivido como violéncia, e os médicos nao sao treinados a buscar a informagiio ativamente nem em como trabalhar com ela quando aparece. Por que mulheres, idosos e criangas néo contam sobre a violéncia que vivem e que esta intimamente relacionada com os problemas de satide que apresentam? Diversas explicacées aparecem na literatura: quando se trata de violéncia contra criancas, pais, responsdveis e as proprias criangas podem temer pela retirada da crianca do lar, por punigdes aos agressores ou podem sentir culpa ou vergonha. Mulheres e idosos podem também sentir medo, culpa ou vergonha pela violéncia que vivenciam, podem sentir amor pelos agressores, podem ter tido mas experiéncias quando contaram das suas experiéncias no passado para profissionais da sade, podem achar que os profissionais nao iriam se interessar pelos seus problemas, ou nao poderiam fazer nada para ajudé-los.3 Os médicos de familia e comunidade e as equipes de satide da familia estao em uma posicio privilegiada para a deteccéio dos casos de violéncia doméstica, ja que acompanham as pessoas e suas familias ao longo do tempo, realizam visitas domiciliares e tratam de muitos dos problemas de satide associados violéncia doméstica. Eles tém relag&o com todas as pessoas moradoras na area de adscric&io da unidade e representam uma enorme oportunidade para a redugao dos danos causados pela violéncia doméstica, incluindo a prevengao quaterndria associada, para evitar exames e tratamentos desnecessarios, além da promociio dos direitos e da satide das pessoas e da prevencao de novos casos. Para isso, no entanto, néo basta boa vontade: é necessario ampliar o conhecimento dos médicos de familia e comunidade na deteccao e no manejo desse problema, considerando os principios da medicina de familia e comunidade, o trabalho da equipe de satide em geral e a articulagdo com a rede intersetorial. Diversos avangos, nos tiltimos anos, estimulam e demandam a detecgio ativa ea acao dos profissionais de satide no Brasil em relacao a violéncia doméstica: O estatuto da crianca e do adolescente (ECA)! determina, desde 1990, que todos os casos de suspeita ou confirmacéo de maus-tratos contra criangas ou adolescentes devem ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da localidade, sem prejuizo de outras providéncias legais. A inobservancia dessa regra por médicos, professores ou responsavel por estabelecimento de satide implica multa de 3 a 20 salarios de referéncia. A notificagéo de violéncia doméstica, sexual ou outras a vigilancia epidemiolégica é compulséria no caso de violéncia contra crianga, adolescente, mulher ou pessoa idosa. O Estatuto do Idoso! estabelece penas especificas para negligéncia, abandono e falta de cuidados médicos necessarios aos idosos. A Lei Maria da Penha,'? desde 2006, estabelece pena privativa de liberdade Para agressor que seja parceiro intimo da vitima em determinadas situagdes, medidas protetivas para as mulheres e necessidade de uma rede intersetorial de cuidado para a redugéo da violéncia, incluindo o encaminhamento dos agressores para medidas reeducativas e reabilitadoras. No entanto, os médicos de familia e comunidade ainda nao tém como habito suspeitar e tomar a questo para seu trabalho de forma consistente ¢ rotineira, tendo dtividas sobre a pertinéncia desse problema como parte integrante do trabalho em satide. Médicos e enfermeiros dizem ter pouco tempo para essa deteccéio, bem como pouco controle sobre as eventuais respostas das familias e das mulheres. Temem ser perseguidos ou envergonhar as pessoas se perguntarem ou suspeitarem de violéncia doméstica ou tém medo das consequéncias, como retaliacées do agressor contra eles ou a necessidade de posterior depoimento judicial. Também ha dtividas sobre a efetividade de suas acdes: ainda sio poucos os estudos demonstrando a efetividade da busca ativa, por médicos ou por enfermeiros, dos casos de violéncia doméstica no sentido da melhoria das condigées de satide dos envolvidos, e a rede intersetorial especificamente voltada 4 violéncia doméstica € percebida por muitos profissionais como ineficaz e insuficiente. Os primeiros ensaios clinicos randomizados, demonstrando diferengas quando ‘0s médicos de familia e comunidade sao treinados para o problema e atuam para seu enfrentamento, no entanto, estio comecando a ser publicados. Recente estudo publicado na revista Lancet mostra que os médicos da familia e comunidade ingleses, quando treinados, aumentam em trés vezes a deteccdio de violéncia por parceiro intimo e em 22 vezes a referéncia dos casos para servigos especializados.'3 A revelacao da violéncia doméstica depende de bom vinculo, de confianga e de uma postura ativa e isenta de julgamento por parte do profissional. Ha que perguntar e demonstrar interesse, j4 que o assunto nao se trata de problema privado exclusivamente, e suas consequéncias para a satide demandam que o problema seja revelado.4 Equipe e rede intersetorial: 0 trabalho com a violéncia doméstica Dra. Sandra: “Joana, entendo que vocé esta com medo de ter algo dentro da sua cabe¢a, mas as suas queixas e 0 seu exame fisico nao me fazem pensar em nenhuma hipotese diagnéstica que justifique o pedido de uma tomografia. Vejo que vocé tem utilizado muitos servigos nos Ultimos tempos, e vocé me trouxe todos estes exames (na mesa da Dra., ha uma pilha de exames trazidos por Joana) que junto com a anamnese (a conversa que tivemos) e o exame fisico, me garantem que no momento, vocé nao sofre de nenhuma patologia grave. Isso nao significa, no entanto, que o seu problema de satide nao seja grave, ao contrario: vejo que vocé esta muito preocupada e sofrendo bastante, e quero muito ajuda-la no que estiver a meu alcance. Vocé sabe que pessoas com queixas como a sua, muitas vezes, podem estar passando por problemas graves que afetam a sua satide? Joana, vocé tem algum problema em casa, ou no trabalho, tem passado algum nervosismo?” Joana: “Ah, doutora, so se for o meu marido... Porque desde que ele ficou desempregado, ha uns 6 anos, deu para beber muito e chega em casa ja xingando, falando nome, palavrao, agressivo... joga coisas na parede, em mim... Xinga a mim e 4 minha filha de cada coisa... eu no tenho nem coragem de repetir. Vagabunda, dai para pior... Alem de tudo, me pega na forga quando esta bébado, é horrivel... Eu fico muito nervosa, é sO bater a porta que ja sei que é ele chegando e comego a tremer. E as criangas ficam muito atacadas. O mais velho ja falou que vai virar bandido quando crescer para botar o pai para fora de casa... Dei uma surra de cinta nele, néo admito ter filho bandido! E depois, tem a velha, a mae dele, que fica o dia todo na cama me pedindo tudo na mao! Ela so defende ele, sei que é velha, doente, tem problema no quadril, mas ela também me xinga de vagabunda, e nao é porque esta meio caduca nao, sempre foi assim, sé piorou... Eu tenho que dar banho, comida, limpar a sujeira dela... S6 tenho paz quando estou no trabalho, mas a patroa também é meio chata, e desde que ele comecou a aparecer [4 no meu servigo e dar escandalo, bébado, por causa de ciltimes, ela esta ameacgando me mandar embora... A senhora nao tem como me ajudar, nao, é muito problema junto...” Ouvir as histérias de violéncia doméstica é muito importante para colocar as queixas em contexto e planejar as acées decorrentes. A histéria aqui relatada, baseada em fatos reais, conjuga violéncia contra criangas, idosos, deficientes e contra mulheres. O que o médico de familia e comunidade pode e deve fazer ao ter conhecimento dessa realidade? Propée-se aqui uma “técnica de conversa”, um guia orientador do trabalho em satide nesses casos, apresentado no Quadro 82.4.4 Essa “técnica de conversa” compée contetidos a serem abordados com habilidades e valores necessarios a uma boa conduciio da consulta. Essa conversa constitui o primeiro manejo do caso, para seu diagnéstico, primeiro acolhimento e inicio de um itinerdrio terapéutico em direcdo a rede de servicos especializados para lidar com as situagées de violéncia doméstica e que tomam parte de diferentes setores de atuagao na sociedade, tais como as delegacias policiais especializadas, os servicos de orientag&o juridica, os de assisténcia social, os de atencio psicossocial e até servigos de satide que constituem atendimentos complementares a aten¢do primaria a satide. Quadro 82.4 | A técnica da conversa » Sigilo e privacidade » Tempo adequado » Valorizagao do relato-registro » Reflexdo sobre as origens da violéncia (género e outros eixos de desigualdade de poder) » Identificagao das conexées violéncia-satde (danos, sofrimentos e ‘sentimentos) Escuta sem julgamento — diferenga entre satide e justica Evitacdo da vitimizacao — cristalizacéio de normas tradicionais de género Identificagao de riscos (homicidio, suicfdio, criangas) Identificagdo da rede de suporte social ja existente Compartilhamento de informagées sobre a rede de servigos Novos projetos de vida: construgao e deciséo compartilhada sobre caminhos possiveis » Referéncia aos servicos que a pessoa escolher » Monitoramento do caminho (seguimento ou retorno sempre que ela o desejar) » Treinamento e supervisdio constante — trabalho do profissional com a prépria emogao diante da violéncia e sentimentos (medo; raiva; vinganga) e a banalizagao do mal vryvyy Em primeiro lugar, é necessdrio garantir e reforcar a privacidade e o sigilo, incluindo a necessidade, em alguns casos, de que agentes comunitarios ou outros profissionais moradores da comunidade sejam poupados do conhecimento de todas as informaces relatadas. Deve-se lembrar-se de que hd um estigma envolvido, especialmente em caso de abuso sexual infantil, e, se esse deve ser um assunto da equipe, é prudente conversar com a pessoa em atendimento sobre para quem ela deseja ou nio a revelacio dos episédios tratados na consulta, assegurando que o seu prontuario e tudo o que for registrado ali nao sera revelado a outros membros da mesma familia, ou da comunidade. Salas com portas fechadas e sem vazamento de som também sao importantes para isso e deve-se atentar para esse aspecto dos servigos, que tem bastante importancia no trabalho com todos os temas sensiveis e delicados. Em segundo lugar, é necessario ter tempo, ao menos 15 a 20 minutos, e muitas vezes a abordagem precisara ser dividida em diversas consultas, ou com outros profissionais da unidade/equipe com a qual a pessoa tenha ou forme vinculo e que tenha treinamento especifico na “técnica de conversa” necesséria. F fundamental respeitar e acreditar na histéria que esta sendo contada, nunca duvidando, desmerecendo ou desvalorizando o que é importante para a pessoa, e registrar fielmente no prontuério a histéria e o exame fisico, j4 que esses dados devem informar aos outros profissionais da equipe que atendam 0 caso e podem ser necessdrios no futuro em eventuais processos legais. ‘As desigualdades de género, etnia, geracao ou classe presentes nos relatos podem ser discutidas, como questdes de ética das relacées interpessoais e também de justiga social. A maior autoridade masculina na familia, desacompanhada de responsabilidades e deveres, deve ser questionada, estimulando-se 0 pensamento critico e auténomo dos sujeitos sobre suas vidas e as determinages das estruturas sociais, de forma bastante concreta. Além disso, a relagéo entre sintomas e problema sentidos e a violéncia relatada deve ser tematizada, e os dados existentes sobre as consequéncias da violéncia na literatura médica devem ser repassados aos usuarios. ‘A mensagem clara de que a violéncia é sempre errada e de que ninguém pode ser culpado por sofrer violéncia é primordial. Deve-se evitar a banalizagao, ou relativizacdo do que venha a ser violéncia. A importancia de coibir a violéncia precisa ficar muito clara, independentemente dos motivos e das justificativas culturais (“nao quero filho bandido”, ou “ele tem citimes e me bate porque no passado eu tive um episédio de adultério”, ou ainda “esta idosa foi ruim comigo no passado”). Nada justifica a violéncia, mas a compreenséo do que acontece pode ajudar a encontrar caminhos para evitd-la. Nao emitir os seus julgamentos pessoais, apesar de dificil, é fundamental para a adequada compreensio e 0 manejo do caso. Os casos de violéncia devem ser julgados, e a atribuigdo de autoria e a respectiva punigao, que é realizada no setor judicidrio, podem ser importantes, inclusive nas repercussdes do caso para a satide dos envolvidos. O trabalho da satide, no entanto, ainda que articulado a este, € diverso: deve-se cuidar e acolher todos os envolvidos, como ja é feito com outras formas de violéncia. Nao tratar a pessoa que sofre os atos de violéncia como uma vitima cristalizada em uma atitude passiva e indefesa. Também se deve buscar: a literatura usa o termo pessoas em situacao de violéncia, em vez de vitimas, para ressaltar que a violéncia pode ter fim, e que ninguém deveria estar condenado a permanecer como vitima de violéncia. Recuperar a capacidade de sujeito, a potencialidade de agente responsavel de todos os envolvidos é fundamental. Os riscos envolvidos no caso precisam ser ativamente buscados, como homicidio, suicidio e agressio a criangas e idosos, deixando claras as responsabilidades de pais, responsaveis, médicos e servico de satide. Deve-se buscar ativamente a rede social ja existente da pessoa em atendimento (familiares, amigos, colegas de trabalho, servicos procurados), levando em consideracao a revelacao da violéncia, as respostas encontradas e as posicdes emitidas, bem como se devem reforgar as atitudes positivas de enfrentamento a violéncia e o estabelecimento de canais de respeito e comunicacéio. Dra. Sandra: “Joana, isso que vocé esta me contando é muito sério, e acho que essa situagao toda esta afetando sua satide e de toda a sua familia. Como vocé acha que a gente poderia ajuda-la?” Joana: “Gosto muito dele, doutora, e ele é um bom homem. Mas ele precisa tratar desse maldito vicio de cachaga e arrumar um bom emprego... Os irm&os dele nao ajudam, todos bebem... Eu nao queria ter que separar dele, mas meu amor esté acabando... E tudo nas minhas costas, ele nao cuida das criangas nem da mae dele, so quer saber de bar. E os meninos ja estéo comegando a me chamar de vagabunda também...” Dra. Sandra: “Quem mais sabe 0 que esta acontecendo com vocés? Vocé conversou com a familia dele? E com a sua? Sua patroa? O que eles acham dessa situagéo? E os seus filhos, o que pensam? Tem alguém com quem vocé possa contar? Vocé jA procurou algum servico para tratar disso? Qual € o seu plano para lidar com esses problemas?” Uma pesquisa da Organizacéio Pan-americana da satide,'® intitulada “A rota critica das mulheres envolvidas na violéncia intrafamiliar”, investigou decisdes e ages das mulheres e as respostas da familia, da comunidade e das instituigdes na resolugdo desses casos. Infelizmente, a pesquisa demonstra que muitas das respostas recebidas pelas mulheres, quando decidiram falar sobre a violéncia e pedir ajuda, foram negativas, retroativamente dissuadindo-as de seguir adiante em sua decisao de interromper a violéncia. Por isso, as respostas adequadas do médico de familia e comunidade sao tao fundamentais: “Ao ter conhecimento da situagao, ele tem uma chance de favorecer a ‘rota’ da mulher, tornando-a menos critica”. ‘As alternativas de servicos especificos dirigidos a violéncia doméstica que existem no local devem ser apresentadas e discutidas, em conjunto com a rede de servicgos mais gerais de garantia de direitos que esteja disponivel. Psicdlogos e assistentes sociais podem apoiar demandas especificas 4 sua area de atuacao. O conhecimento da rede intersetorial local e a relacao e a integragéo com ela é fundamental para 0 sucesso do trabalho.'® Isso significa estabelecer boa relagao e de preferéncia visitas e reunides regulares com a crescente rede de servicos especializados no problema, como Conselho Tutelar, Centro de Referéncia de Assisténcia Social e Centro de Referéncia Especializado de Assisténcia Social, Delegacia de Defesa da Mulher, Defensorias publicas especializadas, Ministério Publico, Varas Especializadas, Centros de Referéncia a Violéncia, Delegacia do Idoso, Organizagdes nao governamentais, abrigos, servicos especializados no abuso sexual incestuoso, servicos voltados para o abuso de substancias, etc. Conhecer bem esses servicos, desde as condigdes para acesso até exatamente o que cada um faz, é fundamental. Alguns sites e recursos com informagdes sobre direitos e servicos voltados a violéncia doméstica sao apresentados ao final deste capitulo, e podem ser acessados para saber mais. Depois da escuta detalhada e da oferta de informacao consistente e adequada ao caso, um plano de cuidado deve ser estabelecido de forma compartilhada com © sujeito em questao. Esse plano pode ser variado: néo ha uma resposta tinica para o fim violéncia doméstica: o importante é nao perder de vista 0 objetivo de uma vida com melhores relacées interpessoais e mais respeito aos direitos humanos. Também é necessaria a notificacéo da violéncia contra crianga e idosos ao Conselho Tutelar e Conselho Municipal do Idoso, respectivamente, além da notificagao de violéncia contra criancas, idosos e mulheres a vigilancia epidemiolégica, discutindo-se abertamente as implicagées de cada uma dessas medidas. Aacio sobre esses casos necesita que as agdes a serem tomadas no sentido de coibir e evitar a violéncia sejam planejadas de forma compartilhada, e isso por vezes pode levar tempo. Medidas “terapéuticas” tomadas unilateralmente pelos médicos de familia e comunidade, como o encaminhamento imediato e sem didlogo a Delegacia de Defesa da Mulher ou ao psicélogo, tendem a nao ter bom efeito e podem fragilizar ainda mais as pessoas envolvidas. O plano estabelecido deve buscar garantir nao sé o fim da violéncia, mas também a maior consciéncia de todos sobre a origem de seus problemas e os caminhos para sua resolugio. Para isso, os caminhos sugeridos precisam fazer sentido para o sujeito e seus planos de vida, que podem ser renovados a cada conversa. Além disso, 0 servigo pode e deve estender o seu cuidado a todos os envolvidos (destacando-se aqui os homens, tradicionalmente exclufdos!”), evitando colocar-se em posigdo de julgar, mas apoiando a todos no firme objetivo de reducao da violéncia, de todas as discriminacées e da promogao dos direitos humanos. Dra. Sandra: “Joana, todo o tipo de violéncia é sempre errado e também é crime, além de nao resolver nada e fazer muito mal a satide. Quando ele pega vocé na marra, isso é um estupro e, se vocé quiser, pode dar queixa na Delegacia da Mulher, assim como pode dar queixa dos insultos que ele Ihe faz e das coisas que ele joga em vocé para machuca-la. Estou Ihe dando aqui o enderego e as informagées mais detalhadas sobre a Delegacia e a Lei Maria da Penha, além do endereco e de telefones de servicos juridicos e de centros de referéncia da mulher que ajudam mulheres em situagao como a sua. Podemos conversar mais sobre esses recursos e como eles poderiam ajuda-la nos seus planos. Por outro lado, quando vocé ou o seu marido batem ou maltratam as criangas, vocés estaéo fazendo algo errado, que nao ajuda, e tera consequéncias na satide deles, assim como ver vocés brigando também faz mal a eles. Vocé tem razdo. Eu sou obrigada, por lei, a notificar o Conselho Tutelar quanto a isso, e eles devem Ihe fazer uma visita, no sentido de pensar como podem ajuda-la a proteger seus filhos, melhorando a presenga das criangas na escola, por exemplo. Seu marido tem também uma responsabilidade ética e juridica com a mae e com os filhos dele e pode ser punido se for negligente ou agressivo com eles. Vocé nao é obrigada a arcar com 100% do cuidado com a sua sogra nem com as criangas. Homens e mulheres tém os mesmos direitos e deveres. Eu posso também lhe informar sobre os recursos da area para tratar de alcoolismo (ha também atendimento para os familiares), e também posso atender seu marido se ele assim o quiser. Temos também uma assistente social que pode ajuda-lo com a busca de emprego, se ele assim o desejar. Nada do que vocé me disse eu repassarei a ele, assim como néo lhe contarei 0 que ele me disser: de toda a forma, Ihe garanto que minha postura e de toda a nossa equipe sera sempre contraria a violéncia e respeitosa ao sigilo profissional. Se vocés quiserem, posso atender a sua sogra também, fazendo uma visita a ela, e posso ver os seus filhos. Em relagdo ao seu caso, precisamos também ver a sua contracepcao, Ultimo Papanicolau, protegao de |ST/HIV. Eu vou avaliar melhor essa medicagdo que vocé esta tomando, mas parece que ela nao esta indicada, pelo que tenho conversado com vocé.” Joana: “Ah, doutora, nao melhorei nada, sé me deu boca seca. Eu preciso é de um emprego melhor e que meu marido pare de beber e trabalhe direito. E de paz na minha casa, sossego para meus filhos, cuidado para minha sogra, que esta velhinha e doente! Agradego muito a sua paciéncia comigo e todas essas informagées. Vou ler tudo isso com calma e pensar no que posso fazer, conversar com meus filhos, com meu marido, com minha patroa... Talvez até com minha sogra, coitada. Acho que vou dar um ultimato a ele: se nao for se tratar da bebida, dou queixa e separo. Agora ja tenho os telefones, vou colar na geladeira. E se nao for com camisinha, nao vai ter nada, tenho medo, ele chega tarde, nado sei com quem anda... Acho que estamos apenas comecando, né? Um ultimo ponto a abordar é o trabalho com os prdoprios médicos de familia e comunidade. O contato com a violéncia pode ser cansativo e mobilizar emocées no profissional, como medo, raiva ou impoténcia. E importante estar atento(a) a essas emocées e conversar com o resto da equipe e dos profissionais da rede especifica de atendimento 4 violéncia para evitar danos e sofrimentos aos profissionais. O trabalho com os casos de violéncia doméstica pode ser muito produtivo e trazer grande realizagéo no trabalho, quando é feito de forma consciente e articulada e quando ha supervisio entre os profissionais envolvidos ou com pessoas especializadas. Cuidar de si é muito importante para poder cuidar dos outros! REFERENCIAS 1. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Violéncia contra mulheres: interfaces com a satide. Interface Comunic Savide Educ. 1999;5(3):11-27, 2. Krug EG, Dalhberg LL, Mercy JA, Zwy AB, Lozano R, editores. Relatério mundial sobre violencia e satide. Genebra: OMS; 2002. 3. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Falcdo MTC, Figueiredo WS. Violéncia dei e ndo é direito: a violencia contra a mulher, a satide e os direitos humanos. Sao Paulo: UNESP; 200. 4, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Franca-Jr I. Viol@ncia sexual por parceiro intimo entre homens ¢ ‘mulheres no Brasil urbano, 2005. Rev Saiide Piblica. 2008;42(Supl 1):127-37.. 5. 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