Parte 1 - Contraconduta

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! 1.0 Frankenstein do neoliberalismo: liberdade autoritaria nas “democracias” do século XXI! Wenpy Brown Quero dar a Franca sua liberdade de volta. Eu quero tird-la da cadeia. Marine Le Pen, abril de 2017. Ingressei na UKIP? porque acredito ser 0 tinico partido que valoriza realmente a liberdade e a aspiracio. A UKIP significa mais do que independéncia da Unido Europeia. Trata-se da independéncia de um Estado orweliano, intervencionista € controlador; trata-se da independéncia para o individuo. E 0 tinico partido que acredita na responsabilidade pessoal € na igualdade de oportunidades, € no de resultados. Eo \inico partido que coloca sua confianga nas pessoas, no nos politicos e na classe burocritica. Alexandra Swann (2012), The Guardian. Apresentei minha filha de vinte e trés anos, uma estudante de + direito, aos videos de Milo [Yiannoppoulos] ¢ ela me diz se sentir aliviada, B natural, E para mim ele é como uma camisa florida e folgada num ambiente em que s6 se vé xadrez. Nome reservado, correspondéncia pessoal com a autora. Neoliberalism’s Frankenstein: authoritarian freedom in Twenty-First Century vitical Times, v. 1, n. 1, 2018. p, 60-79. Disponivel em: . Acesso em 3 mar. 2019. (N.T.] 2. United Kingdom Independence Party, ou Partido da Independencia do Reino Unido [N.T]. Digitalizado com CamScanner 18 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS £ CONTRACONDUTAg Uma populagio predominantemente branca, sem escolaridade ¢ evangélica, movida pelo descontentamento, pela raiva ou pela migoa, ou por todas as trés coisas, conduziu Donald Trump ao poder.’ Sim, ele obteve também 0 apoio de alguns brancos escolarizados, de minorigg raciais, dos ultrarricos, dos ultrassionistas e da extrema-dircita. Mas sua base eleitoral foi e continua sendo os eleitores americanos brancos sem diploma universitério, muitos dos quais admitiram francamente que faltavam a cle as qualificasées para ser presidente.‘ Ele mobilizow nao simplesmente o ressentimento de classe, mas também o rancor branco, em especial o rancor branco masculino, contra a perda do orgulho de posigio (social, econémica, cultural e politica), no contexto de quatro décadas de neoliberalismo e globalizacao. De fato, 0 neoliberalismo e, antes dele, 0 pos-fordismo, foram muito mais devastadores para a classe dos trabalhadores negros americanos, Em 1970, mais de dois tergos dos trabalhadores negros urbanos tinham empregos de operarios; em 1987, esse niimero havia caido para vinte oito por cento (Shatz, 2017). Além do desemprego ¢ subemprego crescentes, 0s bairros da classe trabalhadora negra e pobre foram duramente atingidos pela perda dos fundos das escolas puiblicas, dos servicos, dos beneficios da previdéncia social ¢ por mandatos draconianos de sentencas para crimes nao violentos. Essas coisas, em seu conjunto, tiveram como resultado uma explosio da economia de drogas e das gangues, uma taxa catastr6fica de encarceramento dos negros e uma disparidade crescente entre as possibilidades de uma pequena classe média negra e o abandono politico, social e econémico do resto da América negra (Gilligan, 2017). Mas essa devastacio é feita de promessas nao cumpridas, nao de um rancor retrospectivo sobre supremacia perdida ou empoderamento, nao do esmagamento de imagos sociais ¢ politicos do ego, da raga e da nagio. Esta claro que a reagao branca contraa perda de poder socioecondmico pela politica econdmica neoliberal, ¢ que foi chamada de “globalizagio 3, 88% dos eleitores de Trump eram brancos, em um pais onde os brancos constituem 62% da populagio. Ele recebeu 0 apoio de mais que a metade das eleitoras brancas; 2/3 dos eleitores brancosse quae 2/3 dos eleitores brancos acima de 50 anos (Tyson; Maniam, 2016). 4. ‘Trump conquistou o apoio de 2/3 dos eleitores brancos sem diploma universitirio (Silver 2016). Algo entre 1/5 e 1/4 dos eleitores de Trump entrevistados em pesquisis de boca de urna disseram que no consideravam Trump como qualificado para a presidénci, sugerindo que * Justificasio de suas frustragGes, ira, preconceito e ddio hierirquico foram decisivos (Roberts, 2016). Digitalizado com CamScanner MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINE (ORGS.) 49 selyagem” até mesmo por Marine Le Pen, estit desenfreada por todo 0 Euro-Atlintico, onde os habitantes brancos das classes trabalhadoras e médias enfrentam um acesso decrescente a rendas decentes, habltgilo, escolas, aposentadorias ¢ futuros, ¢ levantaram-se numa rebelide politicn contra usurpadores sombrios imaginarios ¢ também contra os cosmopolitus c as elites que consideram responsiveis por terem escancarado as portas de suas nagdes e se livrado deles. Isso nés sabemos. Mas qual é a forma politica dessa ira ¢ sua mobilizagio? Os velhos termos usados para descrever isso — populismo, autoritarismo, fascismo ~ apreendem de forma inadequada essa mistura estranha de belicosidade, desinibigéio ¢ uma combinagio antidemocritica de licenga ¢ apoio ao estadismo nas atuais formagées sociais ¢ politicas. Eles também nio identificam os elementos especificos da raz4o neoliberal — um alcance radicalmente extenso do privado, uma desconfianga da politica e um repiidio do social, os quais juntos normalizam a desigualdade e destroem a democracia ~ que moldam ¢ dio legitimidade a essas paixdes da politica da direita branca ¢ raivosa. cles nfo apreendem o niilismo profundo que esta transformando os valore: em brinquedos, tornando a verdade inconsequente ¢ o futuro uma coisa indiferente ou pior, um objeto de destruigio inconsciente, No que se segue, explorarei essa conjuntura a partir de um tinico angulo: 0 que gera as dimensdes antipoliticas ¢, no entanto libertirias e autoritarias da reagio popular de dircita nos dias de hoje? Que novas iteragdes e express6es de liberdade foram forjadas a partir da conjuntura di razio neoliberal, do poder branco masculino injuriado, do nacionalismo, de um niilismo nao reconhecido? De que forma a liberdade se tornou o cartio de visitas e a energia de uma formagio tio manifestamente niio emancipatéria, na verdade caracterizada rotineiramente como anunciadora de uma “democracia nao liberal” em seus ataques & igualdade de direitos, a0 constitucionalismo, as normas basicas de tolerancia ¢ inclusiio ¢ sua afirmagio do nacionalismo branco, de um estadismo forte ¢ de lideres autoritarios? Como e por qual motivo a liberdade ¢ o iliberalismo, a liberdade ¢ 0 autoritarismo, « liberdade ¢ a exclusio social legitimizada ¢ a violéncia social se encontram combinados em nossos dias? De que maneira essa fusao desenvolveu uma atrag’io ¢ uma modesta legitimidade em nagées antes democriticas ¢ liberais? Esse ensaio nio fornece a genealogia que responderia de forma abrangente a essas questées, ma Ele segue virios tributirios histéricos oferece uma primeira incursio. Digitalizado com CamScanner “a NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTas 20 ¢ constréi sobre as bases do trio improvavel que sio Friedrich Hayek, Nietzsche e Marcuse; Hayek para dar um relato da racionalidade politica de nossa época, Nietzsche e Marcuse para relatos da agressio rancorosa, desinibida e antissocial que explode em seu interior. As LOGICAS E EFEITOS DA RAZAO NEOLIBERAL iberalismo € comumente compreendido como um conjunto de agdes sem restrigio, fluxos e acumulagdes baixas e impostos, desregulamentagio bens e servigos previamente ptiblicos, 1 ¢ a destruigio do trabalhismo ender o politicas econdmicas que promove de capital por meio de tarifas das industrias, privatizagao de desmonte do Estado de bem-estar social Foucault ¢ outros nos ensinaram também a compre: dade _governamental que gera tipos le ordens de sentido ¢ valor organizado. neoliberalismo como uma racionali distintos de sujeitos, de formas de conduta e d social.’ Diferentemente da ideologia — uma distorgio ou mitificagio da realidade - a racionalidade neoliberal ¢ produtiva, formadora do mundo: cada esfera € empenho humano ¢ ela coloca sob um viés econdmico substitui um modelo de sociedade-bascada_num contrato social produtor de justica por uma sociedade concebida ¢ organizada como mercados, com Estados orientados pelas necessidades do mercado. Na medida em qué & (0 senso comum generalizado, yermeiam aéreas, racionalidade neolibe! ios nio governam somente por meio do Esta 10, as escolas. os hospitais, as academia orma do desejo e decis6es humanas. A educasa0 nte € reconhgurada pela racionalidade do capital humano na melhoria de seu literalmente ininteligivel 4 0 policiamento superior, por exemplo, no some neoliberal como um investimento proprio valor futuro; essa transformagio torna ideia ea pritica da educa¢o como um bem publico democratico. Tudo nas universidades é afetado por isso: niveis de ensino e prioridades de orgamento, claro, mas também os curriculos, 0 ensino ¢ as praticas de pesquisa, os critérios de admissio e de contratos, as questdes € conduta administrativas- ‘As coordenadas de nagdes ostensivamente democriticas sio da mesma forma reformatadas. Um exemplo: pouco depois de sua eleigao em 2017,° resumo dess* Fo Baseada nas conferéncias de Foucault em Nascimento da biopolitica, ofereci um racionalidade em Undoing the Demos (Brown, 2015). Digitalizado com CamScanner Digitalizado com CamScanner . NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAS al o motivo do ataque a sociedade e ao social? Para os neoliberais, como famosamente disse Margaret Thatcher, a_sociedade nao existe. A estrela-guia de Thatcher, Friedrich Hayek, lamentou “0 social”™como um termo simultaneamente mitico, incoerente e perigoso, falsamente antropomérfico e, além disso, fazendo uso também do “animismo” (Hayek, 1988, p. 108 ¢ p. 112-113; Hayek, 1982, p. 75-76). O que faz da crenca no reino do social algo tio abominavel para Hayek é que ele conduz inevitavelmente a localizar nele a justiga e a ordem planejada, Isso, por sua vez, implica solapar a ordem dinamica fornecida pela combinagio de mercados e moral, nenhum dos quais emana da razo ou da inten¢o,ambos evoluem espontaneamente (Hayek, 1988, p. 67 ¢ p. 116-117; Hayek, 1982, p- 66-68). Além do mais, jé que a justica diz respeito 4 conduta compativel com regras universais, é um termo erréneo quando aplicado 4 condigio ou estado de um povo, como no termo “justica social”. A justica social é entdo mal orientada, ataca a liberdade em espirito e de fato, j4 que tenta inevitavelmente substitui-la pela ideia do Bem de um grupo. Fora seu papel na execucio de politicas sociais mal orientadas, por uc os neoliberais sao também contra o politico? Para Milton Friedman, {bare ameaga da politica & liberdade ek sua base na sua concentracao de poder inerente, que é dispersa pelos mercados ¢ seu instrumento de coergao fundamental, seja por governo ou por injungao, ao passo que 0s_ mercados permitem escolhas (Friedman, 2002). Embora ele reconhega ‘que alguma medida de ordem politica é indispensavel para sociedades estéveis e seguras, ¢ até mesmo para a existéncia e sade dos mercados (propriedade ¢ leis de contratos, politica monetéria e assim por diante), ara Friedman todo ato politico, regra ou mandato é uma subtraca liberdade individual. Até mesmo a democracia, sempre que deixa de ale: a unanimidade, compromete a liberdade, ji que impGe a vontade sempre se obter aquilo pelo qual se , a0 invés de ter de se submeter 4 maiorias. Friedman (1970) escreve: O principio politico subjacente ao mecanismo do mercado é a unanimidade, Em um mercado livre ideal, apoiado na propriedade privada, nenhum individuo pode coagir qualquer outro, toda cooperagio ¢ voluntiria, todas as partes de tal cooperagfo se beneficiam ow iio precisam partcipar: Nio _ad Digitalizado com CamScanner tu MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) existem valores, nenhuma responsabilidade “social” em qualquer sentido que seja o dos valores e responsabilidades compartilhados dos inds A sociedade € um agrupamento de individuos ¢ dos virios grupos por eles formados voluntariamente. O principio politico subjacente 20 mecanismo politico é a conformidade. O individuo deve servir 2 um interesse socizi mais geral ~ seja esse determinado por uma igreja, um ditador ou uma maioriz. individuo pode ter um voto € uma voz naquilo que deve ser feito, mas caso seja vencido deve se conformar. Também Friedrich Hayek achava que a vida politica comprometia a liberdade individual a ordem e progresso espontineos que ela gera 0. Isso quando disciplinada (e, portanto, responsabilizada) pela competi € mais do que uma sintese para um governo limitado. Antes, para Hayek, a politica enquanto tal ¢ a democracia, em especial, limitam a liberdade na medida em que concentram 0 poder, constrangem a acio individual, desorganizam a ordem espontinea e distorcem os incentivos naturais, as distribuigdes e, portanto, a satide dos mercados. Em Lei, legislagao liberdade, Hayek comega com uma epigrama de Walter Lippmann: “Em _ jade livre, o Estado nao administra os negécios humanos. Ele administra a justiga entre homens que conduzem seus préprios negdcios (Lippmann apud Hayek, 1982, p. v). Entretanto, mesmo essa maneira de colocar a questdo, na medida em que ela se concentra no Estado e na economia, di pouca énfase 3 textura € ao local em que ocorre a liberdade neoliberal, na qual tanto a desregulamentagio quanto a privatizagio se tornam principios morais ¢ filos6ficos amplos, estendendo-se bem além da economia. Quando esses prinefpios se afirmam, restrigdes a liberdade em nome da civilidade, da igualdade, inclusio ou bem piblico, e,acima de tudo, em nome daquilo que Hayek chama “a perigosa supersti¢do” da justia social esto num continuum isso, € preciso que consideremos mais de perto a compreensio que Hayek faz da liberdade. Para Hayek, a liberdade prevalece onde nio existe coersio humana intencional; ela € restringida somente por regras obrigatdrias, injungdes ou ameagas. Independéncia ou liberdade, utilizadas por ele de forma intercambiavel, nada mais é do que “independéncia da vontade arbitniria de outrem’; ela se refere somente a relagao dos homens com outros homens | Digitalizado com CamScanner “= 24 NKOLIMERALISMO, PEMINIOMOS F CONTRACONDUTAS © a tinicn infingio dela é x coergito pelos homens (Hayek, 1960, p. 59- 60). Hayek rejeita explicitamente qualquer outro sentido de liberdade ¢ € especialmente hostil a significados que se aproximam da capacidade ou do poder de agir = “liberdade de” ~ ou que equalizam a liberdade com a soberania popular (Hayek, 1960, p. 61-68), Estes ele considera nio meramente errados mas perigosos, na medida em que conduzem a uma sensagfio ampliada de direito, portanto, a um controle do Estado sob a forma de distribuigiio de recursos ¢ planejamento social. A liberdade coneebida como agéncia, capacidade ou soberania produz intervengdes que tanto limitam a verdadeira liberdade quanto destroem a ordem espontanea que cla gera. Dito de forma incisiva, a liberdade buscada ou praticada a parte de seu sentido no mercado liberal (isso incluiria todos os projetos de emancipagiio da esquerda) inevitavelmente sofre uma inversao para o oposto da liberdade. Por que motivo, de acordo com Hayek, a ordem espontanea de interdependéncia e¢ desenvolvimento da civilizag’o emerge apenas na auséncia de intervengio politica? Qual é a razio dessa hostilidade para com peritos, planejadores ¢ mesmo para com ordens legais? A resposta esta na teoria de Hayek da ignorancia social inerente, em sua insisténcia de que nfo ha e nem pode haver um conhecimento superior da sociedade, seja da parte dos individuos ou dos grupos: “a_defesa_da_liberdade ingyi de todos nés a respert im grande numero dos fatores dos Horrors oniecientes Tavera POT Pouca defesa da liberdade” (Hayek, 1960, p- 80-81). Segundo Hayek, o-embasamento do conhecimento sobre © qual as civilizagées foram construfdas esta disseminado de forma demasiado ampla ¢ sedimentado por demais profundamente para que possa ser reunido € processado por qualquer pessoa ou grupo, we at algum. & assim que um Estado que se permita fazer uma politica " planejamento social cometerd erros, limitara a een ra : inovagio e a ordem gerada pelos mercados e reduzira a is eal i portanto, a responsabilidade. O planejamento ou 0 control chek assim inerentemente opressivo, cheio de erros e desvitaliza ii i espécie 1960, p. 75-90). Em_contraste com isso, 0 libel l é ou 7 . d jva inteligente secular, quando isciplinada pel ie responsabiliza o uso da liberdade. Ce Digitalizado com CamScanner MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 25 E possivel que o principio original nos seja familiar desde Adam Smith, mas ele foi modificado de forma significativa por Hayek, que expandiu seu campo de agi. Como Foucault nota, a modificagao substitui a troca pela competic¢iéo como o motor da ordem_e desenvolvimento espontinco e necessita, assim, que a competicao seja instalada em todos 0s dominios e impiaititada em todos os sujeitos (Foucault, 2008, p. 118)..A expansio postula a liberdade de mercado como um principio ontolégico ¢ normativo abrangente: # como um, elhor cnpanizada, come umincrcardo.<.toda liberdade (pessoal, politica, social, civica) tem uma forma de mercado. Essa expansao € o que transforma uma teoria econémica em uma teoria cosmoldgica: o mesmo tipo de liberdade deve prevalecer em toda parte e é capaz de produzir efeitos positivos por toda parte. A liherdade gera disciplina, e a disciplina gera inovagdes sociais, eficiéncias e ordem. Addimensao normativa da teoria de Hayekanimao projeto construtivista neoliberal para transformar seus princfpios em principios ubiquos de governo.$ Mas de que maneira esse projeto normativo se estabelece? Isto é como é que a liberdade se expande para todos os dominios da existéncia e, de modo inverso, como sao confinados e reduzidos o alcance e poder da politica? A resposta familiar é que isso se da pela privatizacio dos bens piiblicos ¢ a responsabilizagao dos sujeitos — a missio explicita do thatcherismoe reaganismo nas décadas de 1980 ¢ 1990, € de todos os governos neoliberais desde entao.’ No entanto, importante como é, a privatizacio econémica trabalha apenas uma das pontas do problema que os neoliberais tencionam resolver, ja que elimina as restrigdes & liberdade eliminando as propriedades do governo ¢ responsabilizando sujeitos e familias através do desmantelamento das provisdes publicas. Mais crucial para nossos propésitos é o interesse de Hayek em expandir o alcance ¢ 0 direito do que construtivista no sentido em que os liberais compreendem a economizagio e marketizapdo de novas esferas nao como ocorrendo de forma natural, mas como um projeto envolvendo a lei, incentivos ¢ novas formas de governo, 7. Um exemplo excelente é 0 “Personal Responsibility and Work Opportunity Reconciliation Act” (PRWORA) de 1996, do Presidente Bill Clinton, que tinha como objetivo “substitutr a responsabilidade piblica pelo bem-estar das mulheres pobres por um sistema de responsabilidade familiar privado executado pelo estado", Para uma excelente discussdo, ver Cooper (2016, p. 63). Bla nos lembra que essa lei tornou a paternidade biol6gica responsabilidade financeira do “pai” Por toda a vida, nao importando quio distante qualquer parentesco social ou legal real com a ‘mic ou a crianga, de maneira a desobrigar o Estado dessa responsabilidade. Digitalizado com CamScanner | 2% NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAS ele chama de “a esfera pessoal, protegida” para limitar 0 alcance da politica ¢ desmontar as reivindicagdes do social (Hayek, 1960, p- 207). Promover 0 cuidado de si do individuo nao é aqui o objetivo motriz. Ao invés disso, esse projeto de liberdade envolve considerar como privadas um ntimero crescente de atividades, portanto apropriadamente desregulamentadas e apropriadamente protegidas das normas democraticas. Nas palavras de Hayek, “o reconhecimento da propriedade” é “o primeiro passo na delimitagio da esfera privada que nos protege contra a coer¢ao”, mas “é preciso que no pensemos nessa esfera como consistindo exclusivamente, ou mesmo principalmente, de coisas materiais” (Hayek, 1960, p- 207). ‘Antes, essa esfera nos da “uma protecio contra a intgpisiGhess Cost SS nossas acoes menieaduela do poder princiyg ebiicas; tanto 2.ZOna quanto os objetos do privado séo expandidos para om % dominio ¢ 0 poder dos inimipos Ge MDCT fade: 0 poder portico” bro Budee Unidos, na medida em que a racionalidade neoliberal ampliou e aprofundou seu controle, esse principio abstrato de proteger a liberdade pessoal contra a suposta coercao da vida politica (incluindo Estado, mas nao limitada a ele) desenvolveu-se de forma concreta tanto na legislago quanto no discurso popular. E largamente mobilizado pelo direito de contestar normas de igualdade, tolerancia e inclusio em nome da liberdade e da escolha. Ele tem sido colocado em ago pela maioria da Suprema Corte para realcar 0 poder das corporagdes de monopolizar manipular segmentos cada vez maiores da vida politica, enquanto permite a eles desfrutar de uma protecio crescente da regulamentacio politica e de mandatos, convertendo assim a plutonomia® neoliberal em uma forma nova e despolitizada de plutocracia, Ela tomou forma 13 jurisprudéncia americana como direitos civis individuais (por exemplo, © direito de expressio sem restrigées ou direito de consciéncia religiosa) que foram expandidos para corporagées, ¢ como justiga privatizada na forma de substituigio de procedimentos piblicos de tribunais, com recursos, 8 Em ingle: 4 Digitalizado com CamScanner MARGARETH RAGO * MAURICIO PELRGRINI (ORGS.) a7 por arbitragem confidencial, manipuladas fraudulentamente para os poderosos.” Essa forma especffica de privatizagio faz, mais, no entanto, do que contestar princfpios e priticas de igualdade ¢ antidiscriminagio por meio da expansio dos direitos individuais das pessoas ¢ ampliando-os para as corporag6es. Expandir a “esfera pessoal, protegida” é também uma maneira de fazer entrar os valores familiares, seus regulamentos ¢ reivindicagdes para dentro dos espacos piiblicos até entio organizados pelas leis € normas demoeriticas. Dessa forma, o social ¢ 0 piiblico nao sio somente economizados, mas familiarizades pelo neoliberalismo: em conjunto estes contestam os principios de igualdade, do secularismo, pluralismo ¢ incluso no cerne da moderna sociedade democritica, permitindo que sejam substitufdos por aquilo que Hayck chamou de “valores tradicionais morais” da“esfera pessoal, protegida’."° A esse respeito, consider a campanha, agora 9. © projeto de fortalecimento do privado contra a democracia, por meio do discurso da liberdade, esti claramente evidente na jurisprudéncia da Primeira Emenda nos Estados Unidos. Em 2015, John C, Coates, professor de direito comercial em Harvard, publicou um estudo demonstrando empiricamente aquilo que estava ébvio para qualquer cidadao que lesse 68 jornais: “as corporagdes tém ada vez mais (e a uma velocidade crescente) deslocado 05 individuos como beneficisrios diretos dos direitos da Primeira Emenda" (Coates, 2015, p. 223). Outros académicos tém oferecido relatos convergentes com uma diferent 0 politica. Em um artigo recente em The New Republic, Tim Wu escreve: “quem jé foi o santo patrono dos que protestam e dos privados de direitos, [a primeira emenda] se tornou a queridinha dos libertirios econdmicos ¢ dos advogados de corporagdes que reconheceram o seu poder de tornar imune o empreendimento privado 3s restrigdes legais” (Wu, 2013). Burt Neuborne argumenta que essa tendéncia emergiu nas décadas de 1970 © 1980, porque “ima protegio robusta da liberdade de expressio servia bem & abordagem cética e antirregulamentos da direjta a0 governo em geral ¢ ...encorajava uma transmissio vigorosa por oradores poderosos da colegio de ideias com nova energia da direita” (Neuborne, 2015). Além de fortalecer a corporasio a dominar processo eleitoral, como fez a infame decisio Citizens United, a extensio dos direitos de livre expressio as corporagdes tem sido de utilidade especial para os setores mais desacreditndos dos grandes negécios: as indtistrias farmacéuticas, do tabaco, do carvio, da carne industri das linhas aéreas fizeram todas amplo uso de desafios da liberdade de expressiio aos limites de Propaganda, Ela também concede liberdade religiosa para neygicios de grande e de pequeno Porte que desejam rejeitar 0 casamento gay © negar cobertura de seguros para os empregados Para métodos de controle da natalidade por eles considerados como nto ctistios. O governo ‘Trump também se moveu com rapidez para expandir o diteito de negscios de se evadirem dos direitos de antidiscriminago ¢ de protegdo igual em nome da liberdacle de expressito religiosa, € ampliar os direitos de instituigées religiosas (Igrejas) de agit de forma politica, enquanto mantém seu status religioso no Iucrativo, A rubrica ¢ a liberdade, 0 artiticio & as corporagées colocadas como pessoas, ¢ 0 projeto é um recuo de tado tipo de mandados ¢ restrigdes. 10. “A justiga social”, como escreve Hayek, gera “a destruigto do ambiente indispensivel no qual somente podem florescer os valores morais tradicionais, a saber; a liberdade pessoal” Digitalizado com CamScanner 28 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAS, j4 com trés décadas, para substituir os fundos puiblicos para 2 educacio por sistemas de vouchers (vales) individuais, que permitem que as familias escolham escolas para seus filhos que se conformem rigorosamente com seus valores morais ¢ escapem de escolas que nao o fagam. Ou pense nas decisées judiciais que permitem que os negécios evitem os mandados de igualdade com base em “crenga” religiosa, quando eles retém a cobertura do seguro de satide de empregados para formas de controle de natalidade consideradas abortivas ou recusam como clientes pessoas LGBT que querem se casar. Ou reflita sobre a crescente identificagao das nagées ocidentais com o cristianismo no discurso politico centrista, bem como no conservador e no compromisso de uma esfera publica secular que essa identificagao implica. sumo, expandir.a “ al ida” e restringir o alcat a democracia em pompeda liberdade desenvolve rimeiro apresenta um compromisso com uma modesta abertura, de direito e um pluralismo religioso e cultural. O segundo, especialmente em sua forma tradicional, opera pela exclusdo, por muros, e é homogéneo, unificado e hierarquico. Pode mesmo ser autoritario. ivatizacao_econémica neoliberal subverte profundamente, 2 oe Ela Soden lesigualdade, exclusao, a propriedade privada dos Sens comuns, a plutocracia, e um imaginario democratico profundamente obscurecido.”? A segunda ordem de privatizagao que temos considerado, entretanto, subverte a democracia por meio de valores antidemocraticos ou “familiares”, em lugar dos valores do capital antidemocratico (Cooper, 2016). Promove uma guerra familial, e ndo uma guerra de mercados, 20s principios e instituigdes democraticas. Coloca em posigdo a exclusio, 0 patriarcalismo, a tradi¢ao, o nepotismo € 0 cristianismo como contestagdes legitimas a incluso, 4 autonomia, a igualdade de direitos, limitagées 2 conflitos de interesse, ao secularismo ¢ ao préprio principio de igualdade.” Além do mais, enquanto ambos os tipos de privatizagao sio animados por fe (Hayek, 1982, p.67). : 11, Existe isso alguma ironia, como uma sequéncia a0 “Estado baba” detestado pelos neoliberais. : 12. Besse o assunto do meu liveo Undoing the Demos (Brown, 2015). 13, Algumas vees, claro esses estio combinados: 0 PROWRA, de 1996, mencionado na no" 7 acima, é um exemplo. Digitalizado com CamScanner MAROARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINt (ORGS.) 29 uma preocupagio com a liberdade, o segundo é especialmente importante para a geracio de uma formagio politica de uma liberdade autoritéria em nossos dias. Na medida em que “a esfera pessoal, protegida” é empoderada contra 0 social e se expande para envolver a propria nagio, a defesa ¢ protecio desta requerem um estadismo crescentemente robusto na forma de leis, policiamento e defesa. Devemos evitar que sejamos obnubilados pela linguagem dos direitos. Os direitos ligados aos individuos sio a formagio em cunha com a qual 0s compromissos democraticos com a igualdade, civilidade e inclusio — “justiga social” - sio desafiados pela razio neoliberal nos exemplos tangiveis como a jurisprudéncia e politicas publicas, ou manejadas pelos ativistas da extrema-direita, sob os estandartes da “liberdade de expressio”. As forsas por detras deles, entretanto, que organizam incursdes nos espacos ptiblicos e exercem uma pressao contra o politico e o democritico, sio os valores € reivindicagdes do mercado, por um lado, e do familialismo heteropatriarcal cristo por outro. Em cada um desses casos, os direitos sao estrategicamente colocados em campo, diferentemente de sua ligagio original com os individuos, para algum outro uso — para corporagoes, para a propriedade, para o capital, para familias, para igtejas, para os brancos. A privatizagao econédmica e familial do publico, combinada com a denigracdo neoliberal do social, constituem juntas o ataque da ala direita 4 “justica social” como sendo tirdnica ou fascista. A reparagio de injusticas sociais, até mesmo de direitos civis basicos para minorias raciais € sexuais, mulheres € outros grupos subordinados, sic exprimidos pelo neoliberalismo como ditados artificiais ¢ ilegitimos que fazem uso da “miragem do social” e constituem tanto ataques a liberdade pessoal como uma interferéncia na ordem espontinea dos mercados e da moral (Hayek, 1982, p. 67). A acusagao nao é simplesmente a de que estes projetos servem fins igualitarios, ao invés de fins libertarios, um pecado capital em qualquer roteiro neoliberal. E nao é simplesmente que eles impdem uma visio politica da “boa sociedade” — engenharia social ou planejamento social, a um lugar onde deveria haver apenas liberdade, competigio e o privado. Nio é simplesmente que sejam intervengées politicas ~ regulatdrias ou redistributivas - onde a realizagiio e recompensa deveriam ser organizadas pelos mercados. Nao é que simplesmente eles reprimam as energias criativas de individuos livres e a ordem espontinea dada por essas energias. Nao é que cles simplesmente transgridam a moralidade tradicional e limitem o Digitalizado com CamScanner ON 30 SHOLINERALISMO,FRMINIIMOS F-CONTRACONDUTAg dircito das familias e igrejas de influenciar, quando nao controlar, a vida i ica ¢ 0 discurso das comunidades, cidades ¢ nagdes. Em vez, esses erros Sto-em seu conjunto esculpidos numa figura de um anticristo politico no interior de uma formulagio hayckiana de liberdade que valoriza ¢ expande © privado para recuar o aleance do politico ¢ colocar em questio a Propria existéncia do social." Amplificar a competéncia do privado e amplificar a forga desintegradora da desregulamentagio de tudo em todas as partes capacita a pritica nova da liberdade a materializar de forma bastante literal a afirmagiio de que “nfo existe essa coisa, a sociedade”, ja que ataca os valores ¢ as praticas que sustentam os lacos sociais, a cooperagao social, a proviso social ¢, claro, a igualdade social. E facil de ver, nesse ponto, como falas ¢ comportamentos algumas vezes violentamente sexistas, transfébicos, xendfobos ¢ racistas irromperam como expressées de liberdade, contradizendo os ditames da correcio politica. Quando a esfera protegida, pessoal, é ampliada, quando a Oposico a restri¢dio ¢ ao regulamento se torna um principio universal € fundamental, quando 0 social é aviltado e 0 politico demonizado, a animosidade individual e os poderes histéricos do dominio dos homens brancos sio tanto legitimizados quanto desatrelados. Ninguém deve nada & ninguém ou possui o direito de restringir algo a qualquer pessoa; a igualdade, como Hayek declarou com franqueza, nao é outra coisa que a linguagem da inveja (Hayek, 1960, p. 155-156). Enquanto isso, a oposigo da esquerda ao sentimento supremacista é descrita como policiamento tirinico, que tem suas raizes no mito totalitario do social e faz uso dos poderes coercitivos do politico. Isso tem como efeito uma reformulagio profunda e nao simplesmente um novo acender das guerras culturais, que se chegou a imaginar que tivessem culminado no final do século XX." Quero ser bem clara nesse ponto. Nao estou afirmando que Hayek ou outros neoliberais imaginaram ou defenderam os ataques surpreendentemente escancarados aos imigrantes, aos mugulmanos, 208 negros, aos judeus, aos gays € As mulheres que partem hoje em dia de uma 14. Hayek considerava a justiga social “uma fraude semintica’, uma “superstigio perigost” “aque icaus que foe dos Delos sentimentos + instruments pars a destrlgan de roo walores de uma cvliraho Tie, a mancita tas reveladora, como gern” a deveug20 ambiente indispensivel em que someste podem Sorescer os valores morals tradicionais, «#! a liberdade pessoal”. Ver Hayek, 1982, p. 67-70. 15. A esquerda ndo esti imune a esse co con privadas, manifesto nas preceupay Ges com espayes seguros ¢ advertincias a slocamenty do publico com os valores € preooupayoe? or de um tee. Digitalizado com CamScanner — ee MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 31 direita radical crescente e cada vez mais ousada. Antes, o que quero mostrar € que esses desdobramentos sio, em parte, efeitos da razao neoliberal — de sua expansio de dominio e reivindicagées do privado igualmente para pessoas ¢ corporagées, ¢ sua rejeigio da justica politica e social (tal como oposta ao mercado). Se, como argumenta Andrew Lister,“a critica de Hayek 8 justiga distributiva e social tem um alvo muito limitado [intervengées econémicas por parte do Estado em resultados do mercado]”, seu escopo se ampliou, na medida em que se tornou parte da racionalidade politica de nossa época. Além do mais, 0 deslocamento do social ¢ o ataque ao politico, juntamente com o amplo descrédito As normas democriticas, alimentou e legitimou essas energias que emanavam de um conjunto completamente diferente de efeitos concretos neoliberais — a saber, a decrescente soberania e seguranca dos homens, dos brancos, do cristianismo e dos Estados-nacao. Essas energias do poder injuriado so expressas de formas variadas (em raiva rancorosa, mas também no voto quieto em candidatos da extrema- direita) e tem como alvo uma série de objetos (politicos, as elites liberais, os emigrantes, 0s mugulmanos, os gays e os negros). Mas nfo teriam uma forma politica legitima em uma ordem liberal ou social democrata, motivo porque permaneceram nas margens da politica até recentemente. O ataque neoliberal ao igualitarismo, 4 provisdo social, a justica social, a politica e democracia, juntamente com uma extensio 4 “esfera pessoal, protegida” deu a eles aquela forma legitima. E: assim que estamos lidando com aquilo que Stuart Hall chamaria de uma conjuntura e Foucault daria o nome de formacao genealdgica contingente. | Em breve examinaremos com cuidado essas novas energias. Entretanto, em primeiro lugar, estamos agora na posigio de compreender uma das desconcertantes caracteristicas da atual paisagem, a saber, como pode a direita ser o partido tanto da liberdade ¢ do nacionalismo, | da liberdade e do protecionismo, da liberdade pessoal maximizada e dos valores sociais tradicionais. Quando a dupla dimensio da privatizagéo que | temos considerado captura discursivamente a propria nagao, ela cessa de ser imaginada primariamente como uma democracia, mas é imaginada a0 | invés como um negécio competitivo que precisa fazer bons negécios ¢ atrair investidores, por um lado, e pelo outro, como um lar inadequadamente | seguro, cercado por estranhos de ma vontade, ou que a ele nfio pertencem. | O nacionalismo de direita contemporinea oscila entre os dois. Pense nos | relinchos continuos de Trump a respeito da historia recente dos Estados | ed Digitalizado com CamScanner oy 32 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAs Unidos de fazer maus negécios internacionais em todos os assuntos, do comércio 4 OTAN, a acordos climiticos, mas também sua descrigio dos Estados Unidos como brutalmente atacados por suas fronteiras inseguras, ¢ sua promessa de campanha de construir um muro que teria “uma grande e bela porta” pela qual os entrantes legais do sul poderiam vir visitar oy juntar-se A “nossa familia” (Johnson, 2015). Ou pense entio na campanha de Marine Le Pen “A Franga para os franceses”, que combina linguagens familiares ¢ econémicas para descrever a nagio: “Nés somos os proprietirios , cla declarou em um comicio no leste da Franca e “é asa da Franga, entreabri-la, ie volta a multidao (Collins, da nossa nagio”, preciso que tenhamos as chaves para abrir a c [ou] fechar a porta”. “A casa é nossa”, cantava d 2017, p.26): Ou como explicou um de seus apoiadores, “ela nao é contra os emigrantes, quer somente assegurar a justiga... E parecido como, quando a geladeira esta cheia, nds damos para os nossos vizinhos, mas, quando esta vazia, nds damos para nossos filhos. A geladeira da Franga esta vazia.”" A justiga é reformatada como a hospitalidade quimicamente dosada de uma casa particular. Quando a prépria nagio é colocada em termos econémicos ¢ familiares dessa forma, os princfpios democriticos da universalidade, igualdade e abertura sio descartados e a nagio se torna legitimamente nao liberal para com aqueles designados como insiders repulsivos e outsiders invasores. O estatismo, o policiamento ¢ o poder autoritario também se ramificam, ji que murar, policiar e todo tipo de seguranga sio autorizados pela necessidade de proteger essa vasta extensio de liberdade pessoal sem regulamentos. Nao é a seguranga o que garante ou limita a liberdade; ao invés, siio 05 muros, portées, sistemas de seguranga e placas de “proibida a entrada” que se tornam os significadores da liberdade quando eles demarcam 0 privado do piblico, aquilo que € protegido daquilo que é aberto, o familiar do estranho, a propriedade daquilo que é um bem comum. O procedimento democratico e a legitimidade sao igualmente deslocados pelos valores da familia e do mercado: nao é a negociagao, a deliberagio ou mesmo 4 regra da lei que sio as bases da autoridade da casa, mas sim o dikfat € 4 base da autoridade doméstica, ¢ a forga é a maneira como ela se defende legitimamente dos intrusos invasores, Tornar segura a vasta extensdo do ee Um prefeito de ums pequena cidade, autodenominal “moerido” apolar de Le Pe guntou a respeito “dos jovens emigrantes bem vestidos” em sua cidade, “o que eles e513? fazendo rbez moi?” (Collins, 2017, p.24). be) celts cidade ia Digitalizado com CamScanner MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 33 | privado ¢ da liberdade sem regulamentos inaugura dessa forma novos espacos ¢ a valorizagao do policiamento, da autoridade e da securitizagio, | cuja necessidade foi tornada mais intensa pelas energias sociais em inibicio das quais logo trataremos.”” E¢ voila — o autoritarismo do século XXI em nome da liberdade! As ENERGIAS DA LIBERDADE DE DIREITA E 0 NACIONALISMO Estivemos até aqui considerando a /égica da razio governamental, mas nao as energias de afetos que dao forma e contetido as formagdes ¢ expresses politicas da direita contemporinea. A razio neoliberal por si mesma, inclusive sua apresentacdo como um novo produto na lei e na politica, ¢ sua interpelagao de sujeitos, nao gera movimentos nacionalistas firmemente decididos a embranquecer nagdes, em separar por muralhas os emigrantes © refugiados, ou vilipendiar feministas, queers, liberais, esquerdistas, intelectuais e mesmo jornalistas representantes da maioria. Tampouco ela incita uma raiva rancorosa e outras paixées antissociais ou tira a tampa daquilo que existe de pior na “natureza humana”, masculinidade ou nos brancos."* © que é importante aqui no sio os deslocamentos amplos ocasionados pela razio neoliberal esbogados acima, mas os efeitos da politica econémica neoliberal em contextos histéricos € sociais especificos, especialmente aqueles que sio um impedimento a existéncia da classe média e operdria nas regides rurais e suburbanas das nagées euro-atlanticas. Vamos repetir brevemente 0 que ja se sabe: As energias politicas tanto da esquerda como da direita hoje em dia sdo em parte reages ao desmantelamento neoliberal das rendas com que se possa viver, da seguranca no trabalho, provisées para a aposentadoria e educagio, servigos ¢ outros bens sociais com fundos ptiblicos. Tais efeitos sto agravados pelo comércio neoliberal, as politicas de impostos e tarifas que tanto solapam a soberania do Estado-nagio quanto produzem uma corrida mundial em diregao ao fundo nos salarios e rendas puiblicas. Muitos brancos das classes operdrias e médias da Europa e da América do Norte, ——___ 17. Repito, esse evento coloca a liberdade bem além do escopo e jogo intelectuais neoliberais. 18, Até mesmo a extraordinariamente cautelosa e sutil Jacqueline Rose (2016) parece flertar com a nogéo de que aqueles impulsos repulsivos estejam simplesmente li, nas profundezas da Psique, aguardando serem ativados ou liberados. aginados pelos _ Digitalizado com CamScanner 34 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAS que haviam perdido seus empregos, perceberam de forma rudimentar uma ligagao entre o declinio do Estado-nagio, seu proprio bem-estar econdmico em declinio ¢ 0 declinio da supremacia branca masculina, até que as plataformas politicas dos partidos nacionalistas de direita a explicitassem, E eles esto certos: arruinados pela transferéncia € terceirizagio dos empregos operitios sindicalizados para o exterior, pelo desaparecimento da moradia acessivel e pelos movimentos globais de trabalho e capital sem precedentes, a era do provedor branco seguro ¢ da soberania do Estado- nagao no norte global chegou a0 fim. Essa condigao nao pode ser revertida, mas pode ser instrumentalizada politicamente. Aqui a figura hiperbolica do imigrante é especialmente potente, na qual 0 terrorista se funde com o ladrio de empregos, com o criminoso ¢ com o vizinho que evita trabalhar ¢ onde, inversamente, falsas promessas de poténcia econémica restaurada se misturam com falsas promessas de uma supremacia racial e de género. Limites porosos de vizinhanga e da nagao, status socioecondmico solapado ¢ novas formas de inseguranga sao trangados juntos numa ldgica causal racializada e numa reparagao em termos econémicos. Como no slogan do Brexit, “nds vamos controlar nosso pais novamente.” Ou novamente os franceses, “a casa € nossa”. F é,no entanto, um erro enxergar os homens drancas da classe operiia ¢ média como prejudicados de forma especial pela politica neoliberal negligenciados de forma especial pelos politicos neoliberais. Essa censura comum a campanha de Hillary Clinton por parte dos criticos liberais mais conhecidos — a de que ela se concentrava em excesso nas politicas de identidade e dava pouco espago ao trabalhador branco ~ erra 0 alvo quanto 4 extenséo em que o deslocamento softido pelos brancos, € pelos homens brancos em especial, nao é uma experiéncia principalmente de declinio econémico, mas sim da perda de direitos politicos, sociais, de uma supremacia economicamente reproduzida e, portanto, o motivo pelo qual 0s politicos de direita e da plutocracia se podem permitir nfo fazer nada por seus eleitorados, enquanto aliviam seus ferimentos com uma retérica anti-imigrantes, antinegros e antiglobalizagao, e enquanto eles realinham 2 forma ea voz da nago com a forma e a voz do nativismo. Repetimos, seja ao alvejar os multiculturalistas, as elites politicas, os académicos liberi os refugiados, as feministas ou os ativistas do Black Lives Matter, a raiva da direita contra o “politicamente correto” ¢ a “justiga social” é alimentada pelo destronamento dos brancos, dos homens brancos especialmente, de - ud Digitalizado com CamScanner Ce MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 35 todas as classes.” Em si mesmas, nem as expansées neoliberais do privado, nem as devastagdes neoliberais da seguranga politica e econdmica geram as ferozes energias do racismo nacionalista ¢ do grito de liberdade através do qual ele nasce: esse terceiro ingrediente é necessirio. Os rompantes de misoginia, racismo, islamofobia e de justiceiros anti-imigrantes da direita de nossa época nao simplesmente estavam “Ia” 0 tempo todo, esse avesso desagradavel da civilizagio subitamente solto na libidosfera sociopolitica, licenciada e mobilizada por politicos oportunistas ¢ a quem as midias sociais deram uma plataforma facil. Antes, esses rompantes portam os ressentimentos especificos e a raiva de um poder injuriado. O filésofo mestre do poder injuriado, é claro, é Nietzsche. Hi, para comegar, seu relato de como o sofrimento, especialmente o sofrimento da humilhacao, quando embasado no ressentimento, transforma-se na condenagao moralizante do objeto que considera responsavel. Em sua formulagao daquilo que ele chamou de moralidade escrava, Nietzsche se concentrou principalmente na pia autovalorizagio dos déceis ¢ dos fracos ena sua dentincia dos fortes e poderosos. Ele, entretanto, reconheceu que a moralidade escrava era também praticada por aqueles que esto cheios de ddio, antissemitas e racistas, diagnosticando a bazéfia e os ataques de tais tipos como parte da ordem de “sentimentos reativos... ressentimentos ¢ rancor” (Nietzsche, 1989, p. 75)2° Manifestagdes selvagens das massas, bullying, belicosidade — Nietzsche castigou essas energias ressentidas penosas como opostas aquelas que se superam, as energias orgulhosas dos poderosos ¢ criativos que ele afirmava. E certo que o ressentimento € uma energia vital do populismo de direita: 0 rancor, o ressentimento, uma vitimizacio mal disfargada ¢ outros afetos de reagdo sio a pulsagao afetiva do troll da internet, dos ¢weets, dos discursos 19. O mantra é novamente a liberdade ~a liberdade de se fazer e dizer aquilo que se deseja, de Pegar o que se pode, guardar o que se ganha, liberdade da exigéncia percebida de reconhecer 0 Proprio privilégio e compartilhar a riqueza socioeconémica. Esse direito de posse foi e é, claro, Personificado pelo de Donald Trump ~ nio somente suas banheiras douradas e fanfarronice a respeito de pegar nas xaxotas, sua fuga “esperta” dos impostos, mas também em sua indignagao, depois de assumir o cargo, de que lhe era impossivel governar por decreto, despedir a imprensa, impor sua proibiggo aos mugulmanos, ou, de outras formas, viciar © sistema de freios ¢ Contrapesos que so os remanescentes da democracia liberal. 20. “A luta contra os judeus tem sido sempre um sintoma dos piores earacteres, aqueles mais invejosos © mais covardes. Aquele que agora participa dela tem que ter muito da disposigiio da turba” (Nietzsche apud Santaniello, 1997). Digitalizado com CamScanner a | 36 HOLENANALIANO, FEATINUANON 1 CONTHACONDU nos comicios de direita ¢ uma carteteriatien nobivel do comportments do proprio Trump, Para o fildsofo, Huns Slupa, entretinto, a contelb lena mais importante de Nietzsche para a teorkangio cl conjuntiunn atual & seu tratamento do niilismo.! Nietasche 6 frequents © ermdamente caracterizado como um niilista por ter Hdado com v nituresi contlygente dos valores ¢ da Verdade. Nietzsche ¢ mute adequadamente apreclide como um filésofo da era do niilismo, a qual ele subla extar we denenrolanda nos séculos apés a ciéncia ¢ a rwziio terem derrubacdo Dew © ubslado on fandamentos de toda a moral ¢ da verdade ética, Como nos lembra Slug, para Nietzsche a era do niilismo nifo signifien climinagtio do valores, mas um mundo no qual “os mais altos valores se desvalorizany” nw media em que se tornam desprendidos de seus findumentos, Os valoren judaleo~ cristios do ocidente, inclufdos aqueles que garantem a democracia Nberal, perdem sua profundidade quando perdem seus fundumentos (Slugs, 2017; Nietzsche, 1968, p. 9); consequentemente, cles nilo desaparecem, man se tornam substituiveis ¢ triviais, facilmente comerciados, aumentidon, instrumentalizados, tornados superficiais. Esses efeitos degradum ainda mais o valor dos valores, aprofundando inevitavelmente o nillismo dav culturas ¢ de seus sujeitos. Hoje em dia ha evidéncias dese fendmeno por toda parte, Ue & cotidiano na instrumentalizagio dos valores para o ganho politico ¢ comercial — gestio de marcas - ¢ na falta geral de ofensa diante devs instrumentalizagio. Isto est4 manifesto em uma maioria da Supremi Corte que finge um “originalismo” enquanto interpreta de mancin forcada a Constituigao para permitir tudo, desde a tortura até a condigto de pessoa para corporag6es.” Estd claro, em um levantamento dos cleitores americanos, realizado em outubro de 2011 ¢ repetido cinco anos mais tarde: em 2011, durante a presidéncia de Obama, apenas trinta por cent dos protestantes brancos evangélicos acreditavam que wm funciondrio publico eleito que comete um ato imoral em sua vida pessoal pode ainda se comportar de forma ética em sua vida publica ou profissional; esse nimero, “umn ent 21. Hans Sluga chamou minha atengio para isso em seu “Donald ‘Trump’ yrlimavert apresentado no simpésio de Teoria Critica em UC Berkeley, a reapetto di elelyii, de 2017. Esse estudo faz parte de uma obra mais ampla dele em andamento, sobre nll 22. Ver Jackson (2008), Anti-Constitucionalinn, uma dissertagio arquivada no Deparvamel de Ciéncia Politica da UC Berkeley,em dezembro de 2012, A dissertagho revinnda era publlcn® em 2019 como Law without future, ] Digitalizado com CamScanner I MARGARWTH RAGO * MAURICIO PELEGRINE (ORGS.) 37 | } | havin subido para setenta ¢ dois por cento em outubro de 2016, quando ‘Trump era candidato. De forma semelhante, em 2011, sessenta e quatro por cento dos evangélicos brancos consideravam ser muito importante para um candidato presidencial possuir uma crenga religiosa forte, nimero | que cai para quarenta © nove por cento durante a campanha de Trump } (Blow, 2017, p. A21). This mudangas foram certamente efeito menos de uma profiunda reflexiio ética e mais de uma mudanga nas marés da politica. Assim funciona o niilismo — nfo a morte de valores, mas eles se tornando multiformes, juntamente com sua disponibilidade para projetos de gestao | de mareas ¢ para acobertamento de propésitos que manifestamente nao sfio compativeis com cles | Além dos valores, tanto a verdade quanto a razio perdem suas amarras em uma era niilista (Nietzsche, 1968, p. 10). A verdade, ainda suspensa, cessa de precisar de provas, ou até mesmo de um raciocinio; as acusagdes antes de “fake news" sfio eficazes ¢ populagées altamente setorizadas recebem relatos de eventos dirigidos 4s suas conviccdes estabelecidas. Contudo, as proprias convicgdes estio cada vez mais desligadas da fé e imunesaargumentagio; elas disfargam mal sua emanagao do ressentimento, do impulso ou ultraje. Exemplificado pelos tabloides ingleses agitando seu apoio ao Brexit,a mais notéria expressio de niilismo a esse respeito é a clara indiferenga de Trump para com a verdade, a consisténcia, ou conviccdes politicas e morais afirmativas (diferentemente de convicgdes baseadas no ressentimento). Que os apoiadores de Trump ¢ a maior parte da midia de direita compartilhem em grande parte essa indiferenga enfatiza o cardter niilista da época. Para Sluga (2017, p.16), 0 trumpismo personifica outra caracteristicado niilismo, tal como descrito por Nietzsche, uma caracteristica crucial para as qualidades antissociais da liberdade em nossos dias. Essa é a dessublimagao da vontade de poténcia. Tanto Freud quanto Nietzsche entendem os valores ¢ 0 mundo compatfvel com eles como sublimagées daquilo que Freud chamou de instintos ou pulsdes, e que Nietzsche chamou de vontade de poténcia. Ambos entenderam o animal humano indomado como sendo mais livre e de algumas formas mais feliz na auséncia de tal sublimacio, mas também como correndo 0 risco de autodestruigio € destruigao por outros. Acima de tudo, ambos entenderam a propria civilizago como sendo um Produto da sublimagio. Com a desvalorizagio dos valores do niilismo, existe, como argumenta Sluga (2017, p. 17), “um recuo e um colapso da Digitalizado com CamScanner | 38 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUT|s vontade de poténcia na sua propria forma elementar... [A]té mesmo q religiao € 0 apelo aos valores religiosos se tornaram os instrumentos cinicos para 0 uso sem restricdes do poder”. Hi mais em jogo nesse colapso do que 0 exercicio do poder sem o freio da ética ou da humildade, Ao invés disso, escreve Sluga (2017, p. 17), “o que cai A beint do caminho nessa vontade de poténcia sem restrigdes € qualquer preocupacio com os outros... em especial o pacto entre as geragdes no qual nossa ordem social tem se apoiado até agora”. Sluga nos ajuda a compreender um aspecto da liberdade de direita desvinculada da consciéncia, ndo apenas porque em seus contornos se encontram o egoismo neoliberal e as criticas do social, mas por causa da propria depressao radical da consciéncia do niilismo, Combinada com 0 menosprezo e a desconsideragio do social, a liberdade se transforma em se fazer ou dizer 0 que se quer sem a consideragio de seus efeitos, liberdade de genuinamente nio se importar com os apuros, as vulnerabilidades ou destinos dos outros humanos, outnas espécies, ou o planeta. E a liberdade, como coloca Nietzsche, de “destruir a vontide de alguém” pelo mero prazer de fazé-lo. E quando essa vontade ¢ ferida ¢ rancorosa pela castracao social ou humilhagio, ela é, na formulgio de Elizabeth Anker ((s.d.]), uma “liberdade repulsiva’. Ao mesmo tempo, entretanto, Nietzsche nos lembraria da “qualidade festiva” dessa liberdade — deliciando-se nos prazeres da provocagio e do apedrejamento, de humilhar os outros ou de fazé-los softer (“como se sofreu”), de dangar junto as fogueiras do que se esté queimando (Nietzsche, 1989, p. 67). Esst alegria estava manifesta em alguns partidirios do Brexit, esti em toda parte nos blogs de direita e no frolling, e pode ser discernida no deleite em fazer os liberais sofrerem quando sio derrotados por decisées ¢ politics que liberam o poder brutal do capital, de combustiveis fosseis, o direito de portar armas ¢ mais. Contudo, os festivais de liberdade no incéndio da civilizagio ouo futu do planeta nao sio a pior parte. Antes, nessa crise plena de consequénci a liberdade abandona toda a afinidade com a autodeterminagiio politi encontradaem Rousseau, Tocqueville ou Marx;ela se distancia doimpertti”® 10 smo em 8 ae a cont eat 7 esti? 23. Argumentei em outro lugar que o proprio neoliberalismo express 0 nil abandono explicito da consciéncia ¢ deliberagio humanas como o meio de onde individual ¢ a vida coletiva e como a base de valores ¢ valor. Ver Brown, 2015, &4 ‘Acrescentaria que 0 neoliberalismo nao poderia se estabilizar até que fosse alcangaclo wm avangado do niilismo, mas que também incita o niilismo em sua capitalizagto do valor Digitalizado com CamScanner ee MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) 39 categdrico de Kant; cla solta as amarras do cultivo da individualidade ¢ avango da civilizagio de Mill; deixa para tras até mesmo a conexio da liberdade com o cilculo de maximizagiio da utilidade de Bentham. Em vez disso, a desintegragio niilista dos valores éticos, combinada com o ataque do neoliberalismo ao social e a liberagéo da direita e do poder do pessoal gera uma liberdade que é furiosa, apaixonada e destrutiva — sendo osintoma de uma destituigao ética mesmo se algumas vezes porte os trajes da retidio conservadora. Essa liberdade é expressa de forma paradoxal como niilismo ¢ contra o niilismo, atacando e destruindo enquanto culpa 0s seus objetos de ridiculo pela ruina dos valores e da ordem tradicional. E } a liberdade desenfreada e sem cultivo, a liberdade de enfiar uma vareta no | olho das normas aceitas, liberdade de nao se importar com o futuro, alegre em suas provocag6es ¢ animada por reacées vingativas e aflitas contra os que consideram responsiveis por seu sofrimento ou deslocamento. E a liberdade de “eu quero porque eu posso, e eu posso porque nio sou nada, nio acredito em nada, e o mundo se tornou nada”. Essa é a liberdade | que resta do niilismo, obra de séculos e personificada na propria razio | neoliberal, que nao postula valor algum a parte daquele gerado pelo preso | ¢ pelos mercados especulativos. DESSUBLIMAGAO REPRESSIVA E A DEPRESSAO DA CONSCIENCIA. | | | | Menos de um século depois de Nietzsche, Herbert Marcuse considerou | a dessublimagao de outro angulo, para teorizar a liberagio nao liberatoria de energias pulsionais no capitalismo do pés-guerra. Aquilo que Marcuse | famosamente denominou “dessublimagao repressiva” ocorre dentro de uma ordem de dominagio capitalista, de exploragio e “falsas necessidades”, na medida em que a tecnologia reduz as demandas da necessidade e o desejo €em toda parte incorporado a uma cultura de mercadorias desfrutadas por uma classe média crescente.?* Essa ordem apresenta uma abundancia de 24. Existem intimeras variagées do relato dessa eleitora de Trump sobre seu apoio a ele: “Nao arece que faz qualquer diferenca qual partido entra, Seja o que for que digam que vio fazer Quando chegarem Ii, eles nao podem fazer realmente... Eu $6 quero que ele perturbe a0 méximo todo mundo, ele fez isso” (Rosenfeld, 2017). 2S. TE, precisamos acrescentar, quando a proletarizago se desloca para o Sul Global, beneficiando as populagdes do Norte com mercadorias baratas ¢ abundantes, indo de comida ¢ Yestudtio até carros e produtos eletrénicos, Digitalizado com CamScanner Ul ’ 40 NEOLINERALISMO, FEMINISMOS & CONTRACONDUTAs prazeres, incluindo aqueles obtidos pela drasticamente reduzida restriggo 4 scxualidade (trabalho menos Arduo necessita menos sublimagiio), mas nao a emancipagio. As energias das pulsdes, 10 invés de serem diretamente opostas pelos mandados da sociedade e da economia, necessitando dessa forma de uma repressio ¢ sublimagdes pesadas, sio apropriadas pela ¢ para a produgao eo marketing capitalista, o Prinefpio do Prazer ¢ 0 Principio da Realidade escapam de seu antigo antagonismo (Marcuse, 1964, p. 76). O prazer, ao invés de ser um desafio revoltoso ao trabalho enfadonho ¢ a exploragao do trabalho, se torna uma ferramenta do capital ¢ gera submissio2* Longe de ser perigoso ou oposicionista, nfo mais segregado na estética ou na fantasia utépica, o prazer se torna parte do maquinirio. Tudo isso é familiar. A préxima mudanga de Marcuse no desenvolvimento das implicagées da dessublimagao repressiva, contudo, porta uma relagao mais direta com 0 nosso problema. De acordo com Marcuse, a dessublimagao nao liberatéria facilita a “consciéncia feliz”, que &o termo de Hegel para resolver o conflito entre o desejo € as necessidades sociais por meio do alinhamento da nossa consciéncia com o regime. Marcuse faz uso de Freud e de Marx para radicalizar a formulagio de Hegel: nas culturas comuns de dominagio, argumenta Marcuse, a “consciéncia infeliz” é 0 efeito da consciéncia — a condenagio superegoica dos anseios “maus”, tanto no eu quanto na sociedade (Marcuse, 1964, p. 76). E assim que a consciéncia é simultaneamente um elemento no arsenal do superego para o controle interno e uma fonte do julgamento moral a respeito da sociedade, Na medida em que a dessublimagio repressiva oferece uma suspensio dessa censura rigida e da ocasiio a “consciéncia feliz” (um eu menos dividido se torna um eu menos conscienciosamente reprimido), a consciéncia é a primeira vitima. De maneira importante, a consciéncia se descontrai nao apenas em relago & propria conduta do sujeito, mas também em relagdo aos erros € males sociais... gue nda 542 mais notados como tais, Em outras palavras, menos repressiio nesse contexto conduz a um superego menos exigente, significando menos consciéncia, o que em uma sociedade nao emancipada, individualista, quer dizer menos preocupagao ética ¢ politica para todos. Nas palavras de Marcuse, * perda de consciéncia devido a liberdades satisfatdrias concedidas por u™ 36. “Privado das reivindicagdes que slo irreconcilidveis com a sociedade cestabelecida> ° prazer, ajustado assim, gera submissio" (Marcuse, 1964, p.76). Digitalizado com CamScanner | MARGARETH PAGO * MAURICIO PELEGRINI (ORGS.) nu sociedade nao livre produz uma consciéncia feliz que facilita a aceitagio das mis ages dessa sociedade. [Essa perda de consciéneia] é o simbolo de uma autonomia ¢ comprecnsio em declinio” (Marcuse, 1964, p. 76). Que tal dessublimagio diminui a forga da consciéncia faz. jntuitivamente, mas por que Marcuse associa isso A autonomia e compreensiio intelectual em declinio do sujeito? Aqui sua questio complexa difere do argumento de Freud em Psicologia das massas ¢ andlise do en, de que consciéncia é reduzida quando o sujeito efetivamentea transfere para um lider idealizado ou uma autoridade. Para Marcuse, a autonomia declina quando declina a compreensio (isto ¢ 0 seu lado cognitivista, senio 0 racionalista) ca compreensio declina quando nao mais é necessiria para i sobrevivéncia e quando © sujeito no emancipado € embebido de prazeres ¢ estimulos dos bens de consumo capitalistas. Colocado de forma inversa, a repressiio das pulsdes exige trabalho, incluindo o trabalho do intelecto.”” Portanto, na medida em que a dessublimagio do capitalismo tardio relaxa suas exigénci contra as pulsdes, mas nao liberta o sujeito para se autodirigir, as exigencias de intelecgSo so relaxadas de forma substancial.”* Livre, estipido, manipulivel, absorvido, mas nio viciado por estimulos ¢ gratificacdes triviais, 0 sujeito da dessublimagao repressiva na sociedade capitalista avangada niio somente é livre em termos da libido, liberado para desfrutar de mais prazer, mas liberado de expectativas mais gerais da consciéncia social e da compreensiio social, Tal liberagio é amplificada pelo ataque neoliberal ao social ¢ pe depressio da consciéncia promovida pelo niilismo. Marcuse argumenta que a dessublimagio repressiva constitui “parte integrante da sociedade na qual ocorre, porém de forma alguma sua negagio” (Marcuse, 1964, p. 77). Possui a aparéncia de liberdade, enquanto suporta 0 status guo ¢ se submete a ele. Suas expressdes, diz Marcuse, podem ser suficientemente audazes ou vulgares para ter até mesmo a aparéncia de dissidéncia ou de rebeldia — pode ser “desenfreada e obscena, viril ¢ de bom gosto, e bem imoral” (Marcuse, 1964, p.77). Contudo, esse atrevimento e desinibigio (repetindo, manifestos nos fweers, blogs, no sentido 27, Mesmo dizer um forte “nio” a eles ou sublimar suas energias em formas socialmente aceitas é apoiado e organizado pela moralidade ¢ teologia sociais dominantes,¢ ocorre a niveis, cm grande medida, inconscientes. 28." Marcuse descreve uma “atrofia dos érgios mentais part compreender contradiydes © alternativas? ¢ far uma afirmagio famosa: “O real é racional... © 0 sistema estabelecido corresponde is expectativas" (Marcuse, 1964, p. 79). Digitalizado com CamScanner oN 2 NROLIBERALISMO, FEMINISMOS B CONTRACONDUTAg trolling e nas performances da extrema-direita) si sintomas ou iteragées, mais do que algo que contrarie a violéncia ¢ os preconceitos, bem como seus valores comuns (Marcuse, 1964, p. 79). Do ponto de vista de Marcuse, a dessublimagio repressiva coloca como gémeos a liberdade e a opressio’, a transgressio ¢ a submissao, de uma forma evidente, tal como é aparente nas express6es de patriotismo ¢ nacionalismo desenfreadas, ferozes ¢ mesmo ilegais que irrompem com frequéncia da extrema-direita hoje em dia (Marcuse, 1964, p. 78). A dessublimagao repressiva libera também novos niveis, e talvez até novas formas de violéncia, por meio da abertura da torneira daquele outro poco das pulsées humanas, Thanatos. ‘A dessublimagao de Eros é compativel, argumenta Marcuse, “com o crescimento de formas nao sublimadas, bem como das formas sublimadas, da agressividade” (Marcuse, 1964, p. 78). Por qué? Por que a dessublimagao repressiva nao libera 0 Eros para a liberdade tout court, mas envolve, ao invés, a compressio ou concentrago da energia erdtica no local da sexualidade — isso € parte do que a torna uma dessublimagio “controlada” ou “repressiva’. O Eros dessublimado pode, portanto colocar em movimento, misturar-s¢ com 2 agressio mesmo intensifici-la, Dessa forma Marcuse explica a crescente acomodagio e aquiescéncia a violéncia politica ¢ social — “um grau de normalizagao onde... os individuos esto se acostumando ao risco de sua prépria dissolugdo ¢ desintegrasio” (Marcuse, 1964, p. 78). A referéncia do proprio Marcuse era a0 aumento de estoques de armas nucleaes da Guerra Fria do meio do século XX, mas é facilmente adaptivel # acomodasao 4 mudanga climatica que pode acabar com o mundo ¢ outrss ameagas existenciais. Mais importante para nossos propésitos, seu insight & sugestivo para compreender a quantidade e intensidade da agressio que jorra da direita, especialmente da extrema-direita, em meio A sua afirmagio frenética da liberdade individual. Finalmente, ha o relato de Marcuse sobre 0 papel do mercado na intensificagdo do niilismo teorizado por Nietzsche. Escrevendo bem antes da revolugio neoliberal, Marcuse argumenta que o mercado se tornov tanto o Principio da Realidade e a verdade moral: 3), Marcuse aqui se separa de Freud, que teria, 20 menos em seus times anos OE ide, 4 agressfo como sendo enfraquecida por uma abertura maior para 0 energis a at Mtareuse; no entanto, a dessublimagto repressiva envolve aqulo que cle chama de “compressa” ou concentragio de energia erética. | Digitalizado com CamScanner er MARGARKIE RAO * MAURICIO PELEGRINI (ORCS. 43 As pessoas sito Tevadas a ncontrar no aparato produtivo (o mercado) o agente eficaz do pensamento ¢ da agio ao qual seu pensamento ¢ agéo pessoais devem capitulir,,, [N Jessa transferéncia, o aparato assume também o papel de agente moral, A consciéneia & absolvida pela reificagao, pela necessidade ggeral das coisas, Ness sidade geral, a culpa nfo tem lugar (Marcuse, 1964, p. 79). A nec Jiesvazinda pela dessublimagiio que produza consciéncia feliz, os fracos restos da consciéncin sito tomados pela razio do mercado e as necessidades Jo. O real é tanto o racional como o moral. Simultaneamente principio da realidade, imperativo ¢ ordem moral, o capitalismo se torna necessidade, autoridade ¢ verdade numa s6 coisa; permeando todas as esferas ¢ imune riticas, a despeito de suas devastagées, incoeréncias € instabilidades, Nato ha alternativa, do mer ConcLusio Juntemos esses fios em uma compreensio preliminar da liberdade autoritiria antidemocritica e antisocial que esta tomando forma em nossa época. Comegamos com o ataque da razio neoliberal ao social € a0 politico. © neoliberalismo ataca o social como uma ficgao, através da qual igualdade é buscada custa da ordem espontinea gerada pelos mercados ¢ pela moral, Ataca 0 politico como uma pretensio ao conhecimento ¢ como fazendo uso da coergiio onde, de fato, prevalece a ignorancia e reinar a liberdade, Um estado despolitizado e antirregulatério, € que fornece também o apoio para uma esfera do pessoal aumentada, € apresentado como o antidoto a esses perigos. O efeito desse antidote &, todavia, desdemocratizar a cultura politica e desacreditar as normas € priticas da inclusfio, do pluralismo, da tolerincia e da igualdade para todo 0 grupo. A defesa dessas normas e priticas é pintada pela razio neoliberal como um esforso desatinado que rejeita a liberdade, substitui a moral por mandados politicos e recruta a engenharia social que constréi o totalitarismo, Daf o rétulo dos “guerreiros da justiga social” como “fascistas” pela extrema-direita, Além do mais, como a expansio dos mercados e da moral desloca os discursos da sociedade ¢ da democracia, a nagio mesr represen deve A vem a ser ada como. possufda, ao invés de constituida pela cidadania Digitalizado com CamScanner ON 44 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAs democritica. Essa posse apresenta uma dupla face ~ aquela de um negécio com 0 tinico objetivo de fazer transages astutas € evitar traigdes, € a face de um lar necessitando de protegio em um mundo perigoso. Juntas elas legitimam o nio liberalismo externo ¢ interno, 0 nacionalismo nativista € mesmo o autoritarismo. A liberdade se torna uma arma contra os necessitados ou contra os excluidos historicamente e solicita, de maneira paradoxal,o crescimento do poder do Estado na forma de um protecionismo paternal, tanto econémico quanto securitario. Muito disso é a cria no intencional, mais que intencional, dos intelectuais neoliberais, que sonharam com nagdes consistindo de individuos livres levemente limitados pelo Estado de direito, guiados pela moral ¢ pelas regras de conduta do mercado, e disciplinados pela competi¢o. Mas exatamente da mesma forma que o defeito fatal do marxismo foi sua negligéncia das duradouras complexidades do poder politico (descartado por Marx como derivativo ou superestrutural), 0 sonho neoliberal o inverteu em seu proprio pesadelo — a cultura politica autoritéria apoiada pelas massas raivosas ¢ promotoras de mitos. Como aconteceu com o marxismo, isto é em parte por que os neoliberais ignoraram os poderes e energias historicamente especificos no reino cuja existéncia é negada, o social. Isto se deve em parte as suas inadequadas teorias do poder politico ¢ especialmente do poder estatal, que tomariam forma no rastro dos limites democraticos desmantelados no Estado, ¢ pela tomada de controle pelos tits das corporagées ¢ das financas. E também devido, em parte, ao fracasso dos neoliberais em compreender como as paixdes politicas destrutivas antidemocriticas e antissociais puderam ser alimentadas pelos préprios principios do neoliberalismo, e nio puderam ser restringidas por uma estrutura moral cada vez mais fragilizada pelo niilismo. De Nietzsche nés tiramos uma apreciagio de como essa nova iteragi0 da liberdade ¢ modulada pela humilhagio, pelo rancor e pelos efeitos complexos do niilismo. Prejudicada pelos deslocamentos socioeconémicos do neoliberalismo e da globalizagio, a criatura reativa de uma era niilista, com sua vontade de poténcia dessublimada, é incitada para agress0es desimpedidas de preocupagées com a sociedade ou com 0 futuro. As energias niilistas intensificam 0 espirito de desintegragao social no ataqué feroz do neoliberalismo ao contrato social, enquanto essas energi#s permitem os sentimentos, desejos ¢ preconceitos que emanam da perda de Digitalizado com CamScanner MARGARETH RAGO * MAURICIO PELEGRINI (oRGS,) 45 raizes € do deslocamento dos direitos tradicionais de raga e género. “Fi a América Grande Novamente” e “A Franga para os Franceses” mal se dio go trabalho de se codificarem como qualquer coisa mais do que os tiltimos suspiros da supremacia branca masculinista. Uma briga de valores em uma era niilista, todavia, nio segue valores filosdficos ou teolégicos rigorosos. O relato de Marcuse da dessublimagio repressiva no “capitalismo avangado” acrescenta outro aspecto a formagio. Diferente do sujeito consetvador, orientado pela autoridade, guindo pela consciéncia, intimamente ligado a retidio da igreja ¢ do Estado, o sujeito reacionsirio da dessublimagio repressiva é em grande parte indiferente A ética ou A justiga. Maleavel ¢ manipulivel, esvaziado de autonomia, de autolimitagio moral € de compreensio social, o sujeito ¢ alguém que lida com prazeres, agressivo e afeigoado de maneira perversa a destruigio e dominagiio de seu ambiente. Radicalmente desinibido, mas sem intelecgiio ou uma orientagio moral para si mesmo e para com os outros, a experiéncia que tem do rompimento de lacos sociais e obrigacées sentidos subjetivamente, ¢ rompidos ou esvaziados, é afirmada pela propria cultura neoliberal. Sua desinibigao recebe dessa cultura os contornos de uma agressio, por seus ferimentos e suas fontes imaginérias, e pela dessublimagio incitada ou convidada pelo niilismo. Contemplem essa criatura injuriada, reativa, moldada pela razio neoliberal e por seus efeitos, que aceita a liberdade sem o contrato social, a autoridade sem a legitimidade democritica e a vinganga sem valores ou futuro. Distante do ser calculista, empreendedor, moral ¢ disciplinado imaginado por Hayek e seus parentes intelectuais, esse é irado, amoral, movido por uma humilhagio nfo reconhecida e pela sede de vinganga. A intensidade dessa energia é tremenda por si s6, ¢ também facilmente explorada pelos plutocratas, por politicos de dircita ¢ pelos bardes dos tabloides, excitando-a e a mantendo idiota, Ela no tem necessidade de que se dirijam a ela por uma polftica que produza sua melhoria concreta, ' porque ela busca principalmente uma pomada psiquica para seus ferimentos. Por esse mesmo motivo ela nfo pode ser facilmente pacificada ~ ela é alimentada principalmente pelo rancor e pelo desespero niilista no reconhecido. Nao é possfvel apelar a ela pela raziio, pelos fatos ou Por um argumento sustentado, porque ela nfo quer saber ¢ niio tem uma Motivagao pela consisténcia ou profundidade de seus valores ou pela crenga na verdade, Sua consciéncia é fraca, a0 passo que seu préprio sentimento = Digitalizado com CamScanner a J 46 NEOLIBERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTAg de vitimizagao ¢ perseguigao sao altos. Ela nao pode ser cortejada por um futuro alternativo vidvel, no qual ela ndo enxerga um lugar para si mesma ¢ nenhuma perspectiva de restaurar sua supremacia perdida, A Tiberdade que defende ganhou crédito quando as necessidades, impulsos ¢ valores do privado se tornaram formas legitimas da vida publica ¢ da expressio publica. Nao tendo nada a perder, seu niilismo nao simplesmente nega, mas é festivo e mesmo apocaliptico, disposto a levar a Inglaterra por sobre © penhasco, negar a mudanga climatica, apoiar poténcias manifestamente nao democriticas, ou colocar um estipido no cargo mais poderoso da Terra, porque nao tem mais nada, Ela provavelmente nao pode ser alcangada ou transformada e, entretanto, também nao possui uma estratégia para o final do jogo. Mas 0 que fazer com ela? E sera que no precisariamos também examinar os modos pelos quais essas légicas e energias organizam aspectos das reagdes da esquerda as dificuldades contemporaneas? REFERENCIAS ANKER, Elizabeth. Ugly Freedoms. [S.d.] (mimeo). BLOW, Charles M. Donald Trump: the gateway degenerate. New York Times, May 29, 2017. BROWN, Wendy. Undoing the Demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone, 2015. CHARLTON, Angela. 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A literatura, desta forma, comparece em sua verve, como sendo um empreendimento de satide (Deleuze, 2004), ej se defendendo de uma possivel objesio sobre a fragilidade psiquica dos escritores em geral, arremata: [uJ nfo que o escritor tenha forgosamente uma satide de ferro [J] mas ele goza de uma frigil satide irresistivel, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para cle, fortes demas, irrespiraveis, cuja passagem oesgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda satide dominante tornaria impossiveis. (Deleuze, 2004, p. 14) a literatura seria uma espécie de grande ue garantiriam a liberagao das im e que aqui circunscreverei a invocagio de Deleuze Para Deleuze, portanto, satide sentida e suportada pelos escritores q doengas empreendidas em nome do homer como doengas em nome do “Eu”. Desta forma, filosofando sobre a literatura para falar do problema que me propus, 20 escrever este artigo, inquietando-me com @ pergunta se um outro ae é possivel diante da governamentalidade neoliberal se dé as je a companhia de um personagem de um pequeno conto oe a ive : (2016) denominado Uma historia desagradével para, com ele, questfio da desapropriacio do “Eu” como uma das ai hs impasses imprimidos na psique contempo! das possiveis dos dos sujeitos pela ago dos Digitalizado com CamScanner rpananenar tanto, FRAHNISMOS F CONTRACONDUT 4, dispositivos de governo postos em atungiio pelos operadores das politica, de Estado neoliberais, Tendo esse roteiro em V visti, comegarel com uma pequena descrig io dla vieissitndes do personage do cont para posteriormente conceituge 6 neoliberalismo na perspective foucaultiana e apontar, nas Finalizagies Mn ddlgieas dest modalidade de governo que sia g aren das carpe doinginérlo,omo conteuents SPOR SEN sntomatologiit esta, com st quatl NOS deparamos, no momento indo governado por uma racionalidade tama das ques do simbilico, s 9 encontrarmos um mu ‘io. a, deste al conselheiro et presente, ituida de imagina Comego a escri te modo, com as vicissitudes de Ivan Tite Pralinski, jovem gener fetivo de Estado da cidade de Sig Petersburgo, quie em uma noite clara ¢ glacial de inverno no ano de 1862, ne a comemoragio do aniversério de 65 anos decide aceitar o convite par de um outro funciondrio da alta patente da burocracia russa € trava, juntamente com um terceiro convidado, uma instigante discussio em relagio As reformas liberais que o Bstado Russo vinha sofrendo via as agdes de governo do Tzar Alexandre 1. Tvan Ilitch, em todo o transcorrer da conversa, e euférico com o contetido das transformagées no tecido social que inclufam, além da libertagao dos servos, a possibilidade de um tratamento manista entre Os funciondrios de diferentes niveis da burocracia la época, de forma concreta,’ 0 ‘es, também nobres, ora 0 olhavam do, a cada afirmacao do primeiro, formar, rapidamente, um ideias que provinham se mostrava idealista mais hut do Estado Russo que seguia, naquel fancionamento militar. Seus interlocutor: com desdém, ora com desprezo, apontan as dificuldades inerentes ao se querer trans! conjunto de agenciamentos entre os cidadaos com a: T. A analogia segue a tese de Max Weber em Economia Sociedade, na qual sio tragados 08 trés tipos ideais do exercicio do poder no Estado moderno, quais sejam, a Forma Tradicionala Forma Carismética eaForma Racional Legal (Burocracia). Em Weber a Burocracia surgiria com? produto da formasio dos Estados Modeznos na medida em que regras racionais ¢ abstratas, Forma da le, substituiriam os caprichos dos governantes quando do perfodo em que ° mando emanava seja das qualidades pessoais (carisma) seja da posigao do individuo na estrutura sot! (tradigao). Apesar de a Burocracia parecer a Weber um tipo de dominagio mais regular ¢ racional, ou seja, uma formagio de compromisso entre um capricho pessoal € uma necessidale de ordenamento para lidar com demandas coletivas, ele percebeu bem que sua origem derives ddos quadros administrativos da Tgreja Catolica e das formagoes belicosas dos Exérciv™, conto, em especfico, é visivel a transposicio direta, sem disfarces como nos Bstados europe Gar nemenclsturas dos quadros do exércto russ para a Administragéo Publica da Cidade | Digitalizado com CamScanner Ty MARGARETHT RAGO * MAURICIO PELEGRINI (oRGs.) 53 dos pensadores liberais ocidentais, Um de se anfitrifo, ao se despedir dele no horirio disse a frase “Assim, niio vamos us interlocutores, no caso o Previsto para terminar a festa, iguentar” (Dostoiévski, 2016, p. 18), fazendo referéncia a uma passagem do Evangelho de Sio Marcos, capitulo 2, versiculo 22, que enuncia: “Ninguém pae vinho novo em odres velhos: caso contrario, o vinho estouraré os odres, € tanto 0 vinho como os odres ficam inutilizados. Mas, vinho novo em odres novos!”. Ivan Ilitch, ao escutar tais censuras, pensava na conveniéncia daqueles velhos senhores ¢ de sua resignada e declarada resisténcia em accitar as mudangas que, para ele,naquele primeiro momento, tornariam aconvivéncia entre os individuos algo mais saudavel e humano. Nao obstante a sua boa vontade em acolher as mudangas, Ihe alguns impropérios, O primeiro deles, ja se deu, logo na porta da casa do anfitrigo, quando percebeu que © seu cocheiro, imbuido do espirito de liberdade de seu discurso, decidira ir com sua carruagem no aniversirio de uma comadre e o deixara a pé para retornar A sua residéncia. Pode-se dizer que ele foi tomado de certo furor com este fato, no entanto, como para confirmar sua convic¢o em seu espitito, decidiu caminhar até um outro bairro onde poderia alugar outra carruagem ¢ apreciar a paisagem e 0 clima da cidade que ele considerava agradaveis naquela esta¢ao. Aproximando-se de um bairro mais humilde, habitado pelos funcionérios de baixa patente e pelos servos em geral, viu uma festa animada em uma casa simples ¢, conversando com um guarda, descobriu se tratar da festa de casamento de seu funcionirio subalterno Pse/donimov. Ainda imbuido de sua ideag3o humanitéria, decidiu adentrar a festa e Provar, em seu intimo jé em conflito com a conversa de seus interlocutores nobres, de que ele estaria a altura de uma renovagao dos costumes, Todo o desenrolar da festa foi um desastre! Tanto Ivan Ilitch quanto 0s convidados nfo conseguiram encontrar uma maneira de se relacionar que no a pautada pela hierarquia burocratica do Estado Russo, e todas as tentativas de tornar mais amenas as diferengas acabavam, por fim, tornando as relagées entre eles cada vez mais paranoicas € traumiticas, No final, Juan Hitch, ap6s se embebedar ¢ cometer todos os atos que desonrariam sua posicao social, acabou por desmaiar e ter de ser cuidado Pela mie de seu empregado subalterno. O desfecho deste conjunto de ages inadequadas & sua patente foi a formagio em si mesmo de uma culpa Os acontecimentos da noite causaram- Digitalizado com CamScanner 4 54 SEOLIDERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACON Dy, persecutéria, somente curada com uma reclusfio de oito dias em C88 em, conseguir ser visto pelos demais funcionérios que, em sua Fantasia oy g hostilizariam ou, simplesmente, nfio mais respeitariam a sua aut ‘Oridade, Porém, a0 retornar ao trabalho, oito dias depois, encontrou tug, funcionando com a tediosa ordem devida; um tinico acontecimenty diferente tirou sua aparente tranquilidade; ele ficou sabendo, oe dia, que Pseldonimov pedira a transferéncia para nao 0 constranger com a lembranc, da noite malsucedida. ; Reproduzo toda a tiltima conversa do conto entre Ivan Ilitch Pralinsy; ¢ seu imediato, Akim Petrévitch, que também estava na fatidica noite dg festa de casamento de Pseldontmov, por ser de vital importancia para o que desenvolverei depois como critica ao neoliberalismo, acompanhemos: — Ha ainda um requerimento — disse secamente — de transferéncia para outro departamento do funcionario Pseldonimov ... Sua Exceléncia Semign Ivinovitch Chipulenko prometeu-lhe uma vaga. Ele solicita a benevolente colaboragio de Vossa Exceléncia. — Ah, entio vai se transferir — disse Ivan Ilitch ¢ sentiu que um enorme peso saia de seu coragio. Voltou-se para Akim Petrévitch e, naquele instante, seus olhares se encontraram. ~ Mas claro, de minha parte ... eu farei — respondeu Ivan Ilitch -, estou disposto. Era evidente que Akim Petrévitch queria escapar o mais rapido possivel. Mas Ivan Ilitch, num impulso de magnanimidade, decidiu dizer tudo de uma vez por todas, Aparentemente fora tomado outra vez por uma inspiragio. ~ Diga-the — principiou, tentando olhar Akim Petrévitch de forma clara e plena de significado profundo ~, diga a Pseldonimov que eu nao Ihe desejo mal, nio desejo! ... Que, a0 contrério, estou disposto até a esquecer tudo 0 que passou, esquecer tudo, tudo ... De repente, Ivan Ilitch interrompeu-se € olhou estupefato 0 estranho comportamento de Akim Petrévitch que, de pessoa racional, nao se sabe Por que, se revelou o mais terrivel idiota, Ao invés de terminar de ouvi- Jo, enrubesceu da forma mais tola ¢ comegou a fazer pequenas reveréncias apressadas © até indecentes enquanto recuava em dirego a porta. Toda & sua aparéncia refletia o desejo de enterrar-se, ou melhor, de voltar & st ‘mesa-o mais répido possivel, Ivan Hitch, ja sozinho, levantou-se da cadeitt ‘ranstornado, Olhou no espelbo nao vin o répria resto, 4 — Digitalizado com CamScanner E77 ssncanst KACO * MAURICIO PELEGRI (ORCS) Fy _Nio, rigidez, s6 rigidez e mais rigidez! ~ sussurrou quase inconscientemente para si, € de repente um vermelho vivo se espalhou por todo o seu rosto. Sentiu tanta vergonha, tanta dificuldade como nfo sentira nem nos ito dias em que estivera enfermo, “Nio aguentarei”, disse de si para si ¢, impotente, deixou-se cair na cadeira, (Dostoiévski, 2016, p. 76) ‘Alémdeescancarar oaspecto cémico deum conjunto degafes cometidas por um membro do alto escaléo da sociedade russa, a0 tentar reproduzir, de forma idealizada, os valores jé em discussio pela intelectualidade liberal europeia, esse conto nos traz, em sua narrativa, um dos conceitos mais significativos do pensamento politico de Foucault, qual seja, o fato de que nosso “Eu” é produzido pelo atravessamento, no corpo, de tecnologias de poder em exercicio na organizagao de nossas sociedades. Cito, como exemplo, um trecho do livro Vigiar e punir (Foucault, 2002), quando ele se desloca de uma apreciagio do poder soberano para a mecinica das disciplinas, logo apés esmiugar o funcionamento do suplicio, como forma emblematica de punigao, e fazer mengio ao tratado teolégico de Ernst Kantorowicz (1998) sobre “os dois corpos do rei” como efeito do exercicio da soberania politica e afirmar um efeito andlogo aos individuos sujeitos & mecénica dos dispositivos disciplinares, diz ele: Se o suplemento de poder do lado do ret provoca 0 desdobramento de seu corpo, o poder excedente exercido sobre o corpo submetido do condenado po de desdobramento: 0 de um incorpéreo, de uma nfo suscitou um outro ti dessa microfisica do poder alma” moderna, como dizia Mably. A hist6ria io uma genealogia ou uma pega para uma genealogia da punitivo seria enti Ima os restos reativados de uma ideologia, “alma” moderna. A ver nessa a! ceviamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia de poder sobre 0 corpo. Nao se deveria dizer que alma é uma iluséo, ou um efeito ideolégico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é em torno, na superficie, no interior do corpo se exerce sobre 0s que sio punidos — sio vigindos, treinados e corrigidos, Jonizados, sobre os que sio inte toda a existéncia. antes reconhet produzida permanentemente, pelo funcionamento de um poder que s de uma maneira mais geral sobre os que sobre os loucos, as criangas, 0S escolares, 0s col fixados a um aparelho de produgao ¢ controlados durat Realidade histérica dessa alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristi, no nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce Digitalizado com CamScanner 56 yroLinERALISMO, FEMINISMOS E CONTRACONDUTa, antes de procedimentos de punisao, de vigilancia, de castigo ‘ ae Esta alma real e incorpérea no é absolutamente substincia; é 0 ¢ a 0 onde se auticulam os efeitos de um certo tipo de poder ¢ a referéncia de um saber, engrenagem pela qual as relagées de poder dio lugar a um aa Porsivel eg saber reconduz e reforga os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referéncia, varios conceitos foram construidos e campos de andlise foram demarcad. psique, subjetividade, personalidade, consciéncia, etc sobre ela. téenicas € discursos cientificos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se ag reivindicagdes morais do humanismo. Mas néo devemos nos enganar: a alma, ilusio dos idedlogos, nao foi substituida por um homem real, objeto de saber, de reflexio filoséfica ou intervengio técnica. O homem de que nos falam € que nos convidam a libertar ji é em si mesmo 0 efeito de uma sujeigio bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita ¢ o leva a existéncia, que € ela mesma uma pega no dominio exercido pelo poder sobre 0 corpo. A alma, efeito ¢ instrumento de uma anatomia politica; a alma, prisao do corpo. (Foucault, 2002, p. 18) Essa alma, prisio do corpo, queno conto de Dostoiévski foi vislumbrada como 0 conjunto de resisténcias que surgiam estranhamente, no enredo da narrativa, sempre que os personagens tentavam uma acao distinta daquela prescrita no funcionamento tedioso dos papéis burocriticos a eles destinados no transcorrer de suas vidas é,na percepco deste fildsofo, aquilo que se transformou no elemento fulcral de uma engrenagem de governo fortemente investido no momento contemporaneo pelas intervengdes dos Estados orientados pela governamentalidade neoliberal, qual seja, intervengdes que tém por alvo a conduta dos individuos. Para se aproximar desta questio da conduta, Foucault necessitou realizar uma outra trajetéria, a partir de 1976, que o levou da anilise minuciosa das técnicas individualizantes, percebidas nos procedimentos disciplinares, para uma observacio de certos procedimentos de conjunto, Por meio dos quais, ndo mais o corpo individualizado e segregado das circulagdes sociais, resultado dos blocos disciplinares em operagdo nas Prisoes, fabricas, escolas, hospitais, entre outras seria o objetivo final das estra mobilizagio dos exercicios de p A reprodugio da espécie, populacionais, as taxas de instituigdes de sequestro, tégias de composicéo das forcas de oder. Outros objetivos, mais proximos a qualidade de vida das grandes aglomerag6es crescimento ¢ decrescimento dos nascimentos € Digitalizado com CamScanner

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