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A formação

étnica de
Passo Fundo:
história,
memória
e patrimônio
João Carlos Tedesco
Alessandro Batistella
Rosane Marcia Neumann
(Orgs.)
A formação
étnica de
Passo Fundo:
história,
memória
e patrimônio
João Carlos Tedesco
Alessandro Batistella
Rosane Marcia Neumann
Organizadores
2017

Homenagem ao município de Passo Fundo em seus 160 anos de


emancipação política
© dos Autores, 2017

Capa:
Mapa do Município de Passo Fundo elaborado e impresso por Antonino Xavier em 1929.
Fonte: Arquivo Histórico Regional.

As demais ilustrações encontram-se distribuídas ao longo do livro


com seus respectivos créditos.

Editoração:
Alex Antônio Vanin

Revisão:
Michele Palaoro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F723 A formação étnica de Passo Fundo : história, memória e patrimônio /


Organizador: João Carlos Tedesco, Alessandro Batistella, Rosane Marcia
Neumann (org.). – Erechim : AllPrint Varella, 2017.
394 p. : il., color. ; 23 cm. – (Lamoi).

ISBN: 978-85-63917-19-5

1. História – Passo Fundo (RS). 2. Formação étnica. I. Tedesco,


João Carlos, org. II. Batistella, Alessandro, org. III. Neumann,
Rosane Marcia, org. IV. Série.

CDU: 981.65

Catalogação: Bibliotecária Marciéli de Oliveira - CRB 10/2113

Contato com os Organizadores:

jctedesco@upf.br
alessandrobatistella@yahoo.com.br
rosaneneumann@upf.br
COLEÇÃO MEMÓRIA E CULTURA

Os estudos sobre Memória e Cultura (em suas variadas expressões


materiais e imateriais) articulam várias abordagens, problemáticas e
propostas de pesquisa desenvolvidas na área das Ciências Humanas.
Coadunando perspectivas teórico-metodológicas com análises empí-
ricas, suas repercussões incidem no perceber e compreender como as
relações sociais e históricas se articulam, dinamizam, desenvolvem e
se cristalizam na perspectiva de seus agentes e da sociedade ampla que
integram. Neste sentido, as repercussões das pesquisas excedem o es-
pectro específico das discussões historiográficas para abranger, tam-
bém, análises sociológicas, filosóficas, institucionais, do cotidiano, das
visões de mundo e das ações decorrentes de tais compreensões.

Coordenação:
João Carlos Tedesco, Gizele Zanotto, Gerson Luís Trombeta
LAMOI (Laboratório de Memória Oral e Imagem)
PPGH-UPF

COLEÇÃO: MEMÓRIA, HISTÓRIA E IMAGENS DE PASSO FUNDO

O LAMOI (Laboratório de Memória Oral e Imagem) tem como


finalidade o desenvolvimento de pesquisas a partir da organização
da memória oral, visual, audiovisual e escrita da região norte do Rio
Grande do Sul, região de abrangência da UPF, tendo como problemá-
tica fundamental a questão da memória. Horizonte esse que se liga ao
conceito de identidade, pois as memórias produzidas historicamente
pelos diferentes grupos (sociais, étnicos e de gênero) construíram re-
presentações de identidade que podem ser acessadas a partir de fontes
diversas e passam a ser entendidas como registros das experiências hu-
manas ao longo do tempo e que, na ação de rememorar, unem passado
e presente, em um processo de manutenção e reforço dos laços identi-
tários dos grupos.
A riqueza da diversidade cultural das diferentes comunidades da
região revelou a necessidade de um levantamento histórico amplo, es-
pecialmente a partir das histórias de vida de seus atores. Ao mesmo
tempo, foi identificada a existência fragmentada de registros escritos,
orais e imagéticos dessas memórias, através de histórias de instituições
oficiais, de lazer, religiosas, de ensino, das famílias, fotografias e outros
objetos.

Coordenação:
João Carlos Tedesco, Marlise Regina Meyrer.
Sumário

Introdução geral........................................................................... 7
Presença Guarani no Planalto Médio...........................................11
Fabricio J. Nazzari Vicroski
Luiz Carlos Tau Golin

Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang


frente ao projeto colonizador em espaços territoriais da Bacia
Hidrográfica do rio Passo Fundo................................................. 33
Luís Fernando da Silva Laroque

Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo.......................113


Welci Nascimento

Os afro-descendentes em Passo Fundo........................................135


Alessandro Batistella
Odorico José Ribeiro
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em
Passo Fundo............................................................................. 159
Rosane Marcia Neumann
Marlise Regina Meyrer

Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início


do século XX.............................................................................189
João Carlos Tedesco
Giovani Balbinot
Dilse Corteze

Sírios e libaneses em Passo Fundo – final do século XIX e


primeiras décadas do século XX.................................................257
João Carlos Tedesco
Alex Antônio Vanin

A comunidade judaica em Passo Fundo.....................................311


João Carlos Tedesco
Alex Antônio Vanin
Isabel Rosa Gritti

Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa


em Passo Fundo........................................................................ 353
João Carlos Tedesco
Isabel Rosa Gritti

Anexos..................................................................................... 393
Introdução geral

A
o convivermos socialmente vamos formando lembranças, am-
pliando nosso acervo de comunicação e formando nossa cultu-
ra, identidade, consciência de..., construindo alteridades, defi-
nindo fronteiras (o nós e os outros) e ritualizando tempos, fatos e situações que
nos promovem reconhecimento étnico, pessoal, social, cultural. Esse viven-
ciar de proximidade e de agregação identitária requer, também, ritualidades
expressivas, pertencimentos, identificações, exigências de manifestação cole-
tivas, comemorações, representações objetais e simbólicas, bem como marcas
e rastros no ambiente natural e construído.
Para haver essa expressão social, a memória é necessária; ela é uma
grande mediadora, mas que se alimenta e demanda eventos, situações, nar-
rativas, rituais, ilustrações, etc. Os eventos de memória de cunho étnico, por
exemplo, são símbolos e representações culturais da lembrança que possuem
capacidade de evocação, agregação e coesão.
A memória familiar e de grupos étnicos, por exemplo, criam condições
para o cruzamento de temporalidades e para o testemunho da História; serve
para localizar, no tempo e no espaço, raízes e ações que, no presente, são

7
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

pouco valorizadas, como é o caso do parentesco, da consanguinidade, de


compadrios, de famílias extensivas, da centralidade religiosa da vida nas co-
lônias, etc.
Ritos de integração e de agregação (descendência, mito de origem de um
ancestral, parentesco...), as migrações internacionais e internas bem como os
sacrifícios da vida inerentes a essa realidade, o trabalho, a tenacidade e o re-
gramento moral dos grupos sociais, o orgulho da descendência e a etnicidade
construída no passado, etc., compõem o ritual agregador de lembranças de
vividos de coletividades étnicas específicas.
Nesse sentido, a memória coletiva se baseia na interação dos grupos
e nas formas como esses as ritualizam. O grupo familiar, por exemplo, de
base genealógica, em geral de centralidade patrilinear, produz estratégias de
memória para assegurar força e solidez a um tronco que se formou em deter-
minado tempo, lugar e circunstâncias e que espalhou seus ramos ao presente.
A memória e a cultura étnica estão imbricadas a um fenômeno socioe-
conômico e, suas narrações sócio-históricas, são produzidas por instituições
(famílias, igrejas, empresas, associações comunitárias e étnicas, dentre ou-
tras), as quais produzem representações sociais que permitem a manutenção,
ainda que redefinida, de um horizonte de pertencimento étnico e espacial.
Entendemos que é importante localizar a memória num contexto histó-
rico mais complexo e relacional de ações e de significados. As lembranças e
os esquecimentos poderão assim atribuir significados à memória na medida
em que se possa fazer associações temporais e espaciais, envolvendo formas
de vivências, estratégias, desafios e conflitos.
Não podemos esquecer que tratamos de sujeitos migrantes, ou seja, de
alguém que deixou espaços e buscou constituir-se em outros. Nesse sentido,
a memória presente caminha com o horizonte do desejo e sentido dado à (e)
(i)migração, pois o sujeito migrante idealiza sempre uma situação melhor de
vida em relação a até então existente. Por isso que é comum nas narrativas de
nossos interlocutores, em particular, de alemães, italianos, poloneses, sírios,
libaneses e judeus, essa manifestação do sacrifício pelo trabalho, aliado ao
espírito empreendedor resultando na redenção, ou seja, na constituição de
patrimônios familiares.
Com essas ideias iniciais é que justificamos nosso texto sobre a consti-
tuição da base histórico-cultural do município de Passo Fundo, localizando

8
Introdução geral
vários grupos sociais, desde os povos originários, passando por coletividades
que emigraram forçados como escravos, de imigrantes que escolheram o Bra-
sil e se localizaram em Passo Fundo entre o final do século XIX e as primei-
ras décadas do século XX.
É importante ressaltar que Passo Fundo não possui identificação a um
grupo étnico em particular; compõe uma região que se constituiu por múlti-
plos grupos, em particular, na sua formação primeira, os indígenas guarani
e kaingang, os luso-brasileiros e os caboclos, esses dois últimos, envoltos na
economia pastoril e do extrativismo (erva mate, madeira, pedras preciosas,
etc.), os alemães, italianos, poloneses, sírios e libaneses, judeus, dentre outros.
Nessa multiplicidade étnica original, grupos buscaram demarcar território,
identificar espaços e fatos que registram sua presença.
Em razão disso, os espaços foram ganhando alguma territorialidade ét-
nica por múltiplas razões, dentre elas, políticas e econômicas. Isso pode estar
presente em nomenclaturas de ruas, prédios, vilas, bairros, na arquitetura de
casas, em fachadas, nomes de estabelecimentos comerciais, em festejos, mo-
numentos, gastronomia, artesanatos, no campo político, religioso, educacio-
nal e empresarial.
A riqueza da multiplicidade étnica permite esse caleidoscópio simbóli-
co, bem como identificar grupos, configurar pertencimentos e ritualizar pre-
senças e ausências. Territórios e grupos sociais e étnicos vão solidificando-se,
constituindo-se e deixando vestígios. Isso é possível perceber em Passo Fun-
do e/ou em qualquer outro lugar.
Por isso, nesses 160 anos de emancipação política e criação do muni-
cípio de Passo Fundo, nada melhor do que dar ênfase aos grupos humanos,
a algumas de suas características e de suas demarcações de fronteira étnica,
com ênfase, quando possível, às narrativas de pessoas que estão em nosso
meio e que conseguem dizer algo do seu passado e de seu grupo de pertenci-
mento. Buscamos reconstituir, ainda que brevemente, pequenos fragmentos
de vida familiar, social e empresarial de determinados grupos sociais que, em
particular, na cidade de Passo Fundo se estabeleceram.
Multiplicamos as mãos para efetivar esse intuito, tanto os que escreve-
ram, quanto os que nos forneceram narrativas, ilustrações, documentos, in-
formações de “quem poderia nos dizer alguma coisa”. A metodologia foi
mais ou menos essa, ou seja, um interlocutor que conseguíamos contatar e

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

nos dar informações do grupo em questão, indicava um conhecido que “tinha


algo para dizer”. Portanto, foi algo muito aleatório, não previamente defini-
do, mas que se mostrou frutífero na medida em que revelava o interconheci-
mento no interior dos grupos sociais.
As questões em pauta eram simples e versavam sobre o histórico da famí-
lia a partir do fenômeno emigratório, a organização da vida no novo espaço,
como chegaram em Passo Fundo e estruturaram sua dimensão econômica e
familiar nos primeiros tempos. Para efeito de sistematização, apenas alguns
fragmentos foram selecionados em razão do espaço diminuto, porém, entre-
vistas de maior amplitude ficarão armazenadas no Laboratório de Memória,
Oralidade e Imagem (Lamoi) do Programa de Pós-graduação em História
da Universidade de Passo Fundo, para quem se interessar, com anuência dos
interlocutores.
Temos consciência de que deveríamos abarcar um contingente o mais
amplo possível de interlocutores, porém, isso não foi possível, em razão de
tempo disponível e espaço para os escritos. Desse modo, ao mesmo tempo
que agradecemos os que conseguimos contatar e produzir narrativas e que
contribuíram para a confecção do presente material, pedimos escusas aos
inúmeros possíveis interlocutores que, como sabemos, teriam muito a contri-
buir e, não tivemos como propiciar essa oportunidade.
Enfim, através, em grande parte, de falas de sujeitos sociais, bem como
de ilustrações, esperamos dar uma singela contribuição para o entendimento
de alguns aspectos que constituem a história de Passo Fundo em seus 160
anos de existência.

Os organizadores

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Presença Guarani no Planalto Médio

Fabricio J. Nazzari Vicroski1


Luiz Carlos Tau Golin2

Introdução

A diversidade etnocultural é uma das características marcantes do povo


brasileiro. Somos o resultado de um processo histórico-cultural de ocupação
do território pautado pela contribuição de diferentes culturas. Tal dinâmica
de contato interétnico desenvolveu-se de forma distinta nas diferentes regiões
do país, obedecendo particularidades históricas regionais.
O município de Passo Fundo e, de forma mais abrangente, toda a região
do Planalto Médio insere-se nesse contexto. A busca pelo conhecimento e
pela compreensão da história do povoamento desse território pelos diferentes
grupos étnicos significa não somente o reconhecimento no que se refere à
1 
Arqueólogo do Núcleo de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo. Doutoran-
do em História (PPGH/UPF).
2 
Pós-Doutor em História, jornalista e docente no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo.

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

importância da contribuição dos nossos antepassados para o desenvolvimen-


to da sociedade atual, mas também um encontro com a nossa identidade e
cultura. Portanto, muito mais do que um contato com as antigas sociedades,
trata-se de uma oportunidade de reconhecimento e valorização da nossa his-
tória enquanto sociedade multicultural.
O objetivo deste texto é justamente gerar uma pequena contribuição nes-
se sentido, buscando apresentar uma breve sistematização das informações
produzidas pelas pesquisas históricas e arqueológicas acerca da presença gua-
rani na região de Passo Fundo e do Planalto Médio.

Arqueologia

Ao tratarmos das antigas sociedades humanas que habitavam a região


de Passo Fundo em período anterior à chegada dos colonizadores europeus,
inevitavelmente devemos recorrer à Arqueologia. Diferentemente da socieda-
de atual, que utiliza principalmente a escrita para registrar e transmitir a sua
história, os povos indígenas de outrora priorizavam a oralidade para perpetu-
ar o seu conhecimento através das gerações. Ao longo da trajetória histórica,
muitas informações se perderam e várias culturas se extinguiram. As atuais
sociedades indígenas representam apenas parte da variedade de grupos étni-
cos que habitavam essa região. Por meio da Arqueologia, podemos ter acesso
aos vestígios dessas antigas populações, elementos que são denominados pe-
los pesquisadores de “cultura material”. Já os locais onde esses artefatos são
encontrados são chamados de “sítios arqueológicos”.
Para recuperar os artefatos, os arqueólogos precisam escavar o solo cui-
dadosamente. Podemos comparar a escavação de um sítio arqueológico à
leitura de um livro: quanto mais tempo dedicamos à escavação, maior é a
quantidade de informações obtidas. Geralmente, os objetos mais recentes es-
tão localizados nas camadas superficiais do solo, ao passo que os mais anti-
gos são encontrados em profundidade. Obviamente, cada sítio arqueológico
apresenta suas particularidades. As características do relevo e as formas de
utilização do solo podem influenciar na forma de deposição dos vestígios,
bem como em seu estado de conservação.
Os acervos arqueológicos escavados constituem bem da União, ou seja,

12
Presença Guarani no Planalto Médio
são considerados patrimônio cultural da sociedade, portanto, são protegidos
por lei e não podem ser comercializados. Após a pesquisa, todas as peças
recuperadas são encaminhadas a instituições de pesquisa, como museus e
universidades, onde estarão à disposição de estudantes, professores e da co-
munidade em geral.
O principal objetivo da pesquisa arqueológica não é a escavação dos
objetos para a composição de um acervo, mas a produção de conhecimento
a partir da análise desses vestígios. É importante destacar que a construção
do conhecimento é uma tarefa constante e coletiva, todos os povos e culturas
geram as suas contribuições, tanto nas sociedades atuais quanto no passado.
Portanto, ao pesquisarmos os antigos habitantes, podemos recuperar infor-
mações perdidas ou esquecidas ao longo do tempo, nos auxiliando na elabo-
ração de soluções para problemas atuais, além de estimular a manutenção de
uma relação mais equilibrada no tocante à exploração dos recursos naturais
oferecidos pela natureza.

Migração Tupi-Guarani

Os primórdios da ocupação humana do atual estado do Rio Grande do


Sul nos remetem à aproximadamente 12 mil anos atrás. Os sítios arqueológi-
cos mais antigos se concentram nas margens do rio Uruguai, principalmente
na região da fronteira oeste. Essas primeiras levas populacionais organiza-
vam-se na forma de pequenos grupos que se deslocavam constantemente pelo
território. Sua subsistência era proveniente da caça, da pesca e da coleta de
alimentos. Dessa forma, desbravaram todas as regiões do estado.
Um novo movimento migratório foi observado há cerca de 2 mil anos,
quando diferentes grupos étnicos antigiram as regiões nordeste e noroeste.
Foi nesse período que os ancestrais dos atuais guarani exploraram a bacia
do rio da Prata, chegando até as barrancas do Alto Uruguai e, a partir daí,
avançando à jusante e também em direção à bacia do rio Jacuí na atual região
do Planalto Médio.
Diferentemente dos caçadores-coletores, os grupos falantes do tronco
linguístico tupi-guarani são caracterizados na Arqueologia como horticul-
tores-ceramistas, pois já praticavam a horticultura e produziam recipientes
cerâmicos para armazenar e preparar seus alimentos.

13
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Alguns fatores, como as mudanças climáticas, o aumento populacional


e questões mitológicas, são apontados como as causas de sua migração. Para
esses exímios canoeiros, o curso dos grandes rios ditava a rota de expan-
são. Além de facilitar o deslocamento, a rede hidrográfica também oferecia
toda uma gama de alimentos (caça, pesca e coleta), bem como dava acesso
ao solo fértil das várzeas dos rios, onde eram estabelecidas áreas de plantio.
Também, o espaço era marcado pelo clima quente e úmido ao qual estavam
habituados.

O Guarani era um agricultor tropical, nascido e criado na Amazô-


nia brasileira, que, no começo de nossa era, expandiu-se pelas terras
florestadas da bacia do rio da Prata, onde criou um território de do-
mínio exclusivo. As várzeas do alto rio Uruguai passaram a ser um
espaço fronteiriço densamente ocupado desse território.
Onde chegava, o Guarani se estabelecia em área de muita água e mata
densa na qual pudesse reproduzir seu tradicional estilo de vida. Para
tanto, necessitava de terrenos férteis, quentes e com boa drenagem,
nos quais fosse possível cultivar plantas trazidas da Amazônia, como
o milho, a mandioca, o amendoim, o cará, o algodão e o fumo. E, ao
mesmo tempo, conseguir a necessária proteína e gordura, por meio da
caça na mata, da pesca nos rios, da apanha de moluscos aquáticos e
terrestres e da captura de insetos e seus produtos (Schmitz & Ferrasso,
2011, p. 139).

Seu ímpeto expansionista aliado à vasta hidrografia fez com que a dis-
persão guarani atingisse todas as regiões do estado, além de territórios dos
atuais países vizinhos, como Uruguai, Paraguai e Argentina (Figura 1). No
Planalto Médio eles disputaram e também compartilharam o espaço com as
populações jê.

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Presença Guarani no Planalto Médio

Figura 1 - Indicação aproximada da área de dispersão dos povos guarani.

No contexto das rotas migratórias pelo interior do Rio Grande do Sul,


a bacia do rio Jacuí ocupa um lugar de destaque. Após avançar à montante
pelo rio Uruguai, seus afluentes da margem esquerda formaram corredores
de acesso à região Centro-Norte. As nascentes dos rios Ijuí, Várzea, Passo
Fundo, Apuaê e Inhandava estão situadas no Planalto Médio, ponto a partir
do qual o curso do rio Jacuí forma um eixo em direção ao centro do Rio
Grande do Sul, onde altera o seu curso para o leste, permitindo o acesso ao
estuário do Guaíba, e a partir daí à região litorânea e ao sul do estado.

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Entre Passo Fundo e Mato Castelhano, num raio de aproximadamen-


te mil metros, estão situadas as nascentes do rio do Peixe, Guaporé,
Passo Fundo e Jacuí, um divisor de águas entre as bacias hidrográficas
do Uruguai e Guaíba, duas das três bacias presentes no Rio Grande
do Sul, englobando respectivamente quatro sub-bacias: Apuae-Inhan-
dava, Taquari-Antas, Passo Fundo-Várzea e Alto Jacuí. Em suma, tra-
ta-se também de uma zona de convergência e transição de diferentes
contextos ecológicos, geológicos, geomorfológicos, hidrológicos, vege-
tacionais, entre outras características.
Considerando o papel dos rios nas rotas de deslocamento humano,
a região em questão seguramente pode ser interpretada como uma
importante zona de convergência e difusão cultural (Vicroski, 2011,
p. 120).

As pesquisas indicam que no momento do contato com os primeiros co-


lonizadores europeus, cerca 200 mil pessoas falavam guarani no Rio Grande
do Sul. Se abarcarmos os demais estados do Sul, além do Mato Grasso do Sul
e dos países vizinhos Argentina e Paraguai, estima-se que esse número oscile
entre 600 mil e 800 mil indivíduos (Schmitz, 1991). Atualmente, os diversos
topônimos de origem guarani podem ser encarados como patrimônio cultu-
ral imaterial desse período.
Segundo Kern (2009), a implantação das aldeias guarani não ocorria de
forma aleatória, mas seguia um planejamento de acordo com padrões repeti-
dos desde tempos imemoriais. Esse espaço-modelo geralmente contava com
uma clareira em meio à mata, junto a patamares elevados das várzeas férteis
dos rios, dispondo ainda de recursos hídricos, jazidas de argila para a sua in-
dústria oleira e afloramentos rochosos ou praia de seixos para a produção de
artefatos líticos, entre outros fatores (Figura 2). Por vezes, poderia transcorrer
certo período de tempo entre a definição do local de implantação da aldeia e
sua efetiva ocupação, exigindo, assim, uma preparação inicial da área, como
a abertura de roças e o plantio de alimentos.

16
Presença Guarani no Planalto Médio

Figura 2 - Representação gráfica de uma aldeia guarani. (Ilustração: Leandro Dóro).


Fonte: Vicroski (no prelo).

A medida em que expandia seu território, o guarani mantinha uma rede


de trilhas e caminhos entre as diferentes aldeias, mantendo, assim, a comuni-
cação e os laços políticos, comerciais e culturais entre os diferentes núcleos.
Já no período de colonização europeia, muitos desses caminhos deram ori-
gem a algumas das principais rodovias do Rio Grande do Sul, a exemplo da
BR-285, que cruza a região do Planalto Médio na altura das nascentes dos
rios Jacuí, Passo Fundo e Várzea.
Sob o aspecto da pesquisa arqueológica, a cultura material é considera-
da o documento que permite realizar as inferências e as interpretações que
possibilitam a construção do conhecimento sobre essas populações.
Diferentemente do que se pode presumir, a identificação de sítios arque-
ológicos não é tarefa exclusiva dos arqueólogos. Muitas vezes são os próprios
agricultores que identificam os artefatos em suas atividades cotidianas, como
por exemplo ao preparar a terra para o plantio, ao abrir uma estrada ou esca-
var o solo para a instalação de uma cerca ou um portão.
Os artefatos líticos e cerâmicos figuram entre os principais vestígios re-
cuperados nos sítios arqueológicos.

17
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Os recipientes cerâmicos eram confeccionados para buscar, guardar


e servir água, para preparar e distribuir bebidas fermentadas de mi-
lho e mandioca e para armazenar produtos e cozinhar alimentos. Os
recipientes maiores, depois de velhos e inúteis, serviam ainda para
enterrar os mortos, que eram cobertos por panelas e acompanhados
de tigelas com alimentos e bebidas (Copé, Barreto, Silva, 2013, p. 91).

A cerâmica guarani apresenta diversas formas, tamanhos e padrões de-


corativos (Figuras 3 e 4). Sua confecção era uma atividade designada às mu-
lheres. Seu empenho, esmero e conhecimento técnico estão materializados
nas proporções e nos detalhes decorativos.
Fundo.

Figura 3 - Recipientes cerâmicos guarani em formatos e tamanhos variados. Acervo:


Museu Histórico Regional de Passo Fundo.

18
Presença Guarani no Planalto Médio

Figura 4 - Recipiente cerâmico guarani. Acervo: Museu Histórico Regional de Passo


Fundo.

O acordelado era a técnica predominante para a produção dos recipien-


tes. Consistia na preparação de roletes ou cordéis de argila, que eram então
sobrepostos de acordo com a forma e o tamanho desejados. Concluída a so-
breposição, unia-se os roletes utilizando os dedos; em seguida, alisava-se a
superfície com a ajuda de um brunidor, deixando-a uniforme (Figura 5).

Figura 5 – Principais etapas da técnica de sobreposição de roletes.

Dependendo da função do recipiente, a superfície recebia um tratamento


plástico, a decoração ocorria marcando-se a argila ainda fresca com a ponta
de palitos de madeira, com marcas de unha ou da polpa do dedo, beliscado,
escovado, entre outras técnicas.

19
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A cerâmica pintada é um importante diferencial da cultura guarani. Os


motivos pintados aparecem, sobretudo, em recipientes destinados à utiliza-
ção em ocasiões especiais, “o pintado possui uma conotação ritual, quer so-
cial como religiosa, as grandes festas determinariam a presença de peças mais
elaboradas quer para demonstrar o poder do grupo, quer para demonstrar
suas origens” (La Salvia & Brochado, 1989, p. 96).
Os motivos decorativos geralmente são compostos por formas geométri-
cas, comumente pintados em vermelho ou preto sob um fundo branco. Para
a elaboração das tintas, recorria-se à matéria-prima de origem vegetal e mi-
neral. Para o vermelho, por exemplo, utilizava-se o urucum; a casca do fruto
conhecido como murici fornecia a tinta preta, enquanto que uma argila fina
e branca fornecia a cor utilizada como base.

A pintura não é uma simples manifestação de vontades, mas algo que


está ligado ao processo de origem do grupo. Os motivos seriam repre-
sentações de entidades, animais ou vegetais, que estariam ali simboli-
zadas. Sua alternância entre borda e bojo estaria ligada ao fim a que se
destinaria ou a quem iria utilizar (La Salvia & Brochado, 1989, p. 95).

Além das vasilhas utilitárias, também eram produzidos artefatos cerâ-


micos como cachimbos, tortuais de fuso para a fiação e adornos (pingentes e
contas de colar). Na arqueologia, a indústria oleira guarani é denominada de
Tradição Tupi-guarani3.
Os artefatos líticos (pedra lascada e polida), por sua vez, eram utilizados
para atividades cotidianas, como cortar, raspar, furar, derrubar árvores e tra-
balhar a madeira, além de aplicações de uso simbólico, como as feitas com
o tembetá, um ornamento labial masculino utilizado em cerimônias de ini-
ciação à virilidade (Kern, 2009). Geralmente era confeccionado em quartzo
polido, embora também fossem utilizados outros materiais. Entre a matéria-
3 
A designação tupi-guarani (com hífen) faz referência à família linguística, enquanto a expressão
tupiguarani (sem hífen) corresponde à nomenclatura utilizada para designar a tradição arqueológi-
ca. O termo tradição foi cunhado para designar um conjunto de elementos geralmente relacionados
às técnicas de produção de artefatos líticos e cerâmicos que persistem ao longo de um certo período
de tempo. As variações culturais identificadas dentro da tradição são interpretadas como fases,
pois, apesar de apresentarem algumas diferenças, ainda seguem o mesmo padrão cultural. O esta-
belecimento das tradições arqueológicas refere-se exclusivamente aos fatores tipológicos da cultura
material, sem considerar eventuais diferenciações em outros níveis. Portanto, tal nomenclatura não
deve ser tomada como equivalente étnico.

20
Presença Guarani no Planalto Médio
-prima empregada para a confecção dos artefatos líticos figuram o basalto, o
diabásio, o quartzo, o arenito e a calcedônia, compondo instrumentos como
lâminas de machados, cunhas, mãos-de-pilão e enxós (Figura 6).

Figura 6 - Lâminas de machado polidas. Acervo: Museu Histórico Regional de Passo


Fundo.

A elaboração dos artefatos líticos era uma tarefa masculina. Para a pro-
dução dos instrumentos polidos, eram selecionadas pedras sem arestas como
os seixos de rio, em seguida, colocava-se grãos de areia como abrasivos sobre
uma segunda pedra ou lajeado com superfície plana; utilizando-se as mãos,
friccionava-se uma pedra sobre outra, promovendo o seu desgaste até atingir
o formato desejado.
Para a preparação de instrumentos de pedra lascada, outros procedi-
mentos eram aplicados. O lascamento das pedras era efetuado procurando-se
criar gumes cortantes ou arestas pontiagudas. Priorizavam-se seixos natural-
mente anatômicos, permitindo que se encaixassem de forma confortável às
mãos. De acordo com a função a que eram destinadas, poderiam receber o
encabamento de madeira (Figura 7).

21
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Figura 7 - Artefato de pedra lascada (ponta de flecha) localizado na bacia do rio Ja-
cuí. Acervo: Sírius - Estudos e Projetos Científicos Ltda.

Além de seixos e blocos, as lascas também eram largamente utilizadas,


pois constituem em si um instrumento cortante, cujas arestas eram aguçadas
por meio de pequenos lascamentos feitos por pressão com a ajuda de objetos
pontiagudos de madeira, ossos, ou chifres de animais, obtendo-se um ins-
trumento ainda mais eficiente, como pontas de projéteis, facas, raspadores e
furadores (Figuras 8 e 9).

Figura 8 - Principais etapas do processo de confecção de um artefato lítico lascado.

22
Presença Guarani no Planalto Médio

Figura 9 - Artefatos de pedra lascada (à direita) e pedra polida (à esquerda) locali-


zados no Sítio Arqueológico Arroio Pinheiro Torto, próximo à área urbana de Passo
Fundo. Acervo: Núcleo de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Passo Fun-
do (NuPHA/PPGH/UPF).

Assim como na indústria oleira, a escolha da matéria-prima e as ações


gestuais necessárias à produção dos artefatos compunham uma cadeia opera-
tória previamente estabelecida, resultando em tipologias que tanto se repeti-
ram como se aprimoraram ao longo do tempo.
Obviamente, além dos instrumentos lito-cerâmicos, outros materiais
eram empregados, como madeira, ossos, dentes e conchas de moluscos, toda-
via, tais vestígios necessitam de condições específicas para a sua preservação,
possuindo assim uma ocorrência limitada.
Por volta do século VIII, a ocupação guarani na região Centro-Norte do
estado mostra-se plenamente desenvolvida (Schmitz, 1991). Apesar da ocu-
pação jê no Planalto e nas matas de araucárias do Alto Uruguai nesse mesmo
período, a presença guarani também é marcante no registro arqueológico des-
sas áreas, denotando à essa região um caráter de fronteira cultural.
A partir do contato com o colonizador europeu, em especial com a
fundação das reduções jesuíticas e as investidas dos bandeirantes no século
XVII, uma nova dinâmica social foi gestada, exigindo uma reorganização
cultural e a adaptação ao novo contexto histórico.

23
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A Redução de Santa Teresa

A partir da chegada dos colonizadores europeus, inaugura-se um novo


momento na história indígena. Para esse período, além do conhecimento re-
sultante das pesquisas arqueológicas, também podemos contar com a contri-
buição da pesquisa histórica. Desde então passamos a dispor das informações
constantes nos antigos documentos produzidos por espanhóis, portugueses e
padres jesuítas.
A fundação de uma redução jesuítica no atual território de Passo Fundo
no século XVII pode ser considerada um marco histórico no contato entre os
colonizadores e as populações indígenas locais.
A Redução Jesuítica de Santa Teresa do Ygaí, também denominada de
Santa Teresa del Curiti ou de los Piñales, foi fundada pelo padre Francisco
Ximenes no ano de 1632 (Cafruni, 1966). A chegada dos jesuítas espanhóis
e o consequente estabelecimento dos povoados missioneiros na banda orien-
tal do rio Uruguai são episódios relacionados ao contexto histórico dos ata-
ques dos bandeirantes paulistas às reduções fundadas nas regiões de Itatins e
Guairá, situadas na margem esquerda do rio Paraná. Os bandeirantes tinham
como objetivo a captura dos indígenas aldeados a fim de comercializá-los
como mão-de-obra escrava, resultando, assim, na fuga dos jesuítas em dire-
ção ao sul e na criação de novos povoados missioneiros na chamada zona do
Tape, região na qual se insere o município de Passo Fundo.
Nesse período inicial da criação das reduções pelos jesuítas espanhóis,
foi recorrente a transmigração de alguns aldeamentos para outros locais con-
siderados estratégicos para o desenvolvimento dos povoados. Esse foi o caso
da redução de Santa Teresa, inicialmente implantada na localidade de Povi-
nho Velho, entre os atuais municípios de Passo Fundo e Mato Castelhano.
Posteriormente foi transferida para outra localidade mais ao sul, no território
do atual município de Ernestina. Ambos os locais inserem-se na bacia do
Alto Jacuí, então denominado Ygaí.
Em um mapa das reduções jesuíticas elaborado no século XVII pelo
Padre Luís Ernot, pode-se observar a localização aproximada da redução
de Santa Teresa junto às nascentes do rio Jacuí, portanto, na área correspon-

24
Presença Guarani no Planalto Médio
dente ao seu primeiro local de fundação, no atual município de Passo Fundo
(Figura 10).

Figura 10 - Localização da Redução de Santa Teresa. Fonte: Ruiz de Montoya, 1997.

Tratava-se de um povoado próspero e de localização estratégica, chegan-


do a contar com aproximadamente quatro mil indígenas aldeados, além de
extensas plantações e campos de pastagem com cerca de 500 cabeças de gado
vacum introduzidas na região pelos jesuítas (Gehm, 1978).
Ao mesmo tempo em que floresciam os povoados missioneiros, as ban-
deiras paulistas também buscavam ampliar seus domínios. No ano de 1637, a
redução foi tomada e os indígenas capturados por cerca de 250 bandeirantes
escravagistas comandados por André Fernandes (Cafruni, 1966).
Plenamente cientes da localização estratégica da redução, os bandeiran-
tes estabeleceram ali o Fortim de Santa Teresa, também chamado de Posto ou
Arraial do Ygaí ou dos Pinhais. Durante mais de três décadas, o local serviu
como base de apoio para a penetração luso-brasileira em direção ao interior
do território rio-grandense - então domínio da coroa espanhola - auxiliando

25
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

na tomada dos demais povoados missioneiros e também em campanhas mili-


tares, como a Batalha do Mbororé ocorrida em 1641. A partir dessa base, os
bandeirantes lançaram-se em investidas para o oeste, sul e sudoeste (Porto,
1943; Cafruni, 1966).
André Fernandes designou seu próprio filho como administrador do
arraial bandeirante. Francisco Fernandes de Oliveira era também um padre
jesuíta, todavia, inserido na geopolítica lusitana. Além da organização espiri-
tual do povoado, foi também responsável pela manutenção do posto de abas-
tecimento das bandeiras que se lançavam em incursões pelo interior. A im-
portância do interposto era tal que nem mesmo a derrota sofrida na Batalha
do Mbororé abalou o domínio bandeirante nessa região. Sua desocupação
teria ocorrido somente no ano de 1669, quando então a manutenção dessa
importante posição tornou-se insustentável devido a uma série de fatores.
A presença dos indígenas da etnia guarani foi predominante nos povo-
ados missioneiros. Todavia, umas das particularidades da Redução de Santa
Teresa é justamente o fato de que ali os guarani compartilhavam o espaço
com grupos étnicos do ramo jê meridional, ou seja, ancestrais dos atuais
kaingang. Em grande medida, tal característica deve-se ao caráter fronteiriço
da bacia do Alto Jacuí, para onde convergiam os domínios territoriais dessas
populações, exigindo, portanto, estratégias de adaptação e interação entre os
diferentes grupos.
A insuficiência de pesquisas sobre a Redução de Santa Teresa ainda nos
impede de determinar com exatidão a porcentagem de cada grupo étnico pre-
sente no aldeamento, entretanto, não há qualquer dúvida sobre a influência
da etnia e da cultura guarani nesse povoado missioneiro. Da mesma forma,
torna-se frágil qualquer tentativa de atribuir uma soberania étnica sobre o
Planalto Médio, seja ela jê ou guarani, visto que no registro arqueológico é
notório o compartilhamento territorial durante vários séculos.
Após a Guerra Guaranítica (1753-1756) e a derrocada das reduções je-
suíticas no século XVIII, os guarani sobreviventes dispersaram-se por várias
regiões do estado e pelos países vizinhos. A destruição do projeto missio-
neiro, segundo Golin (2015, p. 88-89), representou o fim de “uma sociedade
alternativa, baseada na propriedade do povo, dissolvendo o seu patrimônio e

26
Presença Guarani no Planalto Médio
território no sistema colonial europeu, alicerçado na concentração particular
da terra, da acumulação privada, e na formação de multidões de excluídos de
suas riquezas milenares”.
Durante o convívio nas reduções, haviam adquirido conhecimentos de
técnicas construtivas, agricultura, metalurgia, olaria, marcenaria, entre outras
habilidades e, em razão do domínio desses ofícios, eram vistos como mão de
obra qualificada, participando ativamente do processo de formação da socie-
dade colonial, contudo, sem possibilidades de manutenção do seu modo de
vida tradicional, nem tampouco do seu antigo território de ocupação.
Possivelmente, a escravização dos indígenas após a tomada da Redução
de Santa Teresa e o contexto histórico subsequente contribuíram diretamente
para o decréscimo da população guarani no Planalto Médio. Quando novas
levas de imigrantes estabeleceram-se na região durante os séculos XIX e XX,
os kaingang constituíam a população indígena predominante. Todavia, a so-
ciedade atual é fortemente marcada pela contribuição da cultura guarani.

Contribuições da cultura guarani

Determinar a contribuição de cada cultura para a formação de uma so-


ciedade multiétnica certamente não constitui uma tarefa fácil. Trata-se de
um processo complexo permeado por fatores históricos por vezes ignorados.
Temos, entretanto, a convicção de que cada cultura gerou sua parcela de con-
tribuição nesse processo.
De forma geral, o povo brasileiro incorporou vários costumes indígenas.
A influência vai muito além do hábito do banho diário, como o uso de ervas
medicinais, as formas de manejo e cultivo de plantas nativas, a utilização de
nomes e topônimos de origem guarani, entre outras contribuições.
Tratando-se especificamente do Planalto Médio, certamente o emara-
nhado de caminhos e trilhas indígenas foi de grande valia para a penetração
luso-castelhana nessa região e, mais tarde, das frentes pioneiras. Tendo como
base as pesquisas desenvolvidas por Aurélio Porto (1943) e Jorge Cafruni
(1966), foi possível elaborar um mapa etnográfico da região do Planalto Mé-
dio no século XVII, no qual é possível perceber forte influência guarani na
denominação das regiões, topônimos e cursos hídricos (Figura 11).

27
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Figura 11 - Mapa etnográfico do Planalto Médio no século XVII.

O conhecimento indígena também foi de grande utilidade para os pri-


meiros colonizadores europeus. Eles desconheciam as plantas nativas, bem
como suas formas de plantio e colheita. A concepção de mata virgem e into-
cável com a qual os colonizadores europeus se defrontaram nos séculos XIX
e XX é paulatinamente confrontada pelas pesquisas arqueológicas recentes.
Os estudos apontam a contribuição das populações indígenas para a expan-
são das matas e das plantas cultivadas. Muitas roças de milho, mandioca e
amendoim que alimentaram os primeiros colonizadores devem suas origens
às antigas áreas de cultivo dos povos guarani.
O extrativismo da erva-mate foi uma importante atividade econômica
desenvolvida pelos guarani nos povoados missioneiros, afirmando-se, nos sé-
culos subsequentes, como uma das principais fontes de renda dos imigrantes
europeus e seus descendentes no Planalto Médio, estando diretamente rela-
cionado com a história de Passo Fundo e com o modo de vida do caboclo,
também responsável pela manutenção da agricultura de subsistência voltada
ao plantio de culturas como mandioca, milho, feijão e batata (Batistella; Kna-

28
Presença Guarani no Planalto Médio
ck, 2007), perpetuando, assim, as técnicas e as tradições de cultivo emprega-
das pelos horticultores guarani.
Muitos remédios caseiros e medicamentos produzidos pela indústria
farmacêutica são resultantes de séculos de conhecimento empírico acumula-
do pelos indígenas e hoje presentes em nosso cotidiano.
Golin (2014) destaca que a invasão das Missões em 1801 desencadeou
um fenômeno de “guaranização” da população do Rio Grande do Sul. Esse
processo envolveu desde a miscigenação étnica à apropriação cultural dos
modos de vida, do imaginário, além dos hábitos e costumes guarani, percep-
tíveis no cotidiano contemporâneo da sociedade rio-grandense.
Atualmente, além dos costumes e da miscigenação de parte da popu-
lação, as marcas da presença guarani podem ser observadas em vários no-
mes de ruas de Passo Fundo, a exemplo das ruas Gravataí, Nonoai, Niterói,
Piratini, Guararapes, Guaraí, Caí, Paissandú, Uruguai, Tramandaí, Acará
e Caramuru, ou ainda em denominações de rios, como Jacuí, Jacuí-mirim,
Taquari, Guaporé e Capingui, além de nomes de municípios do Planalto Mé-
dio, como Sarandi, Panambi, Tapejara, Marau e Ibirubá, entre outros.

Considerações finais

Hábitos, tradições e costumes são aspectos inerentes a qualquer socie-


dade, e a naturalidade com a qual desempenhamos e perpetuamos tais com-
portamentos por vezes corrobora para o esquecimento de suas origens. A
identificação, a compreensão e o reconhecimento da contribuição dos diver-
sos grupos étnicos em nossas práticas culturais cotidianas certamente contri-
buem para reforçar a nossa identidade e para a compreensão da sociedade
contemporânea.
Apesar de pouco perceptível no fenótipo da população de Passo Fundo,
a contribuição da etnia guarani para a formação do município é irrefutável.
O reconhecimento dessa herança cultural e genética torna-se ainda mais ur-
gente diante do cenário hodierno de conflitos fundiários entre indígenas e
agricultores, onde os ânimos inflados diante da parcimônia das autoridades
governamentais mediadoras dos conflitos acabam por insuflar manifestações
etnocêntricas entremeio a uma sociedade multicultural.

29
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Portanto, o entendimento dos processos históricos culminantes na for-


mação dessa sociedade multicultural transcende os limites da construção e da
apreensão do conhecimento histórico, contribuindo, assim, de forma efetiva
para a composição de uma sociedade mais tolerante.

Referências:

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so Fundo: Prefeitura Municipal de Passo Fundo, 1966.
COPÉ, Silvia Moehlecke; BARRETO, James Macedo; SILVA, Mariane Mo-
reira da. 12000 anos de história: arqueologia e pré-história do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: UFRGS, p. 1-116, 2013.
BATISTELLA, Alessandro; KNACK, Eduardo Roberto Jordão. Antologia do
município de Passo Fundo: A cidade e a região durante os séculos XVII, XVIII e XIX.
In: BATISTELLA, Alessandro (Org.). Passo Fundo, sua história. Volume 1.
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GEHM, Delma Rosendo. Passo Fundo através do tempo. Volume 1. Histórico e
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GOLIN, Tau. A Guerra Guaranítica: O levante indígena que desafiou Portugal e
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KERN, Arno. Pré-História e Ocupação Humana. In: GOLIN, Tau; BOEIRA,
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PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Publicações do Ser-
viço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 9. Imprensa Nacional,
Rio de Janeiro, 1943.

30
Presença Guarani no Planalto Médio
RUIZ DE MONTOYA, Antônio. Conquista espiritual feita pelos religiosos da
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de Arnaldo Bruxel e Artur Rabuske. 2.ed. Porto Alegre: Martins Livreiro,
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SCHMITZ, Pedro Ignacio. Pré-História do Rio Grande do Sul. Documentos 05.
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SCHMITZ, Pedro Ignacio; FERRASSO, Suliano. Caça, pesca e coleta de
uma aldeia Guarani. In: CARBONERA, Mirian; SCHMITZ, Pedro Ignacio
(Orgs.). Antes do Oeste Catarinense: Arqueologia dos povos indígenas. Chapecó:
Argos, p.139-166, 2011.
VICROSKI, Fabricio José Nazzari. O Alto Jacuí na Pré-História: Subsídios para
uma Arqueologia das Fronteiras. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo:
UPF, p. 1-136, 2011.
VICROSKI, Fabricio José Nazzari. O Alto Jacuí na Pré-História: Subsídios para
uma Arqueologia das Fronteiras. No prelo.

31
Redes de atuação e movimentações
de grupos étnicos Kaingang frente
ao projeto colonizador em espaços
territoriais da Bacia Hidrográfica
do rio Passo Fundo

Luís Fernando da Silva Laroque1

Introdução

Os Kaingang, que fazem parte das Sociedades Jê, constituem um dos


mais numerosos povos indígenas no Brasil Meridional. Segundo Laroque
(2009), sobreviveram ao impacto de diferentes frentes exploradoras e colo-
nizadoras como, por exemplo, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, as
expedições ibéricas rumo ao sul do Brasil e as dos jesuítas a serviço de Por-
tugal e de Espanha. Tratando-se do século XIX, situação idêntica acontece
em relação aos mecanismos da Frente de Expansão representados pelo esta-
belecimento de fazendas, pela abertura de estradas, pela colonização alemã e
italiana. Além disso, deparam-se com a política oficial dos aldeamentos indí-
genas, com os projetos de catequese capuchinha e jesuítica e com a instalação

1
  Doutor em História. Professor e Pesquisado do PPG Ambiente e Desenvolvimento e do Curso
de Graduação em História do Centro Universitário UNIVATES. Lajeado/RS. E-mail: lflaroque@
univates.br

33
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de companhias de bugreiros e pedestres que avançaram sobre o seu mundo.


No decorrer do século XX e primeiros anos do século XXI, a Frente Pionei-
ra que, visando atender aos interesses do sistema capitalista, movimenta-se
sobre os territórios Kaingang através da abertura de estradas de ferro e de ro-
dagem, da intensificação agrícola e da reserva de áreas florestais, bem como,
posteriormente, mas sem sucesso, através das tentativas de confinamento dos
indígenas dentro de áreas estabelecidas por agências oficiais.
Atualmente, os Kaingang, conforme Censo do IBGE (2012), totalizam
uma população calculada em mais de trinta e oito mil indivíduos, que ocu-
pam por volta de duas dezenas de áreas indígenas, que se espalham desde
o oeste paulista até o norte e noroeste do Rio Grande do Sul, incluindo o
Paraná (norte, centro e sudoeste) e o oeste catarinense. No Rio Grande do
Sul, muitas famílias indígenas se encontram em situação de acampamento,
em espaços urbanos e em beira de rodovias, seguindo movimentos realizados
tradicionalmente pela sociedade Kaingang. Estão conscientes, como no pas-
sado, de que precisam continuar lutando pela sobrevivência física e cultural.
Na concepção Kaingang, o território não consiste apenas no lugar geo-
gráfico de onde obtêm os recursos para sua sustentabilidade, mas, semelhante
a muitos outros povos indígenas, é um espaço “de dimensões sócio-político-
-cosmológicas mais amplas” (Seeger; Castro, 1979, p. 104). Em vista disso,
podemos perceber que o território ocupado pelos Kaingang no século XIX,
XX e XXI tem a funcionalidade não somente como um espaço para a busca
da caça, da pesca, da coleta de pinhão, venda do artesanato e demais ativida-
des para garantir a existência, mas, também, como uma realidade construída
para que seu sistema de crenças e de conhecimentos pudesse ser intensamen-
te vivido.
Um outro aspecto a ressaltar é que as Sociedades Jê, da qual os Kain-
gang fazem parte, segundo Seeger e Castro (1979, p. 104), parecem não defi-
nir sua identidade em relação a uma geografia determinada, ou seja, “sua or-
ganização social, por assim dizer, se representa em termos conceituais, antes
que geográficos”. Nesse sentido, apoiada em depoimentos Kaingang e dados
históricos, temos a hipótese levantada por Tommasino (1995): a construção
do território Kaingang e o fato de se fixarem, preferencialmente, em áreas
mais altas remetem ao mito de origem, que referencia a Serra Krinjijimbé.
Por outro lado, vale enfatizar, compreendemos que a cultura de cada

34
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
grupo constrói-se e reconstrói-se num processo constante de mudanças, situ-
ação também válida para o povo Kaingang. Este processo não acontece de
forma linear, uniforme, com estágios sequenciais ou, ainda, de forma hierár-
quica. A cultura é construída na relação entre sujeitos de um mesmo grupo
e/ou de diferentes grupos étnicos, conforme argumenta Sahlins (1990, p. 7)
a “[...] história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas
sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrá-
rio também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente
porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando
realizados na prática” (Sahlins, 1990, p. 7).
A partir destas considerações preliminares, tomando como delimitação
espacial territórios da Bacia Hidrográfica do Rio Passo Fundo e como recorte
espacial, o período que se estende de meados do século XIX até as primeiras
décadas do século XX, os problemas que orientam o trabalho são: Quais as
redes de ligação entre as diversas parcialidades Kaingang que atuaram em
territórios da bacia hidrográfica do Rio Passo Fundo e adjacências? Quais as
continuidades e ressignificações culturais que identificam a identidade Kain-
gang no decorrer do processo histórico? Frente a estas questões, o objetivo do
estudo consiste em compreender as relações que se estabeleceram entre indí-
genas e colonizadores, sobretudo, no que se refere ao microcosmo Kaingang
e as suas historicidades, que foram postas em ação de meados do século XIX
até as primeiras décadas do século XX, em territórios da bacia hidrográfica
do Rio Passo Fundo e adjacências.
Vale ainda salientar que o enfoque analítico deste estudo procura trazer
para o primeiro plano da narrativa, as parcialidades Kaingang e suas lideran-
ças como sujeitos e protagonistas de suas ações, ao invés de vítimas passivas,
viés adotado pela historiografia que analisou as relações dos indígenas com
as sociedades coloniais e pós-coloniais no Brasil, grosso modo, até as últimas
décadas do século XX. Do ponto de vista teórico-metodológico, trata-se de
um estudo qualitativo de cunho exploratório. As fontes bibliográficas e, so-
bretudo, as documentais encontradas em arquivos do Rio Grande do Sul, que
nada tem de inédito ou novo, foram investigadas e interpretadas a partir de
uma perspectiva interdisciplinar, contando com métodos e aportes históricos
e antropológicos, entre os quais apontam-se os estudo Barth ([1969] 2000);
Sahlins (1970, 1990, 2004); Eliade (1973); Seeguer e Castro (1979); Clastres

35
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

(1981); Service (1984); Hartog (1999); Cunha (1992); e Almeida (2010 e


2013).

Os Kaingang em territórios da porção sul do Rio Uruguai


e suas relações conflitivas e amistosas com os colonizadores

Tratando-se do século XIX, a Carta Régia de 1809, de D. João, mencio-


na e preocupa-se mais especificamente com a presença dos Kaingang, que
viviam nos territórios ao sul do Rio Uruguai. Desde meados do século XVIII,
ocupavam áreas que se estendiam de ambas as margens da Bacia Hidrográfi-
ca do Rio Jacuí até áreas de ambas as margens da Bacia hidrográfica do Rio
Uruguai.

Mapa 1: Tradicionais territórios Kaingang. Fonte: Riograndino Silva (1968).

36
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
O projeto joanino, no intento de explorar e de povoar os Campos de
Guarapuava e Palmas, aprovou também os planos para “civilizar os índios
barbaros, que infestam aquelle territorio, e de por em cultura todo o paiz
que de uma parte vai confinar com o Paraná, e da outra forma as cabeceiras
do Uruguay que, depois rega o paiz de Missões, e communica assim com a
capitania do Rio Grande” (Carta Régia de 1º/04/1809. In: Cunha, 1992, p.
69). Ora, as partes regadas desde as cabeceiras do Rio Uruguai, que comu-
nicam com as Missões e que deveriam ser “postas em civilização”, uma vez
que também estavam ocupadas pelos ditos “índios bárbaros”, equivalem a
espaços territoriais de ambas as margens do Rio Passo Fundo e territórios
adjacentes.
Outro acontecimento que ilustra a presença destes indígenas em territó-
rios da margem esquerda do Rio Passo Fundo e as relações interétnicas por
meio de conflitos com os colonizadores são fornecidos por José Pinto Ban-
deira (1851, p.386), ao relatar que, em 23 de julho de 1832, nas Missões em
São Pedro do Sul, o tropeiro José de Sá Sottomaior teve toda a sua comitiva
morta por guerreiros Kaingang, sendo os cadáveres encontrados, “menos o
do dito capitão, pelo que se vulgarizou a notícia de que os mesmos selvagens
o conservaram prisioneiro em suas moradas no sertão”.
Nesse sentido, temos, ainda, entre o final de 1845 e início de 1846, a
arriscada empreitada de um morador Guarapuavense, alferes Francisco Fer-
reira da Rocha Loures e, logo depois, também do seu irmão, João Cypriano
da Rocha Loures, de penetrar em territórios no extremo oeste do Rio Passo
Fundo, mais precisamente entre os Rios Turvo e Inhacorá, conhecidos como
Campo Novo. O viajante alemão, Maximiliano Beschoren, ao tratar desse
episódio, apresenta o seguinte relato:

Era preciso muita coragem para se instalar com apenas alguns compa-
nheiros e ficar sujeitos ao ataque dos índios, que consideravam toda
a região, matos e campos, como suas propriedades incontestáveis. Ao
primeiro colono, sucederam-se outros, vindos do Paraná, que se fixa-
ram à pequena distância, uns dos outros (Beschoren, 1989, p.42-43).

Este dois episódios, seja o da expedição do Capitão José de Sá Sotto-


maior, seja o de integrantes da comitiva dos irmãos Rocha Loures, que teriam

37
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

penetrado e se estabelecido no território, a historiografia mais tradicional e


os documentos costumavam propagandear a coragem e os feitos destes colo-
nizadores. Assumimos o ponto de vista que isto somente foi possível, porque
algumas parcialidades Kaingang, ao perceberem que, através de suas inves-
tidas guerreiras com os colonizadores, nem sempre estavam alcançando os
objetivos esperados, resolviam recorrer a estratégias de aliança com os não ín-
dios, a fim de obter objetos e contar com o auxílio dos não índios, em caso de
conflito com parcialidades Kaingang inimigas, bem como, não descartaram a
possibilidade de permanecer por algum tempo nos Aldeamentos, como os ca-
sos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio, que, a contar de 1845, passaram a
ser fundados pelos colonizadores, na porção norte do território da Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Esta questão envolvendo os Kaingang nos possibilita uma interlocução
com o enunciado por Almeida (2010), sobre o lugar que os indígenas sempre
ocuparam no palco das relações com os colonizadores.

Como lembrou Jonathan Hill, os grupos sociais humanos, mesmo re-


duzidos à escravidão e às piores condições, são capazes de reconstituir
significados, culturas, histórias e identidades. Os índios integrados
misturaram-se muito, não resta dúvida, entre si, e com outros grupos
étnicos e sociais. Porém, muitos chegaram ao século XIX ainda afir-
mando a identidade indígena e reivindicando direitos que a legislação
lhes concedia (Almeida, 2010, p.23-24).

Reforça o argumento do protagonismo indígena, a própria vinda da lide-


rança Kaingang Nicafim, que vivia com a parcialidade que representava, em
territórios da margem direita do Rio Uruguai e Pelotas, à Vila de Passo Fun-
do, no decorrer do mês de maio de 1846, acompanhado de mais de cinquenta
Kaingang. Entretanto, “todas as vezes que esses selvagens se apresentam são
muitos exigentes, principalmente de roupas, e quando sua exigência não é sa-
tisfeita, mostram-se assaz descontentes o que inspira aos habitantes próximos
aos lugares da apparição dos mesmos bem fundados receios de serem por
elles accommettidos” (Offício de 20/05/1846. In: RIHGRS, 1931, p.118).
Vale salientar que os próprios Kaingang, nas negociações, indicavam
os lugares nos Campos de Nonoai onde desejavam aldear-se; do contrário,

38
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
possivelmente, não iriam. Essa situação fica bastante evidente na Sessão da
Câmara Municipal de Cruz Alta, conforme segue:

O aldeamento, collocado no campo dos Toldos ou em algumas das


campinas mais proximas ao Uruguay, alêm das vantagens apontadas
e de outras que certamente não escapão a penetração de V. Ex., apre-
senta mais uma de não pequena ponderação e vem a ser que os ditos
campos são completamente devolutos, foram pedidos pelos selvagens,
con fica referido, para nelle se estabelecerem, peditorio, que na opi-
nião da camara, deve se attendido, e se V. Ex. o escolher para o fim
mencionado, evitar-se-hão questões que necessariamente não deixa-
rão de apparecer se o aldeamento fôr estabelecido em terras possuidas
e occupadas por particulares (Offício de 20/05/1846. In: RIHGRS,
1931, p.120).

No decorrer da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do


século XX, a situação não era diferente, pois várias parcialidades Kaingang
continuavam vivendo e defendendo seus tradicionais territórios, de projetos
colonizadores, que distribuíram seus espaços à jurisdição, principalmente,
dos municípios de Lagoa Vermelha, Passo Fundo, Palmeira das Missões e
Cruz Alta. Conforme Laroque (2015), dentre os projetos de efetivação dos in-
teresses da Sociedade Nacional Brasileira, aponta-se a construção da Estrada
de Ferro, São Paulo – Rio Grande, visando à ligação do Rio Grande do Sul
ao centro do país; as Companhias Colonizadoras, privada e pública, sendo
a segunda vinculada aos pressupostos positivistas do Partido Republicano
Rio-grandense, principalmente, através das medidas adotadas pela Diretoria
de Terra e Colonização, tendo à frente a atuação de Torres Gonçalves; e, por
fim, as Missões religiosas de confissão Luterana e dos Capuchinhos.
O contexto histórico da construção da ferrovia na região norte do Rio
Grande do Sul pode ser dividido em três momentos: o primeiro, de 1889 a
1903, período que coincide com o início do trabalho que contou com capitais
belgas; o segundo momento, de 1903 a 1906, quando o Governo Borges de
Medeiros, do PRR, encampa a ferrovia; e o terceiro momento, que se estende
de 1906 a 1920, vinculado a capitais administrados pelo Sindicato norte-ame-
ricano de Percival Farquhar, o qual funda a Brasil Railway Co. e, em 1906,

39
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

adquire para o grupo, “a Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande, detentora
da concessão que lhe permitia interligar todo o sul do Brasil, além de terras
no Paraná e em Santa Catarina, numa extensão de seis milhões de acres, para
fins de colonização” (Rückert, 1997, p.117-118).
O trecho da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande do Sul, que pene-
trava em territórios Kaingang, precisamente entre Cruz Alta e o rio Uruguai,
desde 1894, havia ficado sob a posse de acionistas belgas da Compagnie des
Chemins de Fer Sud-Oest Brésilien, a qual, mesmo explorando a madeira, a
erva-mate e a pecuária, atividades predominantes na região, tornou-se, a par-
tir de 1904, deficitária, o que acarretou o encampamento desta estrada pelo
Governo Borges de Medeiros.

Mapa 2: Territórios e movimentações Kaingang no século XX. Fonte: Elaboração do


autor.

Em última análise, acerca das construções deste complexo ferroviário na


porção norte do Rio Grande do Sul, temos o seguinte relato:

40
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

São approvados os estudos definitivos pelo dec. nº 670 de 14 de no-


vembro de1891, sendo inaugurado os trabalhos de construção no dia
4 de janeiro de 1892.
Por decreto nº 1882, de 7 de novembro de 1894, foram approvadas as
condições regulares de tarifas desta ferrovia, cuja cessionária então era
a companhia ‘du Sud-Oest Brésilien’.
Durante o anno de 1894, em 20 de novembro, foi inaugurado pro-
visoriamente o trafego numa extensão de 160.827 Kms., entre Santa
Maria e Cruz Alta. A 31 de maio de 1897, foi aberto ao trafego o tre-
cho de Cruz Alta a Pinheiro Marcado; e, a 15 de novembro do mesmo
anno, de Pinheiro Marcado ao Carásinho. Em 1910 ao rio Uruguay
(In: Silva, 1922, p.173).

Os Kaingang, apesar das alianças estabelecidas com a Sociedade Na-


cional, desde a segunda metade do século XIX, agora, frente a este novo em-
preendimento que se apresentava, mantiveram-se cautelosos, porque, nesses
primeiros anos da República, os dormentes da Estrada de Ferro São Paulo
– Rio Grande estendiam-se sobre os territórios Kaingang, localizados nas
Bacias Hidrográficas dos Rios Uruguai e Lageado.
Sempre que possível, os acampamentos dos trabalhadores da ferrovia
enfrentavam incursões guerreiras Kaingang, conforme podemos depreender
da correspondência do Sr. C. Lila da Silveira, chefe da Comissão de Terras de
Passo Fundo e Soledade, enviada ao Dr. Francisco D’Avila Silveira, diretor
da Comissão de Terras e Colonização, que narra:

Insisto no meu pedido sobre aumento de pessoal nas turmas que vão
trabalhar no Sertão do Uruguay, não so porque no caso de doenças
de algum trabalhador ficarão os chefes de turmas com pessoal insu-
fficiente para o serviço, como também porque estou informado por
pessôas que trabalham na ultima exploração da E. F. de Passo-Fundo
ao Uruguay, que precisa-se exercer grande vigilancia sobre os indios
mansos que em grande numero existem nos Mattos, e que no geral
vivem rodeando os acampamentos procurado o menor descuido para
saqueal-os [...] (Correspondência de 09/09/1903, AHRS).

41
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Com o passar do tempo, entretanto, os Kaingang provavelmente per-


ceberam que as incursões guerreiras aos acampamentos não estavam sendo
uma boa estratégia. Pelo fato de se tornarem cada vez mais guarnecidos para
efetivamente construir os trilhos da ferrovia, acabaram restabelecendo alian-
ças com os não índios e passaram a contribuir com serviços, segundo oficio
de 19/03/1910 (AHRS), do diretor Torres Gonçalves, enviada ao Secretário
de Estado. Esse ofício informava que “neste município (Passo Fundo) poucos
são os que vivem effectivamente nos respectivos toldos. De tempos a tempos
se reúnem para plantar as terras em que vivem, buscam trabalhos particulares
pelos quaes recebem um salario reduzido, [...] no serviço da estrada de ferro
organizam-se também em turmas que são igualmente exploradas brutalmen-
te pelas empreiteiras”.
As Companhias Colonizadoras que visavam à ocupação e à exploração
econômica da região centro-norte do Rio Grande do Sul são classificadas
em privadas e públicas. A colonização privada, durante as duas primeiras
décadas do Período Republicano, ocorreu oficialmente de 1897 a 1910, des-
tacando-se empresas como os Colonizadores Schmitt & Oppitz; Castro, Sil-
va & Cia; Colonizadora Matte; Jewish Colonization Association; Empresa
Schilling, Göelzer e Almeida; Firma Gomes, Shering, Sturn & Cia, entre
outras. No entanto, em Passo Fundo, por exemplo, “o comércio de terras
privadas é não só anterior à colonização oficial, mas também mais extenso”
(Rückert, 1997, p.121).
Nesse sentido, em 1890, é fundada a Colônia Ijuí; em 1891, a Colônia
Guarani; em 1897, a Colônia Alto Jacuhy; em 1898, a Colônia Saldanha Ma-
rinho; em 1899, a Colônia Dona Ernestina; em 1904, a Colônia Gerisa; em
1909, as colônias Coronel Selbach e Boa Esperança (Colorado); e, em 1910,
a Colônia Barra do Colorado. A respeito desta Frente Agrícola, que avança
sobre as terras do planalto envolvendo os colonos, temos:

Em 1890, com a vinda dos colonos europeus e das colônias velhas


inaugura-se nova fase na ocupação das terras locais: uma etapa que
trouxe grandes contingentes demográficos para as inúmeras colônias
oficiais e particulares que se criaram nas áreas de mato, valorizando as
terras e incrementando o comércio (Zarth, 1997, p.40).

42
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Com a edição da Lei estadual nº 29, de 05 de outubro de 1899, assinada
pelo presidente do estado Antônio Augusto Borges de Medeiros, segundo
Rückert (1997, p.100), houve um considerável aumento de pedidos de legi-
timações de posses de terras públicas. A partir do estudo do referido autor,
constata-se que os pedidos de legitimação de posse atingiram, inclusive, tra-
dicionais territórios Kaingang, localizados, principalmente, entre os Rios da
Várzea e Forquilha.
É importante frisar que a colonização deste espaço, pela ótica da Socie-
dade Nacional, significava um processo de destruição do território indígena e
a construção do território capitalista na sua dimensão agrária. Em contrapar-
tida, para os Kaingang, a interpretação atribuída a este território era outra,
isto é, relacionava-se “ao espaço dentro de sua própria lógica cultural, ou
seja, como um local para a sua permanência, bem como, deslocando-se para
as suas redondezas em busca de recursos para autosustentação, os Kaingang
não reconhecem as fronteiras estabelecidas pelos colonizadores” (Schwingel,
2001, p.94).
Nesse contexto, em nosso entender, os Kaingang e suas lideranças, se-
guindo as pautas culturais do grupo, adotaram alianças e arrendaram algu-
mas áreas de seus territórios aos não índios, até onde estava de acordo com os
seus interesses. Acreditamos nisso, porque, quando alguma coisa não ocorria
conforme o previsto no desenrolar das negociações, recorriam à guerra para
resolver as questões. Corrobora com a questão, o desentendimento entre al-
gumas parcialidades Kaingang e o arrendatário Antonio Pobre, em Nonoai,
segundo demonstra a narrativa do pastor luterano Bruno Stysinski, que este-
ve na região, em dezembro de 1900.

Quatro semanas antes de minha chegada a Nonohay, todos os quatro


Toldos estavam reunidos e armados pelo seguinte motivo:
Um brasileiro chamado Antonio Pobre se tinha estabelecido no ter-
ritorio dos indios com o consentimento do cacique, pelo preço com-
binado de 50$000 rs anuais de arrendamento. Como ele porem não
pagava o arrendamento mas ainda roubava dos índios o pouco gado
que possuiam e se tornava um senhor tiranico e absoluto contra os in-
dios, reuniram-se os indios do Votouro, Varzea, Serrinha e Nonohay
para expulsar o intruso. Como este foi protegido por alguns amigos,

43
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

e as autoridades não tinham conseguido apasiguar imediatamente os


indios, facilmente poderia se dado um conflito sangrento cujas con-
sequencias seriam imprevisiveis. Já os indios tinham cercado a casa de
Antonio Pobre e atirado nela com flexas e balas, quando felizmente a
Comissão mandada a Palmeira voltou trazendo o parecer justo e ener-
gico do Intendente, que mandou Antonio Pobre desocupar a casa
imediatamente, caso contrario a policia o abrigaria. Satisfeitos com
essa solução os índios levantaram o cerco da casa (Stysinski, 1902,
p.166).

A colonização pública, embora oficialmente tenha iniciado em 1910


com a demarcação das secções Sertão e Rio Bonito, deve ser entendida como
um projeto do Estado Rio-grandense de tendência positivista de conceder no-
vas terras ao capital, o qual coincide com a terceira fase da imigração (1890
a 1914). Esta fase, segundo Roche (1969, p.344-353), é denominada de “sal-
to para o planalto”, em decorrência do aumento populacional das Colônias
Velhas de ocupação alemã e italiana. Podemos ilustrá-lo com a fundação da
Colônia Erechim, em 1908, no município de Passo Fundo, onde o Estado
possuía uma área de 7000 hectares e, posteriormente, em 1915, entre os rios
Santa Rosa e Santo Cristo, a criação da Colônia Santa Rosa (Sponchiado,
2000).
Conforme Rückert (1997), o minifúndio ou pequena propriedade nesta
região constituiu um dos elementos fundamentais do programa do PRR, que,
em suas diretrizes, pelo menos em tese, desde a Constituição Castilhista de
14 de julho de 1891, pregava a diversificação econômica, o desenvolvimento
dos meios de transporte, a imigração espontânea e a incorporação do pro-
letariado à sociedade. Entretanto, em relação aos indígenas, a Constituição
Castilhista, semelhante à Federal, silenciou-se, o que, conforme Pezat (1997),
pode ser tomado como uma concessão feita aos “coronéis”, que dominavam
a política da região norte do estado e com quem os governantes do Partido
Republicano Rio-grandense mantinham um poder de barganha a fim de mo-
bilizar o eleitorado.
Fica evidente que a intenção do governo era concentrar os Kaingang em
espaços restritos para liberar o território para os novos mecanismos do pro-

44
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
jeto colonizador, conforme expresso no relatório enviado da intendência de
Palmeira das Missões ao Presidente do Estado do Rio Grande do Sul.

Devemos informar a V. Ex. que neste municipio ha vários aldeamen-


tos de indios, e destes ha e extinto primeiramente o do Pary, onde
estava aldeado toda a indiada com o Cacique Fongue, depois deste o
da Guarita, de onde essa indiada foi para o aldeamento de Nonoai, e
ultimamente existiam três aldeamentos de indios, o do Inhacorá, o da
Estiva e Campina que ficaram reduzidos a dois – Campina e Inhaco-
rá, ficando extinto o de Estiva (Relatório de 1890, AHRS).

Tratando ainda da ocupação na região norte do Rio Grande do Sul,


Zarth, no trabalho, “História agrária do planalto gaúcho – 1850/1920”,
constata o seguinte:

No final do século a pressão demográfica sobre as colônias velhas,


situadas nas proximidades de Porto Alegre e fundadas sob o sistema
de pequena propriedade, impulsionaram colonos excedentes para as
novas áreas disponíveis nas matas do planalto. Com esses agricultores,
somados aos novos imigrantes europeus e aos antigos agricultores já
instalados, o território rio-grandense foi totalmente ocupado de for-
ma efetiva. As áreas florestais do Alto Uruguai foram definitivamente
transformadas em zonas agrícolas. Os novos contingentes demográfi-
cos e a ferrovia, construída na década de 1890, deram um grande im-
pulso à tímida agricultura local, aproveitando-se da fertilidade natural
dos solos virgens (Zarth, 1997, p.29).

A contrapartida dos Kaingang e de suas lideranças ao avanço destes


colonos e posseiros sobre os tradicionais territórios indígenas, toda vez que
não viam seus interesses atendidos, seguindo a lógica Kaingang, consistia
em incursões guerreiras, conforme demonstrado na reportagem, em 1903, no
Jornal “A Federação”:

De Passo Fundo foi comunicado ao nosso distinto amigo general Fer-


mino de Paula que os bugres do Campo do Meio, em um assalto que

45
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

levaram a efeito no dia 12 do corrente, assassinaram dois cidadãos


residentes nessa ultima localidade, apreendendo os cadáveres.
Supondo resistência por parte dos silvícolas malfeitores, o delegado de
policia Luiz Vieira seguiu na madrugada do dia 13 para o Mato Cas-
telhano com uma escolta e, caindo sobre o grupo de criminosos, con-
seguiu efetivar a prisão de seis bugres (A Federação de 16/10/1903,
p.2).

Referente às relações conflitivas com os Kaingang, há uma carta do fa-


zendeiro Francisco Dias de Moraes, de 1907, enviada a Antonio Augusto
Borges de Medeiros, Presidente do Estado, com a seguinte reclamação:

Tem esta por fim levar ao conhecimento de V. S. o seguinte: Há mais


de dois anos que os moradores da ex-colonia Caseros e criadores resi-
dentes no Campo do Meio, 2º distrito de Passo Fundo, dos quais faço
parte são flagelados pelos indios pertencentes ao toldo da referida
ex-colonia no municipio de Lagoa Vermelha. É desolador o estado de
nossas propriedades, dos quais pagamos avultosos impostos; os ervais
e palmeiras completamente devastados, os prejuízos em criações não
tem conta, as plantações chegam a arrancar a própria semente que se
planta; não há o que chegue para satisfazer a voracidade desta praga;
os criadores da costa da serra ameaçados de serem assaltados em suas
casas, o que, já tem acontecido, por esta horda de ladrões que em nada
se empregam, vivendo exclusivamente do roubo e do saque. Punir eles
com as leis do país: impossivel, o bugre comete um crime, quem foi,
foi um bugre, como se chama, onde mora, ninguém sabe, e o crime
fica impune. Todos os nossos esforços perante intendentes munici-
pais tem sido baldados, e por isso, apesar de nada valer na ordem das
coisas, tomei a liberdade de me dirigir a V.S. pedindo providencias
[...]. As famílias destes lugares esperam confiantes a vossa benéfica e
valiosa proteção no sentido de garantir o sossego em seus lares e direi-
tos de propriedade (Carta de 14/09/1907, ABM/IHGRS).

46
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Frente a esta situação, percebe-se que, embora a Secretaria de Obras
Públicas tenha criado o Serviço de Proteção aos Nacionais2, onde Torres
Gonçalves, na Diretoria de Terras e Colonização, desempenhava uma forte
militância, ao menos nos primeiros anos da República, afastando os peque-
nos posseiros, agregados, etc de muitos territórios, não consegue oferecer a
segurança esperada aos colonizadores e também não resolve a “questão in-
dígena”.
O engenheiro Carlos Torres Gonçalves, personalidade que desempe-
nhou um papel fundamental na Diretoria de Terras e Colonização no Rio
Grande do Sul por um período de vinte anos, começou suas atividades junto
ao PRR, em 09 de junho de 1899, quando foi nomeado por Antônio Augusto
Borges de Medeiros, ao cargo de 2º condutor da até então Secretaria de Obras
Públicas. Naquele período, de acordo com Breno Antônio Sponchiado (2000,
p. 32), “a Diretoria de Obras Públicas constituía um reduto de positivistas
religiosos, consequentemente, o local em que se fazia sentir mais claramente
a influência da ortodoxia positivista dentro do projeto político implementado
pelo PRR”.
Posteriormente, através do decreto nº 1.018, de 05 de janeiro de 1907, a
Secretaria dos Negócios de Obras Públicas sofreu uma reorganização. Suas
atribuições ficaram distribuídas entre quatro diretorias, denominadas de Di-
retoria Central; Diretoria de Obras Públicas; Diretoria de Terras; Coloniza-
ção e Diretoria de Viação.
A Diretoria de Terras e Colonização ficou com todos os serviços que
pertenciam à extinta Diretoria de Terras Públicas. Como o engenheiro Ves-
passiano Rodrigues Corrêa, designado inicialmente para o cargo, saiu em
licença e depois faleceu, Torres Gonçalves, confrade de Rondon na Igreja
Positivista Brasileira, que vinha desempenhando a função interinamente na
diretoria desde 1908, foi o nome cogitado. Gonçalves, após consultar os su-
periores no Rio de Janeiro, aceitou assumir como titular, a Diretoria de Ter-
ras e Colonização do Estado. No desempenho dessa função, antecipou-se ao
Governo Federal no encaminhamento de uma política indigenista para o Rio

Os nacionais devem ser entendidos como colonos não imigrantes ou então os filhos destes. Isto é,
2 

os caboclos os quais foram os verdadeiros desbravadores das novas fronteiras do planalto gaúcho
e “pioneiros de diversos povoados, germes de futuras cidades: Palmeira das Missões, Santa Rosa,
Campo Novo, Erechim, Seberi” e não o branco-europeu, conforme é demonstrado muitas vezes
pela prática historiográfica” (Sponchiado, 2000, p.151, 155).

47
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Grande do Sul, que estivesse em sintonia com os pressupostos positivistas.


Se, por um lado, a Sociedade Rio-grandense, através das Companhias
Colonizadoras e do Projeto Castilhista-Borgista, conforme observamos, fez
a sua interpretação dos acontecimentos, por outro lado, o povo Kaingang
também teve a sua própria versão e protagonismo em relação a alguns dos
episódios, conforme demonstrado na documentação.
Nesse sentido, os Kaingang e as suas lideranças, visando resguardar ao
menos parte dos seus tradicionais territórios do empreendimento coloniza-
dor, já que as suas incursões guerreiras não estavam sendo suficientes para
contê-los, semelhante ao que já havia sido posto em ação, em meados do
século XIX, neste novo cenário, também resolvem estabelecer alianças com
os integrantes da Secretaria de Obras Públicas.
Portanto, a estratégia Kaingang a partir de 1908 coincide com o mo-
mento em que Carlos Torres Gonçalves, à frente da Diretoria de Terras e
Colonização, procurava viabilizar uma política oficial visando à demarcação
das “terras indígenas”.

Mapa 3: Toldos Indígenas no Rio Grande do Sul. Fonte: Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul

48
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Ou seja, se para a Sociedade Rio-grandense “o ano de 1908 tornou-se
um divisor de águas no relacionamento do projeto político do PRR com as
populações indígenas”, conforme afirma Pezat (1997, p.284), para os Kain-
gang foi um momento propício para atuações protagonistas para requerer o
que era do seu interesse, a partir de estratégias que, desde a segunda metade
do século XIX, já haviam sido postas em prática nas relações com a socieda-
de nacional brasileira.

Redes de atuação e protagonismo Kaingang em territórios


da margem direita da Bacia Hidrográfica do Rio
Passo Fundo

Na Província do Rio Grande do Sul, o governo, aproveitando-se da pas-


sagem dos jesuítas espanhóis pelo sul do Brasil, recorreu, a partir de 1845, ao
Projeto de Catequese Kaingang. Entretanto, para a mentalidade da época, a
“catequese” e a “civilização” dos indígenas significavam a sua redução em
aldeamentos.

[...] O objetivo real era fixar os índios num lugar e deste modo evitar a
sua livre movimentação pelos campos já cobiçados pelos colonos. Ini-
cialmente os índios eram conquistados com presentes de ferramentas,
roupas e até alimentos, criando-se uma dependência que logo virou
crônica nos índios e insuportável para os brancos (Melià, 1985, p.177).

O padre Antônio de Almeida Leite Penteado é quem, inicialmente, se


oferece para levar as primeiras luzes do Cristianismo aos Kaingang nas ime-
diações de Passo Fundo. Posteriormente, sob o comando do superior distrital
Pe. Bernardo Parés, estabeleceram-se em Guarita, os jesuítas Aloysio Cots e
Ignacio Gurri; em Nonoai, Luís Santiago Villarrubia e Juliano Solanellas; e
no Campo do Meio, os padres Pedro Saderra e Miguel Cabeza.

A catequese dos Kaingáng foi possivelmente uma das tarefas mais di-
fíceis dos padres espanhóis em sua passagem pelo Sul do Brasil. Reve-
lava-se ela, outrossim, tão árdua, que quase ninguém queria abraçá-la.

49
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Além disso queriam aproveitar os políticos cínicos do Rio Grande


do Sul do espírito de sacrifício dos missionários em proveito de seus
próprios fins excusos. Desejavam os padres espanhóis, portadores da
mensagem cristã, envolta num Cristianismo Hispânico, que os Kain-
gáng dela viessem a participar [...] (Azevedo, 1984, p. 120-121).

De concreto, o governo, por coação e/ou medida preventiva, reduz o


espaço vital Kaingang e, para tirá-los dos seus territórios, iniciou, a partir de
1846, a Política Oficial dos Aldeamentos, em áreas como Guarita, Nonoai e
Campo do Meio, nas quais encontramos muitas vezes Pã’í mbâng (caciques
maiores) e seus Pã’í (chefes menores), como, por exemplo, as lideranças, Fon-
gue, Votouro, Nonohay, Condá, Nicafim, Braga, Doble, Nicué, entre muitos outros
que, de acordo com os interesses das parcialidades que representavam, nego-
ciavam ou não a estadia de suas parcialidades nos Aldeamentos.
Corroborando com a questão dos aldeamentos, recorremos, como apor-
te analítico, ao estudo de Almeida (2013), que tratou as identidades e a cul-
tura dos indígenas nas aldeias coloniais. Nesse sentido, a posição da pesqui-
sadora:

São razões suficientes para se acreditar que se aldear podia significar


para os índios a opção pelo mal menor diante da opressão e violência
da conquista e da colonização. Ao se aldearem, os índios se tornavam
súditos cristãos e buscavam de adaptar a um novo espaço físico e so-
cial, onde aprendiam novas regras comportamentos que lhes permi-
tiam novas estratégias de luta e sobrevivência no mundo colonial em
formação (Almeida, 2013, p. 114-115).

Pã’í mbâng, chamado pelo nome de Votouro, Votoro, Voltouro ou Capitão


Jacob, era uma prestigiada liderança Kaingang, que vivia com a parcialidade
que representava em territórios localizados à margem direita do Rio Passo
Fundo. Segundo relato do Pe. Julian Solanellas que, por volta de 1849, per-
correu o territórios temos:

Viejo Vuotoro, cacique de una partida de salvajes que tiene su toldo


á cinco leguas hacia levante, en una campiña rodeada de inmensos

50
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

bosques, al outro lado del río Passo-Fundo. Este indio es de alta esta-
tura, delgado, muy venerable por sus canas y por sus años, que pasan
seguramente de un siglo, mas sobre todo por sus maneras afables y
patriarcales que traen la idea de un Isaac ó de un Jacob (Pérez, 1901,
p. 567).

Segundo o referido missionário, esta liderança indígena, em decorrência


da idade avançada e de sua dificuldade para andar sozinho ou ficar sem o
auxílio de alguém, não teria muito tempo de vida, tendo em vista que “casi
nunca se mueve de casa y está siempre echado, vestido como el Señor le crió,
solo se cubre un poco, nunca lo dejan solo, siempre hay quien vigile por él,
y eso he observado docenas de veces (Correspondência de 26/02/1851. In:
Pérez, 1901, p.554). Entretanto, Pã’í mbâng somente veio a falecer depois que
os jesuítas deixaram o trabalho nos Aldeamentos, mais precisamente entre
outubro de 1853 e agosto de 1854, porque, no Relatório do Presidente Can-
sansão de Sinimbú à Assembléia Provincial, em 06 de outubro de 1853, a
liderança em questão ainda é mencionada. Porém, na Correspondência de
18 de agosto de 1854, enviada ao Presidente da Província pelo diretor do
Aldeamento de Nonoai José Joaquim de Andrade Neves, Cacique Votouro já
aparece como finado.
Em 1849, quando os padres chegaram ao território, o Pã’í mbâng Votouro
vivia juntamente com sua parcialidade (MAPA 2) a algumas léguas do Al-
deamento de Nonoai (Correspondência de 25/04/1849. In: Pérez, 1901, p.
493).

51
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Mapa 4: Territórios e movimentações Kaingang no século XIX. Fonte: Elaboração


do autor.

Entretanto, alguns meses depois, em decorrência de negociações estabe-


lecidas com os colonizadores, parte deste grupo de Kaingang mudou-se para
o Aldeamento e passou a fazer roças, fazendo uso de seus próprios porretes,
porque as ferramentas prometidas ainda não tinham chegado (Correspon-
dência de 29/10/1849, AHRS).
Em vista do atraso dessas ferramentas e de um destacamento que pro-
tegesse o Aldeamento como havia sido solicitado ao Governo Provincial,
é provável que a parcialidade de Votouro tivesse deixado o local. Acredita-
mos nesta possibilidade, porque a Correspondência de 08 de abril de 1850,
do Pe. Parés ao Presidente da Província informou que esta parcialidade de
Kaingang estaria retornando a Nonoai na esperança de que os policiais que

52
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
ficaram de substituir os Destacamentos Pedestres (expedições armadas) já
estivessem a caminho. Ao longo dessas negociações e de espera do que havia
sido prometido, as parcialidades de Votouro, possivelmente, circulavam entre
seu toldo e o Aldeamento, porque as Correspondências do Pe. Bernardo Pa-
rés, de 08/03/1850, de 08/04/1850 e de 14/01/1851, ora informam que os
indígenas estão chegando, ora que estão saindo de Nonoai.
É possível que os Pã’í do grupo do Pã’í mbâng Votouro também tivessem
ido a Porto Alegre, nos primeiros meses de 1851, para participarem com as
outras lideranças Kaingang da região, das negociações com o Presidente da
Província. Quanto à época de retorno a Nonoai, certamente, deve ter coin-
cidido com o período do Ritual do Kiki3, porque, passados quatro ou cinco
dias dessa volta, foi organizado um evento, que contou com a participação
de muitas parcialidades de indígenas Kaingang daquele território, conforme
relata Julian de Solanellas ao Padre Superior, Mariano Berdugo:

Para este tan distinguido dia, que para ellos es el más glorioso del
mundo, hicieron cántaros de su aguardiente, que conservaban en un
grande tronco hueco, que sirve de tinaja, y de cuándo en cuándo
mientras están bailando, un cacique ó dos, con un pedazo de calabaza
seca, que sirve de vaso, les va dando de beber á todos. Vi cuando lle-
garon los bugres convidados, que ya lo anunciaba su música, la cual
consiste en flautas de caña, que tocan con la nariz, y cuernos de buey,
que ellos se arreglan, y que todos marchaban formados, con su gran
Capitán al frente. ¡ Qué bellos mozos! ¡ Qué buenos granaderos! Uno
de los Caciques más civilizado les salió á recibir. Ya ve V. R. cómo tam-
bién á los infieles les gustan las etiquetas y cumplimientos, Comenzó
la danza á las tres de la tarde y acabó á las doce de la noche. Cierta-
mente una vez en la vida es cosa digna de ver á estos indios, adornadas

O Kiki também é chamado de “Festa dos Mortos” e acontecia geralmente entre os meses de abril
3 

e junho, porque era a época de maior abundância de alimentos como o pinhão, milho verde, mel
e também as caças, os quais possibilitavam uma melhor receptividade aos parentes que vinham de
outras aldeias. Todos os homens, mulheres e crianças participam, pois era o momento em que os
mortos devolviam seus nomes à comunidade e depois os espíritos iam embora deste mundo, per-
mitindo a nominação das crianças. Nesse ritual, também definia-se a metade a que cada Kaingang
deveria pertencer durante sua vida (Cemitille, 1882; Baldus 1937; Nimuendajú, 1993 e Veiga, 2006).
É possível que este rito servisse para os Kaingang marcar um tempo mítico primordial, tempo do
eterno retorno segundo estudos de Eliade (1973) para sociedades tradicionais.

53
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

sus cabezas con plumas de papagayo, y á sus mujeres, brincar y bailar


con mucho recato y honestidad, y cómo llevan el compás sus maestros
de capilla; las muchas hogueras encendidas, que se ve como si fuese de
día, el gran Cacique que les pone la bebida á la boca; aquella música
tan patética y tétrica, aquellas voces propias de salvajes, todo junto
forma una armonía, que al que no la ha oido, no le disgusta, pero al
que la oye todos los días, fastidiaría mucho, si el amor de Dios no la
dulcificara (Correspondência de 26/02/1851. In: Pérez, 1901, p. 550).

Na sequência dessa narrativa, o Pe. Solanellas informa, ainda, que,


como o “baile” ficava a uns sessenta passos da capela, resolveu naquela noite
omitir o terço. Passadas, porém, algumas horas, vieram até ele alguns meni-
nos Kaingang para pedir que fosse “tocar o rosário”. Bastante comovido com
o pedido, o Pe Solanellas dirigiu-se com eles até a capela e, logo depois de
tocarem o sino, “todos los bugriños inmediatamente abandonaron el baile, y
lo mismo que las moscas á un panal de miel, acudieron todos á la capilla sin
fallar uno” (Correspondência de 26/02/1851. In: Pérez, 1901, p. 550). Con-
cluindo o terço, o padre agradeceu a presença de todos e distribuiu-lhes como
prêmio um pouco de doce. Ficaram muito felizes e voltaram novamente a
bailar.
Analisando o desenrolar desse evento, é possível perceber as diferen-
tes concepções de mundo existentes em cada uma das culturas em questão,
considerando-se que, no entender de Sahlins (1990), culturas diferentes pro-
duzem historicidades diferentes. Nesse sentido, enquanto para os Kaingang,
esse ritual representava a mais forte expressão religiosa-cultural do seu povo,
na interpretação dos padres, não passava de uma comemoração, possivel-
mente, devido às negociações com o Presidente da Província, até porque, na
mentalidade do clero da época, também perdurava a antiga “mirada” ociden-
tal de que muitos nativos da América do Sul eram “salvajes, sin fe, sin ley, sin
rey” (Clastres, 1981, p. 112).
Outro aspecto a ressaltar é que, se para o padre a solicitação da reza do
terço, a interrupção do “baile” e a celebração católica significaram algum tipo
de adesão nativa ao Deus Cristão, na concepção Kaingang representaram,
provavelmente, o indicativo de uma estrutura prescritiva em que, segundo
Sahlins (1990), era mantida a projeção da ordem existente, mas reelaborada

54
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
a nova situação através do mito4. Em vista disso, então, podemos dizer que,
no caso Kaingang, elementos como a comensalidade5, o canto, entre outros,
estiveram presentes no entrelaçamento dessas duas historicidades.
No que tange à religião, temos também a destacar o batizado do Pã’í
mbâng Votouro, realizado pelo Pe. Solanellas, depois de se aventurar em um
arriscado percurso até o outro lado do Rio Passo Fundo, atravessando cam-
pos, matas, desfiladeiros e córregos d’água. No diário do Pe. Solanellas, há
o seguinte relato:

Dios quiso, llegué ántes de entrar el sol al término de mi viaje: entré


en una pequeña y hermosa campiña rodeada de bosques, y en ella
cuatro ó cinco ranchos de bugres, en uno de los cuales encontré vivo
al salvaje por quien había andado tan escabroso camino: grand con-
suelo inundó mi corazón viéndome ya á su lado. Ofrecíle una camisa
que llevaba y yo mismo se la puse, pues estaba como el Señor lo crió,
sin más que un harapo en la cintura, y le di á comer de lo que yo
había llevado para mí: luégo le declaré el objeto de mi visita, que era
abrire las puertas del cielo con el bautismo: mostróse muy contento
y agradecido, y me pidió que lo bautizase luégo, como lo hice (Diário
de 04/12/1851. In: Pérez, 1901, p. 568-569).

Se esse episódio representou algum tipo de aceitação da fé cristã na


visão do padre, para o Pã’í mbâng Votouro, segundo nosso ponto de vista,
esteve muito mais relacionado a algum tipo de aliança semelhante à que foi
reordenada quando ocorreram o Ritual do Kiki e a Reza do Terço. Acredita-

4 
No mito de origem Kaingang, narrado por Telemaco Borba (1908), é possível perceber que os
ancestrais fundadores “Cayurucré”, “Camé” e “Caingangue” estabeleceram uma aliança primordial
na qual elementos novos também tiveram que ser reelaborados para darem conta da realidade que
se criou.
5 
A prática da comensalidade para os Kaingang fazia parte de uma ritualização, realizada toda vez
que recebiam visitas de outras parcialidades, ou então, quando estabeleciam alianças representando
dessa forma um canal de sociabilidade. Esclarecem isso dois relatos: um é de Borba (1908, p.14)
dizendo que “quando alguém chega a elles, a primeira coisa que fazem é perguntar se tem fome, nos
dias de abundância nem isso fazem sem nada dizer, vão pondo de ante da pessoa a comida dizen-
do – coma – (acó); nunca negam a comida que se lhes pede, do pouco que teem comem juntos”. O
outro relato é de Königswald (1908, p. 46) que ao tratar do assunto informa que os Kaingang “consi-
deram a hospitalidade uma questão de respeito e sempre estão dispostos a entregar o melhor do que
possuem aos desconhecidos e sob qualquer circunstância dividir com eles os últimos alimentos”.

55
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

mos nesta possibilidade, porque, antes desse evento, a referida liderança este-
ve várias vezes no Aldeamento de Nonoai, mas nunca aceitou ser batizado.
Outra liderança, conforme já referimos, que também protagonizou ações
envolvendo conflitos e alianças, é Pã’í mbâng Pedro Nicafim. Vale salientar que
o nome deste Kaingang é o que apresenta o maior número de variações nas
fontes que manuseamos, uma vez que também aparece grafado como Nicafi,
Nicofim, Nicafhim, Neiafé, Nicofé, Nicasi, Nicaphym, entre outros. Essa variação
de nomes evidencia duas possibilidades: a primeira, por falta de uma conven-
ção na grafia do nome dessa liderança da parte dos padres, diretores, etc; a
segunda é a de que a parcialidade indígena que representava ter-lhe-ia atribuí-
do mais de um “jiji há” ou “jiji Korég”, devido aos papéis sociais e cerimoniais
que desenvolvia no grupo.
As primeiras notícias a seu respeito são fornecidas por Mabilde (1983,
p. 162-163), que relata que ele “vivia com suas tribos de coroados à margem
direita do Rio Pelotas, entre esse e o rio Canoas. Os três caciques – Nonoai,
Cundá e Nicofé – viviam sem hostilizar-se” (MAPA 2). Talvez, porque os
contatos mais efetivos com a Frente de Expansão na região ocorreram após
o final da década de 1830.
O Pã’í mbâng Nicafim, que viveu até aproximadamente meados de ja-
neiro de 1856, desempenhou um papel de grande relevância na parcialidade
Kaingang que representava. Após deslocar-se para os campos de Nonoai e de
Erechim, foi muito temido pelos colonizadores e pelas parcialidades Kain-
gang inimigas que viviam no território. O Pe. Julian Solanellas, que conviveu
com ele durante algum tempo no Aldeamento de Nonoai, relata que Nica-
fim aparentava “edad 40 años, robusto, corpulento, alto, valiente guerrero,
de modo que cuando va vestido de uniforme, parece un general francés que
viene de la conquista de Argel” (Correspondência de 26/02/1851. In: Pérez,
1901, p. 552).
Reforça o argumento do protagonismo indígena, a própria vinda de Ni-
cafim, que vivia com a parcialidade que representava em territórios da mar-
gem direita do Rio Uruguai e Pelotas, à Vila de Passo Fundo, no decorrer
do mês de maio de 1846, acompanhado de mais de cinquenta Kaingang.
Entretanto, “todas as vezes que esses selvagens se apresentam são muitos
exigentes, principalmente de roupas, e quando sua exigencia não é satisfeita,
mostram-se assaz descontentes o que inspira aos habitantes proximos aos

56
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
lugares da apparição dos mesmos bem fundados receios de serem por elles
accommettidos” (Offício de 20/05/1846. In: RIHGRS, 1931, p.118).
É possível que a parcialidade desta liderança, inicialmente, tenha ado-
tado a política de negociações com os não índios e, por isso, teria aceitado
deslocar-se para os Campos Erechim, por volta de 1847. No relatório de Ma-
noel Antonio Galvão, Presidente da Província relativo a este período, consta
que “não havendo senão carne, e essa escaça, voltão aos seus toldos, dous
dos quaes, afora o do Cacique Nicofé, estão na proximidade de Nonoahy,
um a distancia de seis, outro a de quatorze legoas” (Relatório de 05/10/1847.
AHRS).
Contudo, nos parece que Pã’í mbâng Nicafim, desde os primeiros conta-
tos com os colonizadores, não ficou satisfeito com as negociações, motivo
pelo qual passou a reagir de maneira diferenciada. Ou seja, adotando a estra-
tégia de manter-se relativamente afastado dos Campos de Nonoai. Pelo que
se depreende da Correspondência de 10 de maio de 1848, do Diretor Geral
dos Aldeamentos e de Jacques (1912), o líder percorria de tempo em tempo
territórios das Bacias Hidrográficas do rio Taquari, de áreas em Vacaria e no
Mato Castelhano e Português, em visita a parentes. Há indicativos de que as
parcialidades lideradas por Nicafim romperam aliança com as parcialidades
de Pã’í Condá, porque este mantinha as negociações com os colonizadores.
Condá, no entanto, tentando negociar a paz, ofereceu uma de suas filhas em
casamento a Nicafim, o que, num primeiro momento, não resolveu o proble-
ma.
A respeito disso, recorrendo a Tomasino (1995), há a informação de que,
se o rapto de mulheres para os Kaingang em particular significava uma de-
claração de guerra, o contrário representava a construção da paz. Ou, então,
que as negociações envolvendo casamentos, nas sociedades igualitárias em
geral, visavam à criação de alianças e à construção da paz entre os grupos,
conforme pontua Elman Sevice:

En las sociedades primitivas, el matrimonio cumple también estos


fines, pero únicamente como un subproducto de la creación de alian-
ças, básica, obvia, planificada, políticamente projectada, mediante los
intercanbios de contrayentes. Por supuesto, el matrimonio es el me-

57
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

dio en que se originan los parientes por afinidad y, en la generación


siguinte, los nuevos parientes consaguíneos (Service, 1984, p. 80).

A parcialidade de Nicafim, segundo o Pe. Bernardo Parés, era “mucha


y más salvaje, y andan esparcidos por todas partes y principalmente por el
Campo do Meio y Vacaría, sin haber no obstante dejado de incomodar á los
pasajeros y de asaltar á sus tiempos á alguna casa” e não descartava a possibi-
lidade de, num momento oportuno, também guerrear com o grupo de Condá
(Correspondência de 25/04/1849. In: Pérez, 1901, p. 494).
Alguns meses depois, como o grupo do Pã’í mbâng Nicafim se negava a
fazer roças nos territórios de jurisdição do Aldeamento de Nonoai, teve os
mantimentos suspensos pelos jesuítas do Aldeamento. Por causa disso, Nica-
fim, juntamente com a mulher Leocadia, seus filhos e alguns integrantes de
sua parcialidade mudaram-se para Palmas, alegando que, dentro de dois me-
ses, voltaria para fazer as roças, o que parece ter deixado o Pe. Parés bastante
satisfeito, porque, na correspondência ao Presidente da Província, agradece
ao “querido Deos qe la fique, pois hé o peor de toda a Bugrada, e de dema-
siada influencia entre elles para o mal. Na sua ausência hé facil governar aos
outros” (Correspondência de 29/10/1849, AHRS).
Em meados de 1850, o Pã’í mbâng Nicafim já estava de volta ao território,
porque o relatório de 06 de março daquele ano, apresentado pelo Conselheiro
Jose Antonio Pimenta Bueno, informa que o grupo deste cacique compu-
nha-se de quarenta e cinco indivíduos. Logo em seguida, a parcialidade de
Nicafim entrou em conflito com as parcialidades das lideranças Braga e Doble,
certamente por penetrar sem a devida permissão em territórios destes Kain-
gang. A contenda com Doble, pelo que se pode inferir da Correspondência de
26 de fevereiro de 1851 do Pe. Solanellas, parecia ser bastante antiga, uma
vez que este era irmão do pai de Nicafim e viviam todos juntos. Porém, com
a morte do pai de Nicafim, houve uma dissidência entre essas lideranças, e
Doble migrou para outro território.
Quanto à atuação conflitosa da parcialidade de Nicafim contra os co-
lonizadores, segundo o Pe. Santiago Villarrubia, também era mantida, uma
vez que essa liderança “cobró alguna celebridad en Vacaría y en Cima la
Sierra, por sus atrevidos asaltos y homicidios, y particularmente con la cruel
y traicionera muerte de los diez ó doce serranos, de quienes ya sabe V. R. la
dolorosa historia” (Correspondência de 1º/06/1850. In: Pérez, 1901, p. 517).

58
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Outra situação que evidencia as relações de conflitos da parcialidade de
Nicafim, principalmente, contra as parcialidades de indígenas Kaingang que
mantinham aliança com os colonizadores, é também narrada pelo Pe. Villar-
rubia, nos seguintes termos:

Por celos de una mujer, algunos individuos del capitán Canhafé in-
sultaron y convidaron á pelear consigo al capitán Pedro Nicasi: este,
como más veterano y más valiente, dicen que no hacía caso de ellos;
pero instado, y viendo que los adversarios ya le esperaban, ó le que-
rían acometer armados, resuelve responder al desafío, y se encamina
hacia ellos armado de trabuco, con solos dos hermanos suyos igual-
mente valientes: el ataque era indispensable, y estaban ya junto al
lugar de la lucha, cuando outro indio manso de los de mayor influjo
logró suspender la acción, que hubiera sido fatal, é hizo retroceder á
Nicasi y hermanos, lo que puede atribuírse á una gracia del Espíritu
Santo, recurriendo en aquel día la segunda fiesta de Pentecostés. En
esto paraban las cosas, cuando llegó á nuestros oídos la noticia del
suceso, que no sé por cuál insensatez nos querían tener oculto: fui al
intante para examinar el caso, y apaciguar las partes; llegado á la casa
de Nicasi, me pareció aquello una pequeña plaza de armas: arcos,
flechas, lanzas, cuchillos y alguna arma de fuego eran las insignias
de guerra puestas en vista y prontas para recibir cualquier asalto. El
capitán Pedro con parte de su gente, hombres y mujeres armados con
porretes, estaban de guardia. El aspecto era marcial y terrible: ver á
unos hombres con caras amotinadas, todos desnudos menos en la cin-
tura, y en los ademanes de querer pelear, le aseguro que no era la vista
más linda del mundo. Me dirigí luégo á Pedro, y con la confianza que
acostumbro tratarle, le pregunté qué novedad era aquella; le pedí su
trabuco, que estaba muy bien cargado, y lo exhorté con modos blan-
dos á la paz: él, dócil á mis instancias, cedió luégo; mandó recoger las
armas, despidió su gente, y fue á tomar sus vestidos acostumbrados,
rogándome alcanzase outro tanto de sus adversarios. Entretanto el P.
Solanellas pasó al campo de los otros, que encontró alrededor de un
gran fuego, y con las mismas disposiciones de guerra; pero, á las persu-
asiones del Padre, ellos también cedieron, y prometieron conservarse

59
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

en paz. Si no se apagaba luégo este incendio, los resultados hubieron


sido funestos; hubiera habido muchas víctimas, y tal vez una dispersi-
ón total del aldeamento (Correspondência de 1º/06/1850. In: Pérez,
1901, p. 522-523).

As correspondências de 14/01/1851, 29/02/1851 e 28/12/1852, que se


encontram no AHRS, evidenciam a perspicácia do Pã’í mbâng Pedro Nicafim
na atuação e no protagonismo, pois, ao mesmo tempo em que reagia ao avan-
ço da sociedade nacional com investidas guerreiras contra os colonizadores e
as parcialidades indígenas colaboracionistas, mantinha uma parte do grupo
nos Campos Erechim, enquanto outra parte estabelecia-se, de tempo em tem-
po, no Aldeamento de Nonoai, possivelmente, para confundir os colonizado-
res e parcialidades de Kaingang inimigas.
Acreditamos que, em alguma dessas estadas em Nonoai, tenha restabe-
lecido a antiga aliança com a parcialidade dos Kaingang de Condá, uma vez
que a Correspondência do Pe. Parés, de 14 de janeiro de 185, informa que as
parcialidades dessas duas lideranças reunidas totalizavam aproximadamente
cento e cinquenta pessoas. Esses arranjos internos das lideranças, praticados
em nome das parcialidades que representavam, eram bastante frequentes nas
sociedades originárias.

[...] os homens de tribo vivem em agrupamentos e comunidades de


parentesco dentro dos quais a briga é visualmente suprimida, e são fa-
vorecidos também por instrituições econômicas, rituais e sociais que
conduzem à boa ordem. Falar de Guerra, então, é encobrir através
de análises tendências normalmente latentes pelas imposições do sis-
tema cultural. A anarquia primitiva não é a aparência das coisas. É o
inconsciente do sistema (Sahlins, 1970, p. 18).

Outras informações que reforçam essa hipótese é a investida guerreira


realizado a mando de Nicafim à parcialidade de Doble, que, após muita nego-
ciação, decidiu, por volta de outubro de 1854, deslocar-se para o Aldeamento
de Nonoai. Frente a esse episódio, as pretensões do Governo Provincial de
reunir todos os Kaingang em Nonoai declinou, porque, diante do conflito
com a parcialidade de Nicafim, Doble mudou de idéia e retornou com a par-

60
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
cialidade de Kaingang que liderava para os Campos de Vacaria (Relatório de
02/01/1854).
Em 1855, mesmo depois que o Pe. Antonio de Almeida Leite Penteado
assumiu a direção do Aldeamento de Nonoai, a parcialidade do Pã’í mbâng
Nicafim continuava seu protagonismo por meio de incursões guerreiras con-
tra os colonizadores do território, como, também, negavam-se a aldear-se,
motivo pelo qual eram bastante temidos (Correspondência de 04/07/1855,
AHRS). Frente a essas atitudes que Nicafim adotou como forma de reação
aos colonizadores não índios, transcorreu o evento de 05 de dezembro de
1855, na Fazenda Três Serros, relatado pelo Conselheiro Barão de Muritiba:

Não estavam ainda esquecidos os assassinatos de que forão victimas


em julho, Joaquim Macedo e outras pessoas de sua familia, assim
como o indio Luiz Portella, que concorreu com sua tribu para cap-
tura dos matadores daquelles infelizes, quando em dias de Dezembro
alguns indios das tribus de Manoel Grande e Pedro Nicafim assassi-
narão aleivosa e barbaramente a Clementino dos Santos Pacheco, um
sobrinho, um filho, o Capitão e um filho deste, e mais um escravo
(...). Antes do regresso do director geral fui informado por pessoas
fidedignas, que com effeito esses desgraçados sucessos nascerão simul-
taneamente de manejos occultos, cujos autores ainda não são bem
conhecidos, e do desgosto que aos indigenas cauzava a administração
do padre Penteado, sucessor do honrado ancião José Joaquim de Oli-
veira, sendo certo que o dito padre não reside em Nonohay, e raris-
simas vezes ali apparecia, deixando portanto a Aldeia sem direcção,
e os indios entregue ao ocio, e alheios á todas as praticas e doutrinas
religiosas (Relatório de 28/04/1856, p. 26-27).

No decorrer de 1856, a maioria dos Kaingang envolvidos nesta incursão


guerreira foram perseguidos e presos; Nicafim e mais alguns foram mortos; os
demais conseguiram fugir. Por causa destes fatos, algumas lideranças, como
foi o caso do Pã’í Condá, reorganizaram suas alianças internas e externas e a
situação no território não foi mais a mesma. Ítala Becker, ao tratar a instabi-
lidade que se criou em território de jurisdição do Aldeamento de Nonoai em
decorrência desses eventos, sintetiza muito bem a questão.

61
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Nessa área interna se agrava a situação entre os Caciques Pedro Nico-


fé, Manoel Grande, Fongue, Antônio Prudente e Victoriano Cundá.
Tudo se inicia com uma investida dos grupos de Nicofé e Manoel
Grande contra uma fazenda da área, em dezembro de 1855. Os gru-
pos são perseguidos pela polícia, com o auxílio de Fongue e Antônio
Prudente. Com esse acontecimento as hostilidades aumentam entre
os próprios índios e os moradores brancos. A contenda somente pa-
rece amainar com a morte de Nicofé e vários índios, bem como, pela
prisão de Manoel Grande e outros. Acontece que Victorino Cundá,
o “Bugreiro”, é identificado como parente de Nicofé e Manoel Gran-
de; abandona o aldeamento de Nonoai, retornando ao Paraná de
onde viera. De lá, passa a hostilizar os grupos inimigos de Nonoai, ao
mesmo tempo em que tenta atrair remanescentes dos grupos aliados.
Em 1858 a situação conflitiva permanece: Victorino Cundá, que faz
aliança com Viri, em Palmas, PR, continua a hostilizar os grupos de
Nonoai, especialmente a tribo de Fongue, e o resultado são as baixas
nos dois lados (Becker, 1976b, p. 50-51).

Deixando o século XIX e nos reportando para as primeiras décadas do


século XX, os tradicionais territórios das Bacias hidrográficas dos Rios Passo
Fundo, Lageado e Forquilha, apesar dos empreendimentos colonizadores,
continuavam sendo ocupados e disputados pelos indígenas. Uma correspon-
dência de Torres Gonçalves ilustrativa para a questão.

Em Passo Fundo estão os índios repartidos em trez toldos sob a di-


reção cada um delles de um chefe. Um dos toldos, o mais populoso,
está situado na costa do rio ‘Ligeiro’, affluente do rio do ‘Peixe’, ou-
tro fica situado nas cabeceiras do rio Erechim, afluente do rio Passo
Fundo, no lugar denominado Ventarra, e o terceiro, o mais reduzido,
no rio Carreteiro, affluente do rio do ‘Peixe’ (Correspondência de
19/03/1910, AHRS).

Nestes espaços territoriais, parece-nos que o protagonismo e a atuação


Kaingang envolvendo negociações e alianças, postas em ação conforme as

62
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
pautas culturais indígenas, não foi muito diferente do ocorrido em período
anterior, conforme podemos observar:

Juntamente vos devolvo um memorial apresentado por J. Bruno, cap.,


ao Presidente do Estado, no qual trata dos índios estabelecidos no
‘Faxinal’ município da Lagoa Vermelha, entre os rios ‘Forquilha’ e,
‘Pelotas’ e dos indios, estabelecidos entre os rios ‘Indios’ e ‘Ligeiro’,
acima da barra do arroio sananduva, no municipio de Passo Fundo,
pedindo para serem respeitadas e descriminadas, as terras occupadas
por esses indios (Correspondência de 19/03/1910, AHRS).

Em relação ao Toldo Ligeiro, localizado às margens do Rio Ligeiro,


no município de Passo Fundo, sabemos, baseado em informações de uma
visita realizada por Carlos Torres Gonçalves (Relatório de 19/06/1910. In:
Laytano, 1957, p.69-77), que era habitado por aproximadamente quinhentas
pessoas (MAPA 3). A liderança estava a cargo do Pã’í mbâng Candinho, que
também era conhecido como Coronel, que tinha quarenta e poucos anos e
residia num lugarejo composto de sete casas, a cerca de dois quilômetros do
Rio Ligeiro. Neste toldo, temos ainda Florêncio, uma velha liderança, contem-
porânea ao século XIX, que era pai do Pã’í mbâng Candinho.
Acerca dos conflitos envolvendo indígenas e Kaingang, o que reforça o
argumento em relação à aliança estabelecida com o governo a fim de se pro-
tegerem de alguns colonizadores, recorremos à narrativa de um guerreiro da
liderança Candinho. Este guerreiro relata “o caso que o colono italiano Jose
Caramora, por causa de uma abelheira encontrada no mato por um indio ao
seu serviço, disparou contra o mesmo a sua arma de caça, indo a carga de
chumbo cravar-se na região da clavicula direita” (Relatório de 19/06/1910,
In: Laytano, 1957, p.72).
Outra situação semelhante envolvendo conflitos entre Kaingang e não
índios aconteceu mais ao sul, no Toldo Carreteiro, conforme o relatório de
19 de junho de 1910, de Torres Gonçalves (In: Laytano, 1957, p. 72). É “o
caso de 6 indios do toldo do rio ‘Carreteiro’, que, a troco no diser da sua frase
caracteristica, faz poucos annos, mataram assassinado tambem dois dos seus.
Eles foram presos, condenados e encarcerados na cadeia desta capital, onde 5
morreram, tendo se livrado solto apenas um, em fins do ano passado”.

63
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Relativo a episódios de conflitos guerreiros em sociedades igualitárias,


que é o caso dos Kaingang, num estudo de Elman Service (1984), temos o
seguinte:

Una sociedad así puede, evidentemente, hacer la guerra de manera


más efectiva, por lo muy considerablemente que los logros militares
dependen del liderazgo y de disciplina; pero es menos evidente la im-
portancia de la autoridad en la consecución y preservación de la paz
en los asuntos externos de la sociedad. Si, por ejemplo, se hace una
alianza entre dos sociedades de jefatura vecinas, esto puede significar
normalmente que entre los individuos de los dos grupos prevalecen
las relaciones pacíficas, y que acudirán en ayuda mutua en caso de un
ataque por parte de un tecer grupo. Pero estas relaciones tienen que
estar garantizadas; la autoridad puede hacer el tratado, pero esto no es
eficaz si no puede imponer la obediencia a su pueblo en el apoyo indi-
vidual al mismo. Además, y sobre todo, las relaciones entre sociedades
están mantenidas típicamente por los intercambios de presentes, de
personas (en el matrimonio) y de hospitalidad. Y si los dos grupos
pueden intercambiar especialidades de los que el otro carezca, están
aseguradas unas relaciones amables. Todo lo anterior depende de la
capacidad del jefe para ordenar el trabajo y los bienes de su sociedad
(Service, 1984, p. 119-120).

Estes eventos conflitivos, a nosso ver, reforçam a necessidade de alianças


com os governantes pela ótica Kaingang, pois possivelmente acreditavam que
com isto contariam com os Comissários da Diretoria de Terras e Coloniza-
ção (DTC) para ajudá-los em situação de guerra, como aponta a solicitação
feita a Gonçalves e ao chefe da Comissão de Terras de Passo Fundo, que o
acompanhava, quando dizem que em “toda a parte, nos toldos, recebemos
pedidos em favor dos seus irmãos” (Relatório de 19/06/1910, In: Laytano,
1957, p. 72).
Inclinamo-nos a pensar que, frente a esse contexto enfrentado pelos
Kaingang, as demonstrações de alianças já haviam sido inclusive cogitadas
anteriormente e, em certas situações, com sucesso, também postas em prática
com alguns colonizadores. É o que informa um “velho brasileiro” que, “ao

64
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
estabelecer-se com a sua numerosa familia em terras dos indios, achando-se
na miséria, recorreu ao então Cacique Florêncio que atendeu-o logo, ceden-
do-lhe uma roça de milho, pronta para ser colhida, em troca de outra igual,
que lhe seria dada no ano vindouro” (Relatório de 19/06/1910, In: Laytano,
1957, p. 73, grifo nosso).
Os Kaingang e as suas lideranças que habitavam territórios localizados
em bacias da margem esquerda do Rio Forquilha, também, freqüentemente,
entravam em conflito com indivíduos da Sociedade Nacional. Nesse sentido
temos o seguinte relato:

Anteriormente, no toldo do Cacique Faustino, alguns que haviam


esbordoado, em represalia, num baile onde todos se achavam ébrios,
outros tantos brasileiros ocidentaes, foram presos, devendo entrar em
jury na vila da Lagoa Vermelha, no dia 10 do corrente mez. Os brasi-
leiros, provocadores do conflito, em que houve feridos de parte a par-
te, acham-se, entretanto livres (Relatório de 19/06/1910. In: Laytano,
1957, p. 72).

O Toldo de Faxinal, que o Governo do Estado fez questão que fosse


visitado por Torres Gonçalves, conforme seu relatório, localizava-se, apro-
ximadamente, a doze léguas de Lagoa Vermelha, com uma população de
quinhentos Kaingang, que estavam sob a liderança do Pã’í mbâng Faustino
Doble e do Pã’í Fortunato.A segunda dessas lideranças até estabeleceu aliança
com o catequista Ricardo Zeni, a quem, provavelmente, tomou como repre-
sentante do Governo e aceitou mudar-se com seu grupo para mais próximo
das nascentes do Rio Forquilha, pois era uma das lideranças subordinadas de
Faustino Doble.
Por fim, acreditamos que os Kaingang e algumas de suas lideranças,
que viviam, principalmente, nos toldos do Ligeiro e do Fachinal, perceberam
com bons olhos estas alianças que vinham acontecendo com os colonizado-
res, até porque foi prometida e certamente cumprida uma série de vantagens,
tanto ao que se refere à demarcação de territórios quanto ao recebimento de
ferramentas, sementes, utensílios, habitações, etc. Corrobora para a questão,
uma correspondência enviada por Carlos Torres Gonçalves à Diretoria de
Terras e Colonização.

65
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Como os indígenas do Rio Grande do Sul, acham-se em grande con-


tato com occidentaes, as medidas a serem tomados podem ficar redu-
zidas, e esta Directoria propõe-vos essencialmente as seguintes:
a) Demarcação com escrupulosa lealdade os territorios de que são
proprietários, punindo qualquer violação por parte dos chamados ci-
vilizados;
b) Facilitar a instituição da vida sedentária, aperfeiçoando as habi-
tações, desenvolvendo os hábitos e processos industriais, sobretudo
agrícolas. Para esse fim será preciso que o Governo forneça a ferra-
menta mais usual de carpintaria e officiaes de carpinteiro para auxi-
liar e guiar na construção de casas de madeira; bem assim que forne-
ça-lhes o material essencial de lavoura e sementes (Correspondência
de 19/03/1910, AHRS).

Pelo que se observa, acreditamos que, apesar das alianças e das nego-
ciações, de forma alguma os Kaingang e suas lideranças estavam abrindo
mão de seus próprios interesses ou “ocidentalizando-se”, através dos está-
gios propostos pelo Positivismo, como procuravam demonstrar os discursos
de Carlos Torres Gonçalves nas correspondências. O que realmente estava
acontecendo, pelo que se pode depreender, é que os Kaingang estavam inter-
pretando e reinterpretando cada um destes eventos em seus próprios termos,
conforme é possível constatar quando Torres Gonçalves, por exemplo, reúne
as lideranças Candinho e Faustino Doble, no Toldo do Fachinal, e propõe que
um deles, juntamente com a sua parcialidade, abandonasse um dos territórios
para morar no do outro.

66
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

Figura 1: Kaingang no Toldo de Fachinal, em 1919. Fonte: Arquivo Histórico do Rio


Grande do Sul.

Mesmo com a aliança estabelecida com os não índios, ambas as lide-


ranças e suas parcialidades negaram-se, terminantemente, a se transferirem,
fazendo com que o engenheiro desistisse da ideia.
Sobre o protagonismo envolvendo os Kaingang, o trabalho de Fredri-
ck Barth, “Por um maior naturalismo na conceptualização das sociedades”,
publicado, inicialmente, em 1992, parece ser bastante elucidativo como base
teórica para analisar a situação envolvendo o engenheiro, Carlos Torres Gon-
çalves e as lideranças Kaingang, Candinho e Faustino Doble.

Devemos notar que as interpretações e reinterpretações podem ser


feitas ao mesmo tempo, nas interações, conversas e rememorações
junto a terceiros [...]. É evidente que a interpretação fornecida por
um observador a determinado ato pode não coincidir com a intenção
do ator, e que isto pode também ocorrer com as interpretações dadas
por dois observantes diferentes. O evento-enquanto-ato permanece
sempre contestável e maleável. Além disso, o evento pretendido e in-

67
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

terpretado como um ato terá normalmente conseqüências objetivas


para além das – ou talvez em contradição com as – intenções e inter-
pretações dos atores. Essa conseqüência e decorrências, por sua vez,
podem ter importantes efeitos sobre o ambiente e sobre a situação de
oportunidades dos atores e dos outros. Suas conseqüências sociais de
modo algum são esgotadas por considerações a respeito de suas inter-
pretações (Barth, 2000, p. 174).

Referente às missões – protestante e católica – que começaram a ten-


tativa de desenvolver catequese com os Kaingang entre os Rios da Várzea e
Forquilha, no Rio Grande do Sul, por volta dos primeiros anos da década de
1900, é importante ressaltar que, embora não tenham sido vistas com simpa-
tia pela filosofia comtiana, receberam ajuda financeira do PRR. Sobre esta
questão, a dissertação de mestrado de Paulo Ricardo Pezat, “Augusto Comte
e os fetichistas: estudo sobre a relação entre a Igreja Positivista do Brasil, o
Partido Republicano Rio-Grandense e a política indígena na Republica Ve-
lha”, traz o seguinte:

[...] apesar da proposta da IPB [Igreja Positivista Brasileira] visando o


estabelecimento de uma política protetora aos indígenas por parte do
estado nacional, e da ação concreta neste sentido desenvolvida pelo
confrade Rondon, os propagandistas da Religião da Humanidade
no Rio Grande do Sul, que trabalhavam no interior da Diretoria de
Terras e Colonização, não tinham esta questão como prioritária nos
primeiros anos do século XX (Pezat, 1997, p. 282).

Tratando-se especificamente da Missão Luterana, em 1897, foi realiza-


do em São Leopoldo, um Congresso Sinodal que reconheceu a necessidade
de desenvolver a catequese com os Kaingang, uma vez que os imigrantes
alemães e seus descendentes estavam ocupando territórios ocupados por es-
tes indígenas. Segundo Deckmann (1985) e Pezat (1997), a Igreja começou
a angariar recursos financeiros, principalmente de comunidades alemãs do
exterior, como a Sociedade Renana Missionária e a Associação Evangélica
de Barmer.
Por conseguinte, no começo de 1900, o pastor Bruno Stysinski, antigo

68
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
padre jesuíta que se converteu ao luteranismo, visitou, inicialmente, aldeias
Kaingang no Toldo do Ligeiro e, provavelmente, também, no Toldo do Fa-
chinal, que se encontravam na jurisdição do município de Lagoa Vermelha,
porque menciona, inclusive, o Pã’í mbâng Faustino Doble, que liderava uma
população de quatrocentos Kaingang, conforme o artigo “Indigenas do Rio
Grande”, que publicou no Diário do Rio Grande do Sul (B.S., 1901).
No mês de janeiro de 1901, ocorreu, também, a viagem da professora
Adele Pleitner, da Fundação Evangélica de Hamburgo Velho, que se pronti-
ficou a auxiliar na obra missionária, junto aos Kaingang de Lagoa Vermelha.
No entanto, como os familiares começaram a pressioná-la, como, também,
enfrentou forte oposição da comunidade católica, algum tempo depois, aca-
bou desistindo da façanha.
Concomitante a esta pequena participação de Adele Pleitner, em Lagoa
Vermelha, o pastor Bruno Stysinski, durante os meses de dezembro de 1900
e janeiro de 1901, realiza uma segunda viagem para a região. Porém, agora,
em direção ao município de Passo Fundo. Visita os Kaingang que ocupavam
territórios localizados nas bacias dos rios da Várzea e Passo Fundo, conforme
descrito a seguir:

As aldeias nas redondezas são: 1) Nonohay, distante uma hora, com


o Cacique Antonio Pedro cujos antecessores no cargo foram: Tenente
Coronel Caetano, Capitão Chico teco Domingo e Vitorino Conda
(do Paraná). 2) O Toldo do rio da Varzea com o Cacique Caetano,
antes em Nonohay. 3) O Toldo no Votoro as margens do rio Passo
Fundo ou Uruguay Mirim. 4) Em Serrinha ou Pinheiro Ralo seis a
sete légua para o sul com o Cacique Major Manuel de Oliveira. Ao
todo os índios mais ou menos 500 almas. Alem desses se teriam esta-
belecido ainda algumas famílias indígenas sob o comando de um Davi
Domingo em Irucy ou Erimbangui no Município de Passo Fundo,
nove ou dez léguas distante de Pinheiro Ralo (Stysinski, 1902, p. 165).

Com base nas informações fornecidas por Stysinski, por ocasião da


referida visita, são possíveis algumas considerações a respeito de como os
Kaingang e suas lideranças estavam lidando com as aproximações com os
não indios. Para melhor compreendê-las, é preciso retroceder a algumas

69
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

tentativas de alianças com os colonizadores, semelhantes às que ocorreram


com os Kaingang que habitavam as Bacias Hidrográficas dos Rios Lageado
e Forquilha, já mencionadas, aque haviam sido cogitadas e que deram certo,
conforme segue:

Os indios tambem são muito agradecidos e se apegam a seus verdadei-


ros benfeitores. O melhor exemplo disso é dado pelo testemunho ines-
quecivel da personalidade do Comandante J. de Oliveira. Hoje ainda
vive em Pinheiro Ralo [Serrinha] um velho paulista chamado Rufino
de Melo que com sua sinceridade e apresentação amavel conquistou a
confiança de todos os indios de tal maneira que eles procuraram seu
conselho tanto nas suas dificuldades em questão particulares como
também publicas e seguem seu conselho (Stysinski, 1902, p. 168).

No que se refere às plantações e à criação de animais, a opinião do mis-


sionário, em alguns casos, também foi satisfatória, conforme se percebe no
relato:

Vive no Municipio de Palmeira um indio que possue um engenho de


açúcar e maneja seu negocio com grande sucesso e independentemen-
te. Alguns encontrei em Nonoay e Serrinha que plantam fumo e o
vendem em rolos. O pedaço que me ofereceram era de excelente qua-
lidade e ainda o tenho guardado ao lado de chapéus, peneiras e cestas
e outras provas de sua aplicação ao trabalho. Ao lado de plantações de
fumo possuem pequenas roças de milho, mandioca, abobora, melan-
cia e feijão. Criam geralmente so porcos e galinhas. Raro encontra-se
um cavalo entre eles, mas quase sempre cachorros. A minha pergunta
porque plantam tão pouco, e porque não criam gado responderam
que lhes faltava ferramentas agricolas necessarias, também não tem
vontade de faze-lo porque receiam serem expulsos de suas terras e
matas (Stysinski, 1902, p. 168).

Nesse sentido, podemos dizer que tanto as alianças com os não índios,
como as plantações ou a criação de animais obedecem à lógica Kaingang.

70
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Estas alianças não eram aleatoriamente estabelecidas com qualquer pessoa.
As lavouras e criações de animais também tinham a sua razão de ser.
Eram, por exemplo, as mulheres que, na maioria do tempo, dedicavam-
-se ao trabalho, enquanto os homens, frequentemente, saíam para a caça, o
que estava plenamente de acordo com as pautas culturais Kaingang. Por-
tanto, apesar das relações interétnicas estabelecidas, persistia uma fronteira
cultural entre as duas sociedades. Até porque, os Kaingang não visavam à
produção de excedentes para o acúmulo capitalista que assolava a região.
Recorrendo ao trabalho de Sahlins, “La pensée bourgeoise: a sociedade
ocidental como cultura”, publicado, num primeiro momento, em 1976, e que
foi incluído numa das recentes obras deste autor, “Cultura na Prática” (2004),
encontramos pertinentes críticas ao economicismo ocidental, que ignora os
códigos culturais de outras sociedades. Crítica que se aplica, também, à situ-
ação da Sociedade Kaingang.

Na concepção nativa, a economia é um campo de ação pragmática. E


a sociedade é o resultado formal. As principais relações políticas e de
classe, bem como as concepções que os homens têm da natureza e de-
les mesmos, são gerados por esta busca racional da felicidade material.
A ordem cultural é tal como se fosse sedimentada a partir da interação
de homens e grupos que agem de maneira diversa, com base na lógica
objetiva de suas situações materiais [...]. Por outro lado, é também de
conhecimento geral na antropologia que o esquema ‘racional’ e ‘obje-
tivo’ de qualquer grupo humano nunca é o único possível. Mesmo em
condições materiais muito semelhantes, as ordens e finalidades cultu-
rais podem ser muito distintas. É que as condições materiais, embora
sempre indispensáveis, são potencialmente ‘objetivas’ e ‘necessárias’
de muitas maneiras diferentes – de acordo com a seleção cultural pela
qual se tornam ‘forças’ efetivas (Sahlins, 2004, p. 180-181).

A partir de 1908, no rol das alianças estabelecidas com os comissários


da Diretoria de Terras e Colonização que mencionamos anteriormente, tam-
bém decidem fazer alianças com os capuchinhos. Levando em consideração
esta decisão, entende-se a nova visita de Gillonnay, em 1908, aos Kaingang
do Toldo Fachinal e as informações prestadas a Carlos Barbosa, Presidente

71
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

do Estado, ao narrar que “os índios desse toldo somam 120 famílias com
uma população média de 500 pessoas. Habitavam em miseráveis palhoças,
não têm camas, nem móveis, andam seminus. Seguidamente deixam suas
palhoças e percorrem as florestas para caçar, pescar, roubar. São muito pre-
guiçosos. [...] Cada família tem sua cabana [...]. Reconhecem e aceitam um
chefe a quem obedecem” (Relatório de 16/06/1909. In: RSFD’A, 1910, p.
54-55). Ora, os dados coletados pelo frei Gillonnay, que não são de estranhar,
estão repletos de referenciais etnocêntricos nos quais o “outro” é visto como
alguém a ser “civilizado”. Essa retórica de alteridade generalizante sobre o
“outro” na história da humanidade não é algo novo para a época.
Nesse sentido, François Hartog, ao fazer a crítica ao tratamento dado
pelos gregos ao “outro”, isto é, considerando-o bárbaro, tais como os citas,
persas, egípcios, lídios e hindus, do século V a. C., mesmo considerando suas
especificidades, ilustra a questão:

Dizer o outro é enunciá-lo como diferente – é enunciar que há dois


termos, a e b, e que a não é b. Por exemplo: existem gregos e não
gregos. Mas a diferença não se torna interessante senão a partir do
momento em que a e b entram num mesmo sistema. Não se tinha
antes senão uma pura e simples não-coincidência. Daí para a frente,
encontramos desvios, portanto uma diferença possível de ser assina-
lada e significativa entre os dois termos. Por exemplo: existem gregos
e bárbaros. Desde quando a diferença é dita ou transcrita, torna-se
significativa, já que é captada nos sistemas da língua e da escrita (Har-
tog, 1999, p. 229).

Em relação ao estudo dos Kaingang, vale reforçar que as características


observadas e narradas com estranheza pelos capuchinhos no que se refere à
habitação, economia, organização social, etc. nada mais são do que manifes-
tações perfeitamente alinhadas aos parâmetros culturais do grupo. Ou seja,
estes indígenas permaneciam vivendo e se organizando da maneira como
sempre fizeram.
Por outro lado, os Kaingang e as suas lideranças também fizeram sua
própria leitura a respeito dos freis e aproveitaram-se deles, como interlocuto-
res nas negociações que se estabeleceram, para conseguirem vantagens junto

72
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
ao Governo de Carlos Barbosa. Defendemos tal interpretação, porque, ainda
no relatório de 16 de junho de 1909, Bruno de Gillonnay registra que “os
índios mesmo pedem ao Governo reconhecer-lhes como propriedade uma
área de terra que sempre ocuparam, situada entre o rio Carazinho, a leste, o
rio Lajeado, a oeste, a superfície de duas léguas quadradas, mais ou menos”
(Relatório de 16/06/1909. In: RSFD’A, 1910, p. 55).
Devido às dificuldades para dar conta da missão com os Kaingang, uma
vez que para a vasta região de Vacaria e Lagoa Vermelha contavam apenas
com os capuchinhos Fidèle de La Motte-Servolex e Afredo de Saint-Jean
d’Arves. Em vista disto frei Gillonnay, após encontrar, em junho de 1909,
Ricardo Zeni, catequista leigo, interveio junto ao Governo do PRR. De con-
creto consegue que Protásio Alves, Secretário de Estado para os Negócios
do Interior e do Exterior, nomeie Ricardo Zeni como professor de catequese
para os índios de Lagoa Vermelha, recebendo, anualmente, 1800$000 de ven-
cimento (Diário Oficial de 18/10/1909, apud Costa; De Boni, 1996, p.339).
No mês de dezembro de 1910, frei Gillonnay visitou novamente as áreas
Kaingang no Toldo do Fachinal. Neste local, foram distribuídas sementes de
milho, feijão, trigo e batatas, o que certamente contribuiu para a continuidade
da aliança com os capuchinhos na visão Kaingang, uma vez que o velho Pã’í
mbâng Faustino Doble tornou-se amigo do frei Gillonnay e passou a chamá-lo
de “papai branco”.
Posteriormente, em janeiro de 1911, empreendeu viagens também pelos
toldos de Ligeiro e Nonoai. Seu principal objetivo era o de observar em que
situação se encontravam, visando, provavelmente, ampliar o trabalho missio-
nário (Relatório de 31/03/1911. In: D’Apremont; Gillonnay, 1976, p. 254-
257).
Parece-nos que, no Toldo Fachinal, os trabalhos dos capuchinhos com
os Kaingang tiveram significados diferentes entre as duas culturas. Indicati-
vos a este respeito podem ser observados durante uma celebração realizada
em 1º/05/1913, conforme segue:

[...] os índios em conjunto, recitavam orações preparatórias ao grande


ato, com voz clara e argentina [...]. As crianças escutavam, de olhos
fitos no pregador. Realmente era uma cena mais divina que huma-
na. Chegado, enfim, o momento desejado, cantaram em conjunto o

73
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

confiteor e depois, num recolhimento edificante, se aproximaram da


mesa sagrada para receberem o pão dos anjos.
Terminada a ação de graças, o Frei Germano lhes ofereceu uma lem-
brança do grande ato e foram convidados para um lanche, que toma-
ram com apetite voraz pois já era meio-dia. Retiraram-se, depois, con-
tentes e felizes para suas cabanas (Correspondência de 15/05/1913.
In: RSFD’A, 1913, p.260-262).

Reforça a questão, o fato de os Kaingang não se submeteram à catequese


nos moldes pretendidos pelos capuchinhos, isto é, não abriram mão de suas
práticas guerreiras, como, também, não deixaram de fazer as coisas obede-
cendo à lógica do grupo. Um artigo publicado em 30 de novembro de 1913,
no Jornal “A Defesa”, do Rio de Janeiro, ilustra bem o fato:

A catequese leiga não pode oferecer resultados positivos, enquanto os


negativos são inúmeros. Consistem em que os ataques violentos dos
índios são muito mais freqüentes que no passado e que os selvagens,
conscientes de impunidade, tornam-se cada vez mais violentos. Os
presentes que receberam não abrandaram seu furor, pelo contrário,
excitaram-nos a cometerem sempre novos crimes. Se os índios, em
cada homicídio, em cada roubo, recebem presentes, é claro que verão
nisso um convite para continuarem uma atividade criminosa e tão
bem recompensada [...].
E continua o jornal do Rio, analisando o artigo citado, afirmando
que os catequistas leigos não permitem ao governo conhecer a rea-
lidade a ponto de que a autoridade não pode tomar decisões. Seus
relatórios redigidos de maneira a favorecer seu apostolado e mantê-los
numa função largamente remunerada, verdadeira mina para o Dr.
Abott, Dr. Aldinger & Cia. Eis, em resumo, o resultado obtido pela
catequese leiga nestes três últimos anos: oito assassinatos, entre os
quais, uma senhora e um bebê, nove feridos. Os índios perderam
somente um homem, mataram cerca de 700 animais só pelo gosto de
derramar sangue, arrombaram sete casas, incendiando outras, duas
vezes saquearam e assaltaram os acampamentos de seus protetores.

74
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

Pode-se avaliar em cem contos os prejuízos de segurança e garantia


contra os senhores da floresta (apud Costa e De Boni, 1996, p. 361).

Por fim, Carlos Torres Gonçalves, na Diretoria de Terras e Colonização


desde 1908, deixava bastante clara sua discordância em relação à assistência
prestada pelas ordens religiosas aos indígenas. O afastamento dos capuchi-
nhos da direção do Seminário Diocesano, em 1913, pelo novo bispo, Dom
João Becker; a suspensão de ajuda financeira aos capuchinhos que atuassem
junto aos Kaingang por Antônio Augusto Borges de Medeiros, que retornava
também, em 1913, para um novo mandato presidencial no Rio Grande do
Sul, somados à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, acarretou
o retorno à Europa de vários capuchinhos franceses e provocou, conforme
Pezat (1997), o enfraquecimento cada vez maior das missões desta ordem
com os Kaingang, que continuaram estabelcendo alianças e movimentando-
-se pelo território, conforme seus próprios interesses.

Figura 2: Kaingang no Toldo Lagoão. Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

75
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Portanto, podemos perceber que, diante de todos esses acontecimentos,


a maioria das lideranças arroladas, ao representarem suas respectivas parcia-
lidades, adotavam uma dualidade estratégica em suas atitudes. Isto é, ao mes-
mo tempo que desfrutavam os benefícios do Aldeamento (alimentos, roupas,
etc) ou vantagens por meio de relações com os funcionário da DTC e com os
missionários capuchinhos e luteranos, mantinham também suas frequentes
investidas contra as parcialidades Kaingang inimigas e de colonizadores.

Redes de atuação e de protagonismo Kaingang em


territórios da margem esquerda da Bacia Hidrográfica
do Rio Passo Fundo

Os interesses dos espanhóis nos ervais localizados, principalmente, nas


regiões entre os rios Inhacorá, Guarita e Turvo, segundo Rosa (1998), retro-
cedem à segunda metade do século XVIII, pois, foi a partir deste período, que
começaram a ocorrer as primeiras expedições nestes territórios Kaingang.
Outras informações relativas às primeiras décadas do século XIX, fornecidas
por Beschoren (1989, p. 60-61), atestam que a posse da localidade de Campo
Novo e territórios adjacentes pelos colonizadores não foi nada fácil, porque
“os colonos enfrentaram muitas lutas e sofrimentos. Alguns sucumbiram, ví-
timas da traição e dos ataques dos selvagens […]; os que conseguiram sobre-
viver trazem marcas visíveis dos combates”. Relata também que, mais tarde,
algumas destas parcialidades, teriam se estabelecido, juntamente com o Pã’í
mbâng Fongue, em territórios de Campo Novo, o que acreditamos ter ocorrido
somente depois de negociações com os não índios.
Ainda, Beschoren (1989, p. 87) menciona em sua narrativa que, no Rin-
cão de Guarita, localizado entre os rios Turvo e Guarita, os Kaingang, na
parte mais alta da coxilha, “observavam os desconhecidos invasores que que-
riam aproximar-se de suas terras”. Percebendo, porém, que as incursões guer-
reiras não estavam conseguindo solucionar o problema, resolveram, em fins
de 1840, adotar uma outra estratégia. Esta atitude, no entanto, acarretou uma
dissidência no grupo. Algumas parcialidades negociaram com os coloniza-
dores e foram aldear-se em Guarita. Outras negaram-se terminantemente a
negociar, atravessaram o Rio Uruguai e deslocaram-se, possivelmente, para

76
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
as proximidades do rio Peperi-Guaçu e instalaram-se em territórios ocupados
por parcialidades das lideranças Nhancuiá e Nonêcofé.
Porém, as decisões de estabelecerem alianças com os não índios ou de
se mudarem para outros territórios, conforme ocorreu com algumas parcia-
lidades Kaingang, não devem ser generalizadas para todas as demais, que
também viviam neste território. Ilustra a situação, na Câmara de Cruz Alta,
o fato de que “no dia 20 do corrente os referidos sahiram no bairro chamado
Santa Rosa e alli assassinaram dois homens e levaram duas mulheres e 8
crianças” (Offício de 20/05/1846. In: RIHGRS, 1931, p. 120). Corrobora
ainda para questão, o relato de Teschauer (1929, p. 275), ao informar que, até
por volta de 1848, ou seja, pouco antes da chegada dos padres da Companhia
de Jesus, “ninguém sabia mais o alcance desta empreza civilizadora do que
os habitantes da villa da Cruz Alta que tinham tanto que soffrer daquelles
selvagens, a cujas injurias e crueldades estavam continuamente expostos”.
Neste contexto, temos a atuação e o protagonismo do Pã’í mbâng No-
nohay, prestigiada liderança Kaingang de sua parcialidade, que, inclusive,
legou seu nome a um vasto território que “forma um polygono irregular de
446 kilometros lineares, devidindo ao Norte pelo Uruguay, ao Sul pela cor-
dilheira onde há mais de meio seculo foi aberta a picada do Sarandy, a Leste
o grande arroio Passo Fundo, a Oeste o rio da Varzea ou Uruguay Puitã,
tributarios do Uruguay” (Silveira, 1909, p. 430,).
Quanto ao território de onde ele e sua parcialidade teriam se originado
e/ou teriam se estabelecido, não há unanimidade por parte dos autores. João
Cezimbra Jacques, por exemplo, escreve em suas notas que, “quando há mais
de 100 anos, passaram os índios kaingangs ou coroados o rio Uruguai, para a
Terra Sul-Rio-Grandense, era um dos seus grandes capitães o notável cacique
Nonoai” (Jacques, 1912). Seguidores dessa linha interpretativa são Becker
(1976a e 1976b) e Mabilde (1983).
Contrapondo-se a essa linha de pensamento, o Pe. Rafael Pérez, com
base na conversa realizada durante uma negociação entre indígenas e coloni-
zadores, narra que “Nonohay estaba sentado con tanta compostura y nobleza
y hablaba con tanta energía y autoridad, que parecía un rey en medio de su
corte. El primer asunto de la conferencía fueron acaloradas reclamaciones
contra la posesión de cierto señor Rocha en estos campos, que ellos tienen
por suyos porque en ellos nacieron y se criaron, y en ellos descansan las ce-

77
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

nizas de sus antepasados” (Pérez, 1901, p. 566). Seguem entendimento seme-


lhante, o Pe. Parés (Correspondência de 23/02/1851, AHRS), Fischer (1954)
e Rosa (1998), como também, segundo a obra de Rogério Rosa, pelo que nos
parece, os próprios especialistas da memória Kaingang na atualidade, como,
por exemplo, João Carlos Kanheró (Kaxú), Augusto Ópë da Silva, Gelson
Vergueiro Kagrer, entre outros.
O Pã’í mbâng Nonohay, quando contatou com os jesuítas no princípio
de 1849, segundo o Pe. Parés, já era um “anciano de 120 años de edad con
su tribu los ocupaba en aquella sazón” (Pérez, 1901, p.492). Entretanto, o
Pe. Solanellas, que mais tarde estabeleceu-se no Aldeamento de Nonoai, em
correspondência enviada ao superior, Pe. Berdugo, a respeito dos Pã’í mbâng
(caciques) que se encontravam no referido Aldeamento, informa:

El segundo, llamado Nonohay, es otro viejo venerando y muy juicio-


so; tendrá unos 80 años; su toldo á cosa de dos horas de aqui, su
gente poco más ó menos 170 salvagies, bastante selváticos; creo que
tiene algunos todavía en el bosque (Correspondência de 26/02/1851.
In: Pérez, 1901, p. 551).

Esta prestigiada liderança fazia-se notável entre os seus Pã’í, pois trata-
va-se de “[...] um indio docil, com quando, já decrepito ainda era amavel e
se distinguia por estas caracteristicas, dentre os seus companheiros” (Castro,
1887, p.151). Teria vivido, conforme D’Angelis (1984), até meados de 1853,
o que coincide, aproximadamente, com a Correspondência de 18 de agosto
de 1854, do Diretor do Aldeamento de Nonoai, na qual ele já aparecia como
falecido. Outras informações são fornecidas por Fischer (1954, p.16), ao dizer
que o Cacique Nonohay “veio a falecer em 1895, sendo enterrado nas margens
do Arroio do Mel, quase nas costas do Rio Uruguai”.
Além disso, o entrevistado informou que o referido cacique era um ho-
mem de porte pequeno e que teve cinco mulheres, cinqüenta filhos e muitos
netos e bisnetos.
No que tange à idade dessa liderança, acreditamos que não era tão ve-
lha, conforme as condições de vida certamente o faziam aparentar. Razões
para isso são os próprios relatos dos jesuítas, uma vez que, em 1849, num
primeiro momento de contato, o Pe. Bernardo Parés atribuiu-lhe uma idade

78
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
de 120 anos; porém, depois de algum tempo de convivência, é possível que
tivesse se dado conta do engano, porque o Pe. Solanellas mencionou Nonohay
como um cacique de 80 anos.
Referente à época de sua morte, inclinamo-nos a acreditar que tenha
ocorrido por volta de 1853, segundo os informes de D’Angelis (1984) e da
Correspondência de 18 de agosto de 1854. Defendemos essa possibilidade,
porque, se procurarmos estabelecer uma cronologia a respeito de Nonohay,
verifica-se que, em 1772, era um dos filhos guerreiros do Pã’í mbâng Fonden-
gue, que, provavelmente, não tinha mais do que uns 18 ou 19 anos. Em 1849,
quando os jesuítas chegaram aos territórios da margem esquerda da bacia
hidrográfica do Rio Passo Fundo, ou seja, setenta e sete anos depois, o indi-
cativo é esta liderança devia ter entre 95 e 96 anos de idade, embora pudesse
aparentar mais. Seguindo esse raciocínio, é possível inferir que, na ocasião de
sua morte em 1853, era um ancião de aproximadamente 100 anos.
Quanto à data, 1895, fornecida por Fischer para a morte do Pã’í mbâng
Nonohay, acreditamos que seja pouco provável, porque o referido líder estaria
com 142 anos, uma idade bastante difícil de ser atingida por um homem,
devido às frequentes adversidades advindas com o projeto colonizador e as
frequentes guerras com as parcialidades Kaingang inimigas. Ao tomarmos
como referência a tradição oral do grupo, é preciso considerar que esses indí-
genas, por um lado, tinham por hábito contar a idade pelos nós da taquara6 e,
por outro, podem, atualmente, estar ressignificando os sentidos dos eventos
apoiados em seus mitos para darem conta dos novos elementos e situações
que estão vivenciando.
A atuação do Pã’í mbâng Nonohay, levando adiante a política das alian-
ças e negociações com os colonizadores, seguindo a nova lógica adotada pela
parcialidade que liderava, vem coincidir justamente com a legislação imperial
do Regimento das Missões. Na tessitura desses acontecimentos é que, em
1845, o Pe. Antônio de Almeida Leite Penteado dava os primeiros passos em
direção à catequese e ao aldeamento dos Kaingang das imediações de Passo
Fundo, distribuindo roupa, fazenda, etc (Relatório de 1º/03/1846).
Nessa mesma época, segundo Silveira (1909, p. 437), teria vindo do Pa-
raná o Sr. João Cypriano da Rocha Loures, que “transpoz o Uruguay no pas-

Segundo Maximiliano Beschoren (1989,) e Wanda Hanke (1947), esses nós formam-se depois
6 

do seu reflorescimento, o qual ocorre, dependendo da espécie, somente a cada trinta e cinco anos.

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

so Goyen e por sua conta e risco, passou a cathequizar os indios coroados”, a


fim de dar continuidade ao trabalho já iniciado. Posteriormente, foi nomeado
diretor do Aldeamento de Guarita, “mas em pouco mais de dous annos, teve
d’incorrer na má vontade do commendador José Joaquim d’Oliveira, director
do diminuto aldeamento da Guarita e do genro deste, o juiz de direito José
Gaspar Santos Lima, cujo irmão Clementino dos Santos Pacheco, apossa-
ra-se de grande extensão de terras do patrimonio dos indios, ou pelo menos
consideradas taes” (Silveira, 1909, p.437-438). Parece-nos que o desenrolar
desses acontecimentos e as relações que se estabeleceram com os Kaingang
não foram as melhores, uma vez que os indígenas, ao perceberem que o pro-
metido nas negociações não estava sendo cumprido, retiraram-se do local e
ameaçaram atacar os missionários e demais colonizadores.
No início de 1849, ocorreram os primeiros contatos mais efetivos da
comitiva do Pe. Bernardo Parés com os Kaingang do território, pois, após
receberem a notícia de que tinham chegado muitas roupas, “acudiram de
toda a parte e em breve reuniram-se mais de 400 pessoas e tambem o Velho
Nonohay, de sorte que o Padre estava em apuros, não sabendo o que fazer
com tanta gente” (Teschauer, 1929, p. 287). Logo depois, reunidos num gran-
de conselho, foi discutida, juntamente com as outras lideranças Kaingang,
a possibilidade de viverem com os padres no local do Aldeamento. O Pã’í
mbâng Nonohay, por sua vez, tomando a palavra, disse que naquele momento
ainda não, porque “él quería ir outra vez á sus toldos á comer lo que había
plantado, y que luégo que fuese tiempo de la labor, vendrían á hacer sus se-
menteras cerca de la aldea, donde harían casas cuando hubiese que comer”
(Correspondência de 25/04/1849. In: Pérez, 1901, p. 493).
Esse evento, na visão dos padres que representavam a lógica ocidental
significava algo positivo uma vez que o Aldeamento ainda não possuía infra-
estrutura adequada para receber todos aqueles indígenas. Pela lógica Kain-
gang, podemos interpretá-lo como uma atitude estratégica adotada pelo Pã’í
mbâng Nonohay, visando estabelecer, frente às ações desses outros não índios,
a continuidade ou a ruptura definitiva de uma aliança, pois, nas primeiras
negociações com eles, as promessas não haviam sido cumpridas.
Para ilustrar a situação que se criou a partir desses fatos, tomamos a
narrativa do Pe. Parés, contida numa correspondência enviada ao Presidente
da Província:

80
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

Este aldeamento, Excmo; Sr., ha sido mal dirigido desde el principio,


y ahora presenta las dificuldades de todo aquello que principia mal.
Cuantos han tratado con los bugres, con el fin de darles gusto, han
procurado tenerlos contentos con promesas que no habían de cum-
plir, y atraerlos con engaños, diciéndoles que el Gobierno les daría
cuanto precisasen ó quisiesen, con tal que no hiciesen mal á los cris-
tianos: de modo que ellos están en la persuasión de que nos hacen
un gran beneficio al formar su aldea: tanto que cuando piden alguna
cosa (que es cuando vem ó se les ofrece), si luégo no se les da, amena-
zan con que se irán á sus bosques á matar gente. De aquí es que no
agradecen lo que se les da, principalmente si es cosa del Gobierno,
que ellos llaman Reyuna, y que reciben como quien cobra una deuda,
que mira y remira la moneda ó la mercadería y la rechaza si no es de
peso, ó no tiene la medida. También están acostumbrados á que se
les repartan las cosas sin orden ni concierto: por eso es que cuando
saben que llega ropa, aparecen de todas partes; mas viendo que ya
no hay más que dar, la aldea queda desierta (Correspondência de
25/04/1849. In: Pérez, 1901, p. 493-494).

Na sequência desses acontecimentos, temos ainda o descontentamento


da liderança Nonohay, com o ex-diretor João da Rocha Loures, que se havia
apossado de nove léguas daqueles campos para criar animais, como, tam-
bém, contra outros fazendeiros vindos de São Paulo. Frente a isso, “el viejo
Nonohay más desconfiado y perspicaz, se retiró luégo con toda su gente, y es
el que tiene más, y estableció su toldo a dos leguas de la aldea y no consintió
que llegassen allá los brasileros” (Correspondência de 10/05/1852. In: Tes-
chauer, 1904, p.113). Recorrendo aos padres, possivelmente para testá-los nas
negociações em andamento, os Kaingang solicitaram que eles intercedessem
junto a seu chefe (Presidente da Província), a fim de que esses invasores saís-
sem de seus territórios e fosse criado um destacamento para protegê-los tanto
dos colonizadores quanto das parcialidades Kaingang inimigas.
Após essa solicitação, o Pã’í mbâng Nonohay, representando os interesses
de sua parcialidade, aguardou as providências por um período de oito meses,
mas, percebendo que o Presidente em questão nada fazia, “resolvió á ejecutar
lo que habia antes anunciado, é iba ya á atacar la casa del exdirector, que dista

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

cuatro leguas de la aldea. Yo no estaba antonces allá” (Correspondência de


10/05/1852. In: Teschauer, 1904, p.113). Entretanto, o Pe. Julian Solanellas,
que vivia no Aldeamento de Nonoai, conseguiu chegar a tempo no local da
investida guerreira e convencê-los a esperar até que o Pe. Parés voltasse para
tentarem novamente uma negociação com os Governantes em Porto Alegre.
No relato enviado ao Padre Superior a respeito desse episódio, o Pe. Bernar-
do Pares, consta o seguinte:

Informado de esta ocurrencia corri allá, y escogiendo nueve bugres


de los diferentes toldos me dirigi con ellos á Porto-Alegre. Mi objecto
con esto fue no solo el que el Presidente oyese sus quejas de boca de
ellos mismos, mas también que ellos se satisfaciesen de que era verdad
lo que yo les habia dicho sobre las providencias pedidas y decretadas,
y de que hacia cuanto podia en su favor. Todo sucedió como yo es-
peraba salieron de Porto-Alegre llenos de estima y gratidud hacia los
Padres, y con mayor esperanza de verse remediados, pues el Presidente
les dijo que se iba á proceder á la creacion de una fuerza protectora,
para lo que ya habia dado sus órdens, y les nombró el director y co-
mandante que habia elegido, que era sujeto conocido y estimado
de ellos (Correspondência de 10/05/1852. In: Teschauer, 1904, p.
113-114).

Quanto aos doze indivíduos que foram a Porto Alegre, conforme se de-
preende da Correspondência do Pe. Solanellas, de 26 de fevereiro de 1851,
tratava-se, na maioria, de lideranças Kaingang, que estavam representando
as respectivas parcialidades nas negociações com os não índios. Com este
tipo de aliança, entende-se que, além dos benefícios conseguidos, como vesti-
dos, tirantes, sapatos, ponchos, capas, entre outros, almejavam também que a
força armada em questão atuasse como órgão mediador para evitar a guerra
entre as parcialidades de várias lideranças Kaigang estabelecidas no Aldea-
mento de Nonoai. Contudo o objetivo principal que esperavam dessa força
era tê-la como aliada para lutar contra as parcialidades inimigas do grupo do
Pã’í mbâng Nonohay e assim aumentar seu prestígio. Essa intenção fica bas-
tante evidente nas observações sobre os “bugres” apresentadas à Câmara de
Porto Alegre, conforme segue:

82
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

[...] los mismos bugres reclaman esta fuerza porque sin ella no se creen
seguros, no solo por las desavencias que naturalmente debe producir
la reunión de tantos jefes independientes unos de otros, mas también
porque saben que los no reducidos son enemigos de los reducidos
(Pérez, 1901, p. 896).

Nos primeiros meses de 1850, as solicitações dos padres e Kaingang


referentes à força protetora para o Aldeamento foram atendidas, mas, pou-
co depois, a Companhia de Pedestre foi extinta sob a alegação de que logo
estaria chegando uma Companhia de Polícia. Essa notícia causou uma gran-
de frustração, conforme discorre o Pe. Parés, em correspondência ao Presi-
dente da Província: “quanto tinha sido a alegria e satisfação dos Bugres ao
ver no aldeamento huma força protetora, tanto maior foi a desconfiança e
sentimento ao verem abandonadas d’aquella proteção” (Correspondência de
08/03/1850, AHRS).
Em decorrência disso, muitos Kaingang retiraram-se do Aldeamento,
inclusive parcialidades de Nonohay. Os poucos que permaneceram, segundo
o padre, estavam à espera da prometida força policial; porém, “como não há
esperança ou probabilidade de que por muito tempo fique completa a Com-
panhia; temo não so que elles acreditem que os estou illudindo”, mas que
também venham a provocar muita desordem, uma vez que não há força que
os faça terem algum respeito (Correspondência de 08/04/1850, AHRS).
No começo de 1851, o Pã’í mbâng Nonohay morava no Aldeamento; no
entanto, em meados de janeiro, comunicou ao Pe. Parés que precisava retor-
nar ao seu antigo toldo, devido às roças e a outros mantimentos lá deixados,
“mas a verdadeira causa foi por medo de que a sua gente brigasse com as
de Nicaji, faltando a força que lhes impunha respeito” (Correspondência de
14/01/1851, AHRS).
Depois disso, Nonohay e parte de seu grupo, conforme Correspondên-
cia de 23 de fevereiro de 1851, atravessaram o Rio da Várzea e percorreram
os territórios do Rio Guarita, talvez sondando as parcialidades Kaingang de
outras lideranças, a fim de saber qual a melhor política que poderiam adotar
com os colonizadores frente à nova situação que se configurava. Logo a se-
guir, apresentou-se no Aldeamento de Nonoai acompanhado de uns cinquen-

83
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ta guerreiros, trazendo reclamações contra os colonizadores que estavam em


seus campos.
A possibilidade de o Pã’í mbâng Nonohay e as demais lideranças se es-
tabelecerem com suas parcialidades num só Aldeamento, como foi cogita-
do num primeiro momento pelos padres, era cada vez mais remota e difícil.
Esclarecem essa questão os próprios relatos dos jesuítas, em fins de 1851, ao
Padre Superior.

[...] rehusan formar una sola aldea con los otros, y la razón es que no
hay recursos bastantes para sostener tanta población reunida: esto es
cierto, pero la principal es la que nos ha significado varias veces el
viejo Nonohay, diciendo que él por sí está dispuesto para residir aquí,
mas que se recelaba de su gente joven y briosa, la cual á la hora menos
pensada podría promover riñas con la gente de otros jefes y compro-
meter la armonia y buena inteligencia que actualmente reina entre
todos (Pérez, 1901, p.566).

Outra liderança que também vivia com a parcialidade que representava


nos territórios da margem esquerda da bacia hidrográfico do Rio Passo Fun-
do é Pã’í mbâng Canhafé ou Canafé (MAPA 2). O Pe. Solanellas, ao escrever
sobre essa liderança em correspondência enviada a Mariano Berdugo, Padre
Superior, relata o seguinte:

[...] Canhafé, tendrá unos 60 años; á este lo bauticé in perículo mor-


tis; este tiene casa hecha aquí, como él se á hacer un paseo al bosque,
ahora la habita su suegro; espero que vendrá luégo. Su gente subirá á
30 salvajes. Este no hace mucho que perdió bastantes hombres gue-
rreando con otro cacique, y algunos de los que pelearon con él están
ahora aquí. Creo que está también aquí un salvaje que mató á su hijo.
Tiene muchos hijos que ya saben alguna cosilla, y entre otros uno de
25 años muy amigo del Rosario y de aprender la doctrina (Correspon-
dência de 26/02/1851. In: Pérez, 1901, p. 551-552).

As primeiras notícias a seu respeito datam de 1849, quando, segundo


o Pe. Bernardo Parés, encontrava-se fazendo roças de um alqueire no Alde-

84
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
amento de Nonoai. O padre informa também que, junto com o Pã’í mbâng
Canhafé, trabalhavam os indígenas chamados de Criquincha, Caembé, Ñandi,
Nonnemí e Arimbenk, que faziam roças de meio alqueire cada um (Correspon-
dência de 29/10/1849, AHRS). É possível que as parcialidades do Pã’í mbâng
Canhafé, assim como os demais grupos Kaingang, em função das negociações
com os colonizadores, circulassem entre seu toldo originário e o Aldeamento
Nonoai em formação. Nesse sentido, a Correspondência de 08 de março de
1850, do Pe. Parés ao Presidente da Província, comunica que a parcialidade
de Canhafé, ao receber a notícia de que o referido religioso visitaria o Aldea-
mento, começou a retornar para Nonoai.
Logo em seguida, a Correspondência de 1º de junho de 1850, do Pe. San-
tiago Villarrubia ao Pe. Juan Coris, informa que, por causa de uma mulher,
alguns indivíduos da parcialidade de Canhafé indispuseram-se com Kaingang
da parcialidade do Pã’í mbâng Nicafim e, em pouco tempo, ambas armaram-se
de arcos, flechas, lanças, clava-bastões, porretes, etc, prontas para guerrear.
A situação criada somente não se tornou insustentável, porque o jesuíta in-
tercedeu e persuadiu-os a negociarem a paz em troca de roupas e de outros
objetos, que eram de interesse dos indígenas. Sobre a natureza bélica presente
na vida desses nativos, o Pe. Santiago Villarrubia tece o seguinte comentário:

[...] la gente de un capitán vivia unida y en amistad con la de outro


capitán, bastándose leves motivos para declararse guerra entre si: por
lo pasado se destruían sin piedad los unos á los otros, y esta es la prin-
cipal causa por qué esta nación es tan reducida, pues todos los indios
de esta provincia reunidos no alcanzan tal vez á mil indios (Corres-
pondência de 1º/06/1850. In: Pérez, 1901, p. 522).

Os últimos dados que manuseamos a respeito do Pã’í mbâng Canhafé in-


formam que, como a força policial negociada não chegava para proteger do
Aldeamento Nonoai, ele decidiu retirar-se para o seu toldo, que ficava a meia
légua de distância do referido Aldeamento (Correspondência de 14/01/1851,
AHRS).
Vindo do Paraná, também atuou em territórios da margem esquerda
da Bacia Hidrográfica do Rio Passo Fundo, o Pã’í mbâng Victorino Condá ou
Cundá (MAPA 2). As primeiras notícias de que temos conhecimento a seu

85
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

respeito são fornecidas por Pinto Bandeira, ao relatar que o indígena Condá,
ainda criança, esteve no Aldeamento de Guarapuava e estabeleceu relações
amistosas com o então menino Francisco da Rocha Loures, filho de Capitão
Antonio da Rocha Loures, que era o braço direito de Diogo Pinto na con-
quista dos territórios. Passado algum tempo, entretanto, Condá “retrahindo-se
aos bosques se tornou formidavel e temido entre os seus” (Bandeira, 1851,
p. 394).
O Pe. Julian Solanellas, que teria contatado com ele por volta de 1850
no Aldeamento de Nonoai, em Correspondência ao Padre Superior Mariano
Berdugo, relata o seguinte:

Victorino Condá, tendrá sobre unos 60 años, está ya bautizado y es


de los más civilizados que hay aqui, y á quien el Gobierno pasa men-
sualmente 5 duros. Su gente sobre unos 160, de los cuales aquí tendrá
unos 90, y los demás en Palmas, distante cinco días; creo que vendrán
acá. Este es el cacique más valiente, más guerrero, más sagaz e intrépi-
do de todos, por lo que todos le temen, pues entre ellos vale mucho el
tener esas cualidades. Da gusto verle tirar la flecha, y con qué pericia
y agilidad la hacer subir. Un dia me contaba que él se encontró en una
acción en la que perecieron 350 salvajes, unos muertos á lanzadas,
otros con flechas y muchos abrasados, pues encendieron sus casas.
Ahora, cuando se pone de gala, no se conoce. Verdad es que ya tenía
levita y una hermosa espada con empuñadura de plata y borla del
mismo metal, que nosotros le regalamos; es de los que fueron á Por-
to-Alegre (Correspondência de 26/02/1851. In Pérez, 1901, p. 552).

Segundo D’Angelis (1983, p. 13), este Pã’í mbâng teria morrido em 25


de maio de 1870, na localidade de Xapecó. Antes disso, porém, teve uma
importante atuação nos campos de Nonoai, Palmas e Guarapuava, conforme
Correspondência de 23 de abril de 1855, enviada pelos vereadores do povoa-
do de Guarapuava ao Presidente da Província do Paraná.

Existe hoje nos campos do Goynhoem (Goio-en) hum cassique já ve-


lho chamado Vitorino, nascido e criado no antigo aldeamento de

86
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

Guarapuava, do qual era diretor o Padre Chagas, este cassique he co-


nhecido nos certõens desde o Paraná ate o Goynhoem, e respeitado
pelas tribos dessas paragens, não só pelo seu nome como por contar
com grande número de individuos pertencentes ao seo toldo, [...] in-
gajar este cassique e sua gente afim de manter nestes lugares, hum
corpo de Pulícia ambulante destinado a percorrer continuamente as
costas dos matos Payquere, será presentemente a única medida a to-
mar, este índio pode prestar valiosos servissos, pois que he dotado de
muita visão e talvez aliviasse muito o pais reunindo muitos dos Selva-
gens e afugenttando a outros (apud Mota, 1994, p. 225).

Nesse sentido, há, também, a narrativa de Antonio Alceu, referente ao


período anterior a 1839: Guerreiros de Condá teriam entrado em conflito
guerreiro com a comitiva comandada por Pedro Siqueira Côrtes na altura do
Rio Negro, próximo a Curitibanos, quando este se dirigia à Província do Rio
Grande do Sul, possivelmente, em busca de tropas para a feira paulista. Se-
gundo o relato, o único sobrevivente teria sido o comandante, que, ao dar-se
conta de que a munição tinha acabado, montou seu cavalo e tentou furar o
cerco. Condá, entretanto, percebendo o intento do inimigo, jogou-se sobre ele,
mas teve a testa atingida pelo cano da arma de Pedro Côrtes, que consegue
escapar. É ainda mencionado pelo narrador que, por causa desse fato, “o ca-
cique votou um odio de morte de Pedro Siqueira, jurando vingar-se na pessoa
deste ou na de seus filhos” (Alceu apud Franco, 1937, p. 310).
Posteriormente, em Guarapuava, o comandante Pedro Siqueira Côrtes
tomou conhecimento de que o Pã’í mbâng Condá, estabelecido nos Campos
Irani, planejava uma investida guerreira contra ele. O referido comandante
organizou, então, uma bandeira e dirigiu-se ao acampamento da parcialida-
de Kaingang liderada por Condá para atacá-los de surpresa, conforme relata
Antonio Alceu:

O tôldo modorrava ao sól, deserto; indio macho, com excepção do


Condá, não havia, a não ser os velhos. Todos a essa hora estavam fóra,
caçando. De sórte que o Condá ainda pôde escapar ao assalto, gar-
rando o matto, correndo em zig-zag para não ser attingido pelos tiros.
Nesse ataque pereceu a mãe de Condá (apud Franco, 1937, p.311).

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Quando o Pã’í mbâng Condá chegou na aldeia e tomou conhecimento


do ocorrido, reuniu seus guerreiros e foi no encalço da comitiva de Pedro
Siqueira Côrtes, que estava acampada nas proximidades de um taquaral. Tal
encontro acarretou uma luta que durou aproximadamente três dias com bai-
xas de ambos os lados. Após este conflito, o Pã’í mbâng Condá e seus guer-
reiros resolveram deixar os Campos de Irani e, possivelmente, dirigiram-se a
outro território, que, segundo Mabilde (1983, p. 162), estendia-se das “matas
da margem direita do Rio Uruguai, desde a foz do Rio Peperiguassu até a foz
do Rio Canoas, eram ocupadas pelos coroados dos caciques Nonoai e Cundá
(hoje conhecido por Vitório Cundá), os quais viviam, ainda que não em per-
feita harmonia, ao menos sem hostilizar-se”.
Após este episódio, a documentação pesquisada menciona novamente o
Pã’í mbâng Condá e a parcialidade que liderava em meados de 1840, quando
mantiveram contatos amistosos com a expedição de João da Silva Carrão,
que adentrava nos Campos de Palmas. A este respeito tem-se a narrativa:

Passando por Guarapuava, tiveram elles a fortuna de ahi encontrar o


índio Condá, chefe da principal horda de selvagens, que ocupava Pal-
mas, e mais dous Indios com suas familias, em numero de onze pes-
soas, entre as quaes eram Chanerê mulher do cacique, e duas criadas
Macãa e Vangre. Um dos indios sabia lêr e escrever, por ter-se criado
na aldêa de Guarapuava, d’onde fugiu para o sertão; e ainda fallava
soffrivelmente a nossa lingua, o que serviu á communicação franca,
até mesmo com o cacique, que tambem balbuciava algumas phases
portuguezas, e os entretiveram com agrados, dadivas e caricias, a fim
de os ganharem para a sua segurança, e de todos quantos estavam em
Palmas (Bandeira, 1851, p.388).

Contudo, em nosso ponto de vista, essas mudanças de atitude da par-


cialidade de Condá, que até pouco tempo atrás realizava investidas guerreiras
contra todos aqueles que se aventurassem a penetrar nesses territórios, deve
ser entendida dentro da nova lógica que passou adotar em relação aos colo-
nizadores. É, possivelmente, neste rol de negociações que, com base em Ban-
deira (1851, p.392), podemos identificar a mudança dos “[...] lageados das
caldeiras e cachoeiras, para onde com boas maneiras pôde transferir a tribo

88
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
de selvagens [...] commandada por – Condá – a qual tantos receios causava,
por estar até então estabelecida em uma campina chamada Iranin, a duas
leguas no sertão”.
Em vista dessa aliança estabelecida com os colonizadores, também po-
demos entender tanto a ida de Condá, por volta de 1843, a São Paulo a fim
de negociar com as autoridades provinciais, quanto a colaboração prestada
por ele a Francisco da Rocha Loures, em fins de 1845 e inícios de 1846, em
sua viagem aos Campos de Nonoai, no Rio Grande do Sul. Acerca dos des-
dobramentos resultantes das alianças e negociações que o Pã’í mbâng Condá
realizou quando foi a São Paulo, o Relatório de 1844, do Presidente da Pro-
víncia registra que ele recebeu a quantia de 220$000 para perseguir tribos
ditas “selvagens” da região de Palmas, como também, logo em seguida, “foi
nomeado comandante dos índios que reduzisse o que dá à sua condição de
bugreiro um caráter oficial” (apud Moreira Neto, 1972, p. 390).
Tal atribuição, em nosso entender, não era tão simples como parece e
mascara o próprio discurso da historiografia sobre os indígenas no período,
uma vez que as investidas guerreiras contra as parcialidades inimigas entre os
próprios Kaingang faz parte da cultura do grupo. Nesse sentido, recorrendo
ao estudo de Clastres (1981) como fundamentação teórica, podemos dizer
que as atitudes tomadas pela liderança Condá nesses eventos não significaram
que ele tivesse passado para o lado dos colonizadores, mas, sim, atendendo
aos interesses da parcialidade e do grupo Kaingang a que pertencia. Em vista
disto, temos:

[...] nunca una comunidad se lanza a la aventura guerrera sin haber


protegido antes sus espaldas por medio de empresas diplomáticas -
fiestas, invitaciones – al término de las cuales se sellan las alianzas,
que se supone durables pero que hay que reactivar constantemente, ya
que la traición siempre es posible y, frecuentemente, real. Aquí apare-
ce un rasgo descrito por los viajeros o etnógrafos como la inconstancia
o el gusto por la traición de los Salvajes. Pero, una vez más, no se trata
de psicología primitiva: la inconstancia significa, simplesmente, que
la alianza no es un contrato, que su ruptura jamás es percibida por los
Salvajes como un escándalo, y que, por último, una comunidad dada
no tiene siempre los mismos aliados ni los mismos enemigos. Los tér-

89
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

minos ligados por la alianza o la guerra pueden permutarse, y el grupo


B, aliado del grupo A contra el grupo C, puede perfectamente, a causa
de acontecimentos fortuitos, volverse contra A dejando de lado a C
(Clastres, 1981, p.206).

Em 1847, o governo da Província do Rio Grande do Sul, reconhecendo


a influência que Pã’í mbâng também tinha em relação aos Kaingang dos
Campos de Nonoai, resolveu convidá-lo para atuar como colaboracionista
na Companhia de Pedestre da Província, sob a responsabilidade do Capitão
Marcelino do Carmo. No rol das negociações entre Condá e o Sr. Antonio
Galvão, Presidente da Província, além de alimentos e roupas oferecidos, fi-
cou também acordado que lhe seria ajustada “uma gratificação mensal de
50$000 reis logo que a Aldea reunisse 500 almas, depois modificou-se esse
ajuste, dando-se-lhe uma mensalidade de 5$000 de cada 50 que apresentasse”
(Relatório de 05/10/1847, p. 13-14).
Inicialmente, é delegada ao Pã’í mbâng Condá a tarefa de reunir no Alde-
amento de Nonoai os demais Kaingang espalhados pelos referidos campos.
Entretanto, se as autoridades pensaram que com esse encaminhamento os
problemas envolvendo os Kaingang seriam mais fáceis de serem resolvidos,
parece-nos que se enganaram, porque, embora a liderança Condá cumprisse
sua parte no trato, deram-se conta de que “não he facil saber o numº de gente,
que depende de Nonohay, porque pela falta de alimentos não podião estar
fixos naquelle lugar, mas se espalharão sucessivamente pelos matos a procu-
rar a sua subsistencia” (Correspondência de 06/11/1848, AHRS). Além do
mais, a presença desse Pã’í mbâng no Aldeamento também causou alvoroço
em outras parcialidades de grupos Kaingang inimigos, como, por exemplo, a
do Pã’í mbâng Fongue, em territórios do Rio Guarita e nas parcialidades dos
Pã’í mbâng Vaicofê, Braga, entre outros, que habitavam territórios do Campo
do Meio (Pérez, 1901, p.472 e Correspondência de 13/03/1850, APRS).
Quando os jesuítas chegaram ao Aldeamento de Nonoai, em princípios
de 1849, a parcialidade Kaingang da liderança Condá, segundo o Pe. Parés,
compunha-se de, aproximadamente, cinquenta indivíduos, vivendo em dez
ou doze ranchos. No que se refere às práticas guerreiras entre esses, relata
que existia uma antiga rivalidade entre a parcialidade de Condá e Nicafim,
a qual não foi contornada nem mesmo após dada em casamento a filha do

90
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
primeiro ao segundo. Nesse sentido, o narrador discorre sobre a apreensão
da liderança Condá em relação às parcialidades inimigas, que poderiam re-
alizar investidas guerreiras no Aldeamento a qualquer momento, uma vez
que o destacamento da Companhia de Pedestre, composto por apenas nove
homens, não era suficiente para impor respeito, conforme segue:

En dos ocasiones en que los bugres estuvieron para reñir, Victorino


fue á pedir auxilio al sargento, comandante del destacamento, el cual
no se atrevía ni aun á dar seguridad en su cuartel al tal Victorino, que
pretendía refugiarse en él, caso que lo atacase la gente de Pedro: cuán-
to menos podrá dar auxilio y proteger la aldea! Vuotoro, Nonohay y
otros Jefes de influencia ya tendrían sus casas en la aldea, si hubiese
habido una fuerza capaz de mantener entro ellos la paz y armonía [...]
(Correspondência de 25/04/1849. In: Pérez, 1901, p. 495).

Mesmo diante dessas circunstâncias, a parcialidade de Condá permane-


ceu em Nonoai, porque, no Relatório do Presidente da Província, datado de
06 de março de 1850, consta que, das trezentas e vinte e três pessoas que vi-
viam no Aldeamento, cinquenta e oito pertenciam à parcialidade da lideran-
ça em questão. Possivelmente, foi também durante esse período que Condá,
juntamente com outras lideranças, acompanhou o Pe. Parés a Porto Alegre
a fim de negociar com o Governo Provincial, pois, segundo Pérez (1901, p.
543), o padre “llevó consigo doce indios escogidos de todas las reducciones,
creyendo, y con razõn, sacar mucho partido, como la primera vez, de que
vieron en la capital á los fieros bugres domesticados”.
Outro argumento que reforça a hipótese de que o colaboracionismo de
Condá e sua parcialidade com os colonizadores era própria lógica das nego-
ciações Kaingang é o relato do Pe. Villarrubia, informando que, apesar dos
esforços de iniciá-los na religião e nos padrões da civilização ocidental, con-
tinuavam a viver “como gentiles, con una ó con más mujeres, que repudian
cuando se les antoja, y solo se distinguen de los bugres, porque les gusta vivir
pacificamente aldeados [...]” (Correspondência de 1º/06/1850. In: Pérez,
1901, p. 516).
É possível que, em 1851, o Pã’í mbâng Condá, apesar das desavenças com
o Pã’í mbâng Nicafim, tenha restabelecido aliança com ele e ambos terem con-
vivido por algum tempo no Aldeamento de Nonoai, porque o Pe. Bernardo

91
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Parés, ao tratar do estado da catequese dos indígenas em sua correspondên-


cia, informa que as parcialidades dessas duas lideranças totalizavam aproxi-
madamente cento e cinquenta indivíduos. Nesse mesmo documento, escreve,
ainda, que “tendo havido uma desavença entre as mulheres, esteve a gente de
Vuotoro e Canhafé para brigar com a do Condá e do Nicafi, o que affortuna-
damente conseguirão impedir os PP. Cathequistas [...]” (Correspondência de
14/01/1851, AHRS).
Por volta de 1855, após o episódio que resultou na morte de alguns co-
lonizadores por guerreiros das lideranças Pedro Nicafim e Manoel Grande, na
Fazenda de Três Serros, conforme já referido, organizou-se uma comitiva
para prender os Kaingang que tinham conseguido escapar, composta por sol-
dados da Guarda Nacional e também por Kaingang pertencentes às parciali-
dades das lideranças colaboracionistas de Fongue e Prudente. Somou-se ainda
ao grupo “huma escolta de vinte praças bem armados e municiados da jente
de Vitorino Condá a mando do mesmo Vitorino para entrar no matto como
entrou a seguir e prender o Manoel Grande e filhos assassinos de Clementino
e sua Comitiva, e ãos que se escaparão da horda de Pedro [...]” (Correspon-
dência de 14/10/1855, APRS).
Durante esta perseguição, foi entregue à escolta de Condá, o Kaingang
Joaquim Manoel, que também tinha participado do conflito em Três Serros e
que prometeu levá-los até o local onde Manoel Grande e os demais guerreiros
estavam escondidos. Chegando ao local, ao que tudo indica, Condá, propo-
sitadamente, permitiu que o prisioneiro Joaquim Manoel escapasse a fim de
avisar os guerreiros Kaingang a tempo de poderem fugir, como informa o
próprio organizador da escolta, Sr. Manoel Pacheco de Carvalho, quando
relata:

A esta escolta entreguei o índio preso e assassino dos Três Serros,


Joaquim Manoel, por me assegurar que levaria ao lugar onde se acha-
vam escondidos, e de fato a levou, porém momentos antes do assalto
deixaram escapar o importante guia, este avisou aos companheiros, e
vindo a eles escaparam, deixando a bagagem. Tenho razões para crer
que esta fuga foi autorizada pelo mesmo Vitorino, ou algum dos seus
(apud D’Angelis, 1984, p. 234).

92
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Observa-se que o colaboracionismo desempenhado por Condá junto
aos colonizadores somente se concretizava, quando se vinculava aos parâ-
metros da política indígena, pois, como as lideranças perseguidas já tinham
restabelecido a aliança com a parcialidade de Condá, as negociações com as
autoridades rio-grandenses foram preteridas. Em vista dessas perseguições,
ocorreu também uma ruptura do colaboracionismo de Condá com o governo
da Província, conforme relata o Presidente Jeronymo Francisco Coelho, in-
formando que O Cacique Victorino Condá aparentado com Nicofé e Manoel
Grande, em conseqüência da perseguição a estes movida, retirou-se com a
sua tribo para os campos de Palmas, a unir-se aos aldeamentos que alli há
por conta do governo provincial do Paraná (Relatório de 15/12/1856, p. 103-
104).
De volta ao Paraná, o Pã’í mbâng Condá, após negociar com as autori-
dades, retomou sua antiga função de colaboracionista, a fim de resolver pro-
blemas com as parcialidades de grupos Kaingang arredios, segundo discorre
o Diretor Geral dos Índios da Província do Paraná, Francisco Ferreira da
Rocha Loures, em seu relatório:

Com a mira nas diligências d’esta ordem, que convem repetir-se em


todos os pontos da Provincia, onde appareceram vestigios de Indios,
foi que requisitei a reintegração ao Indio, Victorino Condá, no seo
antigo posto de Cacique Geral dos Aldeamentos de Guarapuava, por-
que é o Indio em que deposito mais confiança e apto para dirigir
empressas d’aquella ordem” (Relatório de 10/02/1857. In: D’Angelis,
1984, p. 11).

Pã’í mbâng, no entanto, mesmo estando na Província do Paraná, não es-


queceu suas desavenças, principalmente, com a parcialidade de Fongue e Pru-
dente, pois, de tempo em tempo, um conflito sucedia a outro como forma de
vingança (Correspondência de 12/08/1859, AHRS). Dentre os últimos acon-
tecimentos nesse sentido, em meados de 1859, houve o conflito que levou à
morte, o Capitão Jacintho, liderança do Toldo de Baixo, em Nonoai, pela par-
cialidade da liderança Prudente. Vale salientar que a liderança Jacintho foi um
dos Pã’í das parcialidades do grupo de Condá que havia ficado em Nonoai,
mas, diante desse episódio, a parcialidade Kaingang que até então liderava

93
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

deixou o território e juntou-se às parcialidades de Condá e Virí, que estavam


em Palmas, a fim de se vingar das parcialidades lideradas pelo Pã’í mbâng
Fongue, à qual pertencia a liderança Prudente. O impasse criado diante dessa
situação foi tão impactante, que o Presidente da Província do Rio Grande do
Sul solicitou ao Governo do Paraná que transferisse os toldos de Condá e Viry
mais para o interior da Província, sob a alegação de que se “[...] os toldos
de Condá e Viry forem removidos para o interior d’aquella Provincia, estou
certo que desapparecerão as difficuldades do presente, e ficarão acauteladas a
paz e tranquilidade do futuro” (Relatório de 1859, p. 50-51).
Em suma, se tal solicitação do governo do Rio Grande do Sul foi atendi-
da, a documentação que manuseamos não nos permite identificar. Porém, os
conflitos intertribais não cessaram por aí, uma vez que o Pe. Antonio Branco,
em correspondência ao Presidente Eloy de Barros Pimentel, relata que os
Kaingang que estavam no Aldeamento de Nonoai “não conhecerão a ne-
nhum dos agressores, mas dizem que deve ser gente [...] do Cacique Condá,
que, só, e sem diretor, que é ferraz, vive no campo de Palmas Provincia do
Paraná, e costuma fazer destas incursões” (Correspondência de 14/02/1864,
AHRS).
Sendo assim, é possível perceber que a rede de atuação do Pã’í mbâng
Condá como colaboracionista com as autoridades do Paraná também pau-
tou-se na política adotada pela parcialidade que sobressaía as demais. Enfa-
tizamos essa percepção, porque, mesmo recebendo vencimentos relativos aos
trabalhos prestados entre 1860 e 1863, conforme demonstra a Certidão de
Procuração de 16/05/1864 (in: D’Angelis, 1983), a referida liderança, em-
bora sutilmente, não deixou de incursionar e proferir investidas guerreiras
contra os colonizadores em territórios do Rio Chopim, como narra a corres-
pondência de 27 de abril de 1863 enviada por O. Danguy ao Sr. Luiz Lustoza
de Menezes.
Em se tratando das primeiras décadas do século XX, em decorrência da
expansão e da intensificação do projeto colonizador nos tradicionais territó-
rios da margem esquerda da bacia hidrográfica do Rio Passo Fundo, sobretu-
do, em áreas Kaingang dos Rios da Várzea e Passo Fundo, devemos entender
o protagonismo Kaigang em relação à ida a Porto Alegre, em fins de junho de
1908, do Pã’í mbâng Antonio Pedro, do Toldo Nonoai, e do Pã’í mbâng Manoel
Olivera, do Toldo Serrinha (MAPA 4). Acompanhados do General Fermino

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Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
de Paula, objetivavam uma audiência com o Dr. Carlos Barbosa, presidente
do Estado, a fim de “reclamar contra as perseguições de que são victimas
constantemente por parte de intrusos, pretendendo desalojal-os das suas ter-
ras” (Relatório de 27/08/1909, AHRS).
Há indicativos de que este encontro foi considerado bastante satisfatório
pelas referidas lideranças, que tiveram o pedido de demarcação dos territó-
rios atendido e, seguindo sua própria lógica, projetaram, em Carlos Barbosa,
a figura de um Pã’í mbâng, que liderava os não índios, porque começaram a
tratá-lo de “Papai Grande”. Informações sobre este encontro também foram
publicadas no Jornal Correio do Povo, conforme segue:

O general Firmino de Paula foi ontem, às 10 horas da manhã, ao palá-


cio apresentar ao Dr. Presidente do estado os dois caciques dos bugres
coroados, com aldeamentos na Serrinha, em Nonoai.
O Dr. Carlos Barbosa recebeu-os carinhosamente e indagou dos moti-
vos que os haviam trazido a esta capital [no caso Porto Alegre].
O cacique-mor Antonio Pedro do Nonoai expôs que a sua tribo, vi-
vendo nas proximidades da Serrinha desde tempos imemoriais na
mais pacífica das posses sobre as terras que ocupa, está, há algum tem-
po, sendo constantemente perseguido por intrusos, que pretendem
desalojá-la.
Considerando essa tentativa uma violação dos seus direitos e dos da
sua tribo, o referido cacique vinha pedir ao ‘Papai Grande’ para lhes
mandar garantir a posse das terras e contínua tranqüilidade.
O Dr. Carlos Barbosa respondeu-lhe que, tomando na devida consi-
deração o justo pedido que se lhe fazia, ‘maxime em estando na con-
vicção de que aos ditos bugres assiste direitos incontestáveis de posse
sobre as terras que eles foram os primitivos habitantes, posse essa que
o governo lhes devia assegurar respeitando-lhes a vida e o regime por
que se governam’, ia tomar as providências precisas para que se não
fizesse, a título de civilização, nenhuma usurpação das suas terras.
Nesse sentido, o Dr. Carlos Barbosa, dirigindo-se ao Dr. Cândido Go-
doy, secretário das Obras Públicas e então presente, determinou-lhe
que mandasse [...] ‘proceder à medição e à demarcação da zona por
eles até agora ocupada’. Ficou também combinado entre os Drs. Car-

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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

los Barbosa e Cândido Godoy que o governo providenciaria, por ato


administrativo, ‘para que fosse respeitada a propriedade sobre essas
terras, até que, pela natural evolução, se achem eles definitivamente
incorporados à nossa sociedade’, época em que o estado, então, lhes
passará, se assim entender e for preciso, títulos parciais e definitivos
(Correio do Povo de 26/07/1908).

Outro dado que merece atenção envolve o pastor Stysinki (1902, p. 170),
que visitou os toldos Nonoai e Serrinha. Acreditamos que o referido missio-
nário, após observado pelos Kaingang, foi também cogitado para contrair
aliança com o grupo, uma vez que o Pã’í mbâng Manoel de Oliveira, liderança
do Toldo da Serrinha, numa roda de chimarrão com o pastor, “ofereceu com
gesto de simpatia e gratidão a mão de sua filha” em casamento e informou
inclusive, “que uma outra filha está casada com um coronel em São Paulo”.
Acerca de situações envolvendo fronteiras étnicas entre os Kaingang, as
quais nos parecem ser bastante fluidas, semelhantes às que ocorreram com
os Kaingang que ocupavam territórios das bacias do Rio Piquiri, temos a
seguinte narrativa:

As caracteristicas da raça aqui se conservaram bem, porem não tão


puras como em Lagoa Vermelha. Muitos brasileiros se ligaram com
indias e como estas tais uniões livres não são permanentes os descen-
dentes mestiços voltam ao Toldo. Ate uma menina com pele branca
encontrei com tipo caracteristico da raça branca, germanica de cabe-
los loiros avermelhados (Stysinski, 1902, p. 169).

Esta fluidez na fronteira étnica, isto é, aceitando casamentos e/ou en-


volvimento sexual com pessoas de fora do grupo Kaingang, explica-se inclu-
sive em razão do seu próprio passado mítico. Segundo Borba (1908, p. 22),
os gêmeos ancestrais Cayrucré e Camé casaram seus filhos e filhas entre si; já
os rapazes que sobraram vieram para a aldeia e desposaram mulheres Kain-
gang. Um estudo nesse sentido, embora com grupos asiáticos, é o de Barth,
“A identidade Pathan e a sua manutenção”, publicado pela primeira vez, em
1969, que aborda a questão da fronteira étnica da seguinte maneira:

96
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang

Tentei mostrar também que a travessia da fronteira étnica por um


indivíduo, ou seja, a mudança de identidade ocorre sempre que a per-
formance desse indivíduo não tem condições de sucesso e há outras
identidades alternativas ao seu alcance, permanecendo a organização
étnica intacta. Também abordei os problemas que ocorrem quando
o fracasso nas performances se torna uma experiência comum a mui-
tas pessoas, sem que haja uma identidade contrastiva ao seu alcance
que possa oferecer um ajuste alternativo, e procurei mostrar como
isso leva a uma mudança na definição de identidade étnica e, conse-
qüentemente, na organização das unidades e fronteiras (Barth [1969],
2000, p. 91).

Retornando ao Toldo da Serrinha, reforça o argumento da aliança que


teria sido estabelecida entre os Kaingang e suas lideranças com o pastor Bru-
no, o consentimento de pousarem para fotografias, conforme exposto no re-
lato a seguir:

Como tinha trazido minha maquina fotografica para tirar instanta-


neas eu experimentei algumas fotografias; uma choupana em Toledo,
o Cacique Antonio Pedro de Nonoai e o Cacique Manoel Oliveira
do Pinheiro Ralo com arco e flecha, uma mulher india quando tecia
um chapeu com um cachorrinho em baixo dos braços, uma menina
indigena de 5 anos bem caracteristica e algumas fotografias em grupo
(Stysinski, 1902, p. 169).

Demonstrações da contrapartida esperada pelos Kaingang em decor-


rência desta aliança aparecem no próprio relato de Stysinski (1902, p.170):
“Quando estava indo embora, reuniram-se alguns indios com o cacique para
me acompanhar uma parte do caminho, recomendando-me e lembrando va-
rios pedidos e soluções para seus problemas. Prometi-lhes que iria interceder
por eles e levei a serio minha promessa – infelizmente até agora com pouco
sucesso e exito”.
Posteriormente, dois missionários luteranos Curt Haupt e Otto von Ju-
trzenka, da Fundação Johannes de Spandauer, conforme Deckmann (1985),
também se dispuseram a realizar trabalho religioso com os nativos. Em 1903,

97
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

acompanhados de algumas lideranças do Sínodo Rio-grandense, reuniram-se


com o presidente do Estado. Deste encontro com Antônio Augusto Borges
de Medeiros, obtiveram as passagens de trem de Porto Alegre a Passo Fundo.
Dando continuidade ao trabalho missionário, em fins de julho de 1904,
partiram, então, para os territórios Kaingang das proximidades do Rio da
Várzea. A respeito da viagem, antes da chegada ao Toldo da Serrinha onde
pretendiam atuar, relatam “que depois de muita demora de oito dias em Pas-
so Fundo, onde compramos carretões e um cavallo, seguimos com a bagagem
em uma carreta no dez deste mez. A estrada do campo achava-se naquelles
dias chuvosos em pessimo estado, e, por isso chegamos aqui, (16 leguas além
de Passo Fundo) no dia 12” (Relatório de 19/08/1904, AHRS).
Em nosso ponto de vista, estes dois missionários foram considerados
pela ótica Kaingang no rol da aliança já estabelecida com o pastor Bruno
Stysinki. Há, também, indicativos de que não estavam dispostos a aceitar a
fé professada pelos luteranos, porque, entre os Kaingang, havia um Kujã (li-
derança religiosa) que cuidava tanto da saúde do corpo quanto a do espírito.
Um trecho do relatório diz que o “toldo tem seu proprio medico, um velho
com cabellos cinzentos, que nos contemplava com desconfiança, talvez que
suppondo em nós concorrentes [...]” (Relatório de 19/08/1904, AHRS).
A respeito da recepção dada aos missionários por parte dos Kaingang, o
relatório em questão informa:

No mesmo dia visitamos o Cacique Manoel Oliveira, que cheio de


satisfação sobre o cumprimento de nossa promessa que voltariamos,
cuidava muito de agasalhar-nos. A nova de nossa vinda, espalhou-se
imediatamente por todo o toldo e os índios vieram correndo, de
todos os cantos esprimindo a sua alegria em varios modos. ‘Agora
somos ricos!’ dizia um, e outros esclamaram: Oh! Como estamos ale-
gres! Outros queriam festejar na audeazinha, mas á nossa disenação,
prometteram-nos com um aperto de mão, de não ir tomar cachaça, e
até hoje nenhum foi (Relatório de 19/08/1904, AHRS).

Inicialmente, as relações entre os Kaingang e estes missionários foram


amistosas, uma vez que os indígenas visitavam-nos frequentemente e até mes-
mo gostavam de permanecer na companhia dos pastores, como é o caso, por

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Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
exemplo, de um filho do Pã’í João, que até mesmo jantou com os luteranos. É
possível pensar que os Kaingang estavam, certamente, realizando um ritual
de comensalidade que, pela lógica Kaingang, é comum com as pessoas de sua
convivência.
Porém, passado algum tempo, as relações dos Kaingang e de suas lide-
ranças com os referidos missionários começaram a mudar, conforme ilustra
o Relatório de 1904:

O motivo é que muita gente destes campos, tem estado a nos fazer
suspeitos ao Cacique Manoel Oliveira e a frente delle, somos ainda
hoje fez um tal Manoel em presença de 10 indios e do cacique. Não
possuimos pessoalmente a confiança de todos os habitantes do toldo
e não temos receio que corramos riscos; mas, é natural que em conse-
qüência de tais suspeições, nossa autoridade e influencia diminuirão
e os trabalhos para instrucção e educação soffram dannos (Relatório
de 19/08/1904, AHRS).

Para compreender estas mudanças por parte dos Kaingang, devemos


levar em consideração o contexto político do PRR, na região palmeirense,
onde, segundo Felix (1987, p. 104), o Coronel Firmino Paula, subchefe de
polícia, cooptado por Borges de Medeiros, tinha pleno domínio. No entanto,
a partir de 1903, passou a enfrentar a oposição do Coronel Serafim de Moura
Reis, intendente do município. Ora, Firmino Paula, certamente, não tinha
interesse que missionários luteranos estivessem interferindo, mesmo com
Kaingang, em sua área de jurisdição, porque poderia acarretar-lhe problemas,
principalmente no momento em que passava a ter seu poder contestado por
um outro coronel.
Embora a documentação manuseada não apresente dados, é pouco pro-
vável que Firmino Paula não tivesse ligações, possivelmente amistosas, com
parcialidades Kaingang, porque a área de jurisdição desse coronel se estendia
sobre os tradicionais territórios indígenas. Então, provavelmente, algum tipo
de aliança com os Kaingang deve ter influenciado para que a relação deles
com os missionários fossem enfraquecidas. As razões que nos levam a pensar
desta forma é justamente o fato de Curt Haupt e Ott von Jutrzenka terem
solicitado ao governo que intercedesse junto aos coronéis Firmino Paula e

99
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Messias Berthier, a fim de poderem dar continuidade ao trabalho, conforme


expresso no relatório:

Mas temos também um pedido especial que a ilustre commissão re-


presente ao Sr. Dr. Presidente do Estado, para que S. Escia. faça ciente
aos chefes da Região Serrana Sr. General Fermino de Paula em Cruz
Alta, do chefe em Nonohay – Sr. Messias Berthier, que é com consen-
timento de S. Exc. que principiamos o nosso trabalho aqui. O nosso
pedido é urgente, porque ao nosso ver, muito se perde do pronto
cumprimento (Relatório de 19/08/1904, AHRS).

Nesse sentido, uma outra correspondência, enviada em setembro de


1904 ao Presidente Antonio Borges de Medeiros, pelo Dr. With Rotermund,
do Sínodo Rio-grandense de São Leopoldo, fez a mesma solicitação, isto é, a
interferência do governo. No entanto, também não obteve sucesso (Relatório
de 10/09/1904, AHRS).
Em relação à postura do governo, concordamos com Paulo Pezat (1997),
ao afirmar que o presidente do Rio Grande do Sul, diante da situação criada,
não mostrou interesse que os referidos luteranos continuassem sua missão
“junto aos índios do toldo da Serrinha […], pois não poderia correr o risco
de incompatibilizar-se com Fermino de Paula, a mais importante liderança
política do PRR na região norte do estado [...], que exercia um mandato na
Assembléia de Representantes e tinha enorme capacidade de mobilização
eleitoral e militar, nos casos em que essas fossem necessárias” (Pezat, 1997,
p. 340).
Considerando estes acontecimentos, a Missão Luterana, sem o apoio do
governo estadual e com as pressões desfavoráveis das oligarquias da “região
serrana”, pôs fim a seu trabalho com os Kaingang.
As Missões Capuchinhas, que também passaram a trabalhar com os in-
dígenas Kaingang, devem ser entendidas, segundo Zagonel (1975), no con-
texto do convite efetivado, durante os primeiros anos da década de 1890, por
Dom Cláudio Ponce de Leão, para esta ordem atuar em áreas de colonização
alemã e italiana. O trabalho visava ensinar a língua portuguesa e amenizar
problemas relacionados à nacionalização.
Aceito o convite, os capuchinhos franceses Bruno de Gillonnay e Leon

100
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
de Montsapey, da Província de Sabóia, chegam, no início do ano de 1896,
ao Rio Grande do Sul e se instalam em Conde d’Eu (atualmente Garibaldi).
Logo depois, em 1898, novos missionários, como Alfredo de Saint Jean-d’Ar-
ves, Fidèle de La Motte-Servolex, Bernardino d’Apremont e Germano de
Saint-Sist, acompanhados de um grupo de seminaristas franceses que esta-
vam no Líbano, também vieram para ampliar a área de atuação religiosa
(Zagonel, 1975).
Em 1900, ampliando o trabalho, começam a atender a população dos
Campos de Cima da Serra, nas paróquias de Vacaria e Lagoa Vermelha. É
neste momento, então, que se deparam com os Kaingang que viviam em
territórios das Bacias Hidrográficas dos Rios Lageado e Forquilha. Sobre os
primeiros contatos travados com estes nativos, encontramos referências, ini-
cialmente, numa carta, de dezembro de 1903, do frei Fidèle de La Motte-Ser-
volex, a qual, parafraseada por Paulo Ricardo Pezat, informa o seguinte:

[...] após alguns dias de excursão pela mata, acompanhado de um gru-


po de homens conhecedores dos hábitos indígenas, atingiu um sítio
recém abandonado pelos ‘selvagens’, temerosos que eram de qualquer
contato com os civilizados. Mesmo reconhecendo que a aproximação
seria dificultada pelo temor que os índios tinham dos brancos, o frei
La Motte-Servolex mostrava-se confiante quanto as potencialidades de
sucesso em sua missão de levar-lhes ‘as vantagens da fé e da civiliza-
ção’. No entanto, o grupo conduzia armas de fogo, prevenindo-se de
um possível ataque (Pezat, 1997, p. 308).

Neste mesmo ano, o frei Bruno de Gillonnay, superior da missão ca-


puchinha no Rio Grande do Sul, também faz uma visita aos Kaingang da
região, segundo o relato a seguir:

Nas florestas do norte do Estado existem ainda algumas tribos dos


grupos que ocupavam o Brasil quando de sua descoberta. Um dos
nossos missionários, Frei Afredo de Saint Jean-d’Arves, numa de suas
inúmeras excursões apostólicas havia conseguido chegar até esses in-
felizes. Em vista do relatório que me apresentou, resolvi visitá-los eu
mesmo com o objetivo de verificar se haveria possibilidade de empre-

101
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ender algo para lhes proporcionar os benefícios da civilização [...].


Essas tribos são restos dos primeiros habitantes do Rio Grande do
Sul. O povo os chama bugres, mas eles rejeitam tal denominação, que
convém aos índios ferozes, que habitam as profundezas das florestas.
Cada tribo tem seu chefe reconhecido e aceito [...]. É um povo que
desperta grande interesse. Por isso pensei logo em organizar a evange-
lização desses pobres abandonados. A primeira condição seria reuni-
-los, porque é quase impossível chegar a cada um deles. Para chegar a
seus toldos é preciso viajar vários dias pela floresta, transpor árvores
arrancadas, atravessar a vau cursos d’água, que se tornam intranspo-
níveis à menor chuva; cavalgar por atalhos obstruídos, por banhados,
barrancos, etc. Conversei com os chefes, falei com as autoridades civis
e ficou estabelecido que se tentaria junto ao Governo do Rio Grande
do Sul obter uma área de terreno no município de Lagoa Vermelha,
às margens do rio Forquilha, para aí reunir os diversos toldos e que,
em seguida, um missionário, ou dois, ocupar-se-iam de sua instrução
religiosa e civil. Os chefes com os quais falei prometeram usar de sua
influência junto aos chefes das outras tribos, no sentido de mostrar-
-lhes as vantagens e decidi-los a realizar este projeto de união (Corres-
pondência de 1903. In: RSFD’A, 1904, p. 236-240).

As parcialidades Kaingang e suas lideranças, provavelmente, tinham co-


nhecimento das alianças vantajosas dos parentes que ocupavam os territórios
das bacias dos Rios da Várzea e Passo Fundo com os missionários luteranos,
por volta do referido período. Em vista disso, também resolveram sondar
possibilidades de fazerem o mesmo com os freis capuchinhos, que insistiam
em aproximar-se deles.
Feitos os primeiros contatos com os religiosos, os Kaingang e suas lide-
ranças mantiveram-se cautelosos em relação a alianças com os colonizado-
res. Razões que justicam a cautela não faltaram. Entre essas apontamos as
disputas entre coronéis, provavelmente, maragatos que circulacam na região,
como, por exemplo, o grupo de Felipe Portinho, que aparece trabalho de
Félix (1987).
Em relação às missões religiosas com os Kaingang em território rio-

102
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
-grandense, constatamos, que tanto com os jesuítas, em meados do século
XIX, como com os capuchinhos e luteranos, nos primeiros anos do século
XX, e com os funcionários da Diretoria de Terras e Colonização, os Kain-
gang e seus líderes aceitaram as negociações propostas, mas orquestraram
a aliança de acordo com a sua cultura. Isto é, enquanto estavam recebendo
alimentos, objetos, sementes e, principalmente, proteção em relação às par-
cialidades inimigas, permaneceram nos toldos; porém, após os seus objetivos
terem sido atingidos e as necessidades supridas, muitos desses nativos deixa-
vam o local.

Considerações finais

O presente estudo, cujo ponto de vista é a própria historicidade desempe-


nhada pelos Kaingang e pelas lideranças que representavam as parcialidades
que constituíam cada grupo indígena, diante do avanço da Sociedade Colo-
nial e Pós-Colonial brasileira, procurou contribuir para a revitalização da his-
tória Kaingang, em especial, durante as comemorações dos grupos étnicos,
na constituição histórico-cultural de Passo Fundo, pelo fato de, conforme foi
demonstrado, tratamos de um tradicional território indígena Kaingang.
Vale salientar que, apesar das aproximações da história com a antropo-
logia e com pesquisas interdisciplinares envolvendo também a arqueologia,
a biologia, a linguística, a arquitetura, o direito, entre outras áreas do conhe-
cimento, há muito mais atuação e protagonismo Kaingang do que, de fato,
conseguimos investigar, pois nos limitamos ao manejo de fontes produzidas
por não índios; portanto, tendenciosas, que, como já referimos, insistem em
invisibilizar os Kaingang, ou mesmo deixá-los em segundo plano, aparecen-
do, algumas vezes, no máximo como coadjuvantes do processo histórico.
Esta situação não é novidade, pois, apesar de os trabalhos sobre populações
indígenas estarem aumentando consideravelmente nos últimos anos, confor-
me Manuela Carneiro da Cunha (1992, p. 11), conhecemos relativamente
pouco da história indígena; entretanto, “hoje está mais clara, pelo menos, a
extensão do que não se sabe”.
Constatou-se, nos eventos arrolados, a presença de uma lógica indígena

103
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

em que as parcialidades Kaingang e as respectivas lideranças que as represen-


tavam aparecem como agentes e não apenas como vítimas dos acontecimen-
tos relacionados à calonização. Ou seja, pensaram em seus próprios termos
o fato de terem que estabelecer alianças ou deflagarem guerra em relação a
um “outro” possuidor de uma capacidade bélica diferente de tudo aquilo que
conheciam e arcar com as conseqüências da escolha que viessem a fazer.
Há também o fato de que, dependendo dos seus interesses, cada par-
cialidade Kaingang aceitou ou rejeitou estabelecer negociações e alianças
com os não índios; porém, tanto uma quanto a outra opção poderia mudar,
conforme o decorrer dos acontecimentos. É neste sentido que também deve-
mos entender o colaboracionismo prestado aos colonizadores por alguns Pã’í
mbâng (cacique maiores) e Pã’í (chefes menores), que não pode ser compre-
endido como se eles estivessem simplesmente traindo seu povo. Ou seja, tais
conflitos não eram ocorrências aleatórias, mas tinham muito mais o objetivo
de os Kaingang utilizarem o que os não índios tinham a oferecer do que
guerrearem contra as parcialidades inimigas. Exemplifica a questão o fato
de que jamais a parcialidade de Fongue, que perseguia o grupo do Pã’í mbâng
Nicafim, tenha guerreado contra a parcialidade de Doble, com quem mantinha
alianças. O mesmo acontecia com Nicafim e seus guerreiros, que, constante-
mente, lutavam contra as parcialidades lideradas por Braga, mas nunca foram
perseguidos por Condá, parcialidade com quem eram pleiteadas alianças.
Em relação à ferrovia, trecho da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Gran-
de, a construção estendia-se sobre os territórios ocupados pelos Kaingang
desde a segunda metade do século XIX. Entretanto, os contatos confliti-
vos de que temos conhecimentos envolvendo Kaingang e trabalhadores das
companhias ferroviárias somente ocorrem em 1903, quando os dormentes
da estrada atingem os tradicionais territórios Kaingang, próximos às bacias
hidrográficas dos rios Uruguai e Lageado. Relativo às missões dos freis Bru-
no de Gillonnay; Fidèle de La Motte-Servolex, Alfredo de Saint’-Jean d’Ar-
ves e o catequista capuchinho Ricardo Zeni, entre 1900 e 1913, sabe-se que
mantiveram contato, principalmente, com os Kaingang em Lagoa Vermelha,
mais precisamente entre os rios Lageado e Forquilha. Algumas parcialidades
que viviam no Toldo de Faxinal ali permaneceram, porque estavam locali-
zadas em seu tradicional território. Já outras, após estabelecerem alianças
com os referidos capuchinhos, mudaram-se para o Toldo de Cacique Doble.

104
Redes de atuação e movimentações de grupos étnicos Kaingang
Situação semelhante acontece com o pastor luterano Bruno Stysinski, a pro-
fessora Adele Pleitner e os missionários Curt Haupt e Otto von Jutrzenka,
que, entre 1900 e 1904, no Rio Grande do Sul, procuraram desenvolver uma
missão religiosa com os Kaingang. Ou seja, inicialmente o pastor Bruno e a
professora Adele mantiveram contato com os Kaingang do Toldo Ligeiro e,
provavelmente, também com os do Toldo Faxinal, em Lagoa Vermelha, mas
estes toldos já contavam com a presença dos capuchinhos. Em vista disso, o
pastor Stysinski e os missionários Haupt e Jutrzenka passaram a dedicar-se
a missionar os Kaingang que viviam em territórios da Bacia Hidrográfica
do Rio Passo Fundo, principalmente, os do Toldo Serrinha. Num primeiro
momento, os Kaingang não se opuseram ao contato, mas, com o passar do
tempo, começaram a ser hostis, pelo fato de avaliarem a situação em seus
próprios termos.
Para finalizar, ao tratar da temática indígena, embora não tenha sido o
enfoque da análise, salienta-se a falta de políticas efetivas e adequadas aos
Kaingang, na atualidade, no que se refere à revitalização de sua cultura e à
realidade de marginalização social e econômica a que eram e são expostos,
sobretudo, no que se refere à necessidade de territórios mais amplos e demar-
cados. A terra não demarcada, por exemplo, é argumento constantemente
usado para justificar a ausência de atenção primária por parte dos órgãos
públicos responsáveis. Como se não bastasse, são tratados como sociedade
transitória, o que não tem mais sustentação, como muito bem ilustram os
eventos indígenas analisados em territórios da Bacia Hidrográfica do Rio
Passo Fundo e adjacências, onde, ao contrário de transitoriedade, a história
e a continuidade da cultura Kaingang apresentam-se como uma realidade
constante, atual e que estão aí para ficar.

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111
Os portugueses e luso-brasileiros
em Passo Fundo

Welci Nascimento1

Introdução

Os primórdios de Passo Fundo se cruzam com as tradições do povo de
Portugal. Desde que o primeiro morador da cidade, Manoel José das Neves,
mais conhecido como “Cabo Neves”, descendente de família portuguesa,
nascido nas terras de Curitiba, no Paraná, Passo Fundo foi consagrado a
Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Certamente, por isso, ele doou uma
gleba das terras que ganhou do Governo Imperial, do Brasil, aqui, no norte
da Província do Rio Grande do Sul, para que fosse, nesta terra, levantada
uma Capela da Igreja Católica em honra a Nossa Senhora.
Joaquim Fagundes dos Reis, também de origem portuguesa, Juiz de Paz

1
  Bacharel em Ciências Jurídicas e sociais, licenciado em pedagogia pela Universidade
de Passo Fundo. Exerceu magistério por 35 anos. Membro da academia Passo-fundense
de Letras e do Instituto Historio de Passo Fundo. Autor de várias obras sobre história de
Passo Fundo.

113
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

do imenso território de Passo Fundo, subscreveu o pedido à autoridade ecle-


siástica da capital da Província para que fosse erigido o templo. E assim acon-
teceu. Foi construída uma capela, rústica, sem ainda possuir um pároco, mais
ou menos onde hoje está situada a Catedral Metropolitana Nossa Senhora
Aparecida na Avenida General Neto.
Pouco a pouco, começa a chegar portugueses e seus descendentes do
povoado de Passo Fundo de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Passo
Fundo, também tem tudo a ver com os portugueses que vieram das Ilhas de
Açores, arquipélago português formado por nove ilhas, tais como: São Mi-
guel, Santa Maria, Terceira, Faial, Pico, São Jorge, Graciosa, Flores e Corvo.
Essas ilhas ficam distantes, mais ou menos, 1600 quilômetros do continente
português. O nome Açores é bastante polêmico. Sabe-se que esse nome foi
dado pelos descobridores do arquipélago como sendo o nome de uma ave de
rapina de existia por ali. Daí o seu nome: Ilhas de Açores. Foram, portanto,
os portugueses e seus descendentes que dera impulso no desenvolvimento de
Passo Fundo. Vejamos, um pouco, essa História.

O descobrimento...

Nossos professores nos ensinaram, nas aulas de história, que foi Pedro
Alves Cabral, navegador português, que descobriu o Brasil, porque ele teria
se afastado, demasiadamente, da costa africana e, em consequência, veio dar
por aqui, no ano de 1500. Em seguida, ele ergueu uma grande cruz para mar-
car posse da terra.
Diz-se que o navegador buscava um ponto de apoio para alcançar as
Índias, lugar de muitas especiarias e condimentos. Na rota, a esquadra por-
tuguesa procurava evitar as calmarias, isto é, as faltas de ventos, no caminho,
rumo ao Oriente, porque essas tais de calmarias deixavam as caravelas à de-
riva, junto à costa.
Dizem que os portugueses, donos dos mares, naquela época, já sabiam
da existência de novas terras. Pedro Álvares Cabral vinha com uma super
esquadra, para marcar a posse e foi, logo, em direção às Índias, seu objetivo.
Trinta anos depois, os portugueses, com mais de 400 tripulantes, em
cinco grandes navios, aqui chegaram, trazendo plantas, sementes, animais.
Era a primeira expedição portuguesa, que vinha para ficar.

114
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

São Vicente, no litoral paulista, marca o início da colonização portugue-


sa no Brasil.

O Rio Grande do Sul...



Passados mais de duzentos anos do descobrimento do Brasil, o portu-
guês José da Silva Paes, com duzentos e cinquenta homens desembarcaram
no Continente de São Pedro do Rio Grande do Sul, para fundar, em 1737, a
primeira povoação portuguesa.
A esquadra saiu de Lisboa, fez uma escala no Rio de Janeiro, para reco-
lher mais soldados e partiu rumo ao Rio da Prata.
Os portugueses pretendiam expulsar os espanhóis de Montevideo, so-
correr a Colônia do Sacramento, que estava sitiada e para ocupar a Barra do
Rio Grande de São Pedro, ponto estratégico para a ocupação do Sul.
Silva Paes era engenheiro, arquiteto e militar especializado na constru-
ção de fortes. Ele deixou homens a montar guarda no Chuí e deu início às
obras do presídio chamado Jesus, Maria e José. Fabricou uma fortaleza, com
fossas, pontes, levadiças e quartéis.
Assim que instalou o forte, José Paes começa a distribuir as primeiras
sesmarias a quem se dispusesse a fincar estâncias, entre a Lagoa Mirim e a
Mangueira.

O arquipélago...

“Longínquo ano de graça de 1720. No arquipélago dos Açores, como fa-


ziam há séculos, as ondas bravias do oceano Atlântico, escavavam as rochas
vulcânicas, derramando a branca espuma, sobre as pedras negras ovaladas,
que se amontoam pelas “fajans” desnudam de areia, e repletas desses casca-
lhos moldados pelo interminável vai-e-vem das marés.
Como tantos outros, parentes, vizinhos e amigos, Simão Dias ganha a
vida e o sustento no mar. Hoje não foi diferente, passaram a noite num barco
de gacha de vela dupla, juntamente com outros barcos volantes na caça do
atum. Serviços perigosos que requer astúcia, manha e paciência para primei-

115
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ro cercar o cardume e depois, força e coragem para içá-los da rede com a


fisga, esses valiosos atuns cinza de vinte até duzentos quilos, tendo ainda de
desviar os braços e pernas de suas nadadeiras serrilhadas que cortam como
serrote.
Outros dias as enseadas das Ilhas do Corvo e das Flores fervilhavam de
cardumes de garoupas, tubarões, espadartes e peixes espadas, carrancudos
uns, agressivos outros, mas que dão grossos filés, enchendo a algibeira dos
pescadores de Miles de reais insulanos na Ponta Delgada de São Miguel,
onde são vendidos. O restante, os mais miúdos, de dois quilos para baixo, são
enfiados pelas guelras no polegar e no rei de todos e oferecidos aos açorianos
ao longo do porto.
Hoje, Simão está com pressa de chegar em casa, sua aldeia fica na Ilha
Terceira, horas de barco dali, depois de vender sua pesca da noite, ainda tem
que bater muito remo na sua canoa de carvalho...” (Ayres, 2016).

Chegam os açorianos...

No arquipélago de Açores, descrito pelo escritor passofundense Odilon


Garcês Ayres, havia excesso de população e, também, muita dificuldade para
o povo viver e trabalhar. Esse arquipélago pertence à República Portuguesa.
Esta, por outro lado, quer povoar a terra que lhe coube pelo Tratado de Ma-
dri e manda para o Brasil meridional casais de açorianos. Portugal tinha em
mente mandar casais de açorianos para Santa Catarina e Rio Grande de São
Pedro.
As distribuições dessas terras foram confusas e demoradas. Os casais
de açorianos sofreram muito sem ajuda prometida pelas autoridades. E os
“lotes” de famílias foram chegando no Brasil meridional: cem, duzentos, tre-
zentos... E, dessa maneira, os espaços de terra iam sendo preenchidos.
Os primeiros açorianos desembarcaram aqui em 1748, em Santa Ca-
tarina e, dai, partiram em embarcações menores, em direção ao Rio Grande
do Sul. Aqui eles fundaram as primeiras povoações: Porto Alegre, Viamão,
Mostardas, Osório, Santo Antônio da Patrulha, dentre outras.

116
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Influência portuguesa

A tradição açoriana, ao lado daqueles trazidas pelos remóis do Ninho e


da Alantejo marcou profundamente a formação do Rio Grande do Sul. Na
linguagem, na vida doméstica, na gastronomia, nas crenças religiosas, nas
superstições, nos adágios e quadrinhas populares, nas técnicas de agricultura,
na pesca, no artesanato e nas arquiteturas, foram marcantes. O folclorista
Paixão Côrtes, um dos fundadores do Movimento Tradicionalista Gaúcho,
foi um dos que liderou o resgate das danças, das músicas e do linguajar dos
açorianos na região de Mostardas, Osório e Santo Antônio da Patrulha.
Guilherme César, escritor rio-grandense, assim se expressou sobre o
povo português dos Açores: “[...] no seu modo de agir, de ser, os açorianos
representam um fator de equilíbrio de agir, na sociedade de guerreiros que no
século XVIII projetou no extremo Sul”.
Com o passar do tempo, os portugueses tornaram-se campeiros, cam-
peadores e as regiões de Santa Catarina, especialmente no litoral e do Rio
Grande do Sul, iam sendo povoadas pelos portugueses. Hoje, considerável
percentual na população dessas regiões possui pais, avós nascidos no conti-
nente português e no arquipélago, como um avô paterno que nasceu na Ilha
Faial, nos Açores em 10 de abril de 1832. Ele veio para o Porto dos Dorneles,
residindo, definitivamente em Caçapava do Sul do ano 1858. José Silvestre
Vargas, esse era o seu nome.
Othelo Rosa, no livro “Formação do Rio Grande do Sul”, sobre a in-
fluência exercida pelo povo açoriano na formação do Rio Grande diz: “O
açoriano exerceu influência preponderante na forma do gaúcho”. Aurélio
Porto não vacilou em dizer, textualmente: “A contribuição dos Açores no
povoamento inicial do Rio Grande do Sul é a maior de todas”.
“Era um tipo de boa estirpe, remanescente da raça lusitana dos grandes
tempos”, continua Othelo. “Portador de uma excelente tradição doméstica, o
açoriano, com seus lares fechados e severos, legaria ao gaúcho uma herança
moral de incalculável valor. Eram os casais, isto é, os homens que chegavam
com a sua família, que traziam um lar consigo, o que, em muito, os imuniza-
riam de convivência sexuais estranhas, permitindo-lhes criar no Rio Grande

117
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

do Sul antigo aquele homem alto, espadaúdo, de porte elegante e ágil, de tez
e cabelos claros. ” (Hilaire; Cardim; Pena; Garcia; Abreu; Caetano, 1939).
Trabalhadores, alentados pela presença de mulheres de vontade rija, de-
votados ao meio familiar, os açorianos, em um verdadeiro milagre de adap-
tação ao meio, far-se-ão dentro de pouco tempo, nos nossos campos, os cava-
leiros e soldados destemidos e galhardos.
“Poucos e simples, os divertimentos nos galpões, os gaúchos dançavam
o fandango, que iriam gradualmente invadindo recintos mais elevados. Can-
tavam e bailavam à moda portuguesa, o tatu, a chimarrita, a tirana, ao som
da viola, os poetas populares iam criando uma poesia popular”. “Na base de
uma economia pobre, a sociedade rio-grandense se desenvolvia lentamente,
sem surtos, sem desníveis” (Hilaire; Cardim; Pena; Garcia; Abreu; Caetano,
1939).
A imaginação popular teceria suas lendas: o boitatá, por exemplo, e a
mais bonita de todas, a do Negrinho do Pastoreio.
Os açorianos eram destinados à agricultura. Basta ver que as famílias
açorianas que vieram morar em Passo Fundo sabiam lidar com leitaria. Fo-
ram trabalhar nas chácaras existentes nos arredores da cidade. No bairro Vera
Cruz, no Valinho, na Vila Santa Marta, por exemplo, muitas famílias vindas
das Ilhas Açores, ali se estabeleceram, trabalhando nas áreas agrícolas em
pequenas chácaras, pois sabiam lidar com a terra em pequena escala.
Ao longo do tempo se misturam Ilhéus com paulistas de várias proce-
dências, paranaenses, catarinenses, povoadores primitivos de Viamão, reti-
rantes da Colônia do Sacramento, lusos e espanhóis. As famílias rio-gran-
denses, nesse tempo distante, apresentam uma grande variedade genealógica.
Muitos hábitos contrastaram com a vida pacata dos nossos irmãos açorianos.

118
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Paisagens da Ilha dos Açores em Portugal.



O cavalo, o churrasco e o chimarrão não pertenciam ao dia-a-dia dos
portugueses. O cavalo era o companheiro inseparável das lidas campeiras e
para vencer distâncias.
O churrasco era a forma de alimentação apropriada do homem que não
tem muito tempo a perder. Mas, era um meio, e ainda é, e um pretexto alegre
de reunião, de convívio.
Dizem que para combater o excesso de carne, o gaúcho toma o seu mate
amargo, o chimarrão. Não o toma sozinho, toma-o na clássica roda de chi-
marrão, em que a cuia passa de mão em mão, enquanto se conta causos. A
roda de chimarrão é um hábito que decorre da formação do Rio Grande, do
povo rio-grandense.
Esses hábitos foram incorporados no meio das famílias portuguesas, es-
pecialmente nas famílias açorianas.

119
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Brasão português. Fonte: Acervo pessoal de Manoel Henrique Ávila.

Os curitibanos portugueses

Sob o comando do major Athanagildo Pinto Martins, chega a tropa
desse comandante nas nascentes do rio Uruguai-Mirim. Foi então aberta a
picada do Mato Castelhano de domínio espanhol. Em vista da incorporação
do planalto rio-grandense à coroa Portuguesa, chegam os tropeiros paulistas.
Por volta do ano de 1822, não sabemos, exatamente a data, chega por
aqui, procedente da Comarca de Curitiba, o ocupante inicial da cidade de
Passo Fundo. Seu nome é Manoel José das Neves, descendente de portugue-
ses. Ele chegava aqui com a sua família e seus pertences. Também chegam os
paulistas Rodrigo Felix Martins, Alexandre da Mota, Joaquim Fagundes dos
Reis, todos curitibanos, descendentes de portugueses. E assim, com o decor-
rer dos anos, outras famílias foram chegando, todas descentes portugueses,
como Martins, Quadros, Amaral, Bueno de Moraes, Pereira, Matos, Ávila,
Machado Rocha, Castanho, Novais, Teixeira, Lisboa, Nascimento, Biten-
court, Azambuja e tantas outras famílias luso-brasileiras que iam compondo,
gradativamente, a teia populacional passofundense.

120
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Planta da Freguesia de Passo Fundo, em 1853, elaborada por Manoel José das Neves.

Bernardo Castanho da Rocha, por exemplo, que leva o nome de uma


importante rua no histórico “Boqueirão”, nasceu e foi batizado na Vila de
Castro, no Paraná. Ele atuou como Juiz de Paz, subdelegado de Polícia e
Vereador de Passo Fundo. Outro como Teodoro da Rocha Ribeiro, vindo,
também, daquela região, comandou em Passo Fundo a Guarda Nacional,
durante a Revolução Farroupilha. Joaquim Fagundes dos Reis, homenagea-
do com o nome de escolas e ruas de Passo Fundo, fez parte do movimento
emancipacionista de Passo Fundo.
Os primeiros moradores das localidades de Campo do Meio, Mato Cas-
telhano e Povinho Velho eram descendentes de portugueses. Além dos índios,
logicamente. Campo do Meio era uma campina medindo 6 léguas de compri-
mento, de norte a sul, cortada pela antiga estrada dos tropeiros, frequentada
pelo comércio português entre o Rio Grande e São Paulo.
Essa campina fora chamada de “Porteira Grande dos Jesuítas”. Ali os
espanhóis fixaram uma guarda na estrada de um bosque que chamou de
“Mato Castelhano”. Ali eles ergueram uma capela católica. No entanto, os
portugueses paulistas alcançaram outro lugar, que denominaram de Mato
Português. Os portugueses também colocaram, ali, uma guarda. Havia, por-

121
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

tanto, uma acirrada luta entre portugueses e espanhóis no território de Passo


Fundo.
Povinho Velho, localizado nas vizinhanças da cidade de Passo Fundo,
era um pequeno núcleo de moradores situados na estrada que seguia em di-
reção à Lagoa Vermelha, hoje às margens da estrada BR 285, em direção ao
município de Mato Castelhano. Havia, também, o “Povinho da entrada, ao
sul do Povinho Velho”, que desapareceu na memória do povo. Campo do
Meio foi elevado à categoria de Distrito de Passo Fundo, Mato Castelhano,
também e, posteriormente, emancipado.
Os portugueses de origem, vindos da região de Curitiba chegam em Pas-
so Fundo, erguem uma capela, constroem um cemitério e o núcleo popula-
cional cresce, paulatinamente, desenvolve-se e se transforma numa grande ci-
dade no Planalto Médio Rio-grandense, graças, inicialmente aos portugueses
e seus descendentes, que para aqui vieram.

A ferrovia de Passo Fundo

No ano de 1890 foi constituída uma comissão de estudos para instalar a


estrada de ferro em Passo Fundo. O governo indica para dirigir os trabalhos
ao técnico e engenheiro João Teixeira Soares, hoje nome da rua da cidade.
Ao lado dele, o engenheiro Marcelino Ramos da Silva, também, hoje, nome
de uma rua central da cidade. Esses dois engenheiros eram experimentados
na construção de outras estradas de ferro no Paraná e no Rio de Janeiro.
A construção da estrada de ferro, começando em Santa Maria, alcança-
va Cruz Alta, Carazinho e, finalmente, Passo Fundo. Dois portugueses fize-
ram parte dos trabalhos que instalaram a estrada em Passo Fundo: Antônio
Alves Ramos, preiteiro de construção e Antônio Costa. Eles sub-empreita-
vam a construção de pontes, nivelamento da linha, construção de casas, entre
outras tarefas. Eles ficaram residindo na cidade.
A inauguração da linha férrea em Passo Fundo foi um grande aconteci-
mento; migraram, por trem, ilustres pessoas da companhia construtora.

122
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Os açorianos em Passo Fundo



Da Ilha São Jorge do arquipélago de Açores, em Portugal, vieram morar
em Passo Fundo muitas pessoas. Do continente, certamente, vieram outras
famílias. Conheci um português açoriano, Manoel Henrique Ávila, filho de
Manoel Antônio Machado Ávila e Izabel Ávila. Manoel e dona Banícia, sua
esposa, residem na rua Pasteur nº 153. Fui visitá-lo. Ele nos disse que chegou
ao Brasil, ou melhor, em Passo Fundo, no ano de 1961 a procura de trabalho.
Vindo de navio, desembarcou no Rio de
Janeiro, então capital da república. O se-
nhor Manoel, inicialmente, foi morar no
bairro Valinho, para trabalhar na chácara
do Sr. Madaloso, disse ele. Relatou que
em Passo Fundo já moravam seus irmãos
Tibério e Filomena. Manoel está com 84
anos de idade e possui um pequeno arma-
zém na sua residência, no bairro Nonoai.

Manoel Henrique Ávila, 84 anos,


morador do bairro Nonoai em
Passo Fundo.

Mala feita de madeira que Manoel


trouxe seus pertences para morar
em Passo Fundo.

Outro açoriano, natural da Ilha São Jorge, é o senhor João Henrique de


Matos. Ele, com sua família reside na Vila Santa Marta, há mais de 50 anos.

123
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Está completando 94 anos de idade, conversa muito bem e tem boas lembran-
ças de sua terra natal.

Documento da imigração de João Henrique Matos para o Brasil.

João Henrique de Matos chegou em Passo Fundo no dia 14 de março


de 1953 para residir na localidade de São João e, logo em seguida mudou-se
para o bairro Valinho para trabalhar na chácara do Sr. Rodolfo Madaloso.
Durante muitos anos ele abasteceu a cidade vendendo leite.

124
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

João Henrique de Matos, com sua esposa Elisabeta de Matos, filhos e netos, por
ocasião da comemoração de seus 90 anos.

Foi João Henrique e sua esposa Elizabete de Matos que introduziram


os festejos do Divino Espírito Santo em Passo Fundo. Até hoje o casal e seus
filhos realizam a festa do Divino na Vila Santa Marta. Do matrimônio nas-
ceram cinco filhos.

Sociedade Portuguesa do Divino Espírito Santo de Passo Fundo.

125
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Na cidade, reside a senhora Rosa Bitencourt, viúva do senhor Luduvico


Bitencourt. Este foi um dos primeiros portugueses açorianos que veio morar
em Passo Fundo. Ela contraiu matrimônio na Ilha São Jorge. Vieram morar
em Passo Fundo no ano de 1961 para trabalhar no ramo de leitaria. Também
falei com a senhora Amarantina de Sousa, ou melhor, Maria Amarantina
de Sousa. Ela está com 80 anos de idade, natural do arquipélago de açores,
tendo chegado em Passo Fundo o dia 17 de abril de 1962. Como todos eles, o
motivo que levou a se mudarem para o Brasil, em especial para Passo Fundo
era a dificuldade para se viver, lá na ilha portuguesa.

Foto de Rosa Bitencourt e passaporte de Ludovico Bitencourt.

126
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Tantas outras famílias, descendentes de portugueses, aqui residem como


Rosa ou da Rosa, Martins, Pereira, Oliveira da Costa. A família Oliveira
Melo, que migrou para morar no Planalto Médio na segunda metade do sé-
culo XX, deixou vasta descendência em Passo Fundo e Carazinho. Podemos
também citar, a família Resende, Teixeira, Medeiros, luso-brasileiros que aju-
daram no desenvolvimento de Passo Fundo.
Na cidade temos uma rua com o nome de “Padre Guedes”. Ele nasceu
em Portugal, seu nome completo era José Ferreira Guedes. Coube-lhe a tare-
fa de promover a construção da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição,
iniciada no ano de 1893, em plena Revolução Federalista que ensanguentou
Passo Fundo, em virtude dos inúmeros combates nas cercanias da cidade e
no interior do município, com destaque à batalha do Pulador. O Pe. Guedes,
assim ele era conhecido pelo povo, faleceu dia 9 de novembro de 1902. Ele
costumava percorrer o extremo território de Passo Fundo montado num ca-
valo manso. Um poeta passo-fundense assim se expressou, por ocasião do
seu velório:

“Viandante, quando tu passares por este


sítio funerário em que repousa
o bom vigário que ao bem ergue tanto altares”

Outra figura ilustre, português, que leva o nome de uma rua na nossa
cidade é Eduardo de Brito, um dos primeiros professores da cidade. O Pe.
Ramos que antecedeu ao Pe. Guedes de Passo Fundo era português de nas-
cimento. Ele integrou a comissão de abolicionista de Passo Fundo. A ideia
abolicionista surgiu impetuosamente, avassalando o município, inspirada no
espírito liberal. “A escravidão é uma vergonha para o Brasil”, diziam.

127
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A Festa do Divino Espírito


Santo

A tradição do divino chegou em Passo


Fundo na metade do século XX, ocasião
em que as famílias de origem portugue-
sa, relembrando as tradições das ilhas dos
Açores, sua terra natal, se alegravam com o
seus pais faziam no longínquo arquipélago.
Os festejos do Divino Espírito Santo
eram realizados na Igreja Matriz Nossa Se-
nhora da Conceição. A Praça Tamandaré,
toda enfeitada, recebia as famílias e os por-
tugueses procuravam repetir os gestos e a
devoção do povo de Portugal.
Casa Barão em 1865; residência
do Sr. Antônio da Silva Loureiro,
nascido em Braga, Portugal, em
1835. Localizada na Av. Brasil,
esquina com Capitão Araújo.

Procissão na Festa do Divino, em 1988, na Vila Vera Cruz.

128
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Em 1982 a Igreja recebeu a visita de um casal português, que residia


no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Presidia os festejos o senhor Ludu-
vico Bitencourt que fez a saudação ao casal visitante. Dizia ele: “Esta é uma
festa de Deus do Amor”.
Os devotos do Divino abriram sua morada. A comunidade açoriana que
residia no município de Passo Fundo começou a se formar por volta de 1945,
quando os primeiros açorianos chegaram ao município. Logo que se estabe-
leceram em Passo Fundo, foram trabalhar como funcionários em leitarias.
Através de muito trabalho adquiriram suas propriedades e se dedicaram prin-
cipalmente à agropecuária e ao comércio.
Ao saírem de sua terra natal, o arquipélago do Açores, os açorianos
trouxeram em sua bagagem os seus costumes, a sua cultura e não deixaram
de vivenciá-la neste novo lar. Os encontros entre os patrícios, a comida, a
religiosidade, os valores continuam presentes entre os integrantes desta co-
munidade. Todos os anos, tradicionalmente, eles celebram a Festa do Divino
Espírito Santo, a festa de Pentecostes, pois o povo açoriano tem grande devo-
ção aos milagres atribuídos ao Espírito Santo. Nos dias que antecedem esta
festa, a comunidade açoriana, juntamente com a comunidade local, reúne-se
para preparar os alimentos típicos e fazer a tríduo em preparação à festa. No
domingo de Pentecostes realiza-se a missa conforme os festejos que ocorrem
até hoje nos Açores.
A Festa do Divino Espírito Santo em terras açorianas é atribuída a Rai-
nha Santa Isabel, a dama do milagre do pão e das rosas, que era esposa do
Rei de Portugal, Dom Dinis. Era uma mulher de fé inabalável e de grande
coração, pois, mesmo contrária ao esposo, ajudava muitos aos mais pobres e
necessitados.
Sobre os milagres atribuídos ao Divino Espírito Santo, conta a história,
que certo dia enquanto a rainha passava pelos jardins, dirigindo-se às por-
tas do palácio, com o avental carregado de pães para os pobres, cruzou-se
com seu marido que a questionou sobre o que carregava. Ela então disse que
eram rosas e, ao abrir o avental, caíram rosas no chão. Durante a missa de
Pentecostes realiza-se a coroação de uma criança. Este gesto teve origem na
promessa da rainha, Santa Isabel de Aragão, por volta de 1320.

129
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A Rainha da Festa do Divino, em 1988, na Vila Vera Cruz.

A rainha teria prometido ao Divino Espírito Santo peregrinar o mundo


com uma cópia da coroa e uma pomba no alto da coroa, que é símbolo do
Divino Espírito Santo, arrecadando donativos em benefícios da população
pobre, caso o esposo, o Rei D. Dinis, fizesse as pazes com seu filho legítimo,
D. Afonso, herdeiro do trono. De acordo com os documentos, ela não se con-
formava com o confronto entre pai e filho legítimo em vista da herança pelo
trono, pois era desejo do rei que a coroa portuguesa passasse, após sua morte,
para o filho bastardo, Afonso Sanches. Diante do conflito, a Rainha Isabel
passou a suplicas ao Divino Espírito Santo pela paz entre seu esposo e seu
filho. A interferência da rainha teria evitado um conflito armado.
Enfim, os açorianos e seus descendentes que residem no município de
Passo Fundo, procuravam todos os anos, juntamente com a comunidade ma-
nifestar a sua fé ao Divino Espírito Santo.
Os terrenos da igreja São José Operário no Bairro Vera Cruz foram do-

130
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

ados por João Henrique de Matos e seu irmão José Henrique de Matos, bem
como Manuel Bitencourt e seu primo Adriano Bitencourt; outros dois brasi-
leiros amigos dos portugueses doaram mais dois terrenos (Angelim Bona e
Fidélis Bona).
João Henrique participou junto com outros portugueses na construção
da Catedral Nossa Senhora Aparecida fazendo doação de valores para con-
tribuir quando estava na parte do telhado da mesma.
E também da mesma forma a Comunidade Portuguesa reuniram dinhei-
ro para comprarem e mandarem vir a imagem de Nossa Senhora de Fátima,
que está na Igreja de mesmo nome no Bairro Fátima.

Considerações finais

“Por volta de 1821 estavam radicados no Planalto Médio do Rio Grande


do Sul três filhos do capitão-mor de Curitiba: Rodrigo Félix Martins, resi-
dente nos campos gerais de Curitiba, no Termo da Vila de Castro. Eram eles,
Athanagildo Pinto Martins, Rodrigo Félix Martins e Francisco de Paula Pin-
to, troncos de numerosas famílias de Passo Fundo e região.
O capitão-mor, Rodrigo Félix Martins era português. O alferes Athana-
gildo Pinto Martins explorou a região de Passo Fundo, em 1816 e esta data
passou a ser um marco para o povoamento do Planalto Médio do Rio Gran-
de do Sul (Fonseca, 1995). “Athanagildo casou com dona Ana Joaquim do
Amaral. Deste casamento nasceram muitos filhos” (Roderjan,1991).
E, aí, foram surgindo outras tantas famílias em Passo Fundo, tendo por
origem Portugal. Açorianos, portugueses do continente, seus descendentes
moradores na Comarca de Curitiba, sorocabanos paulistas são os ancestrais
desta terra. Daí decorre a população de Passo Fundo, na sua origem, não
excluindo os indígenas que, por aqui, já moravam.
Os portugueses, os luso-brasileiros, aqui chegando, levantaram suas
moradas, construíram uma igreja em louvor a Nossa Senhora da Conceição
Aparecida, um cemitério, formaram um povoado, este virou Vila, que era ilu-
minada por luz a querosene e servida por um demorado sistema de correio,
que transportava cartas de Passo Fundo para Rio Pardo e Cruz Alta e, destes,
para a capital da Província.

131
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Somos, quase todos, gajos portugueses, com certeza!

Alguns luso-brasileiros envolvidos na história de Passo


Fundo dos primeiros tempos (século XIX):

• Antônio Ferreira Prestes Guimarães – Advogado, Político, Militar e lí-


der do Partido Liberal e abolicionista.
• Antônio Mascarenhas Camello Júnior - Vereador da 1ª Câmara de Ve-
reador e integrante da Guarda Nacional.
• Bernardo Antônio de Quadros – Oficial da Guarda Municipal e partici-
pante da Guerra do Paraguai.
• Eleutério José Gonçalvez – Herói da Guerra do Paraguai e Comandan-
te de uma força da Brigada do Estado.
• Francisco Marques Xavier – Militar das forças federais e Oficial na
Guerra do Paraguai.
• Francisco de Barros Miranda – Líder do Partido Liberal, Comandante
da Guarda Nacional e Intendente Municipal.
• Francisco Antônio Xavier e Oliveira – Historiador; político e conside-
rado “O Pai da História de Passo Fundo’ – Fundador da Academia
Passo-fundense de Letras.
• Gervásio Lucas Annes – Político, jornalista, Intendente e Líder do Par-
tido Republicano.
• Jovino da Silva Freitas – Empresário e Líder do Partido Republicano.
• Joaquim Fagundes dos Reis – Emancipador de Passo Fundo e um dos
primeiros moradores; líder Político do Partido Farroupilha; Juiz de Paz.
• Manoel José de Araújo – Comerciante e Político; Integrou as forças
legalistas da Revolução Farroupilha; Vereador
• Manoel José das Neves – Primeiro morador do povoado, Militar e doa-
dor das terras para construção da Igreja Matriz.
• Nicolau de Araújo Vergueiro – Médico, Político e Intendente Munici-
pal.
• Pedro Lopes de Oliveira – Líder do Partido Republicano e Intendente

132
Os portugueses e luso-brasileiros em Passo Fundo

Referências:

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CORTES, P. C. J. Novas danças do Rio Grande Antigo. Porto Alegre, 1986.
D’ÁVILA, F. E. N. Passo Fundo, terra de passagem. Passo Fundo: Aldeia Sul,
1996.
FONSECA, V. A. P. Gaúcho serrano: usos e costumes. Passo Fundo: Projeto
Passo Fundo, 1994.
GHEM, R. D. Passo Fundo através do tempo. Passo Fundo: Multigraf, 1978.
GOULART, S. J. A formação do Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: Ed. Educs,
1985.
HILAIRE, S. A.; CARDIM, F.; PENA, A. L.; GARCIA, R.; ABREU, C. J.;
CAETANO, B. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820- 1821). Rio de Janeiro: Ed.
Companhia Editora Nacional, 1939.
LAYTANO, D. Os Açorianos. In: Enciclopédia Rio-Grandense. Porto Alegre,
Ed. Sulina, 1968.
LAZZAROTO, D. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Sulina,
1971.
MENDES, J. S.; MIRANDA, F. B. S. Passo Fundo: o passo das ruas. Passo
Fundo: Méritos, 2011.
OLIVEIRA, X. A. F. Annaes do Município de Passo Fundo. Passo Fundo: UPF
Editora, 1990.
RODERJAN, V. R. Raízes e pioneiros do Planalto Médio. Passo Fundo: Univer-
sidade de Passo Fundo, 1991.

133
Os afro-descendentes em
Passo Fundo

Alessandro Batistella1
Odorico José Ribeiro2

Introdução

Embora alguns grupos étnicos de origem européia frequentemente se-


jam enaltecidos (em discursos oficiais, em publicações laudatórias ou mesmo
em monumentos) como “responsáveis pelo desenvolvimento” de Passo Fun-
do, não se pode negligenciar a importância que determinados grupos étnicos
subalternizados e deliberadamente esquecidos tiveram para a formação his-
tórica da região norte do Rio Grande do Sul. Desta maneira, o presente ca-
pítulo pretende abordar alguns fragmentos da história dos afro-descendentes
em Passo Fundo.
1 
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor dos
cursos de História e Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF).
2 
Empresário e músico percussionista. Coordenador e integrante do Grupo Sambah e do Grupo
Cultural Alforria. Filho de Djanira Ribeiro.

135
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Para tais propósitos, propomos inicialmente analisar a chegada dos afro-


-descendentes em Passo Fundo no século XIX na condição de escravos, cuja
força-trabalho foi significativa para a economia local. Além de representarem
cerca de 20% da população local na segunda metade do século XIX, os afro-
-descendentes, na condição de cativos ou libertos, contribuíram culturalmen-
te para a sociedade passo-fundense, com lendas, crenças, ritos, festividades,
etc. Desse modo, em um segundo momento, abordar-se-á dois patrimônios
imateriais de Passo Fundo cujas origens remetem aos escravos afro-brasilei-
ros: a lenda da Mãe Preta e a Romaria de São Miguel.
Em um terceiro momento, após a abolição da escravatura e a proclama-
ção da República, focalizamos os anos finais do século XIX e as primeiras
décadas do século XX, caracterizada pela inauguração da estrada de ferro
e a chegada de várias famílias de afro-descendentes provenientes de outras
regiões do estado e do país. No entanto, verificamos que a maioria dos afro-
-descendentes que viveram em Passo Fundo neste período tiveram poucas
oportunidades de ascensão social e enfrentavam (e ainda hoje enfrentam)
uma terrível herança escravocrata da nossa sociedade: o racismo.
Em virtude dos preconceitos étnicos e sociais, nas primeiras décadas do
século XX, os afro-descendentes de Passo Fundo eram proibidos de frequen-
tar os outros clubes da cidade. Assim, organizaram uma sociedade étnica: o
Clube Recreativo Visconde do Rio Branco, que será abordado na parte final
do presente capítulo.

A escravidão e os afro-descendentes em Passo Fundo


no século XIX

Na condição de cativos, os afro-descendentes chegaram à região de Pas-


so Fundo juntamente com os latifundiários milicianos3, que passaram a ocu-
par oficialmente a região a partir da década de 1820. Especificamente no
local onde hoje se situa a cidade de Passo Fundo, o miliciano Manoel José

3
  Na região do Planalto Médio privilegiou-se a formação da grande propriedade a partir da conces-
são de amplas extensões de terras aos soldados a serviço da Coroa, que se tornarem estancieiros,
dedicando-se, sobretudo, à pecuária, sem prescindir do uso de mão-de-obra escrava (Santos, 2009,
p. 132).

136
Os afro-descendentes em Passo Fundo
das Neves, conhecido como Cabo Neves4, após obter a concessão no final
de 1827 ou início de 1828, chegou à região trazendo consigo família, escra-
vos e gado. Inicialmente, Cabo Neves fixou a sua moradia provisória junto à
nascente do arroio que os índios conheciam por Goiexim (onde atualmente
se localizam as esquinas das ruas Uruguai e Dez de Abril). Posteriormente,
Cabo Neves edificou sua moradia definitiva nas proximidades da atual Praça
Tamandaré, dando origem a uma modesta fazenda agropastoril5 (D’Ávila,
1996, p. 49-52).
Na década de 1830, o local escolhido por Cabo Neves deu origem a um
pequeno povoado, que servia de pouso para os tropeiros que percorriam a
rota que ligava os campos de Vacaria a São Borja por meio do Planalto Mé-
dio. Na década de 1830, esse povoado, que passa a ser conhecido como Passo
Fundo6, vai sendo lentamente ocupado, sobretudo por paulistas da Comarca
de Curitiba.
Em 1847, ano em que o povoado de Passo Fundo – que formava o 4º
Distrito de Cruz Alta – foi elevado à condição de freguesia7, passando a de-
nominar-se Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Passo Fundo, a
população local era estimada em 1.159 pessoas (Rückert, 1997, p. 60). No en-
tanto, como esse recenseamento era realizado pela Igreja Católica, devemos
salientar que esses números desprezavam os caboclos – que se encontravam
dispersos pelas zonas florestais e não frequentavam a igreja –, assim como a
população indígena da região.
Ademais, também não se tem informações acerca do número de afro-
-descendentes escravizados ou libertos em Passo Fundo neste período.
Contudo, não há dúvidas de que o trabalho escravo era utilizado em Passo
Fundo, sobretudo nos latifúndios da região, pois, diante da baixa oferta da
4 
Nascido em Curitiba por volta do ano de 1790, Manoel José das Neves servia em um regimento
de milícias na fronteira sul e lutou na Guerra Cisplatina (1825-1828), quando solicitou um lote de
terras na região do “caminho das tropas”, no Planalto Médio, junto ao comandante da fronteira em
São Borja.
5
  No entanto, não se pode esquecer que, muito antes da chegada do Cabo Neves, a região já era
ocupada pelos povos originários e por caboclos (Rückert, 1997, p. 51-52).
6
  Na região do Planalto Médio os tropeiros precisavam atravessar um rio chamado pelos kaingang
de Goio-En (que significa “rio fundo”, “águas profundas” ou “muita água”), rebatizando-o como
rio Passo Fundo – nome que deu origem à cidade.
7 
Naquela época, “freguesia” correspondia à população que vivia em torno de um templo católico,
assistido por um padre. A passagem de “capela” a “paróquia”, isto é, a elevação de povoado à
freguesia, em virtude da não-separação entre Igreja e Estado nos tempos do Império, era um ato
conjunto da administração civil e da administração eclesiástica.

137
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

mão-de-obra livre, recorria-se à força de trabalho cativa para as mais diversas


atividades rurais e urbanas.
Embora o trabalho escravo no Rio Grande do Sul tenha sido conside-
rado ausente ou de menor importância por uma parcela da historiografia
sul-rio-grandense, hoje tais argumentos foram amplamente refutados, uma
vez que inúmeros trabalhos historiográficos, a partir do uso de novas fontes,
sobretudo os inventários post-mortem e os relatórios das Câmaras Municipais,
revelaram que a presença do escravo nas atividades rurais era mais importan-
te do que se imaginava (Zarth, 2006, p. 191-192).

O uso da mão-de-obra escrava na pecuária suscitou alguns debates


na historiografia rio-grandense, parte dos autores defendeu que a es-
cravidão não teve tanta importância nesse tipo de produção quanto
nas produções do tipo plantation instaladas no centro e norte do país;
e assim minimizam (ou pelo menos tentaram fazê-lo) a presença de
africanos e seus descendentes na formação social do Rio Grande do
Sul. De fato, a ausência de plantation típicas diminui o número de
cativos no estado em comparação ao resto do país, e dificulta em parte
a compreensão do modo como a mão-de-obra escrava foi utilizada no
Rio Grande do Sul, mas sua presença não pode ser ignorada (Santos,
2009, p. 129).

Tabela 1: Municípios com maior número de escravos no


Rio Grande do Sul (1859)

População População Nº de
Município % de escravos
total livre escravos
Porto Alegre 38.140 29.723 8.417 22,06%
Jaguarão 18.055 12.999 5.056 28%
Pelotas 17.681 12.893 4.788 27,07%
Rio Grande 24.251 19.882 4.369 18,01%
Cruz Alta 30.503 26.484 4.019 13,17%
Bagé 16.358 12.342 4.016 24,55%
Fonte: Zarth apud Santos (2009, p. 130).

138
Os afro-descendentes em Passo Fundo
Sherol dos Santos (2009, p. 130) observa que embora as áreas de maior
concentração de mão-de-obra cativa são as que possuem suas atividades
econômicas ligadas a um centro urbano (Porto Alegre) ou às charqueadas
(Jaguarão, Pelotas e Rio Grande), as regiões cuja principal atividade econô-
mica era a pecuária (Cruz Alta e Bagé) também possuíam um contingente
significativo de escravos, o que demonstra a importância do escravismo na
atividade pastoril.
Henrique Kujawa (1998, p. 58-59) lembra que além do argumento de
que o trabalhador escravizado era pouco utilizado no Rio Grande do Sul,
também é comum encontrarmos em algumas obras o discurso do mito da
democracia racial, que afirma que os poucos escravos que viviam no estado
eram bem tratados, considerados iguais aos seus senhores, inclusive toman-
do chimarrão no mesmo galpão e na mesma cuia. Ainda segundo Henrique
Kujawa (Ibidem, p. 59): “Pouco se sabe sobre a especificidade da relação
entre escravos e senhores de escravos em Passo Fundo; as fontes oficiais não
registravam e a historiografia regional, em grande parte, compactuou com o
mito da democracia racial”.
Salvo engano, os primeiros dados sobre o número da população de es-
cravos em Passo Fundo foram obtidos por meio do recenseamento popula-
cional de 1859 – realizado após a emancipação política de Passo Fundo, em
1857 –, no qual se constatou que os escravos representavam quase 20% da
população local.

139
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Tabela 2 – Número de escravos nos distritos de Passo Fundo (1859)

População do Nº de escravos no
Distrito
Distrito Distrito
1º: Vila de Passo Fundo 1.826 281
2º: Campo do Meio 665 147
3º: Alto Uruguai 464 79
4º: Jacuizinho 1.310 315
5º: Restinga 1.194 217
6º: Soledade 1.311 315
7º: Lagoão 1.451 345
Total 8.221 1.699
Fonte: Rückert (1997, p. 89).

Henrique Kujawa (1998, p. 59) faz duas importantes observações: pri-


meiramente, ressalta que os dados oficiais não são precisos, pois os escravos
muitas vezes não eram registrados; em segundo lugar, o autor lembra que o
recenseamento de 1859 demonstrou que havia em Passo Fundo 127 ex-es-
cravos, que foram libertados. Portanto, os afro-descendentes, na condição de
escravos ou libertos, representavam uma significativa parcela da população
local em meados do século XIX, o que comprova a utilização do trabalho
escravo em Passo Fundo.
Analisando os inventários post-mortem de Passo Fundo entre os anos de
1850 a 1885, Sherol dos Santos (2009, p. 130-131) constatou que dos 148 do-
cumentos pesquisados, em 55,4% deles os inventariados possuíam escravos.
Ademais, a pesquisadora concluiu que o tamanho médio dos plantéis variou
entre 1,08 (no período entre 1880 e 1885) e 5,04 escravos por propriedade
(entre 1850 e 1855), sendo o maior plantel o de Maria Salomé, inventariado
em 1854, onde foram arrolados 54 escravos.

140
Os afro-descendentes em Passo Fundo
Tabela 3 – Número de escravos nos inventários post-mortem de
Passo Fundo

Número de Total de Média


Número de
Período inventários escravos nos (escravos por
inventários
com escravos inventários inventário)
1850-1855 25 17 (68%) 126 5,04
1860-1865 38 27 (71,05%) 137 3,6
1870-1875 33 21 (63,64%) 111 3,36
1880-1885 52 17 (32,7%) 56 1,08
Total 148 82 (55,4%) 430 2,91
Fonte: Santos (2009, p. 131).

Ainda segundo a autora (2009, p. 131), os cativos arrolados nos inven-


tários post-mortem representavam uma significativa fração do patrimônio dos
seus proprietários, revelando a importância do investimento em escravos em
Passo Fundo, tornando-se uma mão-de-obra fundamental para a economia
da região.
Portanto, não há dúvidas de que os latifundiários que se estabeleceram
na região de Passo Fundo ao longo do século XIX utilizaram-se amplamente
da mão-de-obra cativa, que desempenharam atividades como as de roceiros
(lavradores de produtos de subsistência), campeiros (trabalho pastoril) e do-
mésticos (serviços rotineiros das casas e adjacências). O censo oficial de 1872
indica que no município de Passo Fundo, 299 escravos trabalhavam como
lavradores, 255 como domésticos e 472 não tiveram sua atividade indicada.
Contudo, também há indícios de que a força de trabalho cativa era emprega-
da nos carijos, nas atafonas8 e nos engenhos de soque de erva-mate (Rückert,
1997, p. 89-90).
Por outro lado, em Passo Fundo ocorreu a criação de dois quilombos
na região do 3º Distrito (o Alto Uruguai): trata-se dos quilombos de Arvi-
nha e Mormaça, cujas comunidades remanescentes foram reconhecidas pela

A atafona era um moinho natural, movido por animais, onde se preparava farinhas de mandioca,
8 

milho e trigo.

141
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Fundação Cultural Palmares como descendentes da agregação de escravos e


ex-escravos que ocuparam matas e campos no norte do Planalto Rio-Gran-
dense9 (Oliveira, 2014, p. 19).

Imagem 1: mapa do município de Sertão, com a localização das


comunidades quilombolas da Arvinha e da Mormaça

Mormaça

Arvinha

Sede do município

Fonte: Oliveira (2014, p. 45).

De acordo com Heron Lisboa de Oliveira (2014, p. 45-46), o quilombo


de Arvinha localizava-se na propriedade do coronel Francisco Barros de Mi-
randa10, na atual zona rural dos atuais municípios de Sertão11 (em torno de

9 
Heron Lisboa de Oliveira (2014, p. 19) lembra que a comunidade Mormaça foi reconhecida em
2004, enquanto a comunidade de Arvinha foi reconhecida em 2006.
10
  O coronel Francisco Barros de Miranda era paulista radicado em Passo Fundo, latifundiário e
importante membro da elite local. Proprietário da quase totalidade do então 3º Distrito de Passo
Fundo (Alto Uruguai). Foi um dos líderes do Partido Liberal em Passo Fundo. Foi casado com
Maria Prudência de Souza, que faleceu em 1876. No inventário de sua esposa, aberto em 1876,
consta que o casal possuía 2.643 animais (entre eles destaca-se 1.284 reses de criar e 850 éguas) e
oito escravos (três homens, quatro mulheres e uma criança). O coronel Miranda faleceu em 1890,
dois anos após a abolição da escravatura, em 1888, o que dificulta precisar o número de cativos que
possuiu. (Cf. Santos, 2009, p. 133-134).
11
  Inicialmente integrante do 3º Distrito de Passo Fundo, a emancipação e a criação do município
de Sertão ocorreu em 1963.

142
Os afro-descendentes em Passo Fundo
85%) e Coxilha12. De acordo com o pesquisador, o nome Arvinha deve-se a
existência de uma árvore, um pé de cambará no local.

Imagem 2: a referida árvore cambará, que originou o nome “Arvinha” para


o quilombo.

Fonte: Oliveira, (2014, p. 46).

A comunidade originou-se após a fixação na localidade da escrava Ce-


zarina e sua família. Cezarina de Miranda era uma das escravas do coronel
Miranda, que trabalhava nos serviços domésticos da “casa grande”. A es-
crava Cezarina teve cinco filhos com o coronel Miranda, que doou a ela um
lote de terras, onde atualmente está localizada a Comunidade Remanescente
Quilombo da Arvinha (Oliveira, 2014, p. 48).
Por sua vez, o quilombo da Mormaça localizava-se no interior das pro-
priedades pertencentes ao coronel Francisco Barros de Miranda e dos seus
cunhados, Theobaldo Vieira13 e Amâncio de Oliveira Cardoso14 , no atual
12
  A emancipação e criação do município de Coxilha ocorrem em 1992.
13
  Theobaldo Vieira era casado com Emilia Prudência de Souza (irmã de Maria Prudência de Souza
e Balbina Prudência de Souza, esposas de Francisco de Miranda e Amancio de Oliveira, respecti-
vamente).
14
  Amâncio de Oliveira Cardoso era filho adotivo de Maria Luiza de Oliveira (paulista e uma das
primeiras proprietárias da região). Casou-se com Balbina Prudência de Souza, irmã de Maria Pru-
dência de Souza, esposa do coronel Miranda. Foi por meio do seu casamento que Amâncio Car-

143
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

interior do município de Sertão. A origem da comunidade remete à escrava


liberta Firmina15 e Elisbão Vieira16, que se instalaram com seus filhos – Cân-
dida, Gervásio, Ottília, Laurentina17, Francisca18 e Justimiano19 – nas matas
que circundavam as propriedades destes três latifundiários20, uma vez que os
laços de parentesco e aliança que uniam esses senhores facilitavam o trânsito
dos seus escravos e agregados entre as suas propriedades (Cf. Santos, 2009,
p. 135-136).
Segundo Sherol dos Santos (2009, p. 137), as famílias de Firmina e Elis-
bão provavelmente não foram as únicas a buscar refúgio nas matas da região
do 3º Distrito, principalmente após a abolição da escravatura, em 1888.

Considerando o tamanho médio das propriedades no 3º Distrito e a


presença de escravos em maioria delas, podemos afirmar que os fazen-
deiros locais utilizavam seus agregados como posteiros21 e que ex-escra-
vos faziam parte desse grupo. A doação de terras e de benfeitorias feita
aos libertos ou a permissão para ocupá-las contemplava o interesse
senhorial em legitimar a posse e o domínio sobre as terras que, não
raro, eram objeto de intensas disputas (Santos, 2009, p. 136).
doso fortaleceu seus vínculos com a elite local, o que lhe permitia uma maior participação política
e sócio-econômica na sociedade local (Cf. Santos, 2009, p. 133-134). Vinculado ao Partido Liberal,
liderado em Passo Fundo pelo major Antônio Ferreira Prestes Guimarães, Amâncio foi eleito vere-
ador em 1872 e em 1882. Durante a Revolta Federalista (1893-1895) integrou as tropas federalistas.
O coronel Amâncio de Oliveira Cardoso faleceu em 1904.
15
  Firmina foi uma escrava doméstica, fiel e obediente que pertencia a Amâncio de Oliveira Cardoso,
sendo alforriada – por motivos desconhecidos – em 1884, quando tinha aproximadamente 26 anos
de idade e era mãe de três filhos: Cândida, Gervásio e Ottília (Cf. Santos, 2009, p. 135).
16
  Elisbão, que adotou o sobrenome “Vieira”, provavelmente era um escravo ou um ex-escravo de
Theobaldo Vieira (Cf. Santos, 2009, p. 136).
17 
Segundo Sherol dos Santos (2009, p. 135-136): “Laurentina de Oliveira Cardoso nasceu entre
1881/1882, tivemos acesso a suas informações através de seu registro de óbito, feito em 1938, onde
são indicados como seus pais Elisbão Luiz Vieira e Firmina Vieira. Laurentina foi casada com Eze-
quiel Manoel Antônio, com quem teve quatro filhos”.
18 
Segundo Sherol dos Santos (2009, p. 136): “[...] Francisca nasceu entre 1892/1894, conforme
informações extraídas da sua certidão de casamento, realizado em outubro de 1911, com Luiz Ber-
nardo da Cruz, com quem teve quatro filhos”.
19
  Por sua vez, Justimiano teve nove filhos com Deolinda Vieira de Oliveira entre 1914 e 1937 (San-
tos, 2009, p. 136).
20 
Sherol dos Santos (2009, p. 137) observa que: “[...] Não é possível precisar o local exato onde a
família se estabeleceu, seguramente à medida que as matas foram derrubadas e avançam sobre elas
os campos de criação e lavoura, Firmina e Elisbão deslocam-se em busca de um lugar que pudessem
abrigá-los com mais tranquilidade e segurança”.
21
  Indivíduo que instalado estrategicamente na extremidade de uma propriedade, zela por sua inte-
gridade.

144
Os afro-descendentes em Passo Fundo
O nome “quilombo da Mormaça” deve-se à sua líder, Francisca Vieira
(filha de Firmina e Elisbão Vieira), conhecida como “Chica Mormaça” (Oli-
veira, 2014, p. 48-52).
Se por um lado os memorialistas locais não deram à devida atenção à
questão da escravidão em Passo Fundo, por outro lado enfatizam a história
do abolicionismo na cidade22, enaltecendo, assim, a “piedade do povo passo-
-fundense”, sensibilizado com as agruras da condição servil, compactuando,
dessa forma, com o mito da democracia racial.
De qualquer forma, apesar da referida campanha abolicionista no muni-
cípio – que obteve poucos resultados – há que se ressaltar que

[...] em nenhum momento é questionada a discriminação do negro,


tampouco se propõe formas de integração deles à sociedade. Portanto,
também em Passo Fundo, como de resto em nível nacional, a abolição
da escravatura ficou longe de representar a libertação do negro. Ele
foi jogado à mercê da sociedade, sofrendo todo tipo de discriminação,
só voltando a ser lembrado como agente histórico quando se discute
a marginalidade e a violência da sociedade atual (Kujawa, 1998, p.
59-60).

Em suma, após a abolição da escravidão, os afro-descendentes conti-


nuaram sofrendo com as nefastas heranças escravocratas, sobretudo com o
racismo e a invisibilidade social. De fato, às margens da sociedade, com pou-
cas oportunidades de educação e ascensão social, a eles foi designada uma
condição de subcidadania. E mais, além das discriminações étnicas e sociais,
os afro-descendentes ainda enfrentam os preconceitos às religiões de matriz
africana.23
Particularmente em Passo Fundo, a deliberada construção de uma his-
tória oficial e de uma memória etnocêntrica – de valorização do imigrante
europeu – procurou minimizar a importância e a contribuição dos afro-des-
cendentes, dos indígenas e dos caboclos para a história, a memória, a cultura
e a identidade local. Entretanto, esses “excluídos da história” tiveram um
22
  De acordo com Delma Gehm (1978), em agosto de 1871 foi criada a Sociedade Emancipadora
das Crianças do Sexo Feminino. Alguns outros autores referem-se à essa entidade como Sociedade
Emancipadora Passofundense.
23
  Acerca das religiões de matriz-africana em Passo Fundo, ver Sabino (2016, p. 42-46).

145
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

importante papel na formação de Passo Fundo. Especificamente sobre os


afro-descendentes, foco deste capítulo, é indiscutível a sua importância para
a história e para a cultura local. A seguir, iremos abordar dois patrimônios
imateriais de Passo Fundo, cujas origens remetem aos escravos afro-brasilei-
ros: a lenda da Mãe Preta e a Romaria de São Miguel.

A lenda da Mãe Preta e a Romaria de São Miguel Arcanjo:


patrimônios imateriais passo-fundenses de origem
afro-brasileira

A lenda da Mãe Preta tem sua origem ligada a uma escrava do Cabo
Neves, supostamente chamada de Mariana:

[...] Diz-se que Mãe Preta era escrava do Cabo Manuel José das Neves,
que primeiro aqui se estabeleceu e era senhor daquelas glebas. Mãe
Preta tinha um filho único, que era a sua alegria. Certa vez, o jovem
fugiu de casa e não voltou, causando a morte de sua mãe. Das lágri-
mas da Mãe Preta teria brotado a fonte. Antes de morrer, Mãe Preta
foi visitada por Jesus-menino, o qual lhe disse que não chorasse mais,
porque seu filho se encontrava na mansão celeste. Jesus ter-lhe-ia dito
ainda: em recompensa de tua dor, pede o que quiseres que de darei.
Mãe Preta então pediu: dá-me a felicidade de ir para junto de meu
filho. Mas, como lembrança, quero deixar esta fonte para que todo
aquele que a beba retorne sempre a este lugar (Cafruni, 1966, p. 76-
77).

No entanto, a lenda da Mãe Preta provavelmente se originou a partir


de uma lenda kaingang, segundo a qual a Mãe Goiexim tinha um filho que
guardava os ervais e certo dia foi à sua guarda e não mais voltou. A sua mãe
chorou tanto a ausência do filho que o Urubu-Rei a transformou num pé de
milho, que, arrancado pela tribo, deu origem a um arroio, pelo qual fluía a
alma de Goiexim (Cafruni, apud Batistella; Baccin, 2016, p. 112-113).
O arroio Goiexim, localizado nas terras posteriormente doadas pelo
Cabo Neves, também passou a ser conhecido como arroio Lava-pés e foi utili-

146
Os afro-descendentes em Passo Fundo
zado tanto pelos tropeiros quanto pela comunidade local. Em suas nascentes
foi erguido, em 1863, um chafariz (ou uma bica), que serviu para o abaste-
cimento de água da Vila de Passo Fundo, transportado pelos escravos, que
iam ao local buscar a água que abastecia as casas dos seus senhores. Por esse
motivo, em meados do século XIX, o local também ficou conhecido como
“chafariz dos escravos do arroio Lava-pés” (Batistella; Baccin, 2016, p. 113).
Portanto, a lenda kaingang da Mãe Goiexim foi apropriada, reelaborada
e ressignificada pelos escravos afro-brasileiros que constantemente iam ao
arroio Lava Pés buscar água, dando início à lenda da Mãe Preta.
Acerca da construção do chafariz do arroio Lava-pés (que passaria a ser
conhecido como chafariz da Mãe Preta), consta que a primeira construção
data de 1863. Posteriormente, em 1925, durante a administração do inten-
dente Armando Araújo Annes, o chafariz foi reconstruído, com muros de
proteção, bicas, telhado e os tanques para o trabalho das lavadeiras (a maioria
delas afro-brasileiras).

Imagem 3: Chafariz da Mãe Preta: vista frontal do vertedouro do chafariz


(em 1928).

Fonte: acervo iconográfico do Museu


Histórico Regional.

147
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Imagem 4: Chafariz da Mãe Preta (em 1930). Perspectiva da Rua Uruguai, na


esquina com a Rua 10 de Abril, em direção ao Boqueirão.

Fonte: acervo iconográfico do Museu Histórico regional.

Em 1963, durante a gestão do prefeito Mário Menegaz, o chafariz foi


restaurado. Porém, em 1965, os moradores da região solicitaram a sua de-
molição e a remoção dos tanques, alegando que o mesmo estava obstruído as
ruas Uruguai e Dez de Abril. Apesar da grande repercussão que o tema to-
mou junto à sociedade passo-fundense, o chafariz da Mãe Preta foi demolido
sob a justificativa de ser um obstáculo ao “progresso e ao desenvolvimento do
bairro” (Batistella; Baccin, 2016, p. 115-121).
Somente após 17 anos, em 1982, o chafariz foi reconstruído juntamente
com um busto representando a Mãe Preta, localizando-se não mais no meio
das ruas Uruguai e Dez de abril, mas recuado em uma praça, denominada
Praça da Mãe Preta.

148
Os afro-descendentes em Passo Fundo
Imagens 5 e 6: chafariz da Mãe Preta

Fonte: acervo dos autores.

A lenda da Mãe Preta é um dos principais patrimônios imateriais de


Passo Fundo. Em uma cidade em que os afro-brasileiros são geralmente es-
quecidos pela memória e pela história oficial, o chafariz/monumento repre-
senta um dos raros casos na cidade de um patrimônio histórico-cultural de
origem popular e um monumento que não seja associado à memória das
elites locais. Contudo, há de se ressaltar que a lenda, ressignificada pelos afro-
-brasileiros locais, é de origem kaingang, cuja memória ainda encontra-se
deliberadamente silenciada.
Por sua vez, a romaria de São Miguel Arcanjo teve início em Passo
Fundo em 1871, após a construção da primeira capela em Pinheiro Torto
(atual distrito de Pulador) pelos ex-escravos Generoso e Isaías, que perten-
ciam ao latifundiário Bernardo Castanho da Rocha, cujas terras localizam-se

149
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

na região do Pinheiro Torto. De Imagem 7: atual Capela de São Miguel,


acordo com a tradição oral, Ge- localizada no distrito do Pulador
neroso e Isaías serviram como
24

praças no 5º Corpo de Cavalaria


da Guarda Nacional durante a
Guerra do Paraguai (1864-1870).
Quando retornavam da guerra,
teriam passado pelas imediações
das ruínas das Missões de São
Miguel, onde teriam encontrado
a estátua do arcanjo, trazendo-a
a Passo Fundo. Quando regres-
Fonte: www.guiafaciltur.com.br
saram ao Pinheiro Torto, empreen-
deram a construção de uma pequena capela de pau-a-pique para abrigar a
estátua de São Miguel. Posteriormente, essa primeira capela foi substituída
por outra maior (Guidolin; Winter; Za-
Imagem 8: Estátua missioneira
notto, 2011, p. 194).
de São Miguel Arcanjo, exposta
Em 25 de outubro de 1991, por
na Capela de São Miguel
meio da lei nº 2696/91, a Prefeitura
Municipal de Passo Fundo tombou25 a
Capela de São Miguel como patrimônio
histórico-cultural do município. A referi-
da capela é o ponto de chegada da tradi-
cional romaria, que ocorre anualmente
na cidade desde 1871.

Fonte: acervo dos autores.


24
  Do ex-escravo Isaías descende a família Isaías – do falecido jornalista Edy Isaías.
25
  A palavra tombar é uma herança do direito português, cujo sinônimo é demarcar. Em outras pa-
lavras, o termo tombo foi designado como o registro e a catalogação de bens materiais e culturais,
reconhecendo-os como integrantes do patrimônio histórico-cultural nacional, estadual ou munici-
pal. Portanto, o processo de tombamento é um instituto jurídico que identifica os bens materiais e/
ou culturais que serão obrigatoriamente protegidos (Machado, 2004, p. 20).

150
Os afro-descendentes em Passo Fundo

A ferrovia e a chegada de novas famílias de afro-descendentes


em Passo Fundo

Em fevereiro de 1898 concluiu-se a construção da estrada de ferro que


ligava Passo Fundo a Cruz Alta, Santa Maria e Porto Alegre.26
A conclusão da fer-
Imagem 9: mapa da malha ferroviária do Rio rovia foi fundamental
Grande do Sul (c. 1925) para Passo Fundo, con-
tribuindo decisivamen-
te para o crescimento
populacional da cidade
e para a o desenvolvi-
mento da economia lo-
cal, impulsionando os
setores hoteleiros, ma-
deireiros, moageiros,
granjeiros e o comércio
local (Tedesco, 2015).
Por meio do trans-
porte ferroviário, mui-
tas famílias de afro-des-
cendentes – provenien-
tes de outras cidades
do estado e do país – o
Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/com-
mons/7/74/VFRGS_Mapa.jpg começaram a se fixar
em Passo Fundo no co-
meço do século XX. Inclusive, muitas destas famílias eram de ferroviários e
operários que trabalharam na construção da estrada de ferro.

  Em 1889, o governo imperial idealizou a construção de uma ferrovia que ligasse São Paulo ao Rio
26

Grande do Sul. Dessa forma, em 1891 foram aprovados estudos para a construção do trecho Santa
Maria – Cruz Alta – Passo Fundo – Marcelino Ramos, que permitiria a ligação com a rede férrea
Paraná-Santa Catarina e Itararé-São Paulo. Em novembro de 1894 foi inaugurado o primeiro trecho,
com 160 km, entre Santa Maria e Cruz Alta. Em fevereiro de 1898, o trecho Santa Maria – Cruz
Alta –Passo Fundo foi concluído (Tedesco, 2015).

151
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Imagem 10: prédio da antiga estação da Desde o final do sé-


Gare (1926) culo XIX e nas primeiras
décadas do século XX, a
maioria das famílias de
afro-descendentes que resi-
diam em Passo Fundo fixa-
vam-se no bairro Boquei-
rão. De acordo com Edy
Isaias (1999, p. 51-53), as
famílias mais antigas que
residiam neste bairro eram
Almeida, Isaías, Severo e
Fonte: http://onacional.com.br/img/ Bernardo da Cruz. Ainda
not_201504191550570248_g.jpg segundo Isaias (Idem), na-
quela época poucas famí-
lias de afro-descendentes não residiam no Boqueirão, dentre estas a família
de Pedro Dionísio Navarro e Dona Romana – que residiam na rua Indepen-
dência – e a família Lima.
Nas primeiras décadas do século XX, os afro-descendentes se dedica-
vam às mais diversas atividades econômicas na cidade, trabalhando como
ferroviários, militares, comerciários, charqueadores27, marceneiros, alfaiates,
barbeiros, motoristas, pintores, pedreiros, metalúrgicos, operários, entre ou-
tros ofícios. Também era comum que as mulheres trabalhassem como “la-
vadeiras” e empregadas domésticas. No entanto, poucos afro-descendentes
conseguiam abrir uma pequena casa comercial ou tinham formação superior
– atuando, assim, como farmacêuticos, advogados, médicos, professores, jor-
nalistas, entre outras profissões liberais.
Sem dúvida, os afro-descendentes que viveram em Passo Fundo no iní-
cio do século XX sofreram fortemente as heranças escravocratas de nosso
país, sobretudo com o racismo. De fato, em virtude dos preconceitos étnicos
e sociais, nas primeiras décadas do século XX, os afro-descendentes de Passo
Fundo eram proibidos de frequentar os outros clubes da cidade, como a So-

  Localizado na região do Umbu, próximo ao distrito do Pulador, o Saladeiro São Miguel manteve
27

as suas atividades entre os anos de 1914 a 1932. Mais detalhes, ver o artigo de Sandra Mara Ben-
vegnú (2010).

152
Os afro-descendentes em Passo Fundo
ciedade Italiana (fundada em 1901)28, o Clube Comercial (fundado em 1912)
e a Sociedade Alemã (fundada em 1913)29. Assim, organizaram uma socieda-
de étnica: o Clube Recreativo Visconde do Rio Branco.

O Clube Visconde do Rio Branco

Oficialmente fundado em abril de 1916, os relatos orais lembram que


o Clube Visconde do Rio Branco teve a sua origem ligada a uma associação
étnica e recreativa denominada Sociedade José do Patrocínio, fundada em
1912. Após quatro anos e algumas mudanças no seu nome, a referida associa-
ção passou a se denominar Clube Recreativo Visconde do Rio Branco.
De acordo com o depoimento do farmacêutico Adyl da Cruz30:

Certo dia chegou um circo na cidade, cujo palhaço era negro de nome
Claro Severo. Na banda que animava o espetáculo havia alguns mú-
sicos que pertenciam à comunidade negra, como meu pai Francisco
Bernardo da Cruz, que se tornou amigo do palhaço.
Num dia de folga, o palhaço saiu para passear, conhecer a cidade, visi-
tando diversos pontos a procura de um clube de negro e não o encon-
trou. À noite, antes do espetáculo começar, em conversa com o pai
(Francisco), perguntou: onde se localizava o clube dos negros? Meu
pai respondeu: aqui não tem. Então o palhaço sugeriu à comunidade
fundar um clube, sugestão esta que foi bem acatada por todos. Foi
marcada, uma reunião para tratarem deste assunto, a qual foi realiza-
da na casa do Sr. João Bernardo da Cruz, no dia 23 de abril de 1912.
Nesta reunião estiveram presentes os seguintes senhores: João Bernar-
do da Cruz, Cândido Bernardo da Cruz, Eduardo de Almeida, Bento
Isaías, Francisco Bernardo da Cruz (meu pai), Domingos Teodoro de
Almeida, João de Almeida, Pedro Dionísio de Navarro e outros. Re-
solvida a fundação do clube, foi marcada uma nova reunião, a ser rea-

28
  Em 1938, em virtude da Lei de Nacionalização do Estado Novo (1937-1945), a Sociedade Italiana
passou a se chamar Clube Caixeiral.
29
  Em 1938, também em virtude da Lei de Nacionalização do Estado Novo, a Sociedade Alemã
transformou-se no Clube Recreativo Juvenil.
30
  Adyl da Cruz é filho de Francisco Bernardo da Cruz.

153
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

lizada na casa do Sr. Bento Isaías, para a escolha do nome. Na reunião


foi escolhido, por unanimidade, o nome do clube: Sociedade José
do Patrocínio. Este nome permaneceu durante dois anos. Em 1914,
achou-se melhor trocar o nome do clube para Barão do Rio Branco.
Após dois anos [em 1916], resolveu-se mudar novamente o nome para
Clube Recreativo Visconde do Rio Branco.

A primeira sede do Clube Visconde do Rio Branco era uma enorme


casa de madeira localizada a uma quadra e meia de distância da atual sede
(localizada nas esquinas das ruas Morom e 20 de Setembro), inaugurada em
1932 (Isaías, 1999, p. 48).

Imagem 11: sede do Clube Visconde do Rio Branco, inaugurada em 1932

Fonte: acervo iconográfico do Museu Histórico Regional.

No Clube Visconde do Rio Branco eram comuns os encontros, as socia-


lizações, as festas (como, por exemplo, os casamentos, aniversários e os bailes
de debutantes), as danças, os jogos, entre outras atividades recreativas e cul-
turais. Contudo, uma das atividades culturais mais famosas promovidas pelo
Clube Visconde do Rio Branco durante o século XX foram as festividades po-
pulares de carnaval, que atraiam pessoas de todas as etnias e classes sociais.
Nas primeiras décadas do século XX eram comuns em Passo Fundo os

154
Os afro-descendentes em Passo Fundo
carnavais em alguns clubes ou sociedades, assim como também bailes à fan-
tasia, matinês infantis, concursos de beleza e, sobretudo, os desfiles dos blo-
cos carnavalescos e dos corsos (carros alegóricos) pelas praças e ruas centrais
da cidade, onde ocorriam guerras de flores, confetes e serpentinas.
Havia uma grande ri- Imagem 12: desfile de corsos em Passo Fundo
validade entre os blocos car- (carnaval de 1929)
navalescos em Passo Fundo.
Nesta época destacavam-se
o Bloco 21 (que representa-
va o Sport Club Gaúcho),
o Bloco 25 (que represen-
tava o Clube Comercial e o
Grêmio Esportivo Recrea-
tivo 14 de Julho) e o Bloco
33 da Pontinha (vinculado
ao Clube Visconde do Rio Fonte: acervo de Antônio Augusto Meirelles Duar-
Branco e criado no final da te. Disponível em: projetopassofundo.com.br
década de 1920), entre inúmeros outros. Cada bloco desfilava pelas ruas da
cidade com seu estandarte e entoando as suas marchinhas.
Imagem 13: Bloco 33 da Pontinha (década de 1930) Na década de 1950,
o Clube Visconde do Rio
Branco organizou a pri-
meira escola de samba da
cidade, que desfilava, jun-
tamente com os outros
blocos carnavalescos, pe-
las ruas de Passo Fundo.
Também na década
de 1950, surgiu em Passo
Fundo a Escola de Sam-
ba Garotos da Batucada,
que se originou a partir
de uma dissidência do
Fonte: www.projetopassofundo.com.br Visconde do Rio Branco.
A Escola Garotos da Ba-

155
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

tucada foi formada pelas famílias Dionísio Navarro e Gradin.31 Posterior-


mente, na década de 1970, outras dissidências levaram ao surgiram de mais
duas escolas de samba em Passo Fundo: a Bonsucesso (1971) e os Particula-
res do Ritmo (1977).32
Nas décadas de 1970 e 1980, as escolas de samba de Passo Fundo orga-
nizaram concorridos desfiles de carnaval. Disputavam o carnaval passo-fun-
dense o Visconde do Rio Branco, os Garotos da Batucada, a Bonsucesso,
os Particulares do Ritmo, o Clube Industrial, o Clube Juvenil, o Clube Co-
mercial, o Clube Caixeiral, entre outros. Nesta época ganharam destaque no
carnaval da cidade a carnavalesca Djanira Ribeiro e o passista, mestre-sala
e, sobretudo, mestre de bateria José Antônio Cavalheiro (conhecido como
“Mestre Cavalheiro”).
Entretanto, no início dos anos 1990, as escolas de samba do Visconde
do Rio Branco e dos Garotos da Batucada deixaram de desfilar nos carnavais
de Passo Fundo33. Em particular, o tradicional Clube Visconde do Rio Bran-
co passou a enfrentar Imagem 15: Clube Visconde do Rio Branco
uma série de graves
crises a partir da dé-
cada de 1990. Atual-
mente, a sua sede en-
contra-se em ruínas.

Fonte: acervo dos autores.


31
  A Escola de Samba Garotos da Batucada, nos seus primeiros anos, ensaiava na rua Indepen-
dência, onde morava a família Dionísio Navarro. Atualmente, a sua sede localiza-se à rua General
Osório, no centro.
32
  A Escola de Samba Particulares do Ritmo foi fundada pela família Custódio. Sua sede localizava-
-se no bairro Rodrigues. Um dos integrantes desta escola foi o passista Saul Custódio, que marcou
a região com os seus shows.
33 
Por outro lado, nesta época surgiram na cidade outras escolas de samba, como a Mocidade In-
dependente, Bambas da Orgia, União da Vila, Imperadores do Samba, Pandeiro de Prata, Era de
Aquários, entre outras. Atualmente, muitas destas escolas não desfilam mais no carnaval passo-fun-
dense. Mais recentemente, no século XXI, surgiram outras escolas de samba em Passo Fundo, como
a Academia de Samba Cohab I, Unidos da Operária e Acadêmicos do Chalaça.

156
Os afro-descendentes em Passo Fundo

Considerações finais

Embora muitas vezes estejam em uma situação de invisibilidade social,


inclusive sofrendo com os preconceitos étnicos e sociais (e, por vezes, também
religiosos), os afro-descendentes têm uma grande importância na formação
histórica, socioeconômica, cultural e identitária de Passo Fundo. Vimos que
durante o século XIX o trabalho escravo foi amplamente utilizado em Passo
Fundo e os afro-descendentes, na condição de cativos ou libertos, representa-
vam uma significativa parcela da população passo-fundense.
Também convém ressaltar que dois importantes patrimônios imateriais
de Passo Fundo remetem ao período da escravidão e são de origem afro-bra-
sileira: a lenda da Mãe Preta e a romaria de São Miguel.
Por fim, procuramos abordar alguns fragmentos da história do centená-
rio Clube Visconde do Rio Branco, que constitui um importante patrimônio
histórico-cultural de Passo Fundo e que ainda hoje catalisa sentimentos e faz
emergir lembranças dos seus antigos frequentadores, que sonham em restau-
rá-lo e transformá-lo em um centro cultural. Porém, sem recursos financeiros,
torna-se fundamental o apoio da Prefeitura Municipal para que esse sonho
se torne realidade.

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http://www.projetopassofundo.com.br/principal.php?modulo=texto&con_
codigo=45305&tipo=texto. Acessado em 18-03-2017.
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A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

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158
A presença dos imigrantes alemães
no espaço urbano em Passo Fundo

Rosane Marcia Neumann1


Marlise Regina Meyrer2

Introdução

Historicamente, os imigrantes alemães e seus descendentes estabelece-


ram-se na zona colonial de Passo Fundo. Todavia, algumas famílias se radi-
caram na sede do município e como atividade central, dedicaram-se ao co-
mércio. Objetiva-se analisar a presença de imigrantes alemães na sede urbana
de Passo Fundo e a sua inserção na atividade comercial, de meados do século
XIX até meados do século XX.

1
  Doutora em História. Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq Núcleo de Estudos de História da Imigração
(NEHI). Membro do Instituto Histórico de São Leopoldo (IHSL) e Asociación de Historiadores
Latinoamericanistas Europeos (AHILA).
2
 Doutora em História. Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Passo Fundo.

159
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Imigrantes alemães no espaço urbano

Os estudos sobre a presença de imigrantes alemães em espaços urbanos


no Brasil ainda são pouco numerosos, mas dão uma amostra desse perfil
do imigrante: nem todos eram camponeses e se estabeleceram em colônias.
Para o caso de São Paulo, Sílvia Siriani (2003) descortina uma capital alemã
no século XIX, marcada pela presença de imigrantes alemães no processo
de urbanização, o desenvolvimento de uma infinidade de atividades econô-
micas, o comércio e a incipiente indústria. Embora presentes na região, não
houve a formação de um “núcleo” alemão no sertão do Planalto Paulistano,
todavia, mesmo misturados junto aos habitantes locais, mantiveram laços de
solidariedade e uma identidade étnica supraregional. Conforme os dados co-
ligidos pela autora, os imigrantes ocuparam espaços na área urbana com ati-
vidades e estabelecimentos que faltavam, como os armazéns, além de exercer
suas atividades de ofício, produzindo seus próprios instrumentos de trabalho,
vinculados a produção agrícola. Outro perfil apontado foi sua inserção nos
investimentos imobiliários, com a aquisição de bens, como casas e terrenos,
que garantiam certo status econômico para a família e seus herdeiros.
No que se refere ao Rio Grande do Sul, a maioria dos historiadores
que estudaram seu desenvolvimento econômico concorda que, até meados
do século XIX, predominava a atividade pecuária do Sul do Estado, com
base no latifúndio e no trabalho escravo (cf. Dacanal, 1979; Pesavento, 1979;
Singer, 1977). A partir da segunda metade do século, porém, devido ao de-
senvolvimento da chamada zona colonial, em especial alemã, configurou-se
uma nova dinâmica, regida, em parte, pelos comerciantes desta área. Estes,
ao servirem de intermediários entre produtor, pequeno proprietário rural li-
vre e mercado consumidor, contribuíram para a redefinição, no Estado, das
relações de produção. Além disso, promoveram o desenvolvimento de setores
médios da sociedade e ampliaram as possibilidades de mobilidade social (cf.
Dacanal, 1984; Roche, 1969).
O desenvolvimento econômico foi acompanhado de um crescente pro-
cesso de urbanização, tanto das próprias áreas de colonização, quanto da
capital, na medida em que esta se tornou um importante polo comercial,
responsável pela maior parte da distribuição dos produtos coloniais. A his-

160
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
toriografia sobre Porto Alegre indica que, no final do século XIX, a cidade
já se transformara no maior centro urbano e comercial do Estado. Abrigava
uma população variada, atraída por maiores possibilidades de trabalho ou de
investimentos. A capital e outros centros urbanos tornaram-se o locus privile-
giado de instalação de uma classe média emergente, dentre a qual se incluía
um significativo número de imigrantes alemães e/ou seus descendentes.
O crescimento econômico e urbano resultou em transformações na es-
trutura social do Estado. Esta, que até então revelara escassas perspectivas
de mobilidade social, tornou-se mais complexa quando o contingente de
imigrantes e seus descendentes passou a participar ativamente da economia.
Criaram-se possibilidades de ascensão social, restritas até então somente aos
grandes fazendeiros, os quais, embora tivessem mantido o controle político
no Estado durante todo o Império e o período da Primeira República, per-
diam terreno, progressivamente, no campo socioeconômico. Os novos setores
emergentes passaram a merecer atenção dos governantes, unindo-se muitas
vezes a estes, na defesa de interesses comuns (Picollo, 1989).
Ao tratar da presença de imigrantes alemães no espaço urbano de Porto
Alegre, Magda Gans (2004) constatou que os imigrantes alemães localiza-
vam-se em determinadas ruas, as “ruas dos alemães”, onde ficava o comér-
cio de grande, médio e pequeno porte, composto por casas de importação,
comércio de secos e molhados, prestação de serviços, profissionais de ofício,
fabricantes e industrialistas, profissionais liberais, técnicos e professores. Na
área central da capital, inseriram-se econômica e socialmente, formando uma
elite bem sucedida, preservando, ao mesmo tempo, a sua identidade étnica
nos seus espaços de sociabilidade. Revela que a maioria dos teutos da capital
eram de nível socioeconômico médio, em segundo lugar os de nível alto, sen-
do inexpressivo o número de alemães nos setores populares. Nas palavras de
Sandra Pesavento (1994, p. 203), é inconcebível “pensar as origens da indús-
tria no Rio Grande do Sul ou a transformação de Porto Alegre de uma pacata
cidadezinha açoriana numa cidade comercial e industrial sem a contribuição
do capital alemão”.
Para a colônia de São Leopoldo, Martin Dreher (1999) analisou os da-
dos relativos à profissão dos imigrantes alemães chegados no século XIX, os
quais evidenciaram a presença maciça de profissionais de ofício e profissio-
nais liberais ao lado dos camponeses. Ou seja, a presença de imigrantes urba-

161
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

nos, que dedicavam-se a algum ofício, paralelo ou não à atividade agrícola,


era significativa já no século XIX, fruto do processo da Revolução Industrial
na Europa. Na colônia de destino, muitos deles dedicaram-se ao seu ofício e,
posteriormente, buscaram a sede da colônia para se instalar.
Esse processo também é assinalado por Emílio Willems (1980), que
afirma que à medida que o teuto, identificado com o meio rural, melhorava
sua situação econômica, sua tendência era dirigir-se às cidades e assimilar o
modo de vida da população urbana que, para ele, era representada pela popu-
lação lusa. Essa dinâmica, segundo o autor, levou a uma progressiva perda,
pelos teutos, da cultura germânica, ao mesmo tempo em que assimilavam
valores culturais nacionais.
Logo, o processo de imigração e colonização no Brasil foi acompanhado
por um movimento interno paralelo: a remigração, ocorrendo do espaço ru-
ral para a sede colonial ou espaços urbanos adjacentes, de uma colônia à ou-
tra, ou dentro da própria colônia - além do retorno dos (i)migrantes. No final
do século XIX, esse movimento de pessoas tornou-se mais intenso ainda, e a
distância entre o lugar de saída e de destino cada vez maior. Nesse contexto,
no Rio Grande do Sul, insere-se a migração das colônias velhas para as colônias
novas, situadas na região do planalto rio-grandense, com Cruz Alta, Palmei-
ra, Santo Ângelo e Passo Fundo como centros de atração; entre as colônias
novas e, principalmente a partir da década de 1920, das colônias novas para o
oeste catarinense, e assim sucessivamente. Todo projeto de colonização ao
se lançar, carregava consigo uma leva de migrantes, atraídos pela possibili-
dade de adquirirem (mais) terras para si e seus filhos, por preços reduzidos,
na perspectiva de permanecer/tornarem-se proprietários, multiplicando seu
capital. Nesse processo, muitos comerciantes e industrialistas acabaram por
aplicar capital especulativo em negócios de terras.
Para o imigrante, a propriedade da terra era muito importante. Terra,
nesse sentido, significava liberdade, possibilidade de ascensão social e eco-
nômica. Willems (1980), Waibel (1958), Roche (1969) e Seyferth (2004), são
unânimes ao afirmar que o colono era apegado à propriedade da terra como
um bem econômico, porque os imigrantes haviam perdido uma virtude cam-
ponesa essencial: o apego à terra. Essa “perda cultural” seria a responsável
pela venda, na primeira oportunidade, da sua terra, abandonando o seu lar,
adquirindo um lote mais em conta, uma “terra boa”, um lote com uma locali-

162
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
zação mais favorável, um negócio mais rentável ou, ainda, migravam para os
núcleos urbanos, dedicando-se a um ofício, geralmente aquele que já conhe-
ciam na Europa ou, no caso dos seus descendentes, nas colônias velhas.
Assim, no Brasil, o colono foi menos sedentário do que o camponês
europeu. Caracterizavam-no “a ânsia por novas terras e o ‘Wanderlust’ (de-
sejo de peregrinar). Quando encontrava terras melhores para si e seus filhos,
tornava a se mudar novamente” (Fouquet, 1974). Jean Roche (1969) afirma
que, excetuando os que permaneciam no lote paterno, os descendentes de
colonos migravam em média uma vez durante sua vida. Os imigrantes e seus
descendentes alimentavam, então, as migrações internas, o que representa
uma marca distintiva da colonização no Rio Grande do Sul. O pioneirismo
permanente expandiu rapidamente a fronteira agrícola, formando novos nú-
cleos coloniais em áreas cada vez mais afastadas da capital, processo que o
autor denominou de enxamagem.
Essas migrações foram resultado da conjugação de vários fatores: do
crescimento demográfico da antiga zona de colonização alemã e italiana,
aliado à escassez de terras para venda; a rotação de terras, acompanhada do
uso intensivo e das queimadas, provocavam o rápido esgotamento do solo,
com a queda da produção; a disponibilidade de terras por preços mais aces-
síveis nas frentes pioneiras de colonização; o fluxo constante de imigrantes
ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do XX, abastecendo as co-
lônias, pois os elementos estrangeiros deixavam as áreas rurais quando atraí-
dos pelas possibilidades apresentadas pelas cidades, ainda mais com o incre-
mento industrial; o abandono ou a conjugação da atividade agrícola com o
artesanato rural; a falta de sociabilidade foi a responsável pelo abandono dos
lotes ou o desespero de muitos imigrantes, pois a distribuição dos lotes em
linhas coloniais, distantes uns dos outros, diferia do modo de vida em aldeia
conhecido na Europa (Neumann, 2016). Somando-se a esses fatores, Giralda
Seyferth (2004) entende que essa mobilidade espacial tinha outros pretextos,
que também provocaram invasões irregulares de lotes entre colonos e aban-
dono à revelia das autoridades: a má qualidade das terras e a distância em re-
lação à sede colonial foram causas determinantes da migração, mas também
a separação da família aparentada ou emigrada de uma mesma região, que
reflete a impossibilidade de escolha da terra, sobretudo nas colônias oficiais.
Após um século de imigração e colonização no estado, Theodor Ams-

163
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

tad, reportando-se ao movimento das populações rumo às colônias novas da


região do Planalto, ponderou que demorou “um bom tempo até que os colo-
nos alemães se decidissem por um ‘voo para tão longe’. O estímulo imediato
para tanto foi dado pela febre por terras dos anos noventa [1890]. Derru-
baram-se para os moradores das colônias velhas os limites de suas estreitas
picadas natais, pela compra cega das colônias cobertas de mata” (Cem anos
de germanidade..., 1999, p. 127) – esse movimento teria se intensificado com
o final da Revolução Federalista (1893-95). Nesses movimentos migratórios, os
colonos carregavam as suas mudanças da forma possível: de trem, a cavalo,
de carro ou carroças de boi.

Famílias alemãs em Passo Fundo

No final da década de 1820, estabeleceram-se nas áreas de campo do


Planalto Rio-grandense tropeiros, predominando os paulistas e paranaenses,
com suas fazendas voltadas para a criação de gado. Essa ocupação deu ori-
gem ao grande município de Cruz Alta em 1834, desmembrado de Rio Par-
do. Já na metade do século XIX, o distrito de Passo Fundo foi desmembrado,
formando um novo município, abrangendo um território de 80.000 quilôme-
tros quadrados, com uma população estimada em 7.586 habitantes.3 Em sete
de agosto de 1857, foi instalado o município de Passo Fundo e empossada
a primeira Câmara Municipal. A presidência da Câmara foi assumida pelo
comerciante Manoel José de Araújo, e para os cargos municipais foram no-
meados: Guilherme Schell, secretário; Manoel Xavier da Cruz, procurador;
Felisbino José Padilha, porteiro e contínuo; Luiz Antônio Pinheiro, guarda
municipal e Amaro de Camargo, fiscal da vila. A economia do município gi-
rava em torno do comércio de tropas e da pecuária, sendo o produto principal
a fabricação e exportação da erva-mate. Já no final da década de 1860, a base
econômica era o comércio de exportação: mulas para Sorocaba, erva-mate
para os mercados do Prata e pedra ágata para a Alemanha. Paralelamente, os

3
  A criação do município de Passo Fundo foi sancionada pelo Presidente da Província, Jerônimo
Francisco Coelho na forma da lei n.º 340, de 28 de janeiro de 1857. A Vila de Passo Fundo foi
elevada à Cidade em dez de abril de 1891, conforme Ato n.º 258 do presidente de Estado do Rio
Grande do Sul, Dr. Fernando Abott. Na época, a população municipal era superior a dezenove mil
habitantes.

164
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
lavradores nacionais cultivavam suas roças de subsistência, outros se dedicavam
ao extrativismo da erva-mate e o comércio de muares (cf. Batistella, 2007).
Passo Fundo caracteriza-se como um município com um perfil diverso:
sua sede urbana, que configura a sede do município atual, apresenta traços
étnicos mistos, não prevalecendo um ou outro grupo. Todavia, ao reduzir a
escala de análise, observando rua por rua, quarteirão por quarteirão, é possí-
vel mapear espaços onde predominavam “os alemães” urbanos, cujos laços
ultrapassavam seus limites locais, criando redes sociais com as colônias ale-
mãs próximas.
A historiografia sobre a imigração e colonização alemã no Rio Grande
do Sul considera a presença de imigrantes alemães na região do Planalto
Rio-grandense apenas no final do século XIX. Contudo, ao analisar as famí-
lias instaladas na nascente sede urbana de Passo Fundo, nota-se a presença
de imigrantes alemães, frutos da imigração espontânea, desde meados da
década de 1830, quando ainda era distrito de Cruz Alta. Na sede do municí-
pio verifica-se no mesmo período entre os proprietários de terras e pequenos
comerciantes vários sobrenomes alemães.
Parte-se do pressuposto de que eram famílias desviadas da região de imi-
gração e atraídas pela possibilidade de acesso a grande propriedade agrária
e a exploração de pedras preciosas, na grande Passo Fundo, vendidas para a
Alemanha, e o comércio estabelecido entre Passo Fundo e Rio Pardo.
Conforme os dados historiográficos e a memória corrente, a primeira
família de imigrantes alemães a se estabelecer na sede de Passo Fundo, em
1836, foi Johan Adamm Schell e sua esposa, Anna Christina Schell, nascidos,
respectivamente, em 24 de junho de 1805 e 21 de agosto de 1815. A trajetória
migratória de Schell indica para um perfil de imigrante diferenciado: Adão
Schell, como ficou conhecido, de profissão carpinteiro, partiu da Alemanha
em 1828, como solteiro, com destino à colônia de São Leopoldo, estabelecen-
do-se na Linha Bom Jardim (Ivoti). Conheceu nessa colônia Anna Christina
Hein, filha de uma família imigrante de uma leva anterior proveniente de
Hildburghausen, reino de Saxe, estabelecidos na Linha Bom Jardim, como
colonos. Casaram-se em 30 de outubro de 1830, permanecendo no local por
um período.
Posteriormente, o casal Schell migrou com seus filhos Maria e Jorge
para Rio Pardo, e em seguida, Três Vendas, em Cachoeira, onde instalou

165
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

uma oficina de fabricação de carretas. Essa migração é comprovada pelo re-


gistro de nascimento dos filhos: João, o terceiro filho do casal, nasceu em
15 de dezembro de 1833 na vila do Rio Pardo, onde também foi batizado
em abril de 1834; já o quarto filho, Guilherme, nasceu em Cachoeira em 15
de setembro de 1835. Partindo desses dados, a transferência da família para
Passo Fundo deu-se em 1836, onde estabeleceram moradia e uma pequena
casa de comércio. As atividades comerciais foram interrompidas em virtude
da Guerra dos Farrapos, levando a família a se estabelecer em Montevidéu,
no Uruguai, onde o patriarca dedicou-se ao comércio de gado. Novamente, é
possível traçar essa trajetória migratória a partir dos registros de nascimento
dos filhos: Emília, a quinta filha do casal, nasceu em 5 de janeiro de 1838 em
Passo Fundo, e foi batizada em Montevidéu, enquanto que Maria Luiza foi
registrada em 16 de novembro de 1840 em Passo Fundo. No retorno a Passo
Fundo, estabeleceu-se com casa comercial e residência na esquina da Aveni-
da Brasil e Teixeira Soares. Em sua obra O trabalho alemão no Rio Grande do
Sul, Aurelio Porto afirma:

Passo Fundo recebera também o influxo do trabalho alemão. Entre


os vultos de destaque dessa colônia ressalta a figura de Adão Schell,
tronco de uma família ilustre, hoje desdobrada por todo o Estado. Re-
sidiu, primeiro, em Bom Jardim, onde casou com Ana Cristina Hein,
seguindo para Cachoeira, Três Vendas, onde fixou residência. Indo,
várias vezes, a Passo Fundo, buscar madeiras, para fabricar carretas,
agradou-se da incipiente povoação, para aí transferindo residência,
em 1834 ou 35, e dedicando-se ao comércio (PORTO, 1996, p. 217).

Na casa comercial, Schell manteve sociedade com seu filho, Guilherme,


e posteriormente, manteve como sócio o português Antônio José da Silva
Loureiro, o “barãozinho”, seu genro e ex-empregado. Os filhos mantiveram
suas residências nas imediações da primeira casa comercial.
O perfil da família Schell e as redes sociais tecidas em Passo Fundo
são indícios do que viria a ser a presença de imigrantes nesse espaço urba-
no. O patriarca obteve formação de carpinteiro (Tischler) ainda na Alemanha
e, uma vez no Rio Grande do Sul, desempenhou o seu ofício e dedicou-se
ao comércio. Nessa condição, inseriu seus filhos homens no comércio, na

166
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
Guarda Nacional (Jorge, Tenente; João e Guilherme Major) e na política –
ocuparam o cargo de vereador e outros cargos públicos. Essa rede foi consoli-
dada por intermédio dos casamentos entrelaçados com a elite luso-brasileira
local: a família Araújo (Jorge e Emília) e a família Loureiro (Felipina); e a
elite imigrante alemã, representada pela família Morsch (Anna Christina e
Leopoldina). A partir desse entrelaçamento, constituiu-se a base de quatro
grandes famílias de Passo Fundo: Schell, Araújo, Loureiro e Morsch.
O estudo pautado nas redes sociais, econômicas e políticas tecidas pelas
famílias, parentelas e compadrios, seguindo como fio condutor o nome (Levi,
Ginzburg), permite localizar e compreender as estratégias adotadas pelos imi-
grantes alemães nesses espaços de chegada. Tratando dos imigrantes alemães
ligados a atividade comercial em Santa Maria, entre 1830 e 1891, Fabrício R.
Nicoloso (2013) encontrou um perfil muito semelhante ao de Passo Fundo,
no que diz respeito a sua atividade econômica como comerciantes e suas tra-
jetórias, com a sua inserção na Guarda Nacional, na política e o casamento
interétnico com latifundiários da elite local. Tanto Santa Maria quanto Passo
Fundo não integravam no século XIX o mapa dos núcleos coloniais definidos
pelo Império, o que os torna um caso excepcional para esse estudo.
A família Schell foi o primeiro grupo de protestantes luteranos em Passo
Fundo, e deu início às atividades do cemitério luterano, situado nas proximi-
dades, na atual rua Teixeira Soares, em frente ao complexo do Quartel, onde
Adão Schell, falecido em 28 de agosto de 1878, foi sepultado. O referido
cemitério foi demolido após a inauguração do Cemitério Municipal da Vila
Vera Cruz. Paralelamente, Schell fundou em 1872 a Loja Maçônica Concór-
dia III, situada na esquina das atuais ruas Paissandu e Sete de Agosto.
Com a elevação de Passo Fundo a distrito de Cruz Alta, em 1834, houve
um significativo aumento populacional, com a presença de muitos imigrantes
alemães. Por volta de 1840, o imigrante alemão João Neckel, junto com sua
esposa Ana Bárbara e filhos, seu pai Jacob e o irmão Matias, oriundos de
Lages, Santa Catarina, e que tinham como destino final Santo Ângelo, aca-
baram permanecendo em Passo Fundo. Posteriormente, estabeleceram-se ou-
tras famílias de imigrantes alemães, entre elas, Matias Trein, Pedro Müller e
Antônio Neckel - este último, também de Lages, trazendo esposa e três filhos.
Percebe-se uma estreita relação entre os fluxos migratórios e as guer-
ras, visto que no contexto da Guerra do Paraguai, um considerável número

167
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de imigrantes dirigiu-se para longe da capital, buscando espaço em Passo


Fundo, possivelmente fugindo do alistamento militar. Outro aspecto notável
são as redes familiares, evidentes nos sobrenomes, sinalizando que os imi-
grantes seguiram os familiares supostamente bem sucedidos. Nesse contexto,
chegaram entre 1865 e 1870 as famílias: Matias Müller, do litoral de Torres;
Pedro Walendorf, de São Paulo; Pedro Schutz; Jorge Hein, irmão de Anna
Schell; Jorge Sturm, Carlos Gosch; Guilherme Benthack; Frederico Takkel;
Nicolau Scheleder; Pedro Scheleder; Pedro Kruss; João Jacobs Müller; Pedro
Zimmermann; Luiz Morsch; João Lewe; João Pedro Cullmann; Júlio Cull-
mann; Frederico Guilherme Kurtz, Guilherme Morsche; Frederico Augusto
D’ohring; Jacobi Kurtz; Ernesto Kronn; Guilherme Block e João Issler. Ter-
minado o conflito, mais um grupo de imigrantes alemães dirigiu-se a Passo
Fundo, sendo eles: Henrique Jacobs Winckler Natusce, da Baviera; Maximi-
liano Beschoren; Kurtz Von Reuter; Fernando Strello; João Zimmermann,
irmão de Pedro; Otto Zimmermann; Adão Ritter, Carlos Raichert; Carlos
Züger; e Reinaldo Pietsck. No total, a sede de Passo Fundo foi destino de
34 famílias, que para o período, é um número expressivo. Mais cerca de dez
famílias que se dirigiram para o meio rural.4
Note-se que a sede de Passo Fundo recebeu um pequeno número de
imigrantes, na sua quase totalidade, profissionais de ofícios, ainda no século
XIX. Já no final do século, procedeu-se à colonização das terras devolutas,
bem como de terras de particulares, estabelecendo-se nessas colônias signifi-
cativo contingente de imigrantes alemães e seus descendentes.
Os imigrantes alemães inseriram-se em outros setores, como pastores,
padres, professores. As irmãs da congregação de Nossa Senhora (Notre
Dame) estabeleceram-se na sede a partir de 1923, mantendo suas atividades
ligadas ao ensino e à assistência social.
Tratando-se de um grupo significativo, os imigrantes desde o princípio
também ocuparam cargos administrativos. João Schell presidiu o Conselho
Municipal e era capitão das forças imperiais em 1869. Já na República, em
1892, Frederico Guilherme Kurtz foi eleito como primeiro Intendente de

4
  Muitas famílias fixaram residência no meio rural, como Pedro Walendorf; Júlio Cullmann, Pe-
dro Kruss e Gustavo Reichert. No Capão da Mortandade foi morar João Schwart. No Engenho
Francisco Bier e Nicolau Tein. Na Lagoa de Brito, Manoel João Welsch, Damázio Murwopp. No
Pessegueiro, Miguel Schaeffer.

168
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
Passo Fundo. Considerável número de imigrantes e descendentes de alemães
eram adeptos da causa republicana.
A vida social era organizada em torno do clube Deutscher Verein, cujo
nome na década de 1930 foi alterado para Clube Recreativo Juvenil.

Figura 1 – Deutscher Verein, 1958

Fonte: Acervo do Clube Juvenil, Passo Fundo.

Figura 2 – Deutscher Verein. Salão de Festas, 1958

Fonte: Acervo Clube Juvenil, Passo Fundo.

169
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Destacaram-se também na fundação do Hospital de Caridade em 1914,


hoje, Hospital da Cidade, e do Hospital São Vicente de Paulo, fundado no
ano de 1918, vinculado a ala católica.

Passo Fundo e suas colônias

As áreas de mata foram relegadas em segundo plano, fracionadas e co-


lonizadas pela iniciativa pública e privada na virada do século XIX para o
XX. Para isso, foi fundamental o prolongamento da via férrea de Santa Maria
até Cruz Alta, em 1894, e a posterior bifurcação em direção a Passo Fundo -
Santa Catarina e Santo Ângelo, interligando a região Planalto com o restante
do Estado, permitindo a circulação de pessoas e mercadorias. Em 1897 foi
inaugurado o percurso da ferrovia de Cruz Alta até Carazinho, e em janeiro
de 1898, até Passo Fundo. Analisando a expansão da via férrea para a região
Norte do estado, Gládis Wolff (2005) e Adelar Heinsfeld (2007) salientam
que a chegada do trem trouxe a reboque os colonos, pois em cada estação de
trem formou-se um núcleo colonial, o qual evoluiu para um pequeno centro
urbano.5 Por sua vez, Borges de Medeiros6 acreditava que o desenvolvimento
das colônias estava diretamente vinculado à existência de uma infraestrutura
adequada, incluindo vias de ligação, como de estradas de rodagem, vias flu-
viais e a ferrovia. De acordo com Borges de Medeiros, “não basta introduzir
o imigrante; é mister, outrossim, preparar a colônia para recebê-lo, dotando-a
de todos os melhoramentos imprescindíveis” (Mensagem..., 1899, p. 24).
A colonização da região caracterizou-se pela atuação da iniciativa priva-
da, seja individual ou de empresas; e iniciativa pública, no caso estadual ou
municipal. Atendendo aos propósitos oficiais, ou seja, à rápida nacionaliza-
ção dos elementos estrangeiros, as colônias deveriam ser etnicamente mistas.
Contudo, no que se refere à iniciativa privada, esse quesito nem sempre foi
5
  Em 1905, a rede ferroviária do estado foi unificada em quase sua totalidade e entregue à compa-
nhia belga Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil. Em 1920, por seus serviços não correspon-
derem às expectativas, e tentando resolver o problema dos transportes, a rede foi encampada pelo
Estado (cf. Kliemann, 1977).
6 
Antonio Augusto Borges de Medeiros sucedeu Júlio de Castilhos no governo em 1898, e assumiu
a chefia do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) com a morte deste, em 1903. Consolidou
no estado o regime republicano autoritário e centralizado, e permaneceu à frente do executivo de
1898-1907; 1913-1928.

170
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
regra, e o governo não dispunha de mecanismos eficientes para interferir,
permitindo assim a formação de colônias étnicas.
As colônias privadas ocuparam, geralmente, uma pequena extensão de
terras adquiridas de particulares ou ao Estado, com um número limitado de
lotes. Internamente, cada qual ditava suas regras e seus preços de terras. Sob
esse viés, cada colônia particular é um micro espaço complexo e singular,
resultado de uma negociação entre o(s) seu(s) proprietário(s)/idealizador(es),
os colonos, os lavradores nacionais, os proprietários adjacentes, o poder pú-
blico, e das contingências macro históricas. Esses empreendimentos de co-
lonização ocuparam o espaço deixado pelo Estado, cuja política consistia
em reduzir os investimentos em imigração e colonização. Aproveitaram-se
também da situação favorável do mercado, motivado pelo crescimento da de-
manda por lotes coloniais por parte dos colonos. Soma-se a isso a existência
de extensas áreas de terras devolutas, que poderiam ser adquiridas ao governo
(Neumann, 2016).
A presença de imigrantes isolados em Passo Fundo data das primei-
ras décadas do século XIX. Todavia, as primeiras colônias foram fundadas
somente no final daquele século. Trata-se de colônias predominantemente
colonizadas por imigrantes e descendentes de colonos alemães - Santa Cla-
ra (1896), Alto Jacuí (1897), Não-Me-Toque (1897), General Osório (1898),
Dona Ernestina (1900), Selbach (1906) -, italianos - Guaporé (1892) -, polo-
neses e judeus - Erechim (1908) -, seguindo o perfil de colônias mistas, mar-
cadas pela diversidade étnica. Ao longo do século XX, muitas destas colônias
foram desmembradas, dando origem a novos municípios, mantendo estes sim
uma identidade étnica mais definida. Para Fredrik Barth (1998, p. 195; 214),
a pertença étnica seria, ao mesmo tempo, uma questão de origem bem como
de identidade corrente. Acresce que o grupo étnico seleciona, dentro das suas
características, as que são relevantes para a sua identificação e diferenciação
em relação ao outro. “Se um grupo conserva sua identidade quando os mem-
bros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença
e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão”. Para Candau (2012),
a identidade é uma construção social, que se dá em uma relação dialógica
com o Outro.

171
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Os imigrantes e a atividade comercial

No decorrer do século XIX, os imigrantes alemães que se instalaram em


Passo Fundo ocuparam os espaços socioeconômicos que estavam disponí-
veis: o comércio e as atividades de ofício, abastecendo o latifúndio pecuarista
e os tropeiros, visto que o extrativismo e comércio da erva-mate, a pecuária
e o comércio de mulas já tinha reserva de mercado. Na virada para o século
XX, a chegada dos trilhos de trem permitiu a ampliação das atividades das
casas comerciais, contribuindo para a instalação de núcleos coloniais, possi-
bilitando o aumento e diversificação da produção.
Os indícios apontam para um grupo de imigrantes alemães diferenciado,
que na sua origem não era camponês, e que buscou um espaço urbano para se
estabelecer, superando as dificuldades linguísticas, inserindo-se na sociedade
luso-brasileira local. Outro diferencial foi sua articulação com o comércio da
erva-mate e o abastecimento dos tropeiros e pecuaristas, não se atrelando à
produção colonial, o que só se configurou no início do século XX.
Conforme Pesavento (1994, p. 200),

Lucrando através de uma situação monopólico-monopsônica, que


isolava o produtor direto dos estímulos do mercado, o comerciante
detinha o controle das diferenças entre os preços de compra e ven-
da. Nascia assim uma das ‘personas do capital’, responsável por uma
cadeia de transformações que se seguiram. Alemães foram os comer-
ciantes das vendas localizadas junto aos lotes, das casas comerciais no
entroncamento das linhas ou nos núcleos coloniais. Posições estraté-
gicas teriam os comerciantes desses núcleos [...], ocupando uma po-
sição intermediária entre os lotes do interior e o grande comércio da
capital, operando como redistribuidores dos produtos vindos de fora
da região colonial para as vendas rurais e também como encarregados
de fazer chegar a Porto Alegre a produção agrícola dos lotes.

Nas suas aquarelas e desenhos a bico de pena, José Lutzenberger, um


imigrante estabelecido em Porto Alegre de 1920 até seu falecimento em 1951,
retratou a vida rural e urbana dos imigrantes. Em sua obra O colono no Rio

172
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
Grande do Sul, editada em 1950, no desenho sobre ao venda, o texto escrito
pelo padre Edvino Friderichs S.J., afirma:

[...] a plantação dá ao agricultor só o indispensável. O índio conten-


ta-se com ela, o colono não. Quer ele vender seus produtos e adqui-
rir outros, que lhe fazem falta. O vendista lhe resolve este problema,
apresentando-lhe em troca outros gêneros. O colono, numa carreta
pesada, puxada geralmente por bois, em algumas zonas também por
burros ou cavalos, leva seus produtos para a venda, onde adquire
o que precisa, desde a enxada até a boneca para as crianças (LUT-
ZENBERGER in.: MAUCH, 1994, p. 41).

O primeiro estabelecimento comercial ou armazém instalado por um


imigrante alemão na sede do distrito de Passo Fundo data de 1836, e perten-
cia a Johann Adam Schell. A casa comercial localizava-se no aglomerado ur-
bano nascente às margens da Estrada das Tropas – nome alterado em 1858 para
Rua do Comércio, e em 1913 para Avenida Brasil –, na esquina com a denomi-
nada rua das Flores, em 1858, e posteriormente, alterado para rua Humaitá,
em 1865, e desde 1891, rua Teixeira Soares –, delimitando o espaço urbano
dos “alemães”. O estabelecimento, inicialmente uma casa rústica voltada ao
comércio intermediário da erva-mate, secos e molhados, cedeu lugar a uma
imponente “casa de pedra”, segundo a planta da freguesia de Passo Fundo
de 1853,7 construída e gerenciada pela família Schell e seus sucessores. Já no
século XX, o estabelecimento era denominado Casa para Todos, e especiali-
zou-se em artigos de cama, mesa e banho.

7
  Planta da Freguezia do Passo Fundo em 1853. Fonte: Plano Diretor de 1953. Ver também sobre
a temática o artigo Lugar de passagem: toponímia e patrimônio, de Fernando Miranda e Ironita
Machado (2013).

173
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Figura 3 – Casa para todos – Casa Schell

Fonte: Arquivo Sincomércio Passo Fundo

No final do século XIX, o povoado contava com cerca de o comércio da


vila de Passo Fundo já era diversificado. Nas suas impressões de viagem, o
agrimensor Maximiliano Beschoren anotou sobre o comércio de Passo Fun-
do em 1883:

[...] entre negociantes e operários, conta com 19 casas de comércio, 1


curtidos, 1 seleiro, 4 sapateiros, 3 ferrarias, 3 açougueiros, 7 marcenei-
ros e carpinteiros, 3 pedreiros, 1 funileiro, 1 relojoeiro, 1 fabricante
de cerveja, 2 hospedarias. Destes, a maioria são alemães. O elemento
alemão é, portanto, fortemente representado, e possui em qualquer
tipo de negócio, seja na profissão ou indústria, uma posição domina-
dora e de destaque (Beschoren, 1989, p. 34-35).

As casas comerciais, quase todas elas negociantes de tecido em metro,


miudezas, calçados, remédios, louças, ferragens e produtos da terra. Nessas
casas negociavam os alemães Manoel Schell, Jorge Schell, João Müller, Fran-
cisco Mattos Müller, Guilherme Morsche, Isabel Kratz Sturm, Jorge Issler,
João Klippel, Luiz Wolff. Havia também, oficinas de sapataria, pertencentes

174
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
a Frederico Kurtz e João Lewe; a selaria de João Habkost; a lambilharia de
João Graeff; a alfaiataria de Carlos Leopoldo Reicheman; as ferrarias de Pe-
dro Scheleder e Fernando Zimermmann, e Mathias Benck.

Figura 4 - Passo Fundo, ocupação urbana 1853

Fonte: FERRETTO (2012, p. 62)

O patrimônio arquitetônico das casas comerciais remanescente do sécu-


lo XIX, situadas na Avenida Brasil, é composto pela Casa Schell, assinalada
no mapa, a Casa Barão (construída por Antonio José da Silva Loureiro em
1865) e Casa Morsch, ou seja, uma grande parentela de comerciantes, tendo
por fio de ligação a família Schell.
O prédio da Casa Schell foi alvo de reformas e adaptações, acompa-
nhando as demandas urbanas e o desgaste do tempo. Em 2012, houve uma
tentativa de tombamento do imóvel como patrimônio histórico, negado no
ano seguinte, quando a construção foi demolida.

175
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Figura 5 – Casa Schell, 2013

Fonte: http://www.pmpf.rs.gov.br/servicos/geral/multimidia/I2013-05-07_06:27:58_
c9292.jpg. Acesso em 4 abr. 2017.

A Casa Morsch faz parte do complexo comercial dos alemães em Passo


fundo. Seu proprietário, Guilherme Morsch era genro de Schell, e cunhado
do proprietário da Casa Barão, também genro de Schell.

Figura 6 – Casa Guilherme Morsch, Esquina Avenida Brasil com 10 de abril

Fonte: http://www.projetopassofundo.com.br/principal.php?modulo=texto&con_
codigo=14750&tipo=texto. Acesso em 4 abr. 2017.

176
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
Figura 7 – Casa Barão, Avenida Brasil

Fonte: http://www.projetopassofundo.com.br/principal.php?modulo=texto&con_
codigo=48868&tipo=texto&cat_codigo=20. Acesso em 4 abr. 2017

A chegada dos trilhos da ferrovia, somada a instalação da estação de


trem, contribuiu para o redimensionamento do espaço urbano, momento no
qual a Avenida Brasil deixou de ser a principal via de recebimento e escoa-
mento da produção e pessoas. O centro da sociabilidade moderna passou a
ser a estação férrea e, gradualmente, os seus arredores foram incorporados à
malha urbana.
Nas primeiras décadas do século XX, novos estabelecimentos comer-
ciais de propriedade de imigrantes e descendentes de alemães instalaram-se
na Avenida Brasil e ruas adjacentes, como a Casa Nothen, Casa Schmidt e
Casa Carioca, especializadas na comercialização de ferramentas, ferragens,
tecidos e móveis.
As pequenas oficinas e casas comerciais, nos anos seguintes, tornaram-
-se grandes empreendimentos, ou nos casos em que não conseguiram superar
a concorrência e os grandes grupos do varejo, desapareceram.8
Paralelo às casas de comércio, os imigrantes alemães e seus descenden-
tes atuaram em outros setores. Por exemplo, o ourives Carlos Willibaldo He-
xsel migrou de Lajeado para Passo Fundo em 1927, dedicando-se ao comér-
cio da ourivesaria, atividade continuada por seu filho Conrado Hexsel, com
empreendimento situado na Avenida Brasil, ao lado da Casa Schmidt. No
mesmo ramo atuavam também os irmãos Goelner, a partir de meados da dé-

8
  O comércio de Passo Fundo é representado por duas entidades: o Sindicato do Comércio Varejista
(Sincomércio), criado em 28 de Junho de 1948 para representar e defender os direitos coletivos ou
individuais da categoria do comércio varejista; e a Câmara de Dirigentes Lojistas de Passo Fundo
(CDL), fundada em 06 de agosto de 1964.

177
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

cada de 1940; e o imigrante alemão Maximiliano Edgar Holderied, chegado


em 1948, especialista em óptica.

Figura 8 - Anúncio Ourivesaria e Relojaria C.W. Hexsel

Fonte: Guia Ilustrado, 1939, Fl. 160.

Nas atividades comerciais, destacavam-se a Casa Kurtz, de Eduardo


Kurtz, situada na Rua General Neto, esquina Rua Independência, defronte a
Praça Marechal Floriano, cujo diferencial consistia na sua proximidade das
casas de comércio dos núcleos coloniais, pautado no recebimento de produ-
tos coloniais, fornecendo em troca as mercadorias aos colonos. Em 1935,
com o falecimento de seu proprietário, o estabelecimento foi liquidado. Ain-
da por volta de 1932, Oscar Kurtz fundou a Casa Oscar, vendida para a Casa
Jandyr em 1940, um estabelecimento especializado em artigos refinados para
homens, situada na Rua Moron; o Armazém Gaúcho de Walter Helmuth
Rien; a Casa Schmidt de Carlos Schmidt, especializada em ferragens, ativa
já na década de 1920, situada na Avenida Brasil; a Casa J. P. Kieling, de José
Pedro Kieling e José João Holzbach, especializada em selaria e curtume; a
firma Reis Hexsel dedicava-se ao comércio de compras de produtos em gran-
des centros urbanos, bem como a Casa Wandscheer.
O estrativismo de pedras preciosas era outra atividade lucrativa da pauta
econômica do município. Destacava-se a lapidaria do engenheiro Rodolfo
Ophvski, imigrante alemão que se instalou no início da década de 1930.
No ano de 1923, Augusto Neuhaus e seu filho Willibaldo instalaram
uma fábrica voltada à produção de doces e caramelos de várias marcas, em-
pregando cerca de 20 trabalhadores, predominando as mulheres. O produto
era vendido por atacado para toda a região, e escoado pela viação férrea. A

178
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
fábrica situava-se próxima à via férrea, na Vila Rodrigues. Em anexo, foi ins-
talado em 1928 um Armazém de Secos e Molhados. A família Neuhaus emi-
grou para o Brasil em meados do século XIX, estabelecendo-se em Teutônia,
município de Estrela. O filho Augusto, já nascido no Brasil, remigrou para
Ijuí, fixando-se no distrito de Serra do Cadeado, e por fim, em 1923, optou
por Passo Fundo. O empreendimento atuou até 1950, alterando sua razão
social várias vezes: Neuhaus & Filhos; em 1933 para Neuhaus & Filho, e em
1940, com a entrada de mais um sócio, passou a Neuhaus & Schonhorst.

Figura 9 - Anúncio Augusto Neuhaus & Filhos

Fonte: Guia Ilustrado, 1939, Fl 126.

Uma das maiores fábricas do setor industrial, pelos seus desdobramen-


tos, foi a fábrica de pregos Gerdau, de propriedade do imigrante alemão Hugo
Gerdau, instalada em 1933 na “Rua dos Trilhos”, atual Sete de Setembro,
permanecendo ativa até 1962, quando transferiu as atividades para Sapucaia
do Sul, e o prédio vendido para João Zaffari, que instalou o Shopping Bella
Cittá. Na fabricação de carretas e máquinas de selecionar sementes, atuava
Guilherme Alberto Knack, chegado ao município no início do século XX.

179
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Por volta de 1912, foi instalada uma fábrica de cerveja, denominada


Cervejaria Continental, mais tarde, Cervejaria Serrana, de propriedade de
Bade, Barbiex & Cia., situada na Rua General Neto, esquina com a Paissan-
du. Em 1947, a fábrica foi transformada na CIA Cervejaria Brahma. A em-
presa foi gerenciada inicialmente por Roberto Schan, depois, pelo imigrante
Leonardo Böhme. Na década de 1970, a cervejaria passou por um processo
de modernização, dedicando-se a produção do Brahma Chopp.

Figura 10 - Rótulo da cerveja da Cervejaria Serrana

Fonte: Fotos antigas de Passo Fundo. Disponível em: https://pt-br.facebook.com/Fo-


tosAntigasDePassoFundo/photos/a.../725717624113440. Acesso em 4 abr. 2017.

O crescimento populacional, somado à circulação de pessoas, criou a


demanda por hoteis. Franz Krischer emigrou da Alemanha para o Brasil em
1920, fixando-se em Rio Grande, transferindo residência para Passo Fun-
do, onde dedicou-se ao ramo hoteleiro. Por sua vez, na década de 1920, a
farmácia alemã de Walter Borrik, atendia seus clientes com um receituário
internacional.
O médico Luiz Morsch von Steinnach (Ludwig), natural de Oldenburg,

180
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
Alemanha, estabeleceu-se em Passo Fundo em 1863. No ano seguinte, casou-
-se com Anna Christina Schell (Aninha), filha de Johann Adam Schell.
Há também registros do Engenho de Carlos Kruel, família de imigran-
tes que chegou ao Brasil no final do século XIX e se instalou na região das
Missões, ocupando cargos políticos-administrativos locais. A Revista Kodak,
que no início do século era a primeira revista a veicular fotografias do Rio
Grande do Sul, publicou, em 1913, uma fotografia do Engenho de Kruel. A
referida revista era um veículo em perfeita sintonia com o então governo de
Borges de Medeiros, divulgando a ideia de desenvolvimento e modernidade
promovida pelo Estado.

Figura 11 – Engenho de Carlos Kruel e Augusto Sibas

Fonte: Revista Kodak, 01/11/1913, p. 55

Atualmente há a Associação Sócio-cultural Alemã de Passo Fundo que


foi reativada no início do século XXI, com cerca de 30 associados. A asso-
ciação mantém atividades culturais e recreativas com objetivo de valorizar e
recuperar o folclore, tradição e cultura alemã. A maior parte dos membros
da associação instalaram-se recentemente em Passo Fundo, onde procuram

181
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

manter a memória de seus avós e bisavós, muitos deles imigrantes e/ou des-
cendentes diretos de imigrantes. Alguns associados são originários da região
das chamadas colônias velhas, outros de localidades do entorno de Passo Fun-
do como: Sarandi, Tapera, Não-Me-Toque e Carazinho. Nos relatos de me-
mória, Passo Fundo aparece como um núcleo mais urbanizado em meio a
uma vasta zona rural, que acabava por atrair esses descendentes de imigran-
tes das áreas rurais para exercerem outras atividades, em especial o comércio,
mais rentáveis e atrativas.

Considerações finais

Portanto, para o século XIX até meados do século XX, havia em Passo
Fundo uma elite comercial alemã, entrelaçada por redes étnicas, de parentela
e casamentos. As famílias imigrantes, como estrangeiros perante a legislação
brasileira, inseriram seus filhos já nacionais nos espaços de poder da época,
ocupando espaços na Guarda Nacional, na política, e em espaços públicos
emergentes, como o serviço público e as casas bancárias. Além das casas de
comércio, assumiram liderança também no surgimento de uma incipiente
indústrias, e nas atividades de serviço.
Essas redes foram ampliadas e solidificadas a partir dos casamentos com
a elite luso-brasileira local, contrariando o padrão das zonas coloniais sitas
próximas a capital, onde predominavam os casamentos entre o próprio grupo
étnico e religioso.
O grupo de comerciantes alemães, tendo a família Schell como centro,
ocupava um espaço delimitado de cerca de três quadras, na nascente sede
urbana de Passo Fundo, delimitada no Caminho das Tropas/ Avenida Bra-
sil, entre a esquina da rua das Flores/ rua Teixeira Soares, e rua 10 de abril,
próximo ao Chafariz da Mãe Preta.
Os trilhos e a estação de trem contribui para redimensionar a direção
da expansão urbana para o leste e sul, acompanhando os trilhos. Esse cresci-
mento urbano e a direção assumida é possível perceber nas Figuras 12 e 13.
Na primeira, um postal com uma vista de Passo Fundo, datado de 1912, em
primeiro plano a Cervejaria Serrana, enquadrada do alto da Vergueiro, esqui-

182
A presença dos imigrantes alemães no espaço urbano em Passo Fundo
na da atual rua Paissandu e General Neto. Observa-se a direção da expansão
urbana, limitada a Avenida Brasil, sentido leste.

Figura 12 – Passo Fundo, 1912.

Fonte: Fotos Antigas de Passo Fundo. Disponível em: https://www.facebook.com/


FotosAntigasDePassoFundo/photos/a.5204310813. Acesso em 4 abr. 2017.

Outro registro fotográfico da área urbana, em 1916, evidencia a direção


da expansão urbana e a consistência das construções em alvenaria. O eixo da
Avenida Brasil deixou de ser o centro comercial por excelência, abrangendo
as ruas adjacentes. Ambos os postais partem do centro industrial nascente,
representado pela Cervejaria Serrana, para dar visibilidade à modernidade
presente nesse espaço urbano. No centro da imagem, na mesma direção da
cervejaria, o antigo complexo comercial das Casas Schell, Morsch e Barão,
bem como a Intendência Municipal.

183
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Figura 13 – Passo Fundo, 1916.

Fonte: Álbum Cidades. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/fotosantigas-


rs/albums/72157637957724714. Acesso em 4 abr. 2017.

O Guia Ilustrado. Comercial, Industrial e Comercial do Município de Passo


Fundo, comemorativo a 1ª Exposição Agro-pecuária, Industrial e Feira Anexa, pu-
blicado em 1939, atesta a diversificação e amplitude das atividades urbanas
encontradas em Passo Fundo, e a presença dos imigrantes e descendentes
alemães nas mais diversas atividades.
Enfim, resquícios da presença dos imigrantes alemães permanecem em
Passo Fundo, delimitada por espaços urbanos, empreendimentos diversos,
nomes de lugares e espaços de memória. Todavia, essas marcas são difusas
em meio a diversidade étnica.

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187
Italianos em Passo Fundo – final do
século XIX e início do século XX

João Carlos Tedesco1


Giovani Balbinot2
Dilse Corteze3

Introdução

Buscamos identificar alguns aspectos da etnia italiana no território do


município de Passo Fundo. Sabemos que é impossível reconstituir os múlti-
plos processos que envolvem os grupos sociais (inúmeras famílias, sobreno-
mes, trajetórias migratórias, múltiplos espaços e atividades, o rural e o urba-
no, inclusive as diferenciações no interior do próprio grupo étnico, dentre ou-
tros aspectos). Em razão disso, identificamos alguns elementos do processo
migratório italiano para o Rio Grande do Sul de uma forma muito sintética,
colocamos em evidência a colônia Guaporé, por ter sido a última que agre-

1 
Prof. do PPGH/UPF.
2 
Doutorando em História pelo PPGH/UPF; professor de História.
3
  Mestre em História; Presidente da Academia Passo-fundense de Letras; professora de História.

189
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

gava oficialmente o Brasil com a Itália e por ter sido a que estava localizada
mais próxima do território pertencente, originalmente, à Passo Fundo, bem
como por ser a que forneceu um amplo fluxo de migrantes, em particular,
para o meio rural do referido município nas primeiras décadas do século XX.
Porém, sabemos que há um amplo fluxo de direções que permitiu a entrada
de (i)migrantes italianos para Passo Fundo, alguns, inclusive, provenientes
de países da América do Sul, outros vindos diretamente da Itália, de outros
estados e de várias colônias de imigração italiana do Rio Grande do Sul.
Em meio a esses limites todos, fizemos um recorte espacial e temporal
para a análise de algumas famílias, sobrenomes, que deixaram algum legado
econômico e de identificação territorial. O período que selecionamos de uma
forma um pouco mais efetiva se constitui nas duas últimas décadas do século
XIX e nas duas primeiras do século XX.
Há vários espaços de localização de (i)migrantes de etnia italiana em
Passo Fundo. Os espaços de maior expressão são o Boqueirão, o entorno da
gare e das ruas Bento Gonçalves e da Praça Marechal Floriano, bem como a
“faixa” que correspondia a ligação entre Passo Fundo e a Colônia Guaporé,
a qual teve várias denominações e que hoje é a Av. Presidente Vargas.
Esse último território, com intensa identificação é onde hoje estão os
bairros Santa Terezinha e São Cristóvão, bem como a Vila Ricci. Esse foi
o escolhido para nossa singela análise. Nesse espaço, no período que defini-
mos, estava a pouco conhecida Vila Vitório Vêneto. Como nossos interlocu-
tores enfatizavam, era um “território italiano, cheio de casas de comércio”, a
ponto de um dos ilustres pesquisadores do município de Passo Fundo, Pedro
Ari Veríssimo da Fonseca, afirmar que “foi ali também que se estabelece-
ram as primeiras indústrias e pode ser considerado o bairro que concentrou a
maior riqueza do município”. Continua o autor afirmando que

“[...], é um equívoco do passo-fundense pensar que o passo que fica na


Av. Brasil teve grande significado histórico e econômico. Não havia
tráfego de importância por lá. Somente após a abertura da estrada
Passo Fundo-Lagoa Vermelha é que o tráfego desviou-se para lá. [...].
A Via Vêneto era exclusivamente uma via comercial-industrial. Não
havia uma só casa que fosse exclusiva de moradia” (Fonseca, 2004, p.
202).

190
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

De acordo com Veríssimo, “[...], em torno destes pioneiros, a vila Victó-


rio Vêneto tornou-se o maior centro industrial e comercial de Passo Fundo. E
ainda hoje é assim. Na vila Victório Vêneto nasceu o primeiro grande centro
industrial e comercial de Passo Fundo” (Fonseca, 2004, p. 200). Segundo o
autor, o que existe hoje no bairro São Cristóvão seria uma herança da semen-
te plantada por aquelas famílias que chegaram no final do século XIX e início
do século XX, dispostos a fazer fortuna, imbuídos de espírito empreendedor,
que se organizaram ao redor de uma capela que, inicialmente, servia também
como escola e que ensinou o idioma nacional brasileiro para os italianos
recém-chegados.
Enfim, esses elementos justificam nossos recortes e opções. Reconstitu-
ímos apenas alguns elementos fragmentados de algumas famílias que tive-
ram herdeiros dispostos a informar algo de seus antepassados, em geral, de
famílias que produziram um legado econômico para o referido espaço e ao
município de Passo Fundo. Sabemos que inúmeras famílias de italianos per-
maneceram no anonimato, muitas outras migraram posteriormente ao nosso
recorte temporal. Enfim, na impossibilidade de escrever muita coisa, ofere-
cemos apenas alguns apontamentos preliminares que nos dão uma pequena
ideia da presença desse grupo na confecção histórico-cultural e econômica no
meio urbano do município.
Reconhecemos que é difícil analisar um grupo étnico em razão da mul-
tiplicidade dos processos que estão envolvidos, tanto no âmbito étnico, pois
não eram homogêneos (há várias diferenciações no interior do universo cul-
tural), há temporalidades variadas, origens e condições econômicas também
de expressão múltipla, além das intencionalidades não comuns no interior do
grupo. A identidade étnica italiana desse primeiro momento possuía muita
identificação regional com o local de origem na Itália (Vêneto, Piemonte,
Lombardia, Trento...), em particular e, inclusive, no interior dessas macror-
regiões havia muita diferenciação, fato esse que se vai reproduzir no interior
dos espaços multidimensionais e nas várias formas de configuração da italia-
nidade e os próprios vínculos entre a Itália e o Brasil.

191
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Imigração italiana para o Rio Grande do Sul, a colônia


Guaporé e a região de Passo Fundo

No conceito estrito do vocábulo, o imigrante apresenta-se como um es-


trangeiro que ingressa em um determinado país com o intuito de nele encon-
trar melhores condições sociais, econômicas, políticas, culturais ou religiosas
com a intenção presumida de ali estabelecer-se (Oliveira, 1987, p. 77-78).
Dessa forma, a imigração para a terra de brasilis apenas teve seu início de fato
a partir do Decreto de 25 de novembro de 1808 que permitia a concessão de
sesmarias aos estrangeiros residentes no Brasil (Iotti, 2001, p. 20). Essa deter-
minação, se por um lado fora tomada para atrair europeus que procuravam
melhores oportunidades na América, por outro procurava regular a coloniza-
ção dos estrangeiros que já habitavam o país, no entanto, agora, com atitude
e compromisso de colonizadores (Demoro, 1960, p. 78-79).
A Carta Régia datada de 02 de maio de 1818, cujo conteúdo possibili-
tava o estabelecimento de famílias suíças nas terras do então Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves; esse decreto pontua o início do processo de
ocupação das terras por meio da emigração planejada, dirigida e subvencio-
nada pelo Estado. A essa determinação, seguiram-se outras deliberações que
regeram o processo de estabelecimento dos emigrantes europeus em terras
brasileiras. Dentre elas, destacamos o Decreto de 06 de maio de 1818 que
instituiu a compra da fazenda Morro Queimado, no Cantagalo, Rio de Ja-
neiro, para a instalação de emigrantes suíços, germinando na cidade de Nova
Friburgo. Conforme Petrone, no objetivo da criação dessa colônia orbitavam
as questões relativas a “povoar e fazer produzir terras despovoadas e forne-
cer alimentos para a cidade do Rio de Janeiro que estava crescendo e que
constantemente era castigada por crises de abastecimento” (Petrone, 1987,
p. 259).
Ulterior determinação importante para a compreensão do desenvolvi-
mento da emigração e colonização dirigida para o Brasil encontra-se no De-
creto de 16 de maio de 1818. Por meio desse, D. João VI concedia condução
gratuita, donativo da propriedade rural, utensílios de trabalho, sementes, sub-
venções e auxílios em dinheiro para os anos iniciais, além de outras vanta-

192
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

gens como assistência médica e religiosa para os emigrantes (Manfroi, 1975,


p. 22).
A análise das medidas empregadas por D. João VI por meio de seus
decretos nos são interessantes, pois ilustram o interesse da Coroa portuguesa
em não apenas fomentar, mas também dirigir e controlar a imigração e colo-
nização europeia para o Brasil. Através da imigração gerenciada e da direção
da organização de núcleos coloniais de pequenos proprietários amparados
pela mão de obra familiar, o governo pretendia ocupar, tornar produtivas
e valorizar terras até então inaproveitadas economicamente. Desenvolvendo
assim uma agricultura campesina de policultura para abastecer as cidades
castigadas constantemente pelo desabastecimento (Iotti, 2001, p. 20). Por
fim, Manfroi (1975, p. 20-22) acrescenta ainda a necessidade de garantir a
posse de áreas de fronteiras da cobiça de vizinhos e proteger terras de ataques
de indígenas, e mesmo também algumas hipóteses de “branqueamento” ou
“europeização” da população brasileira.
Seguindo nossa linha de análise, após a Independência do Brasil, du-
rante o período do Império, o processo de imigração e colonização efetiva-se
e ganha proporção através do planejamento, direção e subvenção do Estado
imperial. Em obra organizada por Luiza Horn Iotti (2001) acerca da legis-
lação que regera a imigração e colonização entre 1747 e 1915, observamos
que o Império, apesar da existência de alguns empreendimentos particulares,
monopolizou a gerência do processo.
Nesse contexto foram criados, sobre a direção de D. Pedro I, sete núcle-
os coloniais, dentre eles a colônia imperial de São Leopoldo, considerada o
marco inicial do processo de colonização por imigrantes de origem diversa
à portuguesa em território do Rio Grande do Sul (Picollo, 1998, p. 464). Ela
foi criada por meio da Decisão n. 80 de 31 de março de 1824, em território
de propriedade da Coroa, na antiga Real Feitoria do Linho Cânhamo, nas
imediações de Porto Alegre. Com localização estratégica, por designação do
Imperador, o major José Antônio Schaeffer foi designado como responsável
pela captação de imigrantes na Alemanha. Para a atração de imigrantes, o
major José Antônio, por autoridade real, oferecia, gratuitamente, proprie-
dades de 77 hectares de terra, instrumentos, animais e sementes, além de
subsídios, com a única condição de inalienabilidade da terra por um período
de dez anos. (Iotti, 2001, p. 22; Roche, 1969, p. 95).

193
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

De acordo com Loraine Giron (1997, p. 102), entre 1840 e 1850, o nú-
mero de núcleos coloniais orbitou a cifra de duas dezenas, sendo dois terços
delas empreendimentos particulares. A marcante presença de empreendi-
mentos coloniais particulares está conexo à Lei n. 514, de 28 de outubro de
1848, pela qual o governo imperial concede terras devolutas aos governos
provinciais para que esses promovessem a ocupação por meio da coloniza-
ção. O artigo 16 da referida lei versava que, para cada Província do Império,
eram concedidas seis léguas quadradas de terras devolutas continuas ou isola-
das, exclusivamente destinadas à colonização e não poderiam ser trabalhadas
por mão de obra escrava. Assim como que, para a concretização de sua posse,
deveriam estar ocupadas e aproveitadas em um período de cinco anos, situ-
ação que, se não cumprida, as terras reverteriam às posses provinciais (Iotti,
2001, p. 22).
Essa circunstância nos parece demonstrar uma tentativa do governo im-
perial em dividir com as províncias o esforço que significava a empreitada da
colonização. Observamos então que, a partir desse momento, a fundação das
colônias oficiais dividiram-se em imperiais e provinciais, assim como de um
período administrativo caracterizado pelo atrito e confusão de fixações de
jurisdições entre os dois âmbitos de poder, ou seja, o imperial e o provincial.
Contudo, devido à falta de recursos, experiência e expedientes admi-
nistrativos, observamos o desenvolvimento de parcerias público-privadas que
estimularam a ação de companhias de colonização. Salientamos que nesse
momento abre-se maior possibilidade para que as importâncias regionais fos-
sem satisfatoriamente consideradas pelo processo colonizatório, em dinâmi-
ca análoga ao que ocorrerá com a Proclamação da República e da imigração
e colonização pelos governos estaduais (Axt, 1998).4

4
  Gunter Axt é enfático ao afirmar que é a partir desse momento que se iniciam as intensas correntes
imigratórias para São Paulo, em atenção aos anseios da elite cafeicultora regional. Dessa forma,
a imigração estrangeira para o Brasil afasta-se do âmbito nacional para alinhar-se aos projetos e
anseios relacionados às elites regionais da necessidade de mão de obra à restrição do acesso à terra
(Axt, 1998). O que marcou fundamentalmente os debates foram as questões de os proprietários
rurais ou o estado arcarem com os custos da imigração ou mesmo o direcionamento desta para o
processo de colonização. Não havia real oposição à política de tentar atrair braços livres para o país
(Carvalho, 1996, p. 308-309).

194
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

A província sulina

Em relação ao Rio Grande do Sul, ressaltamos que o governo provincial


iniciou sua intervenção de forma tardia nas questões concernentes à imigra-
ção e colonização. Os imigrantes que se dirigiam para o Rio Grande do Sul
eram atraídos por uma política governamental que pretendia, fixando-os a
terra, formar núcleos coloniais que produzissem gêneros agrícolas necessá-
rios ao abastecimento interno, especialmente dos centros urbanos que flores-
ciam. Dessa forma, localizaram os núcleos coloniais próximos às grandes
cidades ou o acesso a essas, mas em terras devolutas suficientemente distan-
tes das áreas latifundiárias, de modo a não apresentar nenhuma forma de
ameaça a sua hegemonia política e econômica.
A primeira lei provincial específica a versar sobre o assunto da imigra-
ção e colonização no Rio Grande do Sul data de 1851. A Lei n. 229 de 04
de dezembro de 1851 é considerada como a regulamentação inicial relativa a
esse processo. Através dela, o Presidente da Província autorizava medir, de-
marcar e avaliar o valor das terras pertencentes às colônias já existentes e dos
possíveis núcleos a serem instalados; previa também a doação dos pequenos
lotes rurais, instrumentos, animais e sementes para o início da produção de
gêneros de policultura e, especialmente, o pagamento da viagem pelo Estado
e a gratuidade dessa para o imigrante, assim como um benefício pecuniá-
rio para os colonos durante o período de instalação nos núcleos. Instituía
também o pagamento de agentes europeus responsáveis pelo recrutamento e
promoção da imigração alemã para o território do Rio Grande do Sul, sendo
como única condição a apresentação de uma certidão de bom comportamen-
to, legalizada pelos agentes consulares ou mesmo pelos diplomatas do Im-
pério Alemão. Contudo, por questões de ordem financeira, esses benefícios
surpreendentes não puderam ser mantidos. Deste modo, podemos afirmar
que a imigração e a colonização da província do Rio Grande do Sul tiveram
seu início efetivo a partir da Lei n. 304 de 30 de novembro de 1854 (Iotti,
2001, p. 30-31).
As explicações mais superficiais sobre o processo de emigração italiana
buscam delineá-lo como uma simples “válvula de escape”, efeito natural para
a pressão gerada por uma crescente população europeia. Desta forma, colo-

195
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

cando a emigração como a solução para a crescente pressão demográfica dos


países europeus. Essa teoria sugere que a emigração simplesmente compunha
um estágio do processo maior de desenvolvimento demográfico das nações
europeias. Contudo, embora o fator demográfico mereça grande atenção por
apresentar o excedente demográfico passível de expulsão, esse, por si só, não
sustenta a emigração. Assim, essa teoria falha ao não explicar o porquê de
um país com similaridade nas taxas de crescimento populacional entre as
várias classes sociais, a emigração ter ocorrido somente entre certos extratos
bastante específicos, enquanto as demais camadas não eram atingidas (Fran-
zina, 2006, p. 63-65).
Assim, compreendemos que a grande emigração apresenta-se como um
processo localizado no contexto econômico e social italiano, tornando impe-
rativo agregar ao fator demográfico a situação em que se encontrava o indi-
víduo que realizaria a emigração. As primeiras considerações estão ligadas
à tributação, agricultura e à indústria italiana durante e após o período do
Risorgimento5. Após o período de 1860 a 1876, o novo estado italiano inicia
um processo de intenso aperto tributário para cobrir os gigantescos gastos
oriundos das campanhas de unificação, de organização e aparelhamento do
novo estado e da construção de infraestrutura, principalmente redes ferrovi-
árias, fundamentais para o desenvolvimento de um mercado interno e para
a movimentação de produtos. No âmbito industrial, o novo estado abre as
fronteiras, assegurando que, segundo o princípio liberal, a abertura dessas
desenvolveria a miserável indústria italiana.
Neste contexto de arrocho fiscal e encarecimento do custo de vida, a si-
tuação dos meeiros e pequenos produtores da região norte6 agrava-se devido
à incapacidade da pequena propriedade em modernizar a produção e, funda-

5
  Risorgimento foi a ação empreendida pela monarquia piemontesa de unificação dos estados italia-
nos, seguida pelo processo de modernização e desenvolvimento capitalista. Teve início com a ane-
xação da Lombardia em 1859, a Emília-Romana, parte dos Estados Pontifícios e o Reino das Duas
Sicílias em 1860; o Vêneto e o Friuli-Venezia-Giulia em 1866; o restante dos Estados Pontifícios em
1870; o Alto Ádige, o Trentino, o Trieste e a Ístria após o fim da Grande Guerra.
6
  No período do Risorgimento, a Itália mostrava-se como um país fundamentalmente agrícola, dota-
do de uma população de em torno de 26 milhões de habitantes e escassas terras agrícolas. A região
norte foi a mais atingida pela crise tributaria e agrícola, pois estruturava a sua produção sobre o
regime de mezzadria - onde o trabalhador arrendava a terra e trabalhava, dividindo sua produção
com o proprietário da terra – e o pequeno produtor minifundiário, ambos dedicados à policultura de
subsistência, empregando baixíssima tecnologia e comercializando, principalmente, o excedente de
trigo nos mercados locais, de onde retirava o capital necessário à sua sobrevivência.

196
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

mentalmente, devido à assombrosa crise ocasionada com o desenvolvimento


de um mercado unificado e aberto aos produtos estrangeiros. Os meeiros
e pequenos proprietários viram-se privados economicamente dos seculares
mercados locais pela concorrência dos produtos internacionais que agora al-
cançavam as várias regiões italianas devido ao desenvolvimento de um mer-
cado único nacional criado pelo processo de unificação política e abertura
econômica (Maestri, 2000, p. 25).
Os pequenos proprietários viram-se retirados dos mercados tradicionais
onde comercializavam sua produção pela concorrência gerada pelo desen-
volvimento de um mercado nacional, fechando as portas para as produções
locais (Franzina, 2006, p. 26-28). Nesse sentido, a crise agrícola prejudicava
de maneira devastadora a situação econômica e social dos pequenos proprie-
tários, pois tornava os produtores inseridos nos mercados locais incapazes de
resistir à concorrência do mercado nacional.
Devido à situação de crise agrícola e agrária, os camponeses, meeiros
e pequenos proprietários enxergavam na América e na emigração a saída de
sua situação de miséria. E, mais do que isso, a possibilidade de concretizar a
utopia da propriedade da terra, pois, ao contrário da terra natal, com estímu-
los promovidos pelo Estado brasileiro, esses poderiam facilmente se tornar
proprietários, melhorando então suas condições econômicas e sociais. Esse
fator, em consonância com as considerações analisadas no tocante ao fator
demográfico, apresentadas anteriormente, ilustra o porquê do processo de
emigração ter atingido fortemente os setores agrícolas italianos.

[...] se levamos em conta que a estrutura econômica da Itália, entre a


unificação e a guerra, foi fortemente caracterizada pela predominân-
cia do setor agrário e que a composição social e profissional do fluxo,
durante o mesmo período, foi marcada de modo evidente, pratica-
mente em todas as fases, pela presença de muitos imigrantes saídos
das classes rurais mais baixas, isto é, não somente de verdadeiros cam-
poneses, mas também de meeiros e pequenos proprietários de terra
(Franzina, 2006, p. 73).

Deve-se considerar também a influência exercida pelas empresas de na-


vegação, as companhias de emigração, os agentes e os intermediários que, en-

197
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

volvidos com as atividades de engajamento, transporte e venda de terra para


os emigrantes, prosperaram e enriqueceram, contribuindo para o fomento
do processo de emigração italiano. Nesse ponto, igualmente cabe destaque
para a imagem concebida por setores comerciais italianos de que a emigra-
ção de trabalhadores e, consequentemente, de consumidores de produtos pe-
ninsulares garantiria o desenvolvimento de um futuro mercado acessível aos
produtos peninsulares. Essa dinâmica garantiria, juntamente com a questão
da remissão de dinheiro dos emigrados para os familiares na terra natal, a
entrada na economia italiana dos tão essenciais capitais para o processo de
desenvolvimento capitalista (Maestri, 2000).
A despeito de fatores de expulsão anteriormente analisados, esses apre-
sentaram-se como fundamentais para ocasionar e, principalmente, sustentar
um processo de emigração que permaneceu ativo durante mais de um século
e proporcionou o êxodo de dezenas de milhares de trabalhadores da Itália
para o Novo Mundo.7
Para a compreensão desse processo é fundamental destacar a ação,
postura e o comportamento das elites dirigentes – igreja, indústrias, grandes
proprietários agrícolas e dirigentes estatais – e do estado italiano na ação de
promoção e manutenção do processo de emigração. Para esses setores, a emi-
gração funcionava como atenuante para os problemas sociais apresentados
pela Itália no período da unificação, principalmente no tocante à questão do
aumento demográfico e a sua relação com a situação de limitação dos recur-
sos naturais e com a economia ainda fundamentalmente agrícola e atrasada
tecnologicamente. Então, o processo de emigração italiano apresentava-se
como um paliativo para desenvolvimentos de conflitos na área rural, pois
aliviava as tensões sociais, reforçava estruturas sociais arcaicas e funcionava
como válvula de segurança (Maestri, 2000, p. 29).
A entrada da emigração da península itálica teria seu espaço no con-
texto da dificuldade em arregimentar o emigrante alemão e a necessidade
de ocupar os dois territórios de 16 léguas quadradas concedidas pelo Impé-
7 
Entretanto, cabe destaque para a divisão conforme a quantidade do fluxo de emigrantes efetuada
por Emílio Franzina, cuja observação é necessária por apresentar uma análise mais especifica dos
inúmeros períodos da imigração italiana: as origens do fluxo migratório 1861-1875; primeira fase
da imigração italiana 1861-1886; êxodo dos campos e a imigração permanente de massa nos anos
da disputa colonial 1887-1901; emigração do Sul da Itália para os Estados Unidos e a conclusão do
primeiro grande ciclo migratório 1902 – 1927; medidas restritivas dos anos 20 ao segundo pós-guer-
ra 1927 – 1948 (Franzina, 2006, p. 83).

198
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

rio para o desenvolvimento da colonização, cuja localização no Rio Grande


do Sul situava-se nas terras economicamente desocupadas da serra (Corteze,
2002, p. 37). Assim, pelo ato 24 de maio de 1870, são estabelecidos os nú-
cleos coloniais Dona Isabel e Conde D’Eu em homenagem ao futuro casal
de Imperadores do Brasil. Entretanto, essas colônias depararam-se com difi-
culdades em serem povoadas, ao apresentar, em meados de 1871, apenas 37
lotes ocupados na colônia Dona Isabel e nenhum lote havia sido ocupado na
colônia Conde D’Eu (Costa, 1997, p. 27).
Devido a esse contexto, o governo da Província, então encabeçada pela
figura de Francisco Xavier Pinto, através da Lei de n. 749, contrata as com-
panhias Caetano Pinto & Irmãos e Holtzweissig & Companhia, além de um
contrato menor com a Companhia Hamburguesa-Brasileira, para a introdu-
ção de imigrantes nessas duas colônias. O contrato com as duas primeiras
companhias previa a introdução de 40 mil colonos - mais mil colonos com
a terceira companhia - em levas de no mínimo 2 mil colonos por ano pelo
prazo de dez anos, ao preço de 60$000 por adultos e 25$000 para menos de
dez anos, tendo o custo de hospedagem e transporte para a colônia destinada
a cargo do governo. Contudo, entre 1872 e 1875, apenas 3.784 colonos (em
1872, 1.354; em 1873, 1.607; em 1874, 508; em 1875, 315) chegaram ao ter-
ritório rio-grandense, o que levou a Província a romper o contrato, legando
ao Império, em 27 de outubro de 1875, a iniciativa, organização e direção
do projeto de colonização italiana no Rio Grande do Sul (Pellanda, 1950, p.
37-39).
Essa mesma intensificação do fluxo migratório que alcança o sucesso na
tarefa de povoamento dos núcleos de Conde D’Eu e Dona Isabel, impele o
Império a criação de dois novos núcleos coloniais, Nova Palmira em 1875,
seguida da colônia Silveira Martins em 1877. Essas quatro colônias forma-
ram o núcleo base do processo de colonização italiana no Rio Grande do Sul.
Entretanto, com o sucesso do processo de imigração e colonização nas mãos
provinciais, nas primeiras quatro colônias e núcleo inicial do processo de
colonização, as terras começavam a tornar-se escassas, não havendo então
como atender as demandas de novos lotes para estabelecer os imigrantes que
chegavam, forçando também os imigrantes da região a ocupar terras devolu-
tas localizadas fora dos núcleos coloniais iniciais. Essas colônias formaram o
núcleo inicial de colonização italiana no Rio Grande do Sul, sendo comu-

199
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

mente denominadas de colônias antigas. Recebendo grande número de imi-


grantes, no período de aproximadamente dez anos, ocuparam-se as terras
localizadas abaixo do Rio das Antas. (Frosi; Mioranza, 1975, p. 38).
A partir da década de 1880,
inicia-se então a demarcação e a
ocupação das terras localizadas
acima do rio das Antas com a
fundação das colônias de Antônio
Prado e Alfredo Chaves, ocasio-
nadas pela entrada de imigrantes
procedentes da Itália e, principal-
mente, devido ao fluxo migratório
de caráter interno promovido pelo
deslocamento de descendentes de
imigrantes instalados nas colônias
antigas em direção a novas terras.
Devido ao crescimento demográ-
fico, à redução da oferta de terras
e ao fluxo migratório interno cada
vez mais intenso, em 1890, o go-
verno do Estado iniciou a demar-
cação das terras situadas entre os
rios Carreiro, Guaporé e Taquari,
originando a colônia de Guaporé Planta oficial da colônia Guaporé, apresen-
em 1892 (Sganzerla, 2001, p. 90). tando a demarcação dos travessões, prin-
Em 14 de janeiro de 1885, o cipais linhas que definiram o processo de
ocupação das terras. Fonte: Arquivo Histó-
Presidente da Província nomeou rico do Município de Guaporé.
uma comissão técnica designada
para a medição e demarcação de lotes coloniais nessa região, para subsequen-
te venda, visando o povoamento, aproveitamento do solo, abertura de estra-
das e desenvolvimento de serviços de infraestrutura (abertura e reparo de
estradas, pousadas, estabelecimentos para alimentação e conserto dos meios
de transporte na estrada que ligava Passo Fundo aos portos do Taquari). Para
essa tarefa, foi então designado o engenheiro Nicolau França Leite Peder-
neiras, cujas habilidades e competências já haviam sido experimentadas nas

200
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

medições e demarcações de lotes coloniais em ulteriores núcleos (Thomé,


1967, p. 38).
Em 1889, após o engenheiro encarregado José Montauri e seus auxilia-
res percorrerem a área entre os rios Carreiro, Guaporé e Taquari, foi escolhi-
do por centro da colônia e sede um local denominado de Varzinha, devido ao
seu relevo semelhante a uma várzea. Em 19 de dezembro de 1892, Guaporé
foi elevada à categoria de colônia oficial.
Fundada oficialmente em 1894, a divisão oficial da Colônia de Guaporé
beneficiou-se de um sistema cartográfico onde encontravam-se demarcados
os rios e córregos de maior relevância. Com base neste mapa, os agrimenso-
res delineavam linhas ou travessões que cortavam o território da colônia no
sentido leste-oeste, do rio Guaporé ao rio Carreiro. A referida linha funciona-
va como a estrada base de ligação entre os lotes coloniais, que eram traçados
no sentido norte-sul, com cerca de 275 a 250 metros de frente para a estrada
e 1.100 metros de fundo.
Com esses parâmetros, nasceu o traçado base da colônia de Guaporé,
com linhas numeradas, que abrigavam comunidades distintas, erguendo ca-
pelas próprias que se identificavam com seus santos devotos. Foram demarca-
dos em torno de 10.000 lotes coloniais, com dimensões variáveis entre 25 e 30
hectares, sendo os primeiros colonos estabelecidos oriundos, principalmente,
dos núcleos coloniais iniciais, de modo que, no ano de 1896, apenas quatro
anos após a sua criação oficial, a colônia já computava quase 7.000 colonos,
sendo a sua maioria de italianos, porém, em segundo plano, poloneses, suíços
e austríacos (Thomé, 1967, p. 41).
Em 1892, a Colônia Guaporé já possuía uma população de sete mil
pessoas, o que significa que já era um centro dinamizador e irradiador de
vida econômica e social pela região da Encosta da Serra e, especificamente,
do Alto Taquari. Em 1903, Guaporé foi elevada de núcleo colonial à Vila e
sede do futuro município. Seus maiores distritos eram os atuais municípios
de Casca (São Luis de Guaporé), Muçum (General Osório) e Serafina Corrêa
(Karam, 1992, p. 122). No início do século XX já havia uma intensa conexão
mercantil entre a região de Passo Fundo e a colônia Guaporé, principalmen-
te, viabilizada pelas vias de acesso por Marau, em razão da possibilidade de
escoar mercadorias pelo Porto de Muçum. Carroças, tracionadas por sete,
oito, até dez mulas e cavalos combinados, dotadas de altas rodas, carregando

201
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

até três mil quilos; elas tornavam possível o escoamento da produção de inú-
meras pequenas propriedades espalhadas pela região colonial italiana. Desta
forma, presente em todos os âmbitos do transporte da produção, a carreta
esteve sempre junto ao imigrante e aos de segunda geração dos referidos.
Em conexão com o trans-
porte carreteiro, o elo seguinte
da dinâmica econômica da re-
gião colonial de Guaporé en-
contra-se nas figuras do comer-
ciante e da casa de comércio.
Destacamos que a trajetória
do comerciante tem seu iní-
cio com o desenvolvimento da
Carroça de grande porte utilizada no escoa- produção agrícola e artesanal
mento da produção na região colonial italiana. do imigrante e seus descen-
Fonte: Acervo particular da família Astolfi e dentes instalados nas pequenas
Dall’Acqua.
propriedades rurais.
O transporte das mercadorias dos colonos fez-se, em grande parte, por
meio do cargueiro e, posteriormente, das carroças e carretas. Autores colo-
cam que, por muitos anos, ouviu-se o passo lento do cargueiro subindo as en-
costas, o assovio, a blasfêmia e o canto do homem encarregado de transportar
alguma mudança, milho e o trigo até os moinhos coloniais, os produtos dos
colonos aos centros urbanos. Os carreteiros, mediados pelos comerciantes,
carregavam a riqueza e faziam a integração sócio-cultural entre as comunida-
des e os espaços de consumo e produção. Não raro os colonos eram prejudi-
cados no escoamento de sua produção por falta de possibilidade de transpor-
tá-la até as casas comerciais ou a algum centro consumidor.
Junto aos carroceiros/carreteiros, formou-se uma rede social e econômica
que vai desde a construção de estradas, surgimento de ferrarias, tecelarias,
curtidores de couro, fábricas de carretas, moinhos, construção de pousadas
(casas de pasto), produção de alfafa e milho para os animais, espaços de lazer
e de divertimentos, bem como uma melhor estruturação da divisão social e
familiar do trabalho. A partir daí, o colono teve condições de atuar em vários
ramos produtivos, diversificando-os ainda mais.
Após o final da década de 1930, disseminou-se a presença do caminhão.

202
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

Em razão disso, reestruturou-se todo um conjunto interligado de fatores em


correspondência com o trabalho, profissões e instalações, com as carroças
que circulavam no meio rural e nas carretas que transportavam para médias
e grandes distâncias e possuíam vínculos intercomerciais. Essa redefinição
caminhou pela ótica da modernização, centrada na funcionalidade do ca-
minhão. Comerciantes acumularam ainda mais capitais e se inseriram com
intensidade nesse novo dinamismo de transporte e trocas de mercadorias.
O capital advindo da comercialização dos gêneros comerciais produzi-
dos pelo colono era, nos primeiros anos da vida no lote colonial, fundamen-
talmente aplicado no pagamento da dívida colonial. Quando essa dívida era
quitada, o capital acumulado com a comercialização do excedente agríco-
la era empregado na expansão horizontal do lote, devido ao esgotamento
da capacidade produtiva da terra em consequência dos rústicos métodos de
produção, ou na aquisição de novos lotes coloniais para os filhos que, ao
casarem, formavam novos núcleos familiares cuja mão de obra não era ab-
sorvida pela pequena propriedade. Quando muito era realizada uma pequena
poupança para os casos de neces-
sidade (Maestri, 2000, p. 28-38).
O tamanho reduzido da proprie-
dade rural e a fragmentação dos
recursos impediam que o colono
realizasse relevantes acúmulos
monetários.
Enfim, comerciantes e pe-
quenos industriais de múltiplos
ramos, mas, em geral, ligados à
produção e mercantilização de
produtos agrícolas, e os de si-
nergia, como é o caso dos mo-
ageiros, frigoríficos, madeireiras
e ervateiras, deslocam-se das co-
lônias, dos distritos e pequenos
municípios em busca de novos
Moinho Samrig em Guaporé, 1950. Fonte: espaços, novos mercados.
Arquivo Histórico de Guaporé.

203
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A cidade de Passo Fundo, como rota de ocupação da parte norte do


estado, passa a ser um espaço fértil para esses empreendimentos e profissões.
Nesse sentido, italianos imigrantes e/ou segundas gerações tornam-se refe-
rências e marcam ou sinalizam uma, ainda que incipiente, geografia étnica
da cidade, principalmente em correlação com ofícios, dinâmicas mercantis e
trajetórias migratórias de colônias de imigração italiana para a constituição
da Vila Vitório Vêneto.
Mas, antes de vermos isso, torna-se imprescindível esboçar alguns ele-
mentos que constituíram a vida econômica e social de migrantes italianos
que se estabeleceram por vários espaços rurais do território do município de
Passo Fundo. É dessa dinâmica produtiva e ocupacional que se dá a partir do
início do século XX que o comércio e outros estabelecimentos industriais de
italianos na cidade de Passo Fundo estarão em sinergia.

A unidade familiar no meio rural

No processo de constituição do município de Passo Fundo houve uma


grande migração de unidades familiares provenientes das colônias-mães de
imigração italiana, em particular, de Guaporé, a qual seguia em direção cen-
tro-norte do estado e fornecia um amplo contingente de migrantes que foram
ocupando áreas de colonização dirigida e/ou espontânea no amplo território
de Passo Fundo no período entre o final do século XIX e primeiras décadas
do século XX.8
A Colônia Guaporé, como vimos, por ser a mais próxima e a mais re-
cente dinamizou, um amplo processo migratório que vai de Serafina Corrêa,
passando pelas regiões onde estão atualmente os município de Casca, Vila
Maria, Marau, até chegar em Passo Fundo. Agricultores, comerciantes, pro-
fissionais autônomos de vários ofícios ligados à agricultura ou ao ramo da
carpintaria, da metalurgia, alfaiataria, dentre muitos outros, migraram para
Passo Fundo. Portanto, grande parte dos italianos (imigrantes e descenden-

8 
Algumas das atuais comunidades rurais do entorno de Passo Fundo, entre 2010 e 2015, comemo-
raram sua constituição centenária. Grande parte delas elaborou pequenas sínteses dos primeiros
tempos, quem foram os primeiros moradores, de onde migraram, atividades desenvolvidas, etc., e,
constatamos que a grande maioria migrou da colônia de Guaporé. É o caso de Posse da Boa Vista,
São Roque, São Valentin, Vila Rosso, Capingui, dentre outras.

204
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

tes) que adentraram para o município de Passo Fundo são provenientes da


denominada Encosta Superior do Nordeste.
Não se pode, entretanto, observar a imigração italiana apenas na cidade
de Passo Fundo. O meio rural do município constituiu-se de pequenas uni-
dades familiares que adquiriram terras e se instalaram em meio ao grande
proprietário fundiário de economia pastoril e/ou rentista de terra (que pos-
suía grandes extensões como reserva fundiária, a serem vendidas quando os
preços lhes eram favoráveis).
As direções geográficas para Erechim e Sarandi, em meio a outras, de
italianos e descendentes, foram de grande expressão entre a última década do
século XIX e as primeiras do século XX. Colonizações foram acontecendo
nesse período, bem como redefinições nos territórios indígenas (constituição
de aldeamentos); bloqueios fundiários nas unidades-mãe dos colonos obriga-
vam membros da família a migrarem.
Existem fatores ligados à família, terra, demografia, topografia, heran-
ça/matrimônio, promessas de agentes da colonização (privada e pública), os
conflitos com os nativos e os de sua nacionalidade, com os patrões (i signori),
diferenças em termos regionais e dialetais, heterogeneidades culturais, den-
tre outros motivos, que foram determinantes nas definições de trajetórias de
ocupação de novas terras pelos colonos. Somados a isso, havia o estilo de pro-
dução baseado em queimadas com rotação de terras, a necessidade de mais
terras de potreiros para o gado leiteiro e para os bois de aração, os transportes
incipientes para o escoamento dos produtos, o problema da fragmentação do
patrimônio pela herança, pressões demográficas, etc.
Os (i)migrantes italianos que se estabeleceram no meio rural da região
de Passo Fundo, em grande parte, já desenvolviam a agricultura comercial;
já haviam assimilado o processo de relações de produção mercantil. Apenas
o adaptaram na nova terra a partir de outras exigências e de outros víncu-
los. O trabalho artesanal na confecção de tecidos, na produção de inúmeros
produtos coloniais, os moinhos, as atividades artesanais profissionais, mesmo
sendo de âmbito local, serviam como complemento de renda para o colo-
no, como estratégia de sobrevivência no âmbito alimentar e na aquisição de
infraestrutura doméstica. A divisão social do trabalho na família levava em
conta também as especializações internas. Essas possibilitaram ocupar os fato-
res de produção disponíveis na família, bem como reconstituir aprendizados

205
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

e domínios técnicos trazidos da Itália, sendo importante na produção e na


reprodução das condições de produção do colono (moinhos, olarias, alambi-
ques, ferrarias, artesanatos em madeira, vime, tecidos, ferro, etc., somados às
culturas de milho, trigo, alfafa, batatinha, dentre outras, revelam isso).
A ordem sócio-cultural e econômica do colono se fundava na ligação
entre propriedade, família e trabalho. Ligado à propriedade, o trabalho cons-
tituiu o espaço social e a trajetória sequencial das estratégias de reprodução
familiar e organização da individualidade do colono. A coesão grupal, a or-
ganização comunitária, os compromissos pessoais, a fragilidade de organi-
zação política frente aos processos de exploração do trabalho por parte de
comerciantes rurais e urbanos, são também manifestações de estratégias e
confrontos envolvidos no horizonte da propriedade e do trabalho no ato das
alterações geográficas principalmente a partir das primeiras décadas do sécu-
lo XX.
A importância da unidade familiar, do vínculo comunitário, dos fatores
religiosos e parentais fez com que se constituíssem fortes relações de solida-
riedade entre vizinhos e de convívio, o que os levou a permanecer também
mais tempo num lugar ou a redefinir-se muito próximos, reproduzindo pro-
cessos sociais dos espaços originais nas áreas de migração, por isso temos
algumas regiões de municípios que se emanciparam de Passo Fundo e que
conservam grande presença da etnia italiana.
Nesse sentido, em adaptação ao novo território, trabalhos agrícolas e
não-agrícolas se misturavam criando um complexo de saberes e de pluriativi-
dades na relação com o meio. O trabalho artesanal, com pedras e madeiras
atesta um ofício fundamental para a organização econômica e social da famí-
lia do migrante de descendência italiana. Os ofícios de carpinteiro, pedreiro,
ferreiro e marceneiro eram os mais significativos. Mesmo em meio a essas
diversidades de trabalho, era o ofício de colono que dava identidade ao imi-
grante no meio rural.
Dentre as várias atividades de italianos no meio rural de Passo Fundo,
destacam-se, além da policultura agrícola, em particular, trigo, milho, suínos
e leite, há os moinhos, as olarias, as serrarias, as pequenas agroindústrias arte-
sanais ligadas à vitivinicultura, aos destilados, à erva-mate, aos derivados do
leite, à cana de açúcar, ao fumo, bem como às inúmeras atividades artesanais
em couro, vimes, tecidos, palhas e madeira. A atividade comercial é outra

206
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

que se destaca; muitos comerciantes de comunidades rurais e distritos, com a


expansão de suas atividades, pós-anos de 1940, com a chegada do caminhão,
buscam o espaço urbano para se estabelecer.
Passo Fundo, a partir da década de 1920, já contava com um grande nú-
mero de pequenos moinhos no meio rural e alguns maiores no meio urbano.
Os comerciantes rurais tinham na produção de suínos, de milho, dos deriva-
dos do suíno, nos produtos ligados ao milho e ao porco que o colono adquiria
(farinha de carne, sal, corretivos, medicamentos, etc.) um grande espaço de
atuação e de dinamismo mercantil.

“O moinho começou a partir de 1916, meu pai construiu. Havia mui-


ta plantação de trigo na região e o pessoal queria comer a sua farinha
e descascar o seu arroz, muitos da cidade queria a farinha de moinho
de pedra. Muitos comerciantes queriam comprar a farinha não de
cilindro, porque o pessoal da cidade também era acostumado a comer
a farinha não industrializada. O meu pai carroceava, tinha encomen-
da em Passo Fundo que não vencia; nós trabalhava dia e noite para
vencer, gente lá do outro lado do Capingui, vinha cavaleiro, gente de
carroça, vinha tudo moer aqui. Meu falecido avô quando comprou
aqui em 1917, já tinha uma serraria e acho que tinha um pequeno
moinho, então meu pai já sabia lidá com moinho e o avô também”.9

O trigo, o milho e a madeira vinculam-se na economia regional. Em ge-


ral, os moinhos coloniais operavam com técnicas de beneficiamento simples,
sendo inclusive, em alguns períodos, principalmente em seu nascedouro nas
primeiras décadas do século XX, difícil de ser classificado como indústria,
tendo em vista que esse conceito está associado a um certo nível de desenvol-
vimento tecnológico na unidade de produção capitalista. As unidades empre-
endedoras, em geral, eram familiares e operando com formas não plenamen-
te capitalistas de trabalho e intermediação mercantil dos produtos.
No Censo de 1920, figura o Rio Grande do Sul como o primeiro produ-
tor nacional de trigo; na safra de 1928/29 os municípios de Erechim, Passo
Fundo e Guaporé eram os seus principais.
No moinho desenvolvia-se uma sociabilidade do meio rural marcada

Entrevista com Edvino Camera, ex-proprietário de moinho instalado no meio rural de Passo Fun-
9 

do.

207
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

pelo interconhecimento, pelas trocas de experiência de trabalho e de visões


de mundo acerca de temas conjunturais. A bodega, muito comum no interior
dos moinhos, era o espaço aglutinador dessa dimensão, até porque nela de-
senvolviam-se jogos de cartas. Os proprietários de moinhos geralmente man-
tinham chiqueiros para a criação comercial e doméstica de suínos e alimen-
tavam os animais com o farelo que sobrava da moagem. Nos moinhos, em
geral, funcionava o descascador de arroz, o soque de erva e a atafona, própria
para fabricar a farinha de mandioca. Os moinhos a cilindro ofereciam uma
farinha de melhor qualidade, razão pela qual conquistavam a freguesia, cons-
tituindo-se em fortes concorrentes para os moinhos de pedra, pois, além de
trabalharem mais rápido, podiam, pela legislação de um determinado perío-
do, comercializar a farinha (Souza, 2004).
Juntamente com os moinhos, havia as olarias, as serrarias, os ervais,
os campos de pecuária, as manufaturas, as indústrias coloniais, as mulas,
a agricultura, o artesanato, dentre outros, expressavam os principais recur-
sos econômicos desse período na região de Passo Fundo (Xavier e Oliveira,
1990). A estrada de ferro, a partir de 1898, foi um elemento de infraestrutura
fundamental para a dinâmica desse período e para as posteriores. A abertura
de estradas, a agricultura de excedentes, em particular, o trigo e o milho, de-
ram o tom e a estruturação desse primeiro ciclo com conotação econômica
de virada de século em Passo Fundo, ou seja, um complexo de relações pro-
dutivas que interagia com o dinamismo das trocas mercantis, as quais vincu-
laram relações sociais e produtivas do meio rural no contexto urbano que se
desenhava no município.
Não dispomos de muitos dados e detalhamentos sobre a agricultura, in-
dústria e comércio de Passo Fundo nas primeiras décadas do século XX; não
obstante, sabe-se que o meio rural de Passo Fundo foi um espaço de grande
dinamismo de comércio de produtos em correspondência com o seu desen-
volvimento agrícola e com a incipiente indústria, a qual, nos anos 60, cederá
espaço para a constituição de um complexo agroindustrial (Gehm, 1982).
Esse horizonte sinérgico – agricultura/comércio e indústria – criou as condi-
ções para a maturação de um processo econômico e também para definir um
segundo ciclo que se efetiva a partir dos anos de 1930, o qual se caracteriza
pela inovação tecnológica na esfera produtiva e mercantil (Rückert, 2003).
Os “granjeiros do trigo”, como eram conhecidos, tornaram-se, a partir

208
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

de então (por volta de 1940), a expressão desse novo dinamismo. Os refe-


ridos eram, na sua maioria, profissionais liberais urbanos que, conhecendo
os novos processos que se desenhavam na agricultura e no mercado urbano,
aproveitando a grande e definitiva crise da pecuária (fim do tropeirismo, crise
no preço do charque e do couro, importação de carnes), arrendam de estan-
cieiros e/ou adquirem campos e produzem trigo sob a orientação moderni-
zante da referida cultura, a qual vinha sendo priorizada nas políticas públicas
nacionais (incentivos fiscais, creditícios, estações experimentais etc.) desde
meados da década de 1930 pelo governo Vargas.
É nesse cenário que a indústria moageira e a cultura do trigo, ambos em
sinergia, ganham corpo e repercussão em Passo Fundo. Ambos estiveram
ligados a empreendedores que, em geral, pertenciam a uma escala média ur-
bana e que, nas suas relações com o processo de produção agrícola, com o
sistema financeiro nascente em termos de fomento à industrialização, bem
como aos incentivos creditícios, souberam inserir-se num processo produtivo
que deu grande expressão à Passo Fundo.
É importante enfatizar, na correspondência com o que narrou Delma
Gehm10, que alguns italianos adentraram no território de Passo Fundo de
forma isolada, como imigrantes e/ou migrantes ainda em meados do século
XIX. Porém, há poucos registros nesse sentido. Algumas famílias de grande
expressão comercial e industrial deixaram registros, escreveram memórias
e histórias de suas famílias; é o caso dos Formighieri, Ricci, Scortegagna,
Verardi, Della Méa, Bilibio, Costi, dentre outros; porém, como já dissemos
e queremos enfatizar, muitas não o fizeram, ou pela inexpressão econômica,
ou por falta de conhecimento das letras ou por não dar importância ao fato.11
Segundo D´Avila (2001), o primeiro italiano a fixar-se no distrito de
Passo Fundo foi o genovês Giuseppe Sevignone Marchi, conhecido como
José Marques Italiano, em 1851, proveniente da região do Rio da Prata. O re-
ferido fixou-se primeiramente no Tope (atual distrito de Marau) por um breve
tempo, tendo migrado para o povoado de Passo Fundo e exercido atividade
comercial e outros negócios, inclusive, seus descendentes, tiveram participa-

  Delma Gehm. Imigração Italiana. Texto disponível no site do Projeto Passo Fundo.
10

  Alguns de nossos entrevistados tiveram dificuldade em determinar a data da migração de seus fa-
11

miliares para Passo Fundo; outros não dispunham de nenhuma ilustração, documentação (escritura
de compra de terra), nem informação de quem e como adquiriram terras na que foi denominada
Vila Vitório Vêneto.

209
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ção política e esportiva no município; além de José Marques, o autor ainda


identifica outro compatriota que esteve em Passo Fundo no mesmo período,
o Giovani Stelio, tendo, inclusive, casado em Passo Fundo, porém, poucas
informações se tem sobre o referido.
Segundo Antonino Xavier (1990), vários italianos adentraram por Pas-
so Fundo na segunda metade do século XIX e que estiveram presentes na
Società Italiana di Mutuo Soccorso, dentre eles, conforme coloca D´Avila
(2001, p. 20), Quintino Lamachia, Anibal di Primio, José Reineli, Antonio
Caçola, Brás Sargentelli, Feliz Felizolla, Francisco Barletta, José Celibert,
Antonio Bertaglioni, José Di Primio, Eusébio Moretti, Raphael Pera e Fran-
cesco Amorelli.
D´Avila (2001) informa a existência de uma tentativa de colonização
em Passo Fundo, a Colônia Canfild, em 1889, pelo estadunidense Tomás
Canfild, na Serra Geral.12 Nessa, registra-se a presença de Trinco Joseph e
os irmãos Silvestre e Giovani Bucco. Pouco se sabe sobre a referida colônia,
inclusive, acredita-se, pelas informações que obtivemos em contatos infor-
mais com escritores sobre Passo Fundo, que não tenha tido longa duração e
nem prosperado, sobretudo em razão da falta de vias de comunicação para o
escoamento da produção13
Delma Gehm14 amplia o horizonte geográfico regional para além do
espaço urbano de Passo Fundo e identifica o genovês Giuseppe Sevignone
Marchi, migrando de Rio Pardo, em torno de 1851, e tendo se estabelecido
na região do Tope, próximo do atual município de Marau e, posteriormen-
te, montando comércio na cidade de Passo Fundo15; identifica também José
Stello como outro italiano que se estabeleceu na mesma região num período
imediatamente posterior. Segundo Gehm, ainda no final da última década do
século XIX, mas principalmente na primeira do século XX, a etnia italiana
apresentava-se com “predominância numérica na classificação por naciona-
lidade”. Nas pesquisas da autora, em correspondência com o que escreveu
D´Avila (2001), na última década do século XIX, na região de Passo Fun-

12 
CANFIELD, Tomaz. Instituto Histórico de Passo Fundo. Acervo Antônio Carlos Machado. Ca-
dastro de nomes de família. Pasta C, fichas 67-68.
13
  BRASIL. IBGE. Enciclopédia dos Municípios brasileiros. Rio de Janeiro, 1959, vol. XXXIV.
14
  Delma Gehm. Imigração Italiana. Texto disponível no site do Projeto Passo Fundo.
15 
SAVINHONE MARQUES, José. IHPF. Acervo Antônio Carlos Machado. Cadastro de nomes
de família. Pasta S, ficha 85.

210
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

do, figuraram as famílias de “Anibal Di Primio, Quinto Lamachia, Antonio


Bertaglioni, José Di Primio, Eusébio Moretti, José Reinelli, Antonio Caco-
la, Bras Sargentelli, Felix Felizolla, Francisco Darleta, José Celibert, Rafael
Pera, Trinco Joseph Silvestre Buco e João Buco [...]”.
Em 1890, é registrada a entrada do italiano José Muliterno que deu ori-
gem ao nome do povoado Muliterno, hoje desmembrado de Passo Fundo.
Nessa mesma época domiciliaram-se João Floriano, retirando-se logo a se-
guir. Nesse decênio estão registradas as entradas de Miguel Conti, Olinto
Giusti, João Be, Angelo Sposito, Leopoldo Lasta, Luiz Bonatto, Baptista Pe-
tracco, Pedro Totta, Pedro Testa, Manuel Zeni, Emilio Agostini, Arcângelo
e José Baggio, Francisco Pizze, Luiz Langaro, José Conti, Carlos Marchio-
natti, Pedro Bortolás e Angelo De Felippo”. Na estação de São Bento, hoje
pertencente a Carazinho, no final do século XIX, estabeleceu-se Francisco
Matiotti; no Pulador fixou morada Francisco Lancelotti e, no Povinho da
Entrada, Carlos Ungaretti.
Com a chegada da Ferrovia, em 1898, o fluxo de imigrantes em Passo
Fundo aumentou muito, em particular, de italianos. D´Avila (2001, p. 21),
baseado nas pesquisas sobre o Clube Caixeiral, indicou alguns nomes, dentre
eles, Luigi Langaro, Giuseppe Conti, Carlo Marchionatti, Pietro Bertolas,
Leopoldo Lasta, Luigi Bonatto, Baptista Petracco, Pietro Rotta, Pietro Testa,
Emanuele Zeni, Emilio Agostini, Francesco Lancelotti e Luigi Ricci. Segun-
do o autor, muitos dos italianos localizaram-se primeiramente, na parte nova
da Vila, no Boqueirão, após 1910, em razão do novo dinamismo que a viação
férrea deu ao centro da cidade, os referidos localizaram-se na parte central
da cidade, ao redor da viação férrea, nas Ruas Marechal Floriano, Moron e
Bento Gonçalves. Nesse mesmo período, em 1913, com a abertura da Av.
Progresso, ao longo dessa via, em direção à Colônia Marau, a presença itali-
ana, com estabelecimentos comerciais variados, marcou território.
Santo Claudino Verzeletti (1999) faz um amplo apanhado de sobreno-
mes de famílias de imigrantes e/ou descendentes que se estabeleceram nos
vários distritos e povoados que pertenciam à Passo Fundo nas primeiras déca-
das do século XX, antes das primeiras levas de emancipações de distritos que
pertenciam ao município; identifica também inúmeras profissões e ofícios de-
senvolvidos por italianos com destaque para os ramos da madeira, moinhos,
olarias, matadouros e frigoríficos, metalúrgicas, agroindústrias, carpintarias

211
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

e alfaiatarias, além das profissões como cantineiros, carreteiros, ervateiros,


ferreiros, dentre outras. Em sua análise, a grande leva de italianos para Pas-
so Fundo deu-se entre 1905 a 1930, na sua grande maioria, como segunda
geração de imigrantes, os quais casaram, constituíram famílias e sentiram a
necessidade de sair do local onde estavam em razão dos limites dos negócios
e/ou da terra existente. Na sua narrativa,

“Nas colônias velhas se eles se multiplicaram e criaram os filhos de


forma que as terras já eram difíceis de cultivar, tiveram que migrar,
migraram para o norte do Rio Grande do Sul. Como Passo Fundo
tinha uma terra boa, que assim falava [...]. Muitos italianos foram
para Sarandi, não me lembro o nome da empresa que fez os lotea-
mentos, então foi Rondinha, Sarandi, Constantina, Liberato Salzano
e Rodeio Bonito, aquela região. Todos vieram das terras velhas, de
Guaporé. A Família Magro, que se estabeleceu em Sarandi, depois
da revolução, cruzou por aqui com carroça e um carretão. [...]. As fa-
mílias se instalaram na região no período de 1905 a 1930; eu vim em
1935, então a imigração começou no início do século, porque tinha
aquele ‘zunzum’ de terras novas e eram preços bons. Então, 8 filhos
em casa e lá tinha 140 mil metros de terra e dava para cultivar vinte
mil. Isso era uma migração da agricultura para a agricultura”.16

Comerciantes rurais migram para a cidade e implementam comércio


variado, mas em ligação umbilical com os produtos agrícolas; a cidade passa
então a ter um vínculo mais estreito, em termos econômicos, com o meio
rural e vice-versa. As inúmeras casas de comércio no meio rural articulavam
mercantilmente a agricultura e as atividades industriais e artesanais (ou, en-
tão, o artesanato industrial como era o caso de moinhos e olarias no entorno
de Passo Fundo), demonstram isso; até porque muitos desses comerciantes
do meio rural tornaram-se, pós-anos 40, médios e grandes comerciantes urba-
nos de Passo Fundo, como é o caso da família Busato, Di Domênico, Zaffari,
Ughini, Tascheto, Andretta, Rosso, Zanella, Zílio, Costi, Andreis, Sana, Gra-
zziotin, Patussi, Zanatta, Reolon, Rosseto, dentre muitos outros.

  Santo Claudino Verzeletti em entrevista direta para João Carlos Tedesco, realizada no dia 07 de
16

maio de 2015:

212
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

Eugênio Busato. Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E. Comércio, século XX – Passo Fun-
do. Passo Fundo: Sincomércio, 2002.

Das colônias velhas e de Guaporé à cidade de Passo Fundo:


a Vila Victório Vêneto

Já falamos que há uma multiplicidade de trajetórias de migração de ita-


lianos para Passo Fundo, porém, como já falamos, as colônias-mães, são a
expressão maior. Tempos variados registram esse processo ainda nas últimas
décadas do século XIX, logo após a emancipação político-administrativa de
Passo Fundo.
Muitos dos (i)migrantes permaneceram no anonimato, bem como seus
deslocamentos por motivos variados. Algumas famílias, em geral de expres-
são econômica e política, permaneceram nos registros oficiais e de memória
na coletividade, ganharam nomes de ruas, estabelecimentos comerciais e in-
dustriais, vilas, etc.
Alguns pesquisadores como Antonino Xavier, Delma Gehm, Pedro Ari
Veríssimo da Fonseca, Ney D´Avila, Santo Claudino Verzeletti, dentre ou-
tros, forneceram-nos alguns elementos narrativos de famílias e fatos envol-
vendo o grupo étnico italiano no meio urbano do município.
Pedro Ari Veríssimo da Fonseca17, dá ênfase a um dos primeiros italia-

17 
Pedro Ari Veríssimo da Fonseca. Imigração italiana em Passo Fundo. Texto disponível no Projeto

213
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

nos a chegar à cidade de Passo Fundo, Luigi Ricci, por volta de 1893. Ele
exercia o ofício de oleiro e carpinteiro. O referido se estabeleceu à margem
esquerda do Rio Santo Antônio, onde atualmente está construída a residên-
cia de Ignês Bernardon18. Veremos mais adiante alguns fragmentos de relatos
de entrevistados.
Nesse mesmo período, segundo Veríssimo da Fonseca, chegaram mem-
bros da família do patriarca Francisco Formighieri, vindo de Caxias do Sul,
em meados da última década do século XIX, com seu pai Xisto Formighieri.
Seu filho Francisco, desenvolveu atividades de moageiro (moinho de trigo
e milho) e uma pequena agroindústria de erva mate na parte oposta do rio
Santo Antônio, como veremos mais adiante.
Esses e outros que migraram alguns anos depois constituíram a Vila
Victório Vêneto, um vilarejo de algumas dezenas de casas com identificação
de membros da etnia italiana, nas proximidades onde hoje é a Avenida Presi-
dente Vargas e o bairro São Cristóvão.
Com a chegada da estrada de ferro ligando Passo Fundo ao centro do
estado e a sua parte norte até o rio Uruguai, no final do século XIX, vários
italianos, imigrantes diretos ou migrantes descendentes da velha imigração
da região noroeste do estado do Rio Grande do Sul e de várias regiões do Pa-
raná e São Paulo, adentraram e fixaram morada no amplo território de Passo
Fundo. A família Formighieri, por exemplo, em 1898, migrou de trem da
ex-colônia Caxias até a estação do Pulador. O trem foi o grande dinamizador
dos fluxos migratórios, bem como a abertura da estrada, no início do século
XX, que ligava Passo Fundo à Guaporé. Essa, através de carretas, permitiu a
migração de famílias para o território do entorno do atual município de Pas-
so Fundo, como são os casos de Tapejara, Sertão, Sarandi e, para a direção
do extremo norte, em particular, para a colônia Erechim, na primeira década
do século XX.
Segundo Veríssimo da Fonseca, havia um grande dinamismo comercial
nessa parte da cidade de Passo Fundo (onde hoje é parte do bairro Santa
Terezinha, São Cristóvão e Vila Ricci), ligando alguns centros, dentre eles
Guaporé e Lagoa Vermelha.
Passo Fundo.http://www.projetopassofundo.com.br/principal.php?modulo=pessoa&detalhe=S&-
descricao=P&pes_codigo=55&pes_nome=Pedro%20Ari%20Ver%C3%ADssimo%20da%20Fonse-
ca
18
  Rua Camilo Ribeiro, nº 1523.

214
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

Aspecto da Av. Presidente Vargas, antiga Via Victorio Veneto, em 1963. Na imagem
vê-se uma série de estabelecimentos domiciliares e comerciais de descendentes de
italianos instalados no então Bairro São Cristóvão, que remontam às primeiras déca-
das do século XX. Fonte: foto gentilmente cedida pelo Sr. Ronaldo Czamanski.

“Na época, pelo passo do Rio Santo Antônio fluía todo o tráfego para
o Passo do Cruz, Mato Castelhano e Lagoa Vermelha. O local tornou-
-se pouso dos carroceiros e dos tropeiros de mula. Por ali, os tropei-
ros demandavam ao Passo do Pontão, no Rio Pelotas. As prósperas
colônias da região do Mato Castelhano traziam seus produtos para
comerciar em Passo Fundo, e aqui se abasteciam de suas necessidades.
A estrada para as ricas colônias de Marau, Casca e Guaporé foi por
onde chegavam os produtos dessa região”.19

Segundo o autor, vários ramos comerciais foram se estabelecendo na


via que passou a se chamar de Avenida Progresso, logo a seguir Mauá e,
posteriormente, Presidente Vargas. Nesse entorno da referida via, estabele-
ceram-se as famílias Rossetto, Giavarina, Patussi, Reolon, Pavan, Lazzaretti,
Scortegagna, Verardi, Bilibio, Ricci, Serena, Di Domênico, dentre outros, na

  Pedro Ari Veríssimo da Fonseca. Imigração italiana em Passo Fundo. Texto disponível no Projeto
19

Passo Fundo.

215
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

sua grande maioria proveniente da Colônia de Guaporé. Praticamente todas


essas famílias estiveram envolvidas em empreendimentos comerciais e indus-
triais. Veríssimo da Fonseca elenca atividades de algumas das famílias:

“Após o estabelecimento destas duas famílias, os Verardi, do Passo


do Cruz, os Pavan, da Itália, os Serena, os judeus Kwitko com sortida
bodega, os Bilibio, com um hotelzinho com janelinhas pequenas, os
Reolon, com uma casa de pasto onde hoje é a Brigada Militar, os
Lazareti e os Rosseto até hoje no ramo de ferragens, os Patussi, os
Giavarina e muitos outros”.20

O autor dá ênfase à ligação entre italianos localizados no meio urbano


e suas relações industriais e comerciais; cita, por exemplo, que, “em 1926,
chegou Inocêncio Scortegagna, com os filhos Domingos, Casemiro, Giocon-
da, Iria e Ernesto. Em Passo Fundo, o casal teve mais quatro filhos: Arlindo,
Armando Antônio, Alberto e Osmar. A família Scortegagna se estabeleceu
com a indústria de carne suína. Tornou-se exportadora de banha para São
Paulo e de couro para Guaporé”.
Na entrevista que obtivemos com o Sr. Santo Claudino Verzeletti, o re-
ferido enfatiza a intensa vinculação existente entre italianos e o ramo comer-
cial. Diz ele que,

“Os comerciantes de Passo Fundo quem eram? Eram italianos das


colônias Velhas, de Guaporé, de Caxias e Bento Gonçalves; saíram
de lá e vieram migrar para Passo Fundo. Vamos começar ali pela rua
Presidente Vargas, os Sana, Zé de Costi, Família Bernardon que tinha
os refrigerantes, as gasosas, o Robesquini, que tinham os transportes,
o Tasqueto e os Busatto que tinham cereais e comércio em geral, de-
pois os Graziottin. Aqui no centro, nós tínhamos o D’arienzo, são
filhos da imigração, De Césaro, que eram artífices. Os Foliani, os De
Castro, o Cechi, o Costi, que tinha o frigorífico e assim muitos outros
que agora não lembro, mas é amontoado de gente, todos comercian-
tes e a maioria na zona lá da São Cristóvão, onde era uma vez a Via
Vitório Vêneto. [...]. Os atacadistas eram grande parte italianos, que
alimentavam a zona da grande Sarandi, aqui tinha firmas grandes

  Idem, sem página.


20

216
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

de cereais que era o Baril e Tasqueto, Baril era judeu. A famosa casa
Campanile, Antônio Campanile, um dos tradicionais que vendiam
vestido em Passo Fundo, Dalmazo, D’arienzo, Ughini, famosos Ughi-
ni, Família Marson, o Magro, mas esse era comércio de alimentos,
Della Mea também, o Grando, família Grando, até hoje tão ali com
comércio. O Salton também tinha comércio. [...]. Tivemos contadores
importantes aqui, o Pedro Avancini, Antônio Rosado e Álvaro Lucca.
[...]. Quase todo esse povo que lembro agora, vieram entre os anos
1920 e 1940. Em geral eles são segunda, alguns até terceira, geração
de imigrantes” (Entrevista direta).

Na sua descrição, as famílias De Césaro, Lângaro e Floriani estabele-


ceram-se onde hoje é o centro da cidade. Giovani De Césaro notabilizou-se
no ramo da construção civil e arquitetura, dentre elas o Quartel do Exército,
colégios Notre Dame e Protásio Alves, Clube Comercial, Clube Caixeiral e
o prédio onde hoje está o Banco Itaú. “Mais tarde, Dino Caneva, vindo da
Itália, montou seu consultório médico na cidade, exercendo a medicina até
1939”.
Um dado interessante é que na constituição do conjunto de relações
produtivas dessas famílias na então Vila Vitório Vêneto, mesclavam-se ativi-
dades agrícolas, outras de comércio e indústria, bem como hotelaria, casas
de pasto, oficinas (ferrarias), armazéns de múltiplas variedades. Vários dos
migrantes italianos
adquiriram grandes
extensões de terra,
como é o caso das
famílias Formighie-
ri, Ricci, Scortegag-
na e Patussi. Nesse
cenário, horizontes
com características
urbanas se mescla-
vam com as rurais/
Rua do Comércio, atual Av. Brasil, na parte central, no agrícolas. A renda
início da década de 1920, ainda sem calçamento. Fonte:
fundiária urbana
https://goo.gl/NYB6e3

217
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

passou a ser dimensionada, a cidade passou a expandir suas características e


territorializar relações mercantis e ambientes construídos.

Alguns fragmentos de narrativas de histórias das primeiras


famílias na Vila Vitório Vêneto

A família Formighieri

Família de Xisto Formighieri, este, ao centro, sentado; em pé da esquerda para a


direita: Santina, Maria, Francisco, Erina, Celeste e Augusta; sentados, Eurico, Xisto,
Rosália e Guilherme, 1910. Foto cedida por Ignes Formighieri Bernardon.

Como já mencionamos, no final de setembro de 1898, estabelecia-se em


Passo Fundo, o Senhor Xisto Formighieri (viúvo), juntamente com Francis-
co, a esposa Maria Posser e seus filhos. Lembra bem o filho mais velho, Ce-
leste, então com oito anos de idade, que, ao chegarem em Pulador, a ferrovia
acabou, tendo que continuar a viagem a pé, com suas duas mulas que haviam
comprado em Caxias, onde tentaram a vida, mas resolveram instalar-se aqui,

218
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

mais no planalto, onde encontraram água boa para aquilo que se propunham:
a instalação de um moinho. Foi assim que dona Ignes Formighieri Bernardon
iniciou a narrativa em seu livrinho intitulado, Capela de Santo Antônio, uma
tradição centenária.21
Dona Ignes conta fatos relatados a ela por Celeste Formighieri que afir-
ma que ao chegarem em São Miguel, no dia 29 de setembro, dia dedicado a
esse santo, realizava-se, naquele local uma festa. “Ali cestiaram e compraram
doces e alimentos para as crianças, mas o susto foi grande ao verem negros.
Costumava-se, ali, fazer dois bailes: um dos negros, eles julgaram que fossem
macacos” (Bernardon, 1999, p. 14). Continua ela dizendo que “Em Passo
Fundo, o local já havia sido escolhido, pois Xisto Formighieri, o pai de Fran-
cisco, já tinha vindo sondar o ponto. [...]. O local para o moinho foi às mar-
gens do rio, hoje chamado Santo Antônio” [...]. O primeiro nome dado a esse
local, por Francisco foi ‘Passo do Moinho’. E foi assim chamado por muitos
anos” (Bernardon, 1999, p. 14). Nele, funcionava o moinho de trigo, milho,
soque de erva, carpintaria e ferraria.

Ignes Formighieri Bernardon, 89 anos, em momento de entrevista, ao lado do baú


de madeira que, segundo ela, “guarda muitas recordações” . Fonte: pesquisa de
campo.

  BERNARDON, Ignes Formighieri. Capela de Santo Antônio: uma tradição centenária. Passo Fun-
21

do: Berthier, 1999.

219
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A entrevistada22 menciona que seu bisavô, Xisto, já atuava com moinho


na colônia Caxias, mas queria se instalar aqui em razão de ser uma região já
bastante habitada e passível de constituir capitais para seus filhos. “Ele veio
antes da família para escolher o local, ver aonde tinha água para instalar o
moinho”. Ela não lembra e diz que também não dispõe de documentação so-
bre a aquisição das terras, de quem e como foi, mas julga que eram terras do
estado, devolutas. Ela relata dando ênfase ao tino comercial, à dedicação ao
trabalho que Francisco, seu avô, possuía; sua vocação comercial, sua siner-
gia produtiva (moinho, ervateira, olaria, carpintaria, criação de porcos, etc.),
além de incentivar imensamente seus filhos ao estudo e promover processos
educacionais no vilarejo do entorno do moinho. O rio Santo Antônio, na
altura do moinho, além de propiciar a energia para mover a diversificação
agroindustrial dos Formighieri, também era local de passagem de ligação en-
tre Passo Fundo e Mato Castelhano, bem como ligava o município com a
colônia Guaporé e a região de Soledade.
Na opinião de Fonseca (2007), o Passo do rio Santo Antônio foi o ver-
dadeiro “passo fundo”. Era por aí que passavam as tropas conduzidas pelos
tropeiros em direção à São Paulo, os carroceiros com mercadorias que che-
gavam para as colônia italianas de Casca, Marau e Guaporé, saiam produtos
dessa região para outros locais do estado ou fora dele. Às margens do rio,
os viajantes paravam para descansar das longas jornadas, preparavam sua
alimentação e pernoitavam.
Segundo Ignes,

[...]. Com bons recursos, em pouco tempo, eles construíram um gran-


de patrimônio. Como tudo ia bem, em 1915, e existindo somente a
capela da Conceição, tudo era difícil para se locomoverem até lá, para
seus compromissos religiosos. Eles construíram um pequeno oratório,
às margens do rio, ao qual eles, italianos, chamavam ‘capitel’. Ali ce-
lebravam missas e oravam, sendo que várias pessoas, que hoje ainda
vivem, foram ali batizadas.23

A inauguração do capitel deu-se a 17 de fevereiro de 1915. “A imagem

  Ignes Formighieri Bernardon, 89 anos, em entrevista direta, em junho de 2016.


22

  Entrevista direta com dona Ignes, já informada.


23

220
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

era visitada por pessoas vindas de outros locais, como de Marau, onde Ma-
ria, a esposa, tinha seus parentes, a família Posser”. Francisco Formighieri
nasceu no dia 13 de janeiro de 1872, em Mântova, Itália. Faleceu no dia 9 de
agosto de 1925 em Passo Fundo. Sua esposa Maria Posser faleceu no dia 14
de setembro de 1941 em Passo Fundo.

Desenho da primeira capela de Santo Antônio.


Fonte: Ignes Formighieri

A atual capela de Santo Antônio, localizada na


Vila Ricci, na Rua Camilo Ribeiro. Fonte: Ignes
Formighieri

Celeste, filho de Francico e neto de


Xisto Formighieri, com sua esposa
Erina. Fonte: Ignes Formighieri.
Filhos de Celeste e Erina Formighieri. Da
esquerda para a direita: Adelina, Armelinda,
Luíza, Maria, Ignes e Adelino.
Fonte: Ignes Formighieri.

221
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Casal Ary Formighieri e Joice Terezinha Coppini Formighieri. Fonte: pesquisa de


campo.


A família Ricci

Família de Luigi Ricci. Fonte: Sérgio Cláudio Ricci.

Das numerosas famílias de origem italiana que se estabeleceram no


meio urbano do município de Passo Fundo, a família Ricci ocupa lugar de

222
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

destaque na constituição dessa matriz étnica. Os membros da família Ricci


constituíram-se como grupo familiar de visibilidade social ainda no início do
século XX no município, por ser uma das primeiras famílias de imigrantes
italianos a prosperar por meio de atividades produtivas e na construção civil.
A presença do grupo familiar dos Ricci na cidade de Passo Fundo tem
início a partir da chegada de Luigi Ricci em 1893, imigrante italiano que
viu na referida cidade a possibilidade de estabelecer-se para exercer ativida-
des de seu domínio técnico. Acerca do pioneiro Luigi Ricci, tem-se algumas
informações cedidas por seus descendentes, que permitem uma tentativa de
reconstituição de sua trajetória desde sua imigração da Itália até sua posterior
chegada a Passo Fundo.
Nascido em 1869 na Itália, na cidade de Pontremoli, região da Lom-
bardia, Luigi Ricci passou a infância e juventude em sua terra natal, onde,
dentre vários serviços, teria adquirido experiência no ramo da construção
civil, como “assentador de tijolos”, como destaca um de seus netos, Sérgio
Ricci, em entrevista.

“Ele [Luigi] morava em Pontremoli. Ele partiu para Buenos Aires,


pelo porto de Spezia, com o objetivo de trabalhar para uma compa-
nhia que estava fazendo a ferrovia aqui no Rio Grande do Sul [...].
Ficou por um período de três meses em Buenos Aires e veio até Cara-
zinho de trem, já que a ferrovia ainda estava em construção”.

Nesse contexto é que se insere Luigi Ricci. Possivelmente, em razão das


dificuldades gerais que assolavam o recém-unificado Estado italiano, ele vira
nos projetos de imigração e colonização na América do Sul uma oportuni-
dade de novo começo, trabalho e melhoramento das condições de vida, be-
nesses largamente propagandeadas na Europa para incentivar a emigração.
Desse modo, segundo registros de família, Luigi acabara por migrar rumo à
Argentina onde veio a encontrar posto de trabalho disponível na companhia
que construía a estrada de ferro sul-rio-grandense, por volta dos primeiros
anos da década de 1890.
Em razão do trabalho na ferrovia, inicialmente, Luigi se estabelecera na
localidade de Carazinho, mudando-se para a cidade de Passo Fundo, pos-
sivelmente, entre os anos de 1893/1894. À época, o trecho Passo Fundo da

223
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

estrada de ferro ainda encon-


trava-se em construção.
Nos primeiros anos
em Passo Fundo, Luigi se
instalou no atual bairro Bo-
queirão, próximo à praça da
Mãe Preta, à época ainda nas
margens do núcleo urbano
passo-fundense. Com os co-
nhecimentos em construção
civil que detinha, ao que tudo
indica, Luigi seguiu, em pa-
ralelo ao trabalho na ferrovia,
construindo casas e edifícios
Certidão de casamento de Luigi Ricci com Julie-
na cidade, ganhando prestí-
ta Maria Krauz, em 22 de abril de 1899. Fonte;
Sérgio Ricci. gio e acumulando capitais.
Em razão da procura por
seus serviços, não muito tempo depois, pôde se instalar na esquina da Praça
Marechal Floriano, no lugar do atual Edifício Scussel, tendo adquirido algu-
mas propriedades no entorno da referida praça. O referido construiu a casa
de comércio dos Verardi na Vila Vitório Vêneto, dentre outras no entorno.
Para Fonseca (2007, p. 125), “Luigi Ricci logo ganhou dinheiro e cons-
truiu um galpão à margem da estrada que liga Passo Fundo à Marau e para
ali se mudou com a família, onde está o Edifício Sérgio Ricci.” (2007, p. 125)
A fixação desses primeiros imigrantes e suas (agro)indústrias nas margens
do rio Santo Antônio logo atraíram outras famílias de imigrantes nas ime-
diações. Chegaram então as famílias Rosseto, Giavarina, Patussi, Reolon,
Pavan, Lazaretti, Scortegagna, Verardi, Bilibio, inaugurando novos empre-
endimentos comerciais e industriais em uma nova rua. Essa rua aberta pelos
novos imigrantes italianos inicialmente denominou-se Avenida Progresso.
Não se pode perder de vista que, ao passo que Luigi passava a se estabe-
lecer em Passo Fundo, muitas outras famílias de descendência italiana tam-
bém faziam o mesmo, como são os casos dos Formighieri, Verardi, Bilibio,
dentre outras de destaque na área dos negócios. Nesse sentido, no intuito de
prover auxílio e acolher os compatriotas que gradativamente se instalavam na

224
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

cidade, fora criada a Societá Italiana di Mutuo Soccorso Iolanda Margherita


di Savoia, fundada pelos italianos e, em particular, Luigi Ricci, os quais já
gozavam de melhores condições financeiras.

Foto da primeira sede da Societá Italiana di Mutuo Soccorso


Iolanda Margherita di Savoia em Passo Fundo, construída por
Luigi Ricci em 1901, localizada em frente à Praça Marechal
Floriano, na rua Moron. Fonte: Sérgio Ricci.

Foto da segunda sede da Societá Italiana di Mutuo Soccorso


Iolanda Margherita di Savoia em Passo Fundo, localizada em
frente à Praça Marechal Floriano, na rua Bento Gonçalves.
Fonte: www.projetopassofundo.com.br

225
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Várias obras foram construídas pelo Luigi Ricci, dentre elas, como vi-
mos, a Intendência Municipal (antigo prédio da Prefeitura), em 1910. No ano
seguinte, iniciou a construção do prédio da Câmara de Vereadores (hoje Tea-
tro Múcio de Castro). Em 1916, iniciou a construção do prédio da Academia
Passo-fundense de Letras, interrompida durante a Primeira Guerra Mundial
e finalizada no início dos anos 1920.

Panfleto comemorativo da
construção do edifício que
abrigou, até a década de
1970, a Prefeitura Municipal
de Passo Fundo e que
atualmente abriga o Museu
Histórico Regional. Fonte:
Sérgio Ricci.

Em 1914 ou 1915, Luigi Ricci, transferiu-se para o atual Bairro São Cris-
tóvão, mais precisamente onde começa a atual Vila Ricci, onde adquiriu uma
ampla propriedade de terra (100 ha), na qual empreendeu várias atividades
agrícolas, extração de pedras, olaria, criação de gado, etc. Seu neto, Sérgio
Ricci24, em entrevista direta, enfatiza que seu avô era um grande empreen-
dedor; como construtor atuava em sinergia própria, ou seja, possuía olaria
de telhas e tijolos, abriu pedreira, pegava plantas de grandes e importantes
construções de Passo Fundo e, com isso, marcou sua presença.
  Sérgio Ricci, 73 anos, em entrevista direta, em junho de 2016.
24

226
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

A família Bilibio

A família Bilibio, antes de emigrar para o Brasil; o patriarca sentado ao lado da espo-
sa e de um filho sacerdote. Foto cedida por Sérgio Bilibio.

A família Bilibio é outra de grande referência no território que constituiu


a Vila Vitório Vêneto. Migrante das velhas colônias de imigração italiana,
buscou em Passo Fundo, nos primeiros anos do século XX, otimizar os pro-
cessos de transporte de mercadorias entre Passo Fundo e a colônia Guaporé
servindo as carretas e os carreteiros com uma ampla casa de pasto, hospeda-
gem e potreiro para os animais.

“A família de Felice Bilibio emigrou da Itália em 1888; partiu da


província de Treviso (paese de Cavasaga). Emigraram em três irmãos
casados (Felice, Liberale e Giovanni) com filhos pequenos. Estabele-
ceram-se na colônia de Alfredo Chaves. Após dois anos, os três irmãos
separaram-se da unidade familiar em que vivam. Felice migrou para a
colônia Guaporé, em 1890, mais precisamente num espaço onde hoje
é o caminho entre Marau e Vila Maria. Nesse local, compraram uma
pequena propriedade e, no início do século, migraram para Passo
Fundo, no espaço onde hoje é o início da rua Belém, um dos acessos
da Av. Presidente Vargas à Vila Ricci. Felice comprou uma área de
aproximadamente 75 ha; era terra devoluta, do estado; essa área ia até
onde hoje é Centro Administrativo do Grazziotin. O filho mais velho,

227
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Pedro, casado com Carolina Cassini, era o que comandava a família


de 14 filhos. Pedro colocou uma casa de pasto na área adquirida por
seu pai (Felice), a qual durou até por volta de 1935”.25

A família de Pedro, filho homem mais velho de Felice e Cândida, era


composta de 14 filhos. Desse modo, com família numerosa, buscou diver-
sificar atividades, aliando hospedagem com atividades agrícolas. Seu outro
irmão que ficou em Passo Fundo, montou uma fábrica de cachaça por volta
de 1901. Outros membros da família foram para a área rural de alguns muni-
cípios da região, inclusive as irmãs com seus esposos aproveitando os proces-
sos de colonização na região do entorno de Passo Fundo.
Segundo a entrevista com o Sr. Sérgio, a casa de pasto foi desativada em
1935 em razão da presença de caminhões, porém, a família continuou com as
atividades agrícolas na área de 75 ha, a qual foi assumida por um dos seus
filhos, José, instalando também olaria de telhas e tijolos, criação de suínos,
esse, em particular, em razão da instalação do frigorífico Zé de Costi na pro-
ximidade. Marcelino, um dos filhos de José, após retornar do quartel, em
1945, transformou-se num comerciante de pneus e de farinha entre São Paulo
e Argentina.26 O interlocutor enfatiza que existe descendentes da família Bili-
bio espalhados por toda a região de Passo Fundo; os 14 filhos do seu bisavô
Pedro, proliferaram uma ampla árvore genealógica que marcou também pre-
sença na região da Via
Vitório Vêneto. Felice
faleceu em março de
1945, com 80 anos; Pe-
dro faleceu em 1963.

Sérgio Bilibio, trineto de


Felice Bilibio, que migrou
para Passo Fundo. Fonte:
pesquisa de campo.

  Entrevista direta com o Sr. Sérgio Bilibio.


25

  Idem.
26

228
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

Família Scortegagna

A família Scortegagna; em pé, da esquerda para a direita: Ernesto, Casemiro, Do-


mingo, Gioconda, Arlindo e Iria; na frente: Armando, Amábile, Osmar, Inocêncio e
Alberto.

Alexandre Scortegagna e sua esposa Rosa emi-


graram da Itália, de Schio, província de Vicenza; o
destino primeiro foi a colônia de Antônio Prado,
onde hoje é Nova Roma do Sul; por volta de 1924,
migraram para o meio rural de Marau, na capela de
São Paulo da Cruz e, em 1926, seus filhos estabele-
ceram-se em Passo Fundo, na Vila Vitório Vêneto,
onde hoje está o Supermercado Di Domênico.
Segundo Alberto Scortegagna, em entrevista,
Inocêncio, filho de Alexandre, comprou uma vasta
área de terra, beirando a propriedade de Luigi Ricci
e montou um matadouro, indústria de carne suína Inocêncio Scortegagna.
Fonte: Alberto
e refinaria de banha.
Scortegagna.

229
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

“A empresa começou por volta de 1928; era uma das primeiras, ou tal-
vez, a primeira do ramo em Passo Fundo. Falava em banha na época,
era o Scortegagna. A banha era derretida em tonéis de 200kg, e era
enviada para São Paulo por via férrea. Os outros produtos, salame,
carne, costela, vendiam na praça regional. [...]. Era vilas imensas de
carroças carregadas de porcos que chegavam; no início teve até porcos
em tropa [varas] que chegavam no matadouro. Meu pai fez muito di-
nheiro com esse ramo. [...]. Por volta de 1946, ele vendeu para o Vitó-
rio Rigo e o Dante Bortolussi; na realidade, vendeu porque cansou do
negócio, vendeu a terra também e montou outros negócios e os filhos
foram cada um fazer a sua vida”.27

No mesmo livro de dona Ignes Formighieri Bernardon (1999, p. 27),


encontra-se um depoimento de Ernesto Scortegagna, onde ele afirma ter che-
gado para morar em Passo Fundo, com a família de cinco filhos, vindos de
Marau, com cinco meses de idade e se instalaram na entrada da cidade com
uma “indústria de carnes (açougue), que foi a primeira nessa cidade. Diz
Ernesto Scortegagna que,

“Com 8 anos de idade, comecei a visitar o arroio Santo Antônio,


pescando lambaris, onde eu conheci os moinhos de farinha e soque
de erva da família Formighieri, que fazia divisa com as terras do Sr.
Luiz Ricci, mais conhecido por Luís pedreiro, que além de possuir
uma olaria, era construtor e foi juntamente com João de Césaro que,
construíram as primeiras casas em Passo Fundo, erguidas somente
com tijolos e barro” (Bernardon, 1999, p. 27).

A Sra. Ignes conta que certa manhã, muito fria, iam ela e o pai pela Via,
e uma carroça com mudança estava parada a beira da Via a desembarcar a
mudança de uma família. Uma menina chorava desconsolada. Seu Celeste,
pai da D. Ignes, impressionado com o choro da menina dirigiu-se ao chefe
da família, inquirindo-o a respeito. É que o cachorrinho da menina Giocon-
da havia se perdido na viagem. Era a família Scortegagna. “Ninguém falava

27 
Entrevista direta com o Sr. Alberto Scortegagna, 83 anos, filho de Inocêncio Scortegagna.

230
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

uma palavra em ‘brasileiro’. Tornaram-se compadres e amigos para sempre.


‘A Gioconda sempre falava, foi a primeira pessoa que nos deu apoio’, arre-
mata D. Ignes. A menina Gioconda veio a casar-se com o empresário e cons-
trutor Pedro Ricci; eles são os pais de Sergio Ricci, empresário e construtor
como o pai e o avô Luigi.” (Fonseca, 2004, p. 207).
A família Scortegagna soube otimizar um produto em grande dinamis-
mo nas primeiras décadas do século XX que era a produção de suínos junto
aos descendentes de imigrantes alemães e italianos em sua grande maioria. É
importante dar ênfase ao fato de que nessa relação com a produção de suínos,
há uma profunda correlação com o modo de trabalho do colono.
Como já vimos, desenvolveu-se na unidade familiar do colono a prática
de produzir milho, associada à criação de suínos, objetivando a produção
da banha. Desse modo, a matança doméstica do suíno foi substituída pelas
indústrias de refinaria. Esse processo tornou-se fundamental para fazer cres-
cer a produção e a comercialização do produto. O milho era a alternativa de
cultura de verão e tornou-se o produto base de sobrevivência da unidade fa-
miliar, pois era processado em forma de farinha nos moinhos e o que sobrava
transformava-se em alimento para os suínos, geralmente os proprietários de
moinhos tinham chiqueiros de porcos. O comércio de suínos tornou-se um
bom negócio para o pequeno produtor, para o comerciante, para os proprie-
tários de matadouros e especialmente para os proprietários dos frigoríficos
que, posteriormente, com a crise dos matadouros, conquistaram o mercado
interno e externo brasileiro com seus produtos industrializados. Esse capital
industrial e comercial aproveita-se de políticas públicas interessadas em di-
versificar a produção da economia gaúcha, incrementando o mercado inter-
no e externo. Desse modo, no âmbito da unidade familiar do colono, quanto
mais a fabricação da banha assumia moldes capitalistas e mercantis, mas se
inviabilizava a fabricação caseira e artesanal do produto (Pesavento, 1983).
Apenas para ter uma ideia, na década de 1930, o recém emancipado
município de Carazinho, afirmava essa dinâmica da produção de suínos e a
consequente indústria da banha como uma das principais fontes de renda no
município e na região:

“Constitui uma das principais fontes de riqueza do nosso município


a criação de porcos que cada vez assume proporções mais animado-

231
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ras. Contribuir, sem dúvida, virá ainda mais par ao desenvolvimento


da suinocultura a construção de um moderno frigorífico para a in-
dustrialização da carne e sub-produtos. Hoje desenha-se promissora
para a suinocultura riograndense, uma nova era de prosperidade. Ao
lado da industria da banha, que pela sua alta qualidade actual, pre-
parada por processos modernos conseguiu impor-se a mercados, os
mais exigentes, apparelham-se organizações poderosas para elevarem
a producção da carne, conservas, e sub-productos ao mesmo nível da
importância commercial daquella gordura. (...), a criação de porcos
constitue um dos maiores commercios, o que demonstra a extraordi-
nária quantidade de suínos existentes em nosso município”.28

Em Passo Fundo, por exemplo, em 1930, foram abatidos 29.512 suínos.


O município esteve em quinto lugar no Estado no abate de suínos. Em 1950
produziram-se no município 728 toneladas de banha, estando também em
quinto lugar no estado.29
Segundo Armindo Maraschim, proprietário de matadouro em Passo
Fundo,

“Tinha colono aqui de perto que vinha de carrocinha. Comprava de


Chapada e de Tapejara, vinham os comerciantes de lá, o Ughini e o
Busato compravam mais de trinta cargas cada um; depois veio a Co-
operativa do colono e eu comprei de lá duas ou três vezes. E depois
que eu trouxe o caminhão de São Paulo eu mesmo ia comprar nas
colônias”.30

A entrevista nos esclarece sobre o funcionamento do matadouro A. J.


Maraschim & Irmãos:

O pai, Carlos Maraschim, tinha matadouro em São Luiz da Mortan-


dade, depois colocou na cidade de Passo Fundo em 1934 e mais tarde
1942 construímos o matadouro nos subúrbios da Vila Cruzeiro. O

28
  Relatório das ações do Prefeito de Carazinho, Albino Hillebrand, em 1937. Prefeitura Municipal
de Carazinho, 1938, p. 34. Relatório anual.
29 
IBGE - Censos Econômicos de 1950 – RS e Rio de Janeiro, 1956, p.80.
30
  João Armando Maraschim. O entrevistado era um dos sócios do matadouro A. J. Maraschim &
Irmãos e acionista do Frigorífico Planaltina.

232
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

pai deixou para nós, os filhos e em três fizemos a sociedade, o outro


irmão não entrou na sociedade porque era menor era eu, o Olívio,
o Lino João Maraschim e mais dois cunhados. A gente trabalhou de
1942 a 1951 depois tivemos desapropriação.31

Enfatizamos isso, na correlação com a atividade da família Scortegagna,


com a intenção de mostrar que matadouros e frigoríficos em Passo Fundo
estavam em sinergia com o meio rural da região, bem como com a posição
estratégica que ocupava o município, pois o referido possibilitava o acesso à
matéria-prima (banha e carne de suíno) e sua comercialização, aliada à dispo-
nibilidade de mão de obra necessária para o trabalho industrial e também ao
conhecimento e capital adquirido anteriormente pelos proprietários. A banha
tornou-se um dos principais produtos de exportação do Estado e nas colônias
aumentava-se a criação de suínos.

Refinaria de banha da família Scortegagna na Vila Vitório Vêneto. Fonte: Alberto


Scortegagna.

A oferta de produtos de origem animal, especialmente suínos, poderia

  João Armando Maraschim. Entrevista já informada.


31

233
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ser facilmente encontrada no meio rural do município de Passo Fundo, no


entanto, era insuficiente para abastecer os frigoríficos. A própria constituição
fundiária do município, a forte presença da pecuária nas áreas de campo li-
mitava a produção de suínos para as áreas de matas o que favorecia a entrada
de matéria-prima dos municípios vizinhos. Em nossas entrevistas, obtivemos
informações de que muitos caminheiros do norte do estado e mesmo de San-
ta Catarina transportavam suínos à Passo Fundo e levavam de volta telhas e
tijolos das olarias situadas no meio rural.

Sr. Alberto Scortegagna,


83 anos, em momento de
entrevista. Fonte: pes-
quisa de campo.

Família Patussi

Segundo Bruno Reynaldo Patussi, em entrevista, sua bisavó veio da Itá-


lia em 1875; ela emigrou viúva, com quatro filhos, João, Alessio, Pascoal e
Antônio. Estabeleceu-se na Colônia Conde D’Eu (posteriormente Garibal-
di). O seu avô era o Pascoal. Ele casou com Ernesta Brol e foram residir em
Muçum, que era, na época, distrito de Guaporé e tinha um porto fluvial. Por
volta de 1889 ou 1890, eles montaram uma casa de pasto em razão dos carre-
teiros e das casas de comércio que tinha lá.32
Segundo o entrevistado, era a esposa Ernesta e os filhos que tomavam
conta da casa e o avô ajudava na construção da estrada de ferro em Bento
Gonçalves. Eles tiveram 11 filhos, dentre eles, o Reynaldo, que casou com Ida
Zandavali que era também da colônia Guaporé, onde hoje é Vespasiano Cor-
  Bruno Reynaldo Patussi, 81 anos, casado com Helena Grigolo, filho de Reynaldo Patussi e Ida
32

Zandavali. Entrevista direta.

234
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

rêa. Casaram e foram


para a linha 11, Serafina
Corrêa e lá montaram
uma casa de comércio e
fundaram uma cantina.
Em 1931 resolve-
ram migrar para Passo
Fundo e se estabelece-
ram onde hoje é a es-
quina entre as avenidas
Presidente Vargas e
Aspirante Jenner. “Ini-
ciaram com o ramo de
Foto da família Patussi. Fonte: Revista do Instituto His-
bebidas, engarrafamen-
tórico de Passo Fundo. Edição especial (2010). Passo
to de vinho e destilados, Fundo: Berthier, 2010, p. 168.
posteriormente, monta-
ram uma leitaria, chamavam de tambo de leite, onde a mãe e filhos toma-
ram conta”. Segundo relata Bruno, o engarrafamento foi vendido logo depois
para Clemente Bernardon. “Aí começou a família Bernardon no ramo de
bebidas. Os Bernardon também vieram de Guaporé, próximo onde hoje é
Encantado”.
Reynaldo resolveu ir para Chapecó em
1943, sua mulher recebeu uma herança de ter-
ra de seu pai e foram para lá montar serraria.
Mais tarde, um filho assumiu a madeireira e,
em 1951, Reynaldo retornou à Passo Fundo,
onde iniciou um loteamento ao redor de onde
está o Banrisul, na rua Harry Becker; ele tinha
em torno de 20 alqueires na região; construiu
também uma casa onde hoje é o Posto Ipiran-
ga. Ele faleceu em 1988 e a esposa em 1933.

Casa da família Patussi em Serafina Corrêa.


Nela aparece Reynaldo Patussi, na soleira da
porta, com calça preta com suspensório. Fon-
te: Bruno Reynaldo Patussi.

235
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Bruno Reynaldo Patussi,


81 anos, casado com
Helena Grigolo, filho de
Reynaldo Patussi e Ida
Zandavali.

Segundo a Sra. Vanda Patussi33, em entrevista, a família do Sr. Reynal-


do Patussi e Ida Zandavali sempre estiveram envolvidos com atividades de
cunho agrícola, buscando otimizar atividades que já possuíam conhecimento
antes de migrar; produziam leite e criavam porcos. Porém, segundo a entre-
vistada, foi com o engarrafamento de bebidas e serraria em Santa Catarina
que a família marcou seu dinamismo econômico.

“O pai montou um engarrafamento de bebida, era algo novo para


Passo Fundo, de cachaça, vinho, vinagre, graspa. Eles entregavam a
bebida em engradados com uma charrete ou gaiota, como se chamava
na época, puxada por cavalo ou burros”.34

Migrar para o Oeste de Santa Catarina foi uma prática comum de mui-
tas famílias que se estabeleceram em Passo Fundo, principalmente entre as
décadas de 1920 e 1960. Madeireiros e madeireiras, assim como colonos,
aproveitaram as políticas de colonização implementadas naquele estado, a
abundante oferta de madeiras e as terras férteis e migraram para o referido.
As famílias Patussi, Scortegagna, Berthier, Lunardi, Annoni, dentre várias
outras, adentraram com intensidade no setor madeireiro no estado vizinho
nas primeiras décadas do século XX.

33 
Vanda Patussi, 90 anos, esposa de Ernesto Scortegagna, em entrevista direta.
34
  Vanda Patussi Scortegagna. Já informada.

236
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

A família Patussi, nesse sentido, com sua variedade de atividades (pro-


dução de leite, suínos, serraria e engarrafamento de bebidas) revela a pluriati-
vidade de famílias de origem italiana que se estabeleceram na Via Vitório Vê-
neto; migraram com saberes e ofícios definidos e tentaram, aproveitando-se
de sinergias, nichos de mercado, políticas públicas e visão empreendedora,
implementar várias atividades.

Sra. Vanda Patussi


Scortegagna, filha
de Reynaldo Patussi
e Ida Zandavali.

Família Bernardon

No ano de 1932, chegava para estabelecer-se em Passo Fundo Clemente


Bernardon, filho de imigrantes italianos que moravam em Guaporé. Clemen-
te era casado com Carolina Patussi. Construiu sua residência no local, onde
mais tarde, foi construído o frigorífico Z. D. Costi, na Vila Vitório Vêneto e
iniciou suas atividades como comerciante.35
Essa história nos foi relatada por Antoninho Bernardon, filho mais novo
de Clemente Bernardon, nascido em Guaporé, linha 11, hoje Serafina Cor-
rêa. A atividade comercial a que Clemente se dedicava consistia no transpor-
te em um caminhão pequeno de Passo Fundo a Guaporé, onde, em geral,

35
  As informações sobre a família Bernardon estão no texto de Ari Veríssimo da Fonseca, Irmãos
Dino e Nelson Rosseto: um pouco da história do Bairro São Cristóvão. In: Revista do Instituto His-
tórico de Passo Fundo. Edição especial (2010). Passo Fundo: Berthier, 2010.

237
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

eram levadas bananas e trazido


vinho. Enfrentou muitas difi-
culdades nesse tipo de negócio,
principalmente pela precarie-
dade das estradas fato esse que
acabava estragando as cargas de
bananas.
Após um tempo trabalhan-
do com a família Costi, nas bar-
rancas do rio Jacaré próximo a
Encantado, em um hotel, a fa-
mília Bernardon retorna para
Passo Fundo com o comércio de Clemente Bernardon, sua esposa Carolina
cachaça e vinho de Guaporé, Patussi Bernardon e seus filhos. Fonte:
Nascimento, W. Conheça Passo Fundo, Tchê!
muito apreciado na cidade. Des- Passo Fundo: Ed. Berthier, 1992, p. 89-90.
ta maneira, com o tempo, trans-
formaram-se em grandes comer-
ciantes dessas bebidas, os maio-
res da região.
Na década de 1940, havia na cidade a
Cervejaria Serrana de Bade & Barbieux. Essa
cervejaria fornecia a bebida para os Bernar-
don vender junto com o vinho e a cachaça.
Esse comércio era feito também em uma
gaiota para transportar as garrafas. Foi en-
tão que surgiu a iniciativa dos Bernardon em
construir uma fábrica de refrigerantes. Com
pouco capital, iniciaram a fabricação. Traba-
lhavam dia e noite para encher o tanque d´á-
gua retirada com baldes de um poço, que logo
era filtrada; usavam ácido cítrico importado,
Antoninho Bernardon. Fonte: açúcar, clara de ovo para retirar as impurezas
http://www.rduirapuru.com.
br/cidade/31842/passo+fun- do açúcar na fabricação do xarope, e essên-
do+perde+antoninho. cias de laranja, limão, abacaxi e guaraná. En-
garrafados em garrafas pequenas por serem

238
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

mais resistentes à pasteurização. Os refrigerantes eram vendidos nas vilas e


contavam com uma propaganda feita pela rádio Passo Fundo da época, nos
domingos de manhã num programa de Maurício Sirostsky, transmitido nas
vilas. Eram os refrigerantes da marca Minuano. Com a chegada da coca-cola,
essa acabou comprando a Minuano e logo fechou a fábrica.

Primeiras instalações da fábrica de bebidas da família Bernardon, originalmente no


denominado Bairro Exposição. Fonte: Nascimento, W. Conheça Passo Fundo, Tchê!
Passo Fundo: Ed. Berthier, 1992, p. 89-90.

A empresa consolidou-se pela década de 1950, com a denominação de


“Clemente Bernardon e Filhos Ltda”. Pelos anos de 1960, a empresa am-
pliou suas atividades, sob o comando do filho Mabílio. A distribuição de cer-
veja e refrigerantes, bem como o engarrafamento do refrigerante “Minuano
Limão”, esse muito conhecido e que levava a marca da empresa. Em meados
da década de 1960, Hélio Bernardon assume a chefia da empresa e intensifica
a atividades voltadas aos refrigerantes adentrando para marcas famosas da
Brahma, Pepsi-Cola, Mirinda e cachaça. O setor industrial e comercial de
bebidas na região de Passo Fundo conserva o registro da família Bernardon.

239
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Família Reolon

Na entrevista que obtivemos com o Sr.


Egydio João Reolon36, há identificação da famí-
lia com as atividades rurais antes da migração
na colônia Guaporé. Seu pai, José Reolon e sua
esposa Clélia Marchioro migraram para Passo
Fundo em 1931, com quatro filhos e estabelece-
ram-se em frente onde hoje é o Quartel da Briga-
da Militar. Instituíram-se na Vila Vitório Vêneto,
compraram uma extensão de terra e colocaram
uma leitaria (“tambo de leite”) e uma casa de
pasto para atender os carroceiros que traziam
produtos da colônia (Marau, em particular), que
se deslocavam para Guaporé e outros municí-
pios e também para várias casas comerciais, em
particular, a do Sr. Atílio Pavan, localizada ao
lado de sua hospedaria.
Seu pai, José, diversificava atividades em si-
nergia com as necessidades dos carroceiros, dos
consumidores de leite e queijo, bem como plan-
tava pastagem na extensão de terra que possuía O casal José Reolon e
na Vila Vitório Vêneto. Segundo o entrevistado, Clélia Marchioro. Fonte:
além da casa de pasto, seu pai, foto cedida pelo Sr.
Egydio Reolon.

“[...], atendia cavalos de carreira que disputavam na cancha reta onde


hoje é a Brigada Militar. Ele tinha cocheira para cavalo [...]. Meu pai
sempre teve um grande movimento na casa de pasto. Em 1942 ele ven-
deu tudo e foi administrar o Hotel Roma que, com a Segunda Guerra
Mundial, ele teve de mudar o nome para Hotel Nacional. [...]. A Vila
Vitório Vêneto tinha muito movimento, principalmente na faixa – se
chamava de ‘faixa’ antigamente, que hoje é a Av. Presidente Vargas;

  Sr. Egydio João Reolon, 85 anos; entrevista direta.


36

240
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

era muito comerciante, gente que produzia muito das coisas que o
pessoal na cidade precisava, muito carroceiro ligava a vila a toda a re-
gião. [...]. Muitos alunos, filhos dos comerciantes italianos estudavam
no Colégio Conceição, eles iam de carrocinha, quem levava quase
sempre era o Verardi ou o Formighieri.

Sr. Egydio João Reolon,


85 anos, em entrevista
direta.

A família Reolon, como nos conta o Sr. Egydio, também diversificava


atividades, correlacionava atividades rurais com urbanas, aproveitava a exis-
tência de práticas de esporte e lazer na região para otimizar seus negócios.
Junto com sua família migraram saberes e ofícios que foram otimizados no
novo espaço.

Família Verardi

A família Verardi chegou ao Brasil em março de 1892, proveniente de


Sacile, noroeste da Itália. Estabeleceram-se em Alfredo Chaves, hoje Veranó-
polis. Segundo entrevista com Hiran, “[...] nós descendemos do ramo do Vic-
tório Verardi e Doralina Ricci Verardi”.37 O Victório era filho do Luigi. Esse
37 
Entrevista direta com o Sr. Hiran Verardi, 85 anos.

241
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

veio da Itália com sete anos, juntamente


com vários irmãos e seus pais, Valentino
Verardi e Teresa Speranza.38
No relato de Hiran Verardi, o Victório
comprou uma extensão de terra na Vila Vi-
tório Vêneto no entorno onde hoje está si-
tuado o Supermercado Di Domênico e par-
te da área da empresa Semeato, bem como
a igreja São Cristóvão. Nessa área desen-
volveu atividades agrícolas, o mesmo que
fazia na colônia de Alfredo Chaves. Por
volta dos anos 30, montou um armazém,
com comércio varejista, compra de produ-
tos agrícolas, em particular o trigo e arroz. Em pé: Ana Verardi e Victório Ve-
Continua nosso interlocutor dizendo rardi; sentados: Levino de Sá e Pe-
dro Ricci. Fonte: Foto cedida gen-
que, tilmente pela professora Fabiane
Burlamaque.

“Naquela época, o transporte era feito todo de carroça; no armazém


estava sempre cheio de charretes e carroças, pessoas vinham a cavalo
ou mulas com bruacas cheias de produtos. Nós íamos na escola de car-
roça, no Conceição e no Notre Dame. [...]. Meu pai tinha um amplo
varejão. Meu pai comprava muito trigo e vendia para o Moinho Rio
Grandense. O negócio tinha altos e baixos. Num período em que foi
comprado grande quantidade de trigo, o Moinho [Rio Grandense]
suspendeu a compra, não lembro a causa, daí o trigo apodreceu no
galpão e a empresa foi a falência; isso lá pela metade da década de
1950”.39

38 
Informações contidas no livro de Heitor Verardi, Memórias de um contador de histórias. Passo
Fundo: Berthier, 2008.
39 
Entrevista direta com o Sr. Hiran Verardi, já informada.

242
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

Armazém da Família
Verardi na Vila Vitório
Vêneto, em meados da
década de 1930. Fonte:
Hiran Verardi.

O entrevistado informa que a família, em razão da falência da casa de


comércio, se desfez de uma grande patrimônio em terras e benfeitorias. O
espaço comercial foi vendido ao Sr. Di Domênico, o qual permanece até hoje.
A família migrou para Porto Alegre.
Segundo o entrevistado, havia um grande dinamismo comercial na Vila
Vitório Vêneto, em particular, da mesma atividade que a do seu pai. Havia o
Lazaretti e o Pavan “que também eram grandes; havia também, o açougue do
Inocêncio Scortegagna, tinha também os Ricci, alíás, quem construiu a casa
de comércio do pai foi o Luigi Ricci. Com a família Ricci nós tivemos uma
grande aproximação, tanto é que o pai e outro irmão casaram com duas ir-
mãs da família de Luigi Ricci. Onde hoje é o Edifício Ricci morava meu pai”.

Victório Verardi e sua


esposa Doralina Ricci na
formatura ginasial de um
de seus filhos, em 1951.

243
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Família Rosseto40

Foto da família Rosseto, ao centro, sentados, o casal Cesário e Elizabeth Rosseto.

Em 1923, chegava em Passo Fundo, direto de Vila Maria, Cesário Ros-


seto, casado com Elizabeth Detoni. Ele era filho do italiano João Rosseto e
da austríaca Joiela Sandri. O casal Cesário e Elizabeth Rosseto tiveram 11
filhos. Ao chegar em Passo Fundo, em 1923, estabeleceu-se com uma ferraria
em frente onde hoje é a Brigada Militar. Era a primeira ferraria da região.
Muito habilidoso no manejo do ferro, teve seu principal cliente a Brigada Mi-
litar; cuidava de toda a ferradura dos cavalos dos brigadianos até se associar
com seu vizinho Antônio Luza, que era marceneiro, e fabricarem carroças
em conjunto. Enquanto um fabricava a parte de madeira, o outro completava
com a ferragem.
Cesário nasceu em Dois Lageados e logo mudou-se para Guaporé com
toda a família. Seu pai, João, trabalhava como chefe de obras da estrada que
estava sendo construída entre Guaporé e Muçum. Nesse local, o pai adquiriu
uma gleba de terra. Aos 13 anos, Cesário decidiu sair de casa e fazer sua vida
em outro local. Com o dinheiro da herança recebida do pai, ele se instalou
40
  As informações sobre a família Rosseto estão no texto de Ari Veríssimo da Fonseca, Irmãos Dino
e Nelson Rosseto: um pouco da história do Bairro São Cristóvão. In: Revista do Instituto Histórico de
Passo Fundo. Edição especial (2010). Passo Fundo: Berthier, 2010.

244
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

em Vila Maria e adquiriu uma ferraria. Aos 17 anos, em 1918, casou-se com
Elisabeth Detoni. Na época casavam-se muito jovens para terem muitos fi-
lhos que serviam como mão de obra nos empreendimentos da família.
Cesário Rosseto possuía espírito empreendedor para a época em que
viveu. Com pouca escolaridade, apenas o suficiente para aprender a escrever
o seu nome e calcular, algo muito comum entre imigrantes italianos que se
estabeleceram no meio rural. O empreendimento comercial do senhor Rosse-
to, uma ferraria, foi prosperando juntamente com a cidade de Passo Fundo.
Num primeiro momento, serviu a Brigada Militar, depois ao DAER. Mais
tarde, com as construções de colégios, Cesário montou uma loja de material
de construção, que gerou as ferramentas de que precisavam para esses em-
preendimentos. A partir daí, a firma deixava de ser uma ferraria artesanal,
tornando-se um comércio de maior amplitude.
Rosseto, com sua habilidade comercial, sempre aproveitou as oportu-
nidades que o crescimento da cidade proporcionava. Primeiramente serviu
aos interesses da Brigada Militar, fornecendo ferragens para os cavalos dos
soldados. Logo com a instalação do DAER, que veio para construir estradas,
um grande número de funcionários veio a se instalar na redondeza. Esses
operários precisavam de gêneros alimentícios. Aí Rosseto passou a fornecer
esses gêneros que eram vendidos na caderneta e pagavam quando recebiam
seus ordenados do DAER. Com o loteamento Lucas Araújo e a construção
de novas casas e escolas, ele comprou terrenos onde hoje se encontra seu co-
mércio e passou a vender também material de construção.
Em 1956, Rosseto assinou o primeiro contrato social com os filhos, for-
mando assim a firma Cesário Rosseto e Filhos Ltda.

Família Serena

Segundo Ademir Serena, o avô veio da Itália em 1904 com sua esposa
Carolina Durante Serena; estabeleceram-se primeiramente na atual Flores da
Cunha, alguns anós após migraram para Marcelino Ramos para trabalharem
na estrada de ferro. Seu pai, Octávio, auxiliava na confecção da estrada pux-
ando pedras com a carroça. O avô faleceu na referida localidade.
Seu pai, Octávio, migrou para Passo Fundo com 14 anos para trabalhar

245
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

no moinho do Celeste For-


mighieri, em 1923. Casou
com a Maria Lida Vieira
Serena. Logo após sua vinda,
resolveu trabalhar naquilo
que já tinha prática, ou seja,
carpintaria e ferraria. Para
isso montou sociedade com
o Sr. Biasus. Junto com essa
atividade, também, montou
Octávio Serena e sua esposa Maria Lidia Vieira
um pequeno negócio (bode- Serena. Fonte: foto cedida por Ademir Serena.
gão), próximo onde hoje está
o supermecado da Brigada no bairro Santa Terezinha. Sua esposa é que o
cuidava; o próprio estava situado em sinergia com a presença de um grande
contingente de brigadianos que estavam se localizando na referida área. Mais
tarde, Octávio foi trabalhar na empresa Menegaz & Biasus, com carpintaria
e ferraria. Eles começaram a fazer as máquinas para os moinhos e, com isso,
Octávio, aproveitando os saberes adquiridos, resolveu montar uma moinho
próprio, em 1953; foi o segundo moinho localizado na região da São Cris-
tóvão. O moinho localizava-se ao lado de onde hoje é o Posto Tabaczinski.
O moinho durou até 1999. Seu Octávio falaceu em 1988, seus filhos deram
sequência na atividade. O Moinho Serena, como era conhecido, tornou-se
de grande expressão em Passo Fundo, começando como moinho de pedra e,
posteriormente, de cilindo.

Ademir Serena, 63 anos; neto de Miguel Serena.

246
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

O associativismo: recreação, etnicidade e assistência social

Tornou-se muito comum na história de grupos étnicos no Brasil orga-


nizarem-se em associações e entidades que congregavam e produziam ritu-
ais de pertencimento, demarcavam territórios e se integravam na sociedade
maior. Imigrantes de todas as matizes étnicas assim o fizeram, em particular,
as de maior número e expressão social, como é o caso de italianos, alemães,
poloneses, sírios e libaneses, judeus, holandeses, dentre outros.
Esse processo associativo é parte integrante da dinâmica organizativa de
imigrantes quando estão inseridos numa perspectiva de inserção social nas
sociedades hospedeiras. Isso aconteceu em várias regiões do país e em outros
países de expressão da imigração italiana.
O associacionismo étnico-italiano (de imigrantes e descendentes) no
Brasil foi intenso desde os primeiros anos, inclusive anterior à delimitação ofi-
cial do início do período imigratório (1875); essa realidade é parte integrante,
diríamos, de seu éthos cultural e político. As formas, as ações, os vínculos,
as intencionalidades, as seletividades de sujeitos pertencentes, as correlações
histórico-culturais e territoriais transfronteiriças, as temporalidades entrecru-
zadas, as repressões políticas, etc., fazem parte de um quadro caleidoscópico
amplo, diversificado, não homogêneo e redimensionado temporalmente. É
parte integrante de sua história no Brasil, fruto de um processo já existente e
contextualizado na Itália, sob influência religiosa, política, empresarial, ide-
ológica e assistencial, fundada nas condições objetivas de existência.
Biondi (2012) fala que houve uma verdadeira explosão de sociedades
italianas entre 1896-1899, com maior centralidade para 1897; as agremiações
possuíam características regionais marcadas, inclusive, com grande volume
de imigrantes da Itália Meridional; eram, em grande parte, sociedades regio-
nalizadas, mas com nomenclatura patriótica, em geral, ligadas à Unificação
do país; sociedades marcadas pela contradição, diversidade de membros e de
influências regionais (socialistas/clericais, empresários/trabalhadores, mo-
narquistas/republicanos...), com prevalência não homogênea de seus mem-
bros, por vezes, muito diferenciadas e conflitantes, quando não ambíguas,
buscando identificação nacional num processo de (re)construção, transfor-
mação e pertencimento étnico.

247
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

No caso de Passo Fundo, essa realidade do associativismo demonstrou


ser representativa; vários clubes e associações de várias roupagens surgiram
para expressar grupos sociais, dentre eles, alemães, italianos, sírios-libaneses
(árabes em geral), judeus, negros, dentre outros, mais recentemente, os imi-
grantes senegaleses. Para o que nos interessa aqui, ainda que somente algu-
mas linhas, que é o caso dos italianos, esses constituíram alguns processos
associativos de grande expressão em Passo Fundo como é caso da Società
Italiana di Mutuo Soccorso, fundada em 1901.

A sede da Società Italiana na Rua Moron, em frente ao antigo transformador de


energia elétrica. Fonte: D´Avila, 2001, p. 120.

Essa organização associativa, não muito diferente de outras de outros


grupos e em locais variados, objetivava auxiliar famílias e indivíduos de ori-
gem italiana localizados no município e/ou região de Passo Fundo, além de
propiciar momentos de lazer e expressão cultural com atividades que possuí-
am certa característica étnica.
Os processos associativos, como já mencionamos, serviam também de
demarcador étnico-territorial, uma grande oportunidade para identificar-se e
ser reconhecido enquanto tal no interior do grupo e no público maior, produ-
zir lideranças e sobreposições étnicas em disputas no campo social, político
e cultural. Sob o manto da assistência, vários outros elementos poderiam se
desenvolver.

248
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

Não esquecendo também que esse tipo de associativismo teve grande


expressão no meio urbano; na vida rural/agrícola, pouco se desenvolveu, a
não ser as sociedades de capela na qual congregavam-se todos os moradores
do vilarejo rural, não tendo a intenção de ser, pelo menos em teoria, uma
expressão de grupos étnicos ainda que pudesse haver preponderância de al-
gum deles. Quando havia algum indivíduo do meio rural nas associações
étnicas urbanas, seu status era apenas de sócio contribuinte, em geral, algum
comerciante rural, o qual intencionava obter visibilidade pública, mas, acima
de tudo, usufruir de algum tipo de assistência que a entidade promovia. Os
pequenos agricultores, em geral, nem sabiam da existência de associações e/
ou de sua possível assistência social.
No meio urbano, essas sociedades agregavam, em geral, membros de
uma “elite econômica” (D´Avila, 2001), que poderia ser representativas de
setores comerciais e industriais, bem como de profissionais liberais (médi-
cos, advogados, funcionários públicos, dentre outros). Em geral, na diretoria
desses grupos associativos fazia parte essa elite que estava tendo sucesso nos
negócios. Os clubes associativos passavam a ser uma vitrine social e pública
para determinados sujeitos.
Havia uma preocupação dessas associações também com os operários,
através de “círculos operários”, os quais objetivavam dar assistência a famí-
lias de operários de origem italiana. Isso esteve muito evidenciado em Passo
Fundo e em grandes centros industriais como é o caso de São Paulo; além
dessas roupagens do campo do trabalho, houve muitas associações de caráter
étnico também no horizonte esportivo, comercial, dentre outras.
No caso específico da Società Italiana de Mutuo Soccorso alguns meses
após sua fundação, ainda em 1901, recebeu como patrona a princesa italiana
Iolanda Margherita di Savoia, filha do Rei Vittorio Emanuelle III. Era uma
forma de ligar o espaço de destino aos horizontes políticos da pátria-mãe. A
referida entidade teve vários endereços, primeiramente no bairro Boqueirão,
que era a parte mais expressiva da cidade, posteriormente, na Rua Moron, no
meio da quadra em frente à Praça Mal. Floriano e, em 1937, foi construído
onde está hoje na Rua Bento Gonçalves defronte à mesma praça.41
Nesse período de nova sede, a entidade passou por algumas situações

41
  Uma análise detalhada em torno do Caixeiral Campestre encontra-se no livro de Ney D´Avila
citado na bibliografia final.

249
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de repressão em razão da Campanha de Nacionalização levada a efeito pelo


Governo Vargas. Não obstante às questões políticas, durante muito tempo a
entidade levou a marca da etnia italiana, de imigrantes de grande expressão
econômica e política da sociedade passo-fundense. A denominação de So-
cietà para Clube Caixeiral deu-se em 1938, como estratégia, por ocasião das
políticas de nacionalização.
Apenas para informar, entre 1901 e 1905, sucederam-se na presidên-
cia, Quintino Lamacchia, Francesco Amorelli, Pietro Testa, Fiorello Ernes-
to Brussa e Luigi Ricci; de 1906 até 1923 uma comissão especial assumiu
a direção da Società formada por Luigi Ricci, Santo Scaglia, Giovani De
Cesaro, Giacomo Gubiani, Pietro Testa e Ludovico Della Méa. Outro dado
informativo é que as mulheres passaram a ser admitidas na Società como
sócias somente em 1937, na condição de “contribuinte da secção recreativa”
(D´Avila, 2001, p. 34).

Atual sede social do Clube Caixeiral Campestre. Fonte: D´Avila, 2001, p. 149.

Enfim, não muito diferente de outros grupos étnicos, os italianos (pelos


menos alguns deles) em Passo Fundo, organizaram-se de uma forma asso-
ciativa e marcaram presença na sociedade em que estavam se integrando. A
referida Società e, posteriormente, Clube Caixeiral, expressaram as intenções

250
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

e objetivos que os grupos étnicos possuíam, ou seja, produzir ligações histó-


ricas com o processo migratório, integrações, duplo pertencimento, vínculos
e laços históricos, associações culturais e dialetais, disseminação da língua
italiana, intercâmbios, enfim, uma tentativa de expressão do amor pátrio ao
bel paese. Bem como promover ações assistenciais aos co-nacionais mais ne-
cessitados, dentre eles os operários, seus filhos, dentre outros.
Nesse sentido, as etnicidades são expressões características de grupos
sociais, os quais buscam diferenciação e identificação de pertencimentos que,
mesmo fora de seus territórios, apropriam-se de recursos simbólicos que os
possam congregá-los em termos identitários. As migrações (principalmente
internacionais) são ações propícias para, com o passar do tempo, produzir
redes sociais que se ligam, temporal e territorialmente, com outras gerações
e formam grupos identitários, buscando transformar imigrantes em grupos
étnicos, agregando identificações, valores, sentimentos e práticas considera-
das e/ou atribuídas como comuns, associações que se ligam ao país/região
de origem com intenções múltiplas (identificação, demarcações de territórios,
visibilidade pública, ligação com o espaço de imigração, mas sem perder as
raízes com o anterior, etc.). Por isso que horizontes culturais ganham forma-
tos variados em razão das formas de manifestação de grupos étnicos.

Considerações finais

Discutir memória, nas suas várias dimensões, seja ela individual, co-
letiva e social, sua relação com a história, sua manifestação oral e objetal,
seus lugares informais e circunstanciais (casas, ruas, porões, baús, gavetas,
paredes, galpões, etc.), seus silêncios temporais, os não-ditos, suas formas de
enquadramento, etc., é algo mais do que desafiador hoje. Muitas vezes, nessa
tentativa de presentificar passados, busca-se dimensionar os feitos sem de-
feitos. Contar algumas histórias e relembrar o passado, não significa apenas
recordação verbalizada e, muito menos só porque há resíduos dos tempos
passados interessantes para o presente. Entendemos que reconstituir narrati-
vas auxilia na compreensão de processos históricos, culturais e sociais, além
de ser uma questão de cidadania, de reconhecimento do vivido.
Reconhecemos que dimensionamos nos pequenos fragmentos de narra-

251
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

tivas dos italianos, primeiros habitantes da Vila Vitório Vêneto, a centralida-


de do trabalho, do empreendedorismo, da mobilidade social, do progressis-
mo, da vida familiar, de ofícios que migraram com os sujeitos coletivos, da
racionalização e maximização de fatores e de saberes ligados à terra. Esse é
um horizonte que compõe as narrativas de imigrantes e descendentes italia-
nos. São dimensões constituintes de seu ethos e dificilmente estariam fora do
acervo discursivo. Em geral, também, vimos que são universos de expressão
da vida de colono, do trato com a terra, da redefinição e dos desafios no novo
espaço, agora em Passo Fundo.
Buscamos reconstituir alguns elementos do amplo grupo étnico italiano
que se estabeleceu em Passo Fundo entre o final século XIX e as primeiras
décadas do século XX. Como já dissemos, não há como reconstituir traje-
tórias de vida de todos, nem contemplar as múltiplas relações e vinculações
constituídas no espaço em questão. Além do mais, o território de Passo Fun-
do era muito amplo nesse período; múltiplas trajetórias de (i)migrantes foram
viabilizadas por elementos econômicos, infraestruturais, políticas públicas,
ofícios e profissões. Vimos que muitos exerceram atividades no novo espaço
em correspondência com o que já desenvolviam anteriormente.
Damos centralidade apenas a algumas famílias que se estabeleceram na
Vila Vitório Vêneto sem a preocupação de que essa possa ter sido representa-
tiva da presença da etnia italiana no espaço urbano de Passo Fundo. No perí-
odo em questão, talvez esse território nem poderia ser considerado urbano e,
sim, muito mais rural/agrícola, porém, transformou-se no decorrer de alguns
anos em razão do avanço comercial, industrial e de ligação com o nordeste
do estado.
A Vila Vitório Vêneto, talvez, tenha tido uma especificidade, ou seja,
possuía uma intensa dinâmica comercial, ligada a múltiplas atividades, em
geral, oriundas da produção agrícola, bem como estruturou ramos agroin-
dustriais que marcaram toda a “faixa” que passou, com o tempo, a ser deno-
mina Av. Presidente Vargas.
Acreditamos que, em correspondência com o amplo conjunto dos gru-
pos étnicos que constitui o município de Passo Fundo, a etnia italiana deixou
alguns legados, principalmente no campo agroindustrial (moinhos e frigorífi-
cos), colaborou na ocupação da terra e ampliação da produção de excedentes
comercializáveis, esteve muito presente no ramo comercial, nas trocas mer-

252
Italianos em Passo Fundo – final do século XIX e início do século XX

cantis com o comércio regional e estadual; deixou legados no campo político,


em instituições de lazer, clubes recreativos e de assistência social. Enfim, um
horizonte temporal de mais de um século que registra a presença desse grupo
heterogêneo em várias dimensões, que, de uma forma ou de outra, buscou
deixar suas marcas no ambiente, na nomenclatura pública, nas genealogias
familiares, em múltiplas outras esferas materiais e imateriais, mas, principal-
mente, na memória viva de pessoas.

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255
Alguns estabelecimentos comerciais e industriais na Vila Victorio Veneto - de 1890 a meados do século XX1
Família Busatto Família de João Biasus
r
Família Bortolon ne
Família De Toni Jen
a n te
r
Família Susin spi
Família Vendrame .A
Av
Família Fasolin
Família de Clemente Bernardon Família Formighieri
Família de Pedro Bilibio
Família Bonotto Família Patussi
Família Giavarina Família Consalter
iro

Família Venturini
be
Ri

Família Reolon
ilo

Família Zancanaro
am

Brigada Militar
aC

Família Rossetto
Ru

Família Adami Família de Z. D. Costi Família Verardi

256
Família de Miguel Serena Família Ricci
Família de Atílio Pavan Paróquia São Cristóvão
Família de Albino Lazzaretti Família Bilibio
Família Bortolussi Família de Felice Bilibio
Família Scortegagna
in
iot
zz
a

Família Gobbi
Gr
im
lent
Va
a
Ru

Família Damiani

Família Nazari
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Fonte: adaptado por Alex Antônio Vanin.

1
A localização dos estabelecimentos foi-nos informada pelos interlocutores da pesquisa; alguns não tinham plena certeza da localização, tendo sido,
portanto, indicada nas proximidades. Um mapa mais detalhado e com maiores informações se encontra no final do livro, em anexo.
Sírios e libaneses em Passo Fundo – final
do século XIX e primeiras décadas do
século XX

João Carlos Tedesco1


Alex Antônio Vanin2

Introdução

Pouco se fala ou se houve falar dos sírios e libaneses em Passo Fundo.


Em geral, quando são referidos, imediatamente surge a pequena frase inter-
rogativa: “ah, os turcos”? Na realidade, houve uma ampla imigração de sírios
e libaneses, bem como de palestinos em toda a região norte do estado, em
particular, Passo Fundo, Lagoa Vermelha, Erechim e Palmeira das Missões
entre os anos de 1900 e o final da década de 1950.
Os referidos grupos étnicos localizaram-se mais no espaço urbano. Há
poucas referências deles no meio rural/agrícola. Na cidade de Passo Fundo
há um espaço que, por mais de meio século, foi identificado como “as qua-
dras dos turcos”; ou seja, territorializou-se um espaço comercial popular na

  Prof. do PPGH/UPF.
1

  Graduando em História na UPF, bolsista PIBIC/CAPES


2

257
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

região central de Passo Fundo entre as quadras da Rua Fagundes dos Reis
com a Rua 15 de Novembro, principalmente do lado da Avenida Brasil onde
se localizam o Clube Comercial e a escadaria da Brahma, com identificação
do comércio de árabes. Muitos sírios, libaneses e alguns palestinos adquiri-
ram e/ou alugaram casas para comércio e moradia nessa região, principal-
mente nas quadras que compunham, na época, os “fundos da Brahma”, entre
as décadas de 1920 e 1950.

Ao lado direito, vê-se duas quadras centrais da Av. Brasil, entre as Avenidas Gen.
Netto e Sete de Setembro; nela encontrava-se a popularmente denominada “qua-
dras dos turcos”, na década de 1970. Fonte: foto gentilmente cedida pela Sra. Ruth
Rezende Goellner.

É importante que se diga logo no início que a população atual de des-


cendentes de libaneses no Brasil é mais de duas vezes a do Líbano (em torno
de 4 milhões é a população do Líbano e, os descendentes de libaneses no
Brasil são mais de 10 milhões). Tanto Síria, quanto Líbano, são países que,
no período da emigração para o Brasil, entre 1880 a 1940, passaram por rea-
lidades complexas de transformações sociais e políticas.

258
Sírios e libaneses em Passo Fundo
Na primeira leva oficial de imigrantes para o Brasil, em torno de 1880,
os referidos países estavam sob o jugo do Império Turco-Otomano. Essa es-
trutura política foi redefinida em 1918 com a derrota do referido império
na Primeira Guerra Mundial. Nesse período houve uma grande divisão do
Oriente Médio sob a influência da Inglaterra e França; aos franceses coube
o Líbano e a Síria. Beirute, por exemplo, tornou-se a “Paris do Oriente”; em
1920 foi criada a República do Líbano, porém, sob o jugo francês; sua inde-
pendência só veio em 1943, antes do fim da Segunda Guerra. Logo após a
referida guerra, o Líbano, mesmo com um pequeno território, tornou-se um
espaço para refúgio de palestinos que foram expulsos devido à criação do
estado de Israel. Enfim, é um curto período de muitas e intensas transfor-
mações que acabaram influenciando na emigração, nas identidades dos que
emigraram e na saída e retorno de imigrantes.
Como veremos adiante, há elementos que são específicos dessa imigra-
ção para o Brasil, mas, em geral, ela faz parte de um contexto de grandes
discussões sobre as políticas imigratórias da sociedade brasileira e que incluía
vários grupos étnicos; nessas discussões estavam em pauta questões ligadas
ao branqueamento e ao mundo econômico. A imigração, nas últimas déca-
das do século XIX, estava na ordem do dia da sociedade política e econômica
do país. A questão da escravidão e sua abolição, da sua consequente alteração
e demanda de mão de obra para a lavoura cafeeira, para o setor industrial
paulista em expansão, para o setor agrícola do centro-sul, enfim, tudo isso,
somado às questões de ordem racial, regional e quantitativa formavam o ce-
nário das grandes discussões e polêmicas do período.
Os sírios e libaneses estavam localizados na ampla discussão e nas in-
tenções das políticas de imigração do país. Porém, idealizava-se a demanda
de mão de obra para as lavouras de café e na produção de alimentos do sul
do país, bem como para as fileiras do operariado paulista, mineiro e carioca.
No entanto, pouco disso foi desenvolvido. Eles configuraram uma imigração
comercial (comerciantes) e de pequenos industriais e não tanto nos cenários
laborais que se pretendia. Essa é uma das especificidades desse contingente
imigratório, além do mais, os primeiros que emigraram deslocaram-se para a
região da Amazônia, em pleno ciclo da borracha idealizando ganhar dinhei-
ro nesse cenário específico e, não nos espaços previamente pretendidos pelos
gestores das políticas de imigração no país.

259
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Como nos diz Truzzi (1999, p. 322), foram imigrantes que “trabalharam
duro e, gastando o mínimo para sobreviver, tornava-se bastante segura a pos-
sibilidade de amealhar certo capital”. Os relatos obtidos em nossa pesquisa de
campo demonstraram sempre essa centralidade da poupança, de viver com o
mínimo necessário para amealhar recursos, poupar e montar seus pequenos
negócios. Continua Truzzi (1999, p. 221) dizendo que eles, em São Paulo,
em particular, foram os criadores do chamado “comércio popular”. Sírios e
libaneses “partiram do varejo para o comércio atacadista e, posteriormente,
para a indústria, sobretudo a têxtil”.
Possivelmente, os imigrantes sírios e libaneses enfrentaram os amplos
limites de todos os imigrantes do período: a língua, a falta de dinheiro, a
distância da pátria-mãe, a ausência de familiares, as questões culturais e reli-
giosas, a sociabilidade e os pré-conceitos, a falta de integração, etc., porém,
idealizaram, como todos os imigrantes o fazem, melhorar de vida, prosperar
nos negócios, enviar dinheiro para a família, integrar-se na sociedade hospe-
deira e fazer um esforço de manter elementos culturais e valores que demar-
cam o grupo.
A literatura revisada e a realidade empírica demonstraram que, mesmo
em meio às adversidades, sírios e libaneses souberam superá-las e ganham
destaque principalmente no ramo econômico-comercial e industrial. A sua
identificação como mascate ficou na recordação de vários interlocutores e na
representação social de sua identidade, bem como as múltiplas heranças dei-
xadas em várias áreas. Praticamente todos os nossos interlocutores tiveram
alguém da família, em geral, o pioneiro imigrante, que atuou como mascate.
Essa realidade tornou-se redentora, pois revelou superação, sacrifícios (“fa-
zer negócios sem saber falar uma palavra em português”, “andar a pé, ou no
lombo de mulas, pegando carona com carroças e levando mercadorias para
o meio rural”, como nossos interlocutores mencionaram sobre seus avós ou
pais) e legitimou a prosperidade econômica. Porém, é evidente que nem to-
dos conseguiram dar esse salto progressista; muitos imigrantes que estiveram
em Passo Fundo e região migraram para outros locais/estados ou retorna-
ram à sua pátria-mãe por múltiplas razões.
Em razão de sua marcada e reconhecida presença em Passo Fundo, sí-
rios e libaneses são merecedores de algumas linhas, as quais tentam recons-
tituir alguns dos elementos que foram vivenciados por eles. Buscamos en-

260
Sírios e libaneses em Passo Fundo
trevistar algumas pessoas que foram sendo informadas e se dispuseram em
narrar alguns fragmentos da vida de avôs/avós, pais e mães, pioneiros de
suas famílias, dos que vieram “um pouco depois”, dos que “ainda lembram
de algo daquele período”.3
Os entrevistados nos foram sendo informados no decorrer da pesquisa
por membros dos grupos em questão. As perguntas giravam em torno do pe-
ríodo da emigração dos primeiros a chegarem em Passo Fundo, da respectiva
família, das relações de trabalho, da constituição econômico-social no espaço
de destino, casamentos, vínculos religiosos e descendência, ou seja, algo mui-
to simples e sintético.
Estruturamos o texto analisando, primeiramente, alguns tópicos sobre a
emigração de sírios e libaneses para o Brasil, alguns de suas características;
posteriormente, daremos ênfase aos elementos que estruturaram a vida eco-
nômica e social dos referidos imigrantes na região de Passo Fundo tendo as
narrativas de entrevistados como base para o entendimento dessa realidade.
Enfatizamos que não temos condições de entrevistar todos os que ain-
da estão em Passo Fundo e nem seria possível e necessário. Muitos ficaram
de fora, ou por falta de conhecimento nosso, ou porque foram contatados,
mas preferiram não contribuir com a pesquisa, ou, então, porque a realidade
demonstrava-se muito similar entre os entrevistados. Então, o que fizemos,
além de ser apenas um singelo fragmento de uma ampla e rica realidade vi-
vida pelos referidos grupos e que deixaram um amplo e significativo legado
para além da vida econômica (mascates, comerciantes...), é representativo de
somente alguns que nos serviram de fonte e interlocução.

3 
Reconhecemos que não tínhamos conhecimento elaborado sobre essa realidade migratória no
Brasil e na região; tudo para nós foi novidade e a pesquisa tornou-se muito prazerosa. A literatura
revisada sobre alguns fragmentos da história dos dois países, principalmente na virada de século
(XIX para o XX), suas especificidades no conjunto da emigração para o Brasil, a sua presença em
Passo Fundo, alguns de seus traços culturais, etc., tudo isso nos foi de grande riqueza. Os contatos,
os diálogos, as recusas em falar algo do passado por alguns que tentamos dialogar, etc., são todos
elementos que fazem parte da pesquisa e se revelam dimensões do passado, intencionalidades de
sujeitos, lembranças selecionadas, esquecimentos deliberados e/ou desejos de falar ou de esquecer;
situações essas muito comuns quando se trata de lembrar passados do mundo imigratório, seus
enfrentamentos, ressentimentos, sacrifícios e superações.

261
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A emigração para o Brasil: alguns fragmentos

Toda a região do Oriente Médio, além de possuir uma história milenar,


foi constituída historicamente por múltiplos povos, culturas, línguas, impé-
rios e fronteiras. Sua complexidade nos desafia; são povos que carregam os
amplos e variados horizontes das civilizações orientais, das mesclas culturais,
dos impérios e subjugações de nações que adentraram por todo esse territó-
rio, além, é evidente, dos múltiplos conflitos religiosos e políticos do passado
e do presente (Truzzi, 2005).
Para o caso que nos interessa especificamente, essa região que compõe
a Síria e o Líbano, no período do começo da emigração para o Brasil, por
volta de 1880, era ocupada e dominada pelo Império Turco-Otomano, um
dos últimos impérios da era contemporânea e que foi destituído no final da
Primeira Guerra Mundial. Como já vimos, até a Primeira Guerra Mundial,
o Líbano foi parte integrante da Síria. Em razão disso, os libaneses eram
considerados como sírios; somente em 1926 passaram a ser contabilizados à
parte (Francisco, 2015).

Região da Síria e do Líbano. Fonte:

262
Sírios e libaneses em Passo Fundo
Sírios e libaneses, na segunda metade do século XIX e primeiros 30 anos
do século XX, emigraram para territórios da África, América, Europa, Ásia
Ocidental e Ilhas do Pacífico (Knwolton, 1961). No período entre 1900 e
1914, houve uma grande diáspora da Síria e de onde hoje é o Líbano; acre-
dita-se que em torno de um quarto da população do Líbano tenha emigrado
em direção a vários continentes.
As causas desse processo são múltiplas, variadas e de difícil definição.
O que se pode afirmar é que a falta de terra, posição política e social inferior
dada aos cristãos no Império Otomano, quando não vítimas de opressão,
ofensas e massacres, na hierarquia de causas, essas podem ser consideradas as
centrais. O grupo dos Maronitas (facção religiosa), de maioria cristão, vivia
em aldeias, concentrando-se nas montanhas setentrionais do Líbano e manti-
nha certa autonomia em relação ao controle político do Império e estava sob
a direção leiga e/ou clerical. Na segunda metade do século XIX, os Maroni-
tas se espalharam também para o sul do Líbano e acabaram produzindo um
grande conflito com o grupo dos Drusos (de maioria árabe maometana) que
dominava a região (Campos, 1987).
Em razão dos conflitos religiosos, muitos Drusos migram para a Síria.
Os que ficaram foram discriminados, produzindo uma tensão social e religio-
sa. Com a conivência das autoridades turcas houve uma grande perseguição
e massacre de cristãos, tanto na Síria, quanto no Líbano, principalmente na
década de 1880. A emigração para os Estados Unidos e a Inglaterra se apre-
senta nesse contexto de repressão religiosa. Os Estados Unidos passam a ser
visto como uma terra de esperança de oportunidades, de “inegável riqueza”
(Knwolton, 1961, p. 22). Muitos dos que emigraram eram Maronitas (des-
cendem de um santo eremita denominado de São Maron), portanto, cristãos
da Igreja Oriental, que, além de milenar, não seguem todos os preceitos da
Igreja Católica Romana não obstante reconhecerem a autoridade papal. Des-
se modo, percebem-se causas econômicas, políticas e religiosas, ou as três
juntas se complementavam.
A influência inglesa, francesa e americana na região, após o massacre de
cristãos de 1880, foi, aos poucos, ruindo o sistema de controle político turco
no território dos dois países, atraindo, com isso, a emigração para os três re-
feridos países, em particular para os Estados Unidos.
A influência política e a ocupação francesa após a Primeira Guerra

263
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Mundial na Síria e no Líbano também estão no centro das causas de muita


emigração, pois a população que havia sido oprimida pelo Império Turco-O-
tomano acreditava na sua independência e autonomia política, bem como o
crescimento econômico, porém, essas esperanças foram frustradas e, além do
mais, sentiam-se sob o jugo francês.
Antes mesmo do início da Primeira Guerra havia o serviço obrigatório
aos cristãos e, o rude tratamento dado a eles pelos soldados otomanos, fez
com que muitos emigrassem para fugir do serviço militar (Francisco, 2013).
Além da instabilidade política, da violência em aldeias, da falta de opor-
tunidades econômicas nas cidades, epidemias (em 1975, houve uma grande
epidemia de cólera em Damasco e em outras grandes cidades) debilitaram
ainda mais os países e a esperança de melhorar de vida. Isso tudo, somado à
propaganda de companhias de navegação que fomentavam o desejo de emi-
grar e informavam sobre oportunidades no exterior, a facilidade em ganhar
dinheiro, principalmente como mascate, incutiu o desejo de emigração. As
empresas articulavam possibilidades de empréstimo financeiro para a aquisi-
ção de bilhetes para as viagens (Truzzi, 1999; Knowlton, 1961).
Os portos da Alexandria, Marselha, Gênova, dentre outros, eram utili-
zados para o translado. Da chegada ao porto até o embarque final poderia
levar mais de um mês devido à necessidade de completar um contingente
necessário para a partida, tendo os viajantes que viver em hotéis, pensões,
etc., por isso que, em cidades portuárias mediterrâneas, desenvolveu-se um
grande comércio, pequenas vilas e colônias de sírios e libaneses; muitos eram
funcionários das companhias de navegação, outros desenvolveram atividades
de mascates, pessoas que abriam pequenos negócios (Knowlton, 1961). As
companhias de navegação vendiam bilhetes e depois obrigavam a trocá-los
por outro mais barato. Nesse sentido, havia mudança de rumo e de condições
de viagem. A emigração para o Brasil e a Argentina deu-se muito em razão
disso. Em 1889, em torno de 25 mil sírios emigraram para a América do Nor-
te ou do Sul (Knowlton, 1961, p. 29).
Esse processo de desvio de rota deu-se muito em razão de que começou
a haver restrições dos Estados Unidos por considerar os sírios e libaneses, em
grande parte, analfabetos e com deficiências pessoais, não muito diferente do
que foi feito com italianos e outras nacionalidades no período. Isso tornou
a opção para o Brasil uma realidade, pois não havia grandes barreiras, ao

264
Sírios e libaneses em Passo Fundo
contrário, havia uma política que demandava imigrantes para suprir lacunas
no âmbito econômico e territorial. Muitos sírios e libaneses desembarcavam
em Santos ou no Rio de Janeiro acreditando estarem nos Estados Unidos
(Truzzi, 1992).

Em território brasileiro

Os dados são imprecisos, muitos entravam como turcos; não havia uma
definição clara na legislação brasileira do que seria imigrante ou estrangei-
ro em viagem com intenção de retorno imediato ou de permanência longa,
como era o caso dos sírios, libaneses, palestinos, dentre outros da referida
região.
Sírios e libaneses que emigraram para o Brasil, principalmente no final
do século XIX, possuíam origem agrícola e de pastoreio, porém, no país de
destino adentraram muito pouco para essa atividade produtiva (Francisco,
2013).
A aquisição monetária da terra, o latifúndio, a monocultura, a carência
de recursos, dentre outros aspectos, inviabilizaram a reprodução das ativida-
des produtivas no novo espaço. Porém, não significa, também, que tenham,
inevitavelmente, engrossado as fileiras do operariado urbano (Truzzi, 1992).
Na realidade, não se enquadraram em nenhum desses dois universos, nem
mesmo na determinação da configuração da política imigratória do país no
período.
É necessário apenas mencionar que entre a segunda metade do século
XIX e os primeiros anos do século XX, a questão migratória no Brasil era
efervescente. Havia muitas discussões e propostas; o cenário pós-abolicionis-
ta, a industrialização de São Paulo, o regime de colonato nas fazendas de
café, a ocupação territorial do Sul do país, dentre outros aspectos davam a
pauta política da imigração.
A vinda para o Brasil não obedeceu a nenhuma política pública ou al-
gum acordo estatal; foi uma emigração não oficial, espontânea, sem auxílio
ou acolhimento público, foi por iniciativa própria (Francisco, 2013). Não ha-
via grandes empecilhos para emigrar para o Brasil como em outros países.

265
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Oficialmente, a imigração de sírios e libaneses deu-se em 1880, quatro anos


após a visita do Imperador D. Pedro II ao Líbano (Truzzi, 1997). Segundo
Knowlton (1961), ambos os grupos foram incluídos numa única categoria
pelo governo brasileiro “até 1926, ano em que o Líbano se separou da Síria”.
Segundo o autor, até 1908, todos os imigrantes do Império Otomano eram
identificados no Brasil como ‘turco-árabes’. Daí, segue o autor afirmando a
dificuldade de obter dados confiáveis sobre o número de sírios ou libaneses
que emigraram ao Brasil. Não podemos esquecer também que mesmo no
curto tempo do mandato francês na Síria, o Líbano era considerado uma
parte da Síria, por isso, libaneses podem ter sido classificados como sírios,
em outros momentos como turcos e, na realidade, eram sírios e/ou libaneses.
Desse modo, percebe-se a complexidade da definição, bem como da identifi-
cação identitária.
Autores identificam algumas periodizações de maior intensidade da
emigração sírio-libanesa para o Brasil. A primeira estaria entre os anos de
1895 a 1914, a segunda por volta de 1920, e a terceira, pós 1945. Os dados
apontam em torno de 57 mil entre 1895 e 1914, 2.693 entre 1914-19 e 43.210
entre 1920 a 1930, totalizando em torno de 100 mil (Almeida, 2000). No
Censo de 1920, havia 50.337 sírios e libaneses residentes no Brasil, a maioria
deles, em torno de 19 mil em São Paulo, 9 mil no estado do Rio de Janeiro e
próximo de 8 mil em Minas Gerais (Knowlton, 1961).
Segundo a literatura revisada, a grande maioria dos sírios e libaneses que
chegava ao Brasil era de cristãos, sobretudo homens jovens e solteiros, emi-
grados de pequenas aldeias de característica rural e pastoril, de base familiar.
Saíam de sua aldeia e se deslocavam aos portos do Mediterrâneo (Alexan-
dria, Gênova e Marselha) para chegar aos portos de Santos e Rio de Janeiro.
Como já mencionamos, a maioria que emigrou era de solteiros, sendo
que casaram como imigrantes; de 1908 até 1941, os dados registram a en-
trada de 17.606 sírios, 11.535 homens e 6.071 mulheres; os libaneses foram
3.434, desses, 2.154 homens e 1.280 mulheres.4 Dos libaneses emigrados nes-
se período, 67% eram solteiros; entre os sírios, 60,4 eram solteiros;5 entre os
dois grupos, em torno de 65% eram católicos romanos. Pelo Censo de 1940,

4 
Dados do Boletim do Serviço de Imigração e Colonização, Secretaria da Agricultura, Indústria e
Comércio. São Paulo. n. 2, 1941, p. 34.
5
  Idem, p. 40.

266
Sírios e libaneses em Passo Fundo
os sírios e libaneses do sexo masculino eram de 27.689, as mulheres eram de
18.097 (Cortes, 1958, p. 72).

Quadro 1 - Distribuição da população síria e libanesa:


principais estados receptores

Estado 1920 1940


São Paulo 19.285 23.948
Minas Gerais 8.684 5.902
Distrito Federal/RJ 7.321 9.051
Rio Grande do Sul 2.565 1.903
Paraná 1.625 1.576
Pará 1460 848
Mato Grosso 1232 1.066
Bahia 1206 947
Fonte: Pimentel, 1986, p. 56.

Dinamismos e diferenciações foram se constituindo nas primeiras déca-


das do século XX em razão da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, bem
como dos processos concorrenciais entre si e com os nacionais, com a vinda
de famílias e com as possibilidades de abrir frentes comerciais para o interior
dos estados.
No ano de 1930, registram-se restrições às políticas imigratórias. A crise
econômica, a esfera política e seus conflitos nos primeiros anos do governo
Vargas fizeram com que houvesse um sistema de quotas de entrada de imi-
grantes no país (Pimentel, 1986). Com a Segunda Guerra Mundial, os núme-
ros demonstraram serem reduzidos (Nunes, 1986).

Uma imigração de comerciantes

Ainda que nem todos tenham tornado-se comerciantes, não há dúvida


de que, quando se fala em sírios e libaneses, a dimensão comercial se faz

267
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

sentir. O comércio no meio urbano e estendido ao meio rural foi sua marca
registrada.
Mascates (vendedores ambulantes de ruas e de casa em casa), comer-
ciantes estabelecidos e pequenos industriais (esses, últimos com menos ex-
pressão) configuraram esse grupo étnico no país nas primeiras décadas de
sua imigração, primeiramente nos grandes centros urbanos (SP e RJ), pos-
teriormente, migrando para cidades menores (Truzzi, 1992). O meio rural
não ficou despercebido e nem desatendido pelos sírios e libaneses; eram os
famosos mascates que vendiam produtos (vestimentas, calçados, chapéus, ar-
marinhos, ferramentas, bijuterias, tecidos, rendas, bordados, etc.).
No final do século XIX e primeiras décadas do século XX, grande par-
te da população brasileira residia no meio rural. Esse espaço tornava-se de
grande expressão para os vendedores ambulantes. Mercados locais, interliga-
ções regionais, ocupações territoriais, dinamismos de trocas comerciais, es-
tratégias de construções de mercados informais foram sendo dinamizadas em
múltiplos espaços do país por esses grupos nacionais e étnicos (Nunes, 1986).
Eles foram ganhando essa representação no mundo dos negócios informais,
diretos e acordados entre comerciantes e consumidores; deslocavam-se com
cavalos, mulas, carroças e, posteriormente, com automóveis; acompanhavam
o dinamismo dos transportes e as inovações, a quantidade de mercadorias
ofertadas e demandadas (Francisco. 2013).
A indústria e comércio têxtil de São Paulo, nas primeiras décadas do
século XX, a chamada “era dourada” da fabricação de tecidos, possuía a
marca dos sírios e libaneses (Truzzi, 1992). Redes formais e informais foram
se constituindo entre parentes, familiares, vínculos religiosos, locais de proce-
dência e entre ofertadores e consumidores. Isso tudo favoreceu para viabilizar
o processo migratório e dar sustentação aos imigrantes recém-chegados.
A vida econômico-mercantil de mascates foi favorecida pela malha fer-
roviária do Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente para chegar em ci-
dades do interior dos estados. Porém, foi no lombo de mulas que muitos
deles ganharam notoriedade e identificação, no interior das fazendas de café
e cana de açúcar. Segundo Truzzi, esse processo aproximava mais os colonos
e trabalhadores em geral das usinas e fazendas, pois diminuía a dependência
desses em relação aos fazendeiros. “Eram bem recebidos pelos colonos; esses

268
Sírios e libaneses em Passo Fundo
preferiam negociar com eles; além dos preços, as formas de pagamento eram
mais favoráveis” (Truzzi, 1999, p. 320).

Na Síria, relatórios de missões presbiterianas notaram que ao longo


da última década do século XIX, a febre imigratória chegou a tornar-se
uma mania [...] Um analfabeto vai para a América e no curso de seis
meses manda um cheque de $300 ou $400 dólares, mais do que o
salário de um professor ou de um pastor em mais de dois anos [...].
Quase tudo é usado para pagar velhas dívidas, hipotecas, e para levar
outros imigrantes além- mar. Dos relatos dos imigrantes só se ouvem
louvores irrestritos à América (Knowlton, apud Truzzi, 1999, p. 289).

Nesse sentido, a constituição de complexos industriais e mercantis têx-


teis das primeiras décadas do século XX deve muito a esses imigrantes em-
preendedores. Segundo Lesser (1999), os imigrantes do Oriente Médio no
Brasil, no final da década de 1960, representavam cerca de 3% da população,
dentre eles com maior número os sírios e libaneses.

Mascate sírio-libanês no final do


século XIX, em São Paulo. Fonte:
Marc Ferrez.

269
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Sua presença em Passo Fundo

Em 1940, o estado do Rio Grande do Sul configurava em quarto lugar


na imigração de sírios e libaneses (Francisco, 2013). Muitos desses imigrantes
sírios seguiram os passos de outros do período, ou seja, adentraram via porto
de Santos e Rio de Janeiro e chegavam ao estado em embarcações da costa
brasileira até Porto Alegre, bem como provenientes da Argentina e Uruguai.
As cidades de Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, Passo Fundo, Rio Gran-
de, Erechim, São Borja, dentre outras, receberam muitos imigrantes (Kemel,
2000; Francisco, 2013).
É interessante enfatizar que foram registrados árabes no Rio Grande
do Sul ainda por volta de 1860, a maioria era sírio-libanês e alguns palesti-
nos. Entre 1870 a 1890, houve certo aumento principalmente na fronteira
rio-grandense, nas cidades de Livramento e Rivera, Quaraí, Bagé, Artigas e
Chuí (Kemel, 2000).

Com acesso aos quatro cantos do Estado, não é estranho, portanto,


que os sírios e os libaneses se encontrem disseminados por todo o
Rio Grande do Sul. Embora algumas localidades se tenham tornado
grandes redutos desses imigrantes, entre elas, Pelotas, Alegrete, Santa
Maria, Cachoeira do Sul, Bagé, Passo Fundo, Rio Grande, Caxias,
Erechim, São Gabriel e São Borja, além de Porto Alegre. Acrescente-
-se ainda, que além da cidade de Rio Grande no interior do Estado,
especialmente no trecho que vai de Capão da Canoa até São José
do Norte, existem entre os moradores, um grande grupo de sírios e
libaneses inteiramente integrados à vida rural gaúcha (Kemel, 2000,
p. 34).

Os mascates marcaram presença no Estado. Eles, além de mercadorias,


levavam notícias da capital para as pequenas cidades e povoados do meio
rural do interior do estado, com a mala e/ou bruaca cheia de mercadorias,
muitas vezes em espaços em que os moradores não tinham acesso à notícias
nem sabiam ler e escrever.

270
Sírios e libaneses em Passo Fundo
Em Passo Fundo, os sírios e
libaneses, na sua grande maioria,
situaram-se na parte central da
cidade, na Avenida Brasil entre
a 7 de Setembro e a rua Fagun-
des dos Reis, bem como nas ruas
Gen. Netto e Osório, assim como
na parte central da Rua Moron.
É interessante enfatizar que
houve muita migração regional
Mula carregando bruacas utilizadas na desses grupos sociais, assim como
região sul por tropeiros e mascates. o município absorveu migrantes
Fonte: https://goo.gl/srsGQ4
que se deslocaram de outras regi-
ões. Pelas entrevistas, há constantemente referência à Lagoa Vermelha, Pal-
meira das Missões, Soledade e Erechim como espaços de grande circulação
regional entre sírios e libaneses.
Entrevistados afirmam ter havido uma grande cooperação entre os imi-
grantes; isso era fundamental para dinamizar o comércio, do atacado ao con-
sumidor. O mascate, por exemplo, batia nas casas, vendia diretamente para a
dona de casa, em prestação. Essa estratégia mercantil lhe garantia a possibi-
lidade de retornar novamente e vender ainda mais, aumentando, com isso, a
rede de clientela e o volume transacionado. As vendas entre o atacado e o co-
merciante, em geral, davam-se com pagamentos em prestações, fato esse que
criava uma rede de confiança, movimentação de dinheiro entre comerciantes
e consumidores (Francisco, 2013; Morales, 2001).
Imigrantes cristãos identificavam-se com mais facilidade ao ocidente;
muitos passaram pelo período de domínio da França logo após a Primeira
Guerra Mundial. Nesse sentido, muitos dos imigrantes sabiam falar francês
e inglês antes de emigrar; isso auxiliou em alguns âmbitos nas comunicações
da viagem e dos primeiros tempos nos cenários de destinos. Tivemos vários
interlocutores que manifestaram isso de seus antepassados imigrantes.
Os conflitos políticos, de fronteiras, de religião e etnia, presentes no país
de origem, fizeram com que muitos esquecessem os problemas de lá. Muitos
aportuguesaram o nome e se integraram na sociedade brasileira. A prosperi-
dade nos negócio ajudou muito nesse sentido, bem como fez superar o estig-

271
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ma de serem chamados de turcos, bem como superaram diferenças religiosas,


pertencimentos étnicos e convicções políticas (Morales, 2001).
Segundo entrevistados, as famílias eram muito unidas, o sistema patriar-
cal passado entre gerações era central. As famílias eram extensas, de con-
jugalidade e de parentesco, ou seja, constituídas por netos, genros, filhos e
noras, tios/tias, primos/primas, em geral, vivendo na mesma casa e/ou pro-
priedade. A intenção era de que pudessem permanecer próximos e permitir
o funcionamento da estrutura patriarcal (Francisco, 2013). Além disso, o ca-
samento entre parentes (primos) era muito comum. Um dos entrevistados
informou que seu pai determinou o casamento da maioria de seus irmãos,
alguns deles efetivados entre primos. Esse processo fortalecia elementos da
tradição, as redes de relações sociais, maior harmonia do grupo, isso tornava
a propriedade indivisível e ampliava o núcleo familiar no trabalho.
A realidade migratória dos pioneiros talvez tenha fortalecido esse pro-
cesso em razão das limitações da vida de imigrante no Brasil (língua, costu-
mes, tradições, pré-conceitos, condições financeiras, etc.), assim como, com
o passar dos anos, possa ter sido afrouxada em razão justamente de uma
maior integração social e de casamentos mistos. Esses últimos foram de gran-
de expressão entre nossos interlocutores. O argumento é que havia poucas
moças conterrâneas. Os dados que apresentamos anteriormente atestam isso.
Porém, também, foi uma estratégia de integração social e econômica na so-
ciedade de destino. A dimensão maior dos casamentos mistos deu-se entre o
imigrante estrangeiro e mulheres brasileiras.
Na família, a memória étnica é mais fortalecida pela sua ritualidade
cotidiana. O mundo religioso era muito intenso em seu cotidiano. Como
imigrante, essa é uma dimensão por demais importante; era um horizonte
que galvanizava relações grupais, amenizava o sentimento da distância e da
ausência. Muitos imigrantes não conseguiram manter-se fiel ao seu grupo re-
ligioso em razão da ausência de rituais, de mediadores religiosos e de espaços
adequados (Knowlton, 1961).
A grande maioria dos imigrantes integrou-se no campo religioso cató-
lico romano. Não encontramos nenhum dos nossos interlocutores em Passo
Fundo que tenha sido muçulmano ou que tenha permanecido fiel ao seu
grupo religioso.
Segundo relatos obtidos, não havia em Passo Fundo um espaço religioso

272
Sírios e libaneses em Passo Fundo
específico para os sírios e libaneses. A igreja é um horizonte importante na
vida dos imigrantes, pois permite desenvolver rituais, cerimônias em árabe,
matar a saudade da pátria, fornecer ligação com sua terra natal e fazer os
imigrantes lembrarem de sua cultura e modo de vida, de sua gente, encontrar
amigos para conversar, jogar, etc. (Knowlton, 1961, p. 176).
Entendemos que, grupos de imigrantes, com características étnicas, ten-
dem a recriar seus espaços para a socialização, lazer e expressão cultural,
demarcar território e se fazer sentir publicamente. Sírios e libaneses buscaram
a socialização comunitária através de clubes. Nesse horizonte, os agrupamen-
tos se encontram, trocam informações, ritualizam seus costumes e crenças,
vivem a nostalgia no âmbito coletivo, expressa na gastronomia, nas danças,
nas canções, nos rituais festivos, etc.
Em razão de suas atividades comerciais, esses imigrantes desenvolveram
uma ampla economia em rede, a qual envolvia a oferta das mercadorias, os
comerciantes, os consumidores, as dinâmicas de vendas em prestação, bem
como a busca de novos imigrantes (familiares, primos, conhecidos) para dar
continuidade ao trabalho, ampliar negócios, repor mão de obra, interligar
com mais estreiteza os três países. Um dos entrevistados disse que chegou em
Passo Fundo porque seu tio o mandou chamar para auxiliar no negócio. Ele
disse que emigrou com 25 anos e que já chegou com o trabalho assegurado
na loja do seu tio.
O trabalho como mascate e, posteriormente, em seu estabelecimento
comercial, afastava qualquer possibilidade de sírios e libaneses adentrarem
com intensidade na fileira dos operários industriais e trabalhadores agrícolas.
Eles andavam pelo interior das fazendas pastoris no Rio Grande do Sul, bem
como nos espaços da pequena propriedade familiar rural e viam a precarieda-
de de vida dos trabalhadores das estâncias e da agricultura familiar. Isso eles
não queriam para eles. A necessidade do dinheiro era satisfeita pelas vendas
no comércio (Francisco, 2013). A vida de mascate não requeria tanto capi-
tal inicial, pois compravam a crédito e o escoamento era rápido e lucrativo
(Knowlton, 1961).
Muitos mascates em Passo Fundo, nas primeiras décadas do século XX,
concorriam com italianos (em geral, do Sul da Itália, em particular, calabre-
ses e sicilianos) e portugueses; transacionavam mercadorias por mercadorias,

273
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ou seja, suas confecções e armarinhos6 por produtos agrícolas; concediam


créditos; distanciavam-se dos bancos e apostavam nas negociações com seus
atacadistas. Dessas negociações, surgiam as múltiplas vantagens que os mas-
cates ofereciam para seus clientes. Mulas e cavalos carregavam malas dos
mascates, mas, em geral, deslocavam-se com caronas (aproveitando para ob-
ter informações sobre moradores, etc.) e a pé; com o tempo, mais de uma
dezena conseguiu abrir lojas em Passo Fundo.
Como nos diz Knwolton (1961, p. 154),

“Sírios e libaneses, estimulados pela pobreza e ambição, trabalha-


vam duramente, viveram frugalmente, e empregaram seus ganhos na
expansão dos seus negócios. [...]. Eram astuciosos e não hesitavam
diante de qualquer método para expelir competidores e alargar seus
mercados”.

Muitos imigrantes eram auxiliados pelos parentes que lhes emprestavam


dinheiro e cuidavam das famílias que ficaram. Isso permitia que o emigrado
mantivesse contatos, obrigações, dádivas, enviasse dinheiro e informações e,
quando possível, pudesse convidar mais alguém para emigrar. Redes formais
e informais, parentais e regionais foram se desenvolvendo e a imigração se
consolidando.

A Sociedade Sírio-Libanesa de Passo Fundo

Nesse horizonte das redes, agregações, vínculos e pertencimentos de


grupos, em 1929, constituiu-se a “Sociedade Beneficente Sírio-libaneza de
Passo Fundo”. Essa entidade objetivava agregar o referido grupo de imigran-
tes e descendentes. Não muito diferente de outras associações étnicas, ela
integrava os grupos, permitia momentos de lazer, de troca de informações e
expressões culturais, bem como demarcava o território étnico na cidade de
Passo Fundo.

6
  Armarinhos referem-se a agulhas, alfinetes, linhas, lã, pentes, botões, bordados... Um dos entrevis-
tados disse que eram “miudezas para as casas e as costureiras”.

274
Sírios e libaneses em Passo Fundo

Fragmento de uma correspondência endereçada a Sra. Syria Seade, na qual vê-se a


indicação da Sociedade Beneficente Sírio-Libanesa de Passo Fundo. Fonte: gentil-
mente cedida pelo Sr. Aniello D´Arienzo.

A política varguista, sem sombra de dúvida, recrudesceu o caráter políti-


co dos agrupamentos associativos, em particular, os que atuavam em grandes
centros urbanos e com canais de divulgação (revistas e jornais); porém, não
significa que tenham sido todos extintos e nem por completo; estratégias,
redimensionamentos de práticas e de abordagens identificadoras, alterações
do contexto histórico brasileiro (dentre elas, industrialização, urbanização,
desenvolvimentismo, integrações regionais, etc.) vão também permitir alte-
rações no quadro associativo dos grupos étnicos no Brasil. Os contextos e
intencionalidades dos grupos desenvolvem e/ou induzem maneiras diferen-
tes de construir os traços que definem os grupos. Elementos econômicos,
políticos, sociais e das relações interétnicas conformam o sentido histórico e
as funções sociais às categorias étnicas, adaptando-as às novas circunstâncias
e processos históricos. Porém, no caso da Sociedade Sírio-Libanesa de Passo
Fundo, a política varguista de 1937/8, acreditamos, acabou influenciando
o fechamento da referida entidade. Novas formas de expressão cultural dos

275
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

grupos em questão foram manifestadas, porém, não mais de uma forma as-
sociativa de expressão pública de pertencimento.
Reconhecemos que obtivemos pou-
cas informações sobre a referida entida-
de. Tentamos de várias formas, conver-
sarmos com inúmeras pessoas que entre-
vistamos e as respostas foram sempre no
sentido de que pouco sabiam, não sabem
com quem ficou as atas, documentos,
ilustrações, etc. O que se sabe é que du-
rou pouco. Porém, não conseguimos ir
além de alguns fragmentos de lembran-
ças de entrevistados, inclusive, a própria
localização permanece controversa. Na
narrativa de Linda Dipp Estacia, “[...], o
pessoal foi desistindo, acho que por pres-
são de alguma coisa; só sei que não du-
rou muito”. Segundo ela, “eu era crian-
ça, não lembro bem, mas sei que o ter- Retrato de Syria Seady, partici-
reno foi cedido pelo Sr. José Zacharias”. pante da Sociedade Sírio-libanesa,
filha de Emilio Seady e mãe do Sr.
Segundo conversa que obtivemos com o Aniello D’Arienzo. Fonte: Album
Sr. Aniello D´Arienzo7, ele disse que foi do Município de Passo Fundo. Pas-
sua mãe Syria Seady que fez e desenhou so Fundo: Tipografia do Jornal “A
a bandeira; “quem fundou a Sociedade Luta”, 1931, p. 48.
foram os tios do Joseph Estacia, eu lembro só do nome do Miguel Estacio;
mas meu avô, Emylio Seady participava da Sociedade e também foi funda-
dor”.
Segundo o entrevistado,

“o avô veio para Passo Fundo em 1922, veio de Soledade e casou em


1880 com a avó Constantina. [...]. Na Sociedade dos Sírios e libane-
ses, eles dançavam, faziam saraus, tinha muita atividade social. [...].
Ela deve ter começado por volta de 1930 e durou nem uma década

  Aniello D´Arienzo, 80 anos, filho de Leopoldo D´Arienzo e Syria Seady, neto de Emílio Seady e
7

Constantina Seady, em entrevista direta em sua residência.

276
Sírios e libaneses em Passo Fundo

porque o Vargas acabou com tudo, obrigou a fechar. Acho que foi por
1938. [...]. O meu avô era participante ativo. [...]. A Sociedade ficava
lá na Rua Júlio de Castilhos, atrás do Colégio Protásio Alves, esquina
com a Rua Fagundes dos Reis; era a casa do Zacharias, outro árabe de
muita expressão em Passo Fundo”.

As associações étnicas, em geral, promoviam assistência aos filhos de


seus parceiros co-nacionais, bem como auxiliavam nas necessidades e pre-
mências dos novos imigrantes. Porém, geralmente, era um espaço que demar-
cava o grupo, produzia rituais de pertencimentos, sejam eles, gastronômicos,
linguísticos, de solidariedade grupal, de jogos, saraus, etc.; sem dúvida, tam-
bém, era um espaço de visibilidade pública de alguns membros mais desta-
cados dos agrupamentos, em particular, no campo econômico, bem como de
possibilidade de encontros afetivos, resultando em possíveis acordos matri-
moniais.

Alguns fragmentos de entrevistas:

As famílias Estacia e Dipp

Segundo entrevista
com Joseph Estacia, seu
tio avô foi quem emigrou
primeiro da família, saiu
do Líbano em mais ou
menos 1898, da cidade
de Ehden. Ele deslo-
cou-se direto para Passo
Fundo e se estabeleceu
nas proximidades onde
depois ficou conhecido o
Joseph Boulos Estacia, 92 anos, e sua esposa, Linda
Bar Oriente, na Rua Mo- Dipp Estacia, 84 anos. Fonte: pesquisa de campo.
ron. Ele emigrou devido

277
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

às questões de repressão religiosa do período em relação aos católicos; come-


çou como mascate, em geral de tecidos, armarinhos; diz ele que “não havia
confecções na época”.

“[...]. O meu avô também se chamava Joseph Estacia; chegou em 1914


e ficou até 1918. Veio para visitar o irmão. Com o fim da guerra, ele
retornou ao Líbano. O tio avô mandou chamar alguns sobrinhos e,
nessa, eu embarquei. Eu vim para Passo Fundo, outros foram para
Palmeira das Missões. Isso foi em 1951, com 25 anos. Eu vim para tra-
balhar no comércio do tio Pedro. Em 1956, conheci a Linda, minha
atual esposa e fixei residência onde estou até hoje, na esquina das ruas
Gal. Neto com Gal. Osório”.8

A esposa de Joseph, Linda Dipp Estacia, narra que seu pai veio bem
jovem, com 18 ou 20 anos; foi primeiramente para Soledade, onde lá havia
alguns primos já emigrados. Ele mascateou no início e, posteriormente, em
1919, migrou para Passo Fundo e comprou terreno amplo entre as esquinas
das ruas Gal. Neto com Gal. Osório (onde residem atualmente). Nesse espa-
ço, abriu uma loja e, segundo a entrevistada, prosperou.

“[...]; a comunidade Sírio-Libanesa


de Passo Fundo sempre viveu muito
unida, sempre integrada na socieda-
de; tinha uns que nos ofendiam e nos
chamavam de turcos, mas nós já estáva-
mos habituados e sabíamos que eram
gente que não conheciam a História.
[...]. Casava-se muito entre imigrantes
e outras nacionalidades. A gente pros-
perou assim em Passo Fundo”.

O Sr. Antônio Elias Dipp, sua esposa,


Maria e a filha, Linda.
  Entrevista com Joseph Boulos Estacia, 92 anos.
8

278
Sírios e libaneses em Passo Fundo
Por volta de 1928, Antônio Elias Dipp abriu em Passo Fundo sua “Casa
de Negócios”, porém, em 1939, alugou-a. Em 1957, Joseph Boulos Estacia,
logo após casar com Linda Dipp, seguiu o ramo lojista e fundou sua loja, a
“Casa São José”.

Casa de comércio de Joseph Estacia em Passo Fundo, na


esquina da Gal. Neto com a Gal. Osório.

Joseph Estacia no interior de sua loja em Passo Fundo.


Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E. Comércio, século XX –
Passo Fundo. Passo Fundo: Sincomércio, 2002.

O casal de interlocutores fala de suas trajetórias migratórias familiares,


das redes que foram se constituindo, da vida de mascate, dos vínculos fami-
liares, do fato de, com o tempo, terem se estabelecido com comércio em lugar
fixo e criado os filhos e prosperado com o comércio.

279
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Documento de entrada de Joseph


Estacia ao Brasil em 1951.

Família de Isa Dipp

Segundo a Sra. Lúcia Dipp Salton,


em entrevista, amigos sírios de Isa Dipp
emigraram para o Brasil, em particular,
para Passo Fundo, por volta de 1880.
Ela acredita que vieram enganados, pois
pretendiam ir aos Estados Unidos. “Sa-
íram fugindo do desemprego, da fome
e da falta de perspectivas econômicas”.
Seus amigos começaram a vida econô-
mica como mascates, de porta em porta.
Com dinheiro juntado, a possibilidade
de realizar o sonho de montar uma pe-
quena loja de confecções e de tecidos,
poder-se-ia tornar realidade.
O Sr. Isa Dipp, a convite de seus
Moisés Dipp (terno preto) e seu ir-
amigos e um irmão, Moisés Dipp e es-
mão Isa Dipp; a senhora do meio é a
posa, os quais haviam emigrado antes, filha de Moisés e as duas outras de
vendo a possibilidade de realização do Isa Dipp. Fonte: foto gentilmente
sonho deles se concretizar, resolveu cedida por Lúcia Salton.

280
Sírios e libaneses em Passo Fundo
também pegar o rumo para o Brasil e di-
recionar-se para Passo Fundo. Isa emigrou
em 1904 logo após ter casado com Salima
Elias Dipp. Tanto Isa, quanto seu irmão
Moisés e seus amigos do lugar de origem
que haviam emigrado antes atuaram pri-
meiramente como mascates. Suas saídas de
casa para vender produtos poderiam durar
até um mês; iam até o atual distrito de Bela
Vista, carregando bruacas nas mulas, le-
vando tecidos, miudezas, perfumarias, etc.
Segundo Lúcia, Moisés Dipp, logo viu que
precisavam de mais mulas cargueiras, pois
o negócio progredia. Diz ela que eles para-
vam nas fazendas, dormiam em galpões e Salima Elias Dipp, esposa de Isa
Dipp. Fonte: foto gentilmente
eram bem recebidos pela população rural, cedida por Lúcia Dipp Salton.
a qual queria ver as novidades; “a chegada
dos mascates era motivo de festa”.
Em 1914, dez anos depois do casa-
mento, Isa foi buscar a esposa Salima na
Síria. “Era assim o costume por lá”. Em
1915, nascia o filho Daniel. Isa continuou
mascateando até 1924 quando, então, co-
locou uma pequena loja de secos e molha-
dos, uma espécie de bodega que era aten-
dida pela família, onde hoje é a Av. Brasil,
ao lado da Galeria Central; era conhecida
como a “Casa Dipp”.

Amigos sírios de Isa e Moisés


Dipp que haviam emigrado para
Passo Fundo alguns anos antes
deles. Fonte: foto gentilmente
cedida por Lúcia Dipp Salton.

281
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Localização da “Casa Dipp” na Av. Brasil. Fonte: foto gentilmente cedida por Lúcia
Dipp Salton.

Em 1920, nascia Maria Sú-


ria Dipp, em 1921, Jamília e, em
1925, Jecy; segundo a interlo-
cutora, ambas não tiveram cer-
tidão de nascimento, só foram
tê-la anos depois de nascidas.
Os filhos também exerciam uma
espécie de atividade de masca-
te, pois “saíam de casa em casa
pedindo o que necessitavam,
anotavam em cadernetas e eram
por eles entregues nas referidas
casas”. A confiança, a freguesia, Documento de Salvo Conduto de Isa Dipp,
em 1942. Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E.
a venda “fiado”, tudo isso fazia Comércio, século XX – Passo Fundo. Passo Fun-
parte do cotidiano da vida de Isa do: Sincomércio, 2002, p. 192.
em seu comércio. O armazém
durou até meados da década de 1930, transformando-se num mercado de fru-
tas, bem menor, pois, segundo Lúcia Dipp Salton, o dinheiro ganho na loja
não era reinvestido no estabelecimento comercial e, sim, na educação dos
quatro filhos. A interlocutora enfatiza o grande investimento que Isa fez na
educação dos filhos. O filho Daniel formou-se em Direito em Porto Alegre,

282
Sírios e libaneses em Passo Fundo
“muitas vezes pegando carona para chegar ao destino em razão da carência
financeira”.

Casal Daniel Dipp e seus fi-


lhos. Fonte: HEXSEL, C. A.;
GÁRATE, H. E. Comércio,
século XX – Passo Fundo.
Passo Fundo: Sincomércio,
2002, p. 190.

A família Dipp teve um grande papel na esfera política local, estadual e


federal. Daniel foi eleito Vice-Prefeito na chapa de Armando Annes em 1947,
deputado estadual em 1950; em 1951, foi eleito prefeito e, posteriormente,
por duas vezes, deputado federal. A sequência da dimensão política da fa-
mília foi dada pelo Sr. Airton Dipp em anos mais recentes. As filhas, Súria,
Jamília e Jecy formaram-se no Magistério, especializaram-se e atuaram nessa
área. A Jamília casou com Nilo Salton. No último dia do ano de 1956, Isa
Dipp faleceu com 80 anos e, sua esposa Salima, em 21 de julho de 1961.
Nesses fragmentos históricos e biográficos da família e alguns descen-
dentes de Isa Dipp percebe-se algo muito em evidência na imigração sírio e
libanesa para o Brasil e, em particular, para Passo Fundo, tais como as redes
de conhecidos e familiares na viabilização do ato emigratório, as atividades
de mascate e o salto progressivo para os estabelecimentos comerciais, a di-
mensão do sacríficio e dos limites dos primeiros anos, o grande investimento
e aposta na educação dos filhos como forma de ascensão e mobilidade social,
o legado do trabalho, da parcimônia, o desejo de progredir, a emigração de
homens e, posteriomente, de outros membros da família, em particular, espo-
sas. A família Dipp marcou presença na esfera política em Passo Fundo, no
estado e no país, bem como destacou-se no campo jurídico e no magistério.

283
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Sra. Lúcia Dipp Salton


sentada sobre o baú
que, segundo ela, era de
Isa Dipp. Fonte: pesquisa
de campo.

Família de César Santos

Não tivemos condições de


entrevistar ninguém da família
do Dr. César Santos, porém,
não podíamos deixar de reali-
zar esse singelo trabalho sobre
sírios e libaneses em Passo Fun-
do sem dedicar algumas linhas
sobre esse cidadão que marcou
presença no município e região
em várias esferas. Muitos dos
libaneses que entrevistamos fa-
Família de César Santos, em 1963. Fonte:
ziam referência ao seu compa-
Costamilan, 2005, p. 65.
triota de grande expressão em
múltiplos horizontes da comunidade regional.
Cesar Santos nasceu em 1904; filho do libanês Youssef Antuou Mass
Aide (aportuguesado como João Antônio dos Santos) e Maria dos Santos
Vaz, ela, de Soledade. Era o filho mais velho de uma família de seis. Seu pai
foi comerciante e pecuarista em Soledade. Segundo Costamilan (2005)9, seus

  Algumas das referências que, sinteticamente, colocamos no texto, estão presentes no livro de Sel-
9

ma Costamilan, “César Santos: a trajetória de um pioneiro”. Passo Fundo: UPF Editora, 2005.

284
Sírios e libaneses em Passo Fundo
pais valorizavam e incentiva-
vam o estudo e o propiciaram
aos seus filhos, tanto é que seu
filho César estudou em colégios
de Passo Fundo e Porto Alegre;
cursou duas faculdades simulta-
neamente, farmácia e medicina,
na UFRGS, tendo concluído a
José Antônio dos Santos e sua esposa Maria primeira em 1932 e a segunda
dos Santos Vaz, pais de César Santos. Fonte: em 1933, além de especializa-
Costamilan, 2005, p. 65.
ções em sua área.

César casou com Rosa Maria Sarmen-


to Pereira em 1945; tiveram dois filhos,
Radiá e César. Como médico, destacou-se
no campo clínico, na docência e na pes-
quisa; no campo da política, elegeu-se por
duas vezes deputado (uma vez estadual e
outra federal), foi prefeito de Passo Fundo
de 1969-73, tendo que abreviar o mandato
por problemas de saúde; esteve nas fileiras
de dois partidos, PTB e MDB; no campo
educacional, foi um dos fundadores da Co-
missão Pró-Universidade em 1950, bem
como docente; no âmbito social, participou
de inúmeras ações sociais que conservam
sua marca ainda hoje. César Santos e sua esposa, Rosa.
Fonte: foto famíllia Czamanski,
apud Costamilan, 2005, p. 65.

285
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A família de Abdul Kalil

Segundo informações de Ramadan Kalil, neto de Abdul Kalil, o seu avô


emigrou em 1914, com 18 anos, para o Brasil; era Sírio; quando entrou no
Brasil, alterou o nome para João Kalil. Entrou com passaporte turco. Desem-
barcou no Porto de Santos e foi até Porto Alegre de navio e, lá, encontrou
outros co-nacionais que estavam migrando para Passo Fundo. Ele aproveitou
e migrou junto; “não havia ninguém de conhecido aqui, nenhum parente.
Sabia falar alguma coisa em francês, mas aprendeu logo o português, pois em
Passo Fundo, já no início de sua chegada, começou a mascatear, negociava
cavalos e bebidas”. Casou em 1918, em Passo Fundo, com Morena Canfield
e teve quatro filhos.

“[...]. Ele veio aventurando mesmo, não se sabe porque saiu do país.
O que se sabe é que lá na Síria, a família dele fazia negócios com cava-
los e bebidas; aqui havia muitas fazendas, muita gente que criava cava-
los e era, no período, o grande meio de transporte; então ele otimizou
um saber já existente. [..,]. A sua esposa era costureira. [...]. Com o
tempo, ele montou um comércio de bebidas e de compra e venda de
cavalos, num local fixo, o qual ficava entre as ruas 20 de Setembro e
dos Andradas, no bairro Boqueirão”.

“Ele sempre foi comerciante. [...]”.


Em 1920, incentivou um casal de irmãos
para também emigrarem para o Brasil, po-
rém, nenhum deles veio a Passo Fundo; o
irmão, Nentala, foi para Tapes e montou
uma loja de tecidos e a irmã, Dahlila, casou
com um francês e ficou em Porto Alegre.

Eblen Kalil, um dos filhos de Abdul Kalil. Fonte:


Foto gentilmente cedida por Ramadan Kalil.

286
Sírios e libaneses em Passo Fundo
Abdul morreu em 1935, sua esposa em
1989. Alguns anos antes de morrer, já não havia
mais o negócio de bebidas e de cavalos. Os filhos
buscaram atividades variadas, dentre eles, Eblen
Kalil; esse, aos 18 anos, estabeleceu uma alfaiata-
ria na Av. Brasil, ao lado do Banco do Brasil e lá
seguiu sua atividade.

Anúncio da alfaiataria Luz


e Kalil. Fonte: Indicador de
Passo Fundo - 1950, Arqui-
vo Histórico Regional de
Passo Fundo.

Ramadan Kalil, neto de Abdul e filho de Eblen Kalil.

Família de Nasri Toufic Khoury

Segundo Davi Khoury, seu pai,


Nasri Toufic Khoury, emigrou para o
Brasil e, diretamente para Passo Fundo,
em 1958. Ele era Sírio. Emigrou solteiro
e sozinho. Havia primos, da família Slei-
mann em Passo Fundo e isso favoreceu
sua vinda; aliás, foram eles que o chama-
ram para vir trabalhar de mascate. Esses
primos eram de regiões próximas do
local de origem e que tinham emigrado
uma década antes. Iniciou sua vida em Davi Nasser Khoury, filho de Nasri
Passo Fundo trabalhando como masca- Toufic Khoury.

287
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

te, na venda de confecções e armarinhos.


Ele viajava pela região mascateando, a
pé, de corona, de ônibus, “do jeito que
dava”, diz o interlocutor; pouco de carro.
Viajava com malas, visitava as colônias,
as cidades pequenas da região. Em 1964,
casou com Ivone Franzen. Porém, antes
de casar, no início dos anos 60, abriu uma
loja na Av. Brasil, a Casa Damasco. “Ela
estava localizada na quadra que havia
muitos árabes, um comércio popular”;
o terreno foi adquirido da família Bas-
tos. Diz o entrevistado que entre as ruas
Sr. Nasri Toufic Khoury no interio Fagundes dos Reis e a 15 de Novembro
de sua loja, a “Casa Damasco”. Fon- havia muitos árabes, em geral sírios, liba-
te: foto gentilmente cedida por Ja- neses e palestinos, mas, também, jorda-
mil Khoury. nianos. O interlocutor enfatiza que, por
volta da década de 1960, a prática de mascate acabou e muitos dos árabes se
estabeleceram nessas quadras, que, no período, eram de comércio popular,
confecções e armarinhos.

“[...]. A família, com cinco filhos, atendia e residia no mesmo prédio


adquirido. Era costume assim, residir na parte de baixo ou de cima da
loja; a grande maioria dos lojistas assim o fazia. [...]. Em meados da
década de 1980, grande parte dos árabes, em particular, sírios e alba-
neses migrou para regiões de fronteira, em particular, Foz do Iguaçu e
Uruguaiana, ou foram para países vizinhos; eles venderam em Passo
Fundo e foram embora. Na região de fronteira, o comércio era mais
atraente. Hoje tem poucos em Passo Fundo que descendem desses
pioneiros e que atuam ainda no comércio de seus pais e avós”.

288
Sírios e libaneses em Passo Fundo

Senhor Nasri Khoury


com seu filho Davi ao
colo. Vê-se também
os Srs. Boulos e
Khoury, no interior
da Loja Damasco
em Passo Fundo,
em 1967. Fonte: foto
gentilmente cedida
por Davi Khoury.

Documentos de
imigração do Sr.
Nasri Toufic Khoury,
também, em frente
à sua loja e com seus
filhos. Fonte: foto
gentilmente cedida
por Jamil Khoury.

É importante enfatizar que, tanto no relato de Ramadan, quanto o de


Davi, estão expressas as características dos sírios e libaneses em Passo Fundo.
Ou seja, constituíram redes para viabilizar o processo migratório e as ativida-
des no lugar de destino. Co-nacionais, parentes e conhecidos tornaram-se as
referências para a constituição da vida nos primeiros anos de imigrante em
Passo Fundo.
Todos os entrevistados informaram sobre a realidade de mascates de
seus antepassados e que, com o tempo, estabeleceram-se em locais fixos, bem
como aproveitaram conhecimentos adquiridos antes de emigrar e otimiza-
ram no espaço de destino.
Os interlocutores revelam que o comércio está no sangue dos sírios e li-

289
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

baneses. Davi fez questão de enfatizar que esse éthos cultural advém de muito
tempo, “do período dos fenícios, nós somos seus descendentes”.

Família de Jorge Farah

Em outra entrevista que fizemos com o Sr. Jorge Farah, ele enfatiza a
vida de mascate de seu avô, que veio para o Brasil a convite de um primo que
mascateava na região de Soledade e Lagoa Vermelha. Todos do grupo de
parentes que vieram montaram lojas em cidades da região e em Passo Fun-
do, ainda que essa, como ele diz, foi muito breve, pois “aqui já tinha muita
concorrência.

“Meu avô veio em 1908, com um primo, porque precisava de ajuda.


Seu irmão tava bem nos negócios de mascate; atendia os lados de
Soledade e Lagoa Vermelha. Depois um deles ficou lojista em Lagoa
Vermelha, acho que ainda agora tem loja lá. Dizia meu pai que já se
encontraram com outros sírios no porto de Santos e resolveram todos
vir para Passo Fundo. [...]. Montaram negócio no centro, mas durou
pouco tempo, já tinha muita concorrência em Passo Fundo. [...]. Meu
avô começou negócio aqui como mascate, ia lá pra Erechim e Nonoai,
de mula e bruaca; ficava semanas fora. Depois, ele foi em Chapecó
abrir negócio lá. [...]. Em 1956, meu pai herdou do avô uma lojinha
em Erechim. [...]. Em Chapecó também tinha muito libanês. Em toda
a região, o pessoal chamava de turcos; meu pai ficava muito ofendido.
[...]. Ele ganhou muito dinheiro; [...], manteve a religião católica e
casou com uma brasileira, daí essa coisa de turco foi deixada de lado”.

O entrevistado enfatiza que a língua só foi problema no início, pois “um


ajudava o outro, não tinha essa de um querer ser melhor do que o outro;
quem sofreu mais foram os primeiros, os que vieram depois auxiliavam os
que já estavam então iam aprendendo fácil. [...]. Para vender tinha de con-
versar, convencer”. Ele diz que sua família manteve por muito tempo as tra-
dições libanesas, principalmente na alimentação. “A esfihra nunca faltou em
casa, era a especialidade de minha avó”. Eram todos católicos, porém, antes
de emigrar seu avô pertencia aos Maronitas, católicos orientais. Ele disse

290
Sírios e libaneses em Passo Fundo
que seu pai queria ir para a região de Bento Gonçalves porque lá produzia-se
muita uva e que isso fazia o libanês feliz porque lá no Líbano sempre lidaram
com uva e outras frutas. O problema, diz ele, que daí “tinha de deixar de ser
comerciante para ser agricultor”.10

A Família Buaes

Segundo a entrevista
com Jorge Buaes, ele diz
que seu avô paterno, Mi-
guel Buaes, emigrou de
Beirute, em fins do século
XIX, tendo 25 ou 26 anos.
Nessa primeira viagem,
migrou sozinho. Após es-
tabelecer-se em Passo Fun-
do e atuar no comércio,
mascateando, retornou
ao Líbano e casou lá. Em Ao centro, o casal Miguel e Afif Buaes com seus
pouco tempo, retornou e filhos; da esquerda para a direita: Alice, Itala, Esta-
trouxe sua esposa Afife e o nislau, Emilio, Jorge e Aurélia.
filho primogênito, Jorge. Após residir alguns anos em Passo Fundo, foi para
a Argentina (região de Mendoza), onde a família viveu algum tempo e teve
uma filha, Aurélia, e um filho, Estanislau, esse, seu pai. Após alguns anos,
seus avôs retornaram novamente ao Líbano e tiveram mais três filhos: Itala,
Alice e Emílio. Miguel fez nova viagem ao Brasil e, após algum tempo, em
1915, Afife, sua esposa, emigrou com os seis filhos. A família foi se estabele-
cer em Getúlio Vargas onde residiram por alguns anos e onde seu avô Miguel
exerceu atividade comercial. No final da década de 1920, a família mudou-se
para Passo Fundo. Nessa cidade, Miguel e Afife residiram até o fim de suas
vidas. Miguel faleceu em 1949 e sua esposa Afife em 1962. Seus seis filhos
A entrevista com o Sr. Farah, 72 anos, aconteceu de uma forma aleatória e por mera casuali-
10 

dade, na fila de espera de atendimento em uma agência bancária de Passo Fundo. Não registramos
imagens, pois não havia aparelhos fotográficos nem celular no momento. O referido interlocutor
comprometeu-se em nos enviar umas fotos, mas não o fez.

291
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

constituíram famílias e viveram em algumas cidades do estado, mas a maio-


ria permaneceu em Passo Fundo

“Assim como outros imigrantes, meu avô veio aventurar a vida aqui
porque a situação estava intolerável sob o Império Turco-Otomano
no final do século XIX. Meu avô e três irmãos vieram para o Brasil à
procura de melhores condições de vida. Meu avô Miguel foi o primei-
ro a vir, pois era o mais velho, tinha uns 25 a 26 anos quando veio.
Outros irmãos vieram depois e aqui ficaram com suas famílias. Cesá-
rio que viveu em Getúlio Vargas, José que viveu em Giruá, Felipe em
Porto Alegre e um quarto irmão, Haiquel chegou a vir para o Brasil,
mas não se adaptou e retornou ao Líbano”.11

Segundo o Sr. Jorge Buaes Sobrinho, seus pais, Estanislau e Linda Abuek
Buaes, viveram quase sempre em Passo Fundo; tiveram quatro filhos (There-
sinha, Jorge, Carmem e Luiz Carlos), atuaram no comércio, abriram uma
loja “que vendia de tudo”, a Casa Tufi, onde hoje é a loja Berlanda, ao lado
do Supermercado Grenal, próximo à casa da família do ex-prefeito Airton
Dipp.
Segundo o entrevistado, junto com a
loja, havia uma sorveteria. Seu tio Jorge ti-
nha uma outra loja, “A Libanesa”, onde hoje
é a Farmácia Raia, na esquina da Av. Brasil
com a rua Fagundes dos Reis. A família Bua-
es atuou em vários ramos em Passo Fundo,
com destaque para a advocacia e a docência
nessa área do conhecimento.
Outro libanês, muito mencionado em
nossas entrevistas, é o Sr. Salim Buaes. Ele
teve grande atuação empresarial, na esfera
do direito e da docência junto à Universida-
de de Passo Fundo, tanto na Faculdade de O Sr. Salim Buaes. Fonte: HE-
Direito, quanto nas de Economia e Adminis- XSEL, C. A.; GÁRATE, H. E. Co-
mércio, século XX – Passo Fun-
tração. Casou com Amália Mafessoni e teve do. Passo Fundo: Sincomércio,
2002, p. 22.
  Entrevista com Luiz Carlos Buaes.
11

292
Sírios e libaneses em Passo Fundo
quatro filhos. Faleceu
em Passo Fundo no
ano de 2001, com 94
anos de idade.12

Sr. Jorge Buaes Sobrinho, 77 anos, em momento de


entrevista. Fonte: pesquisa de campo.

Família de Ali Mohamad

Segundo Antar, seu pai, Ali Moha-


mad emigrou sozinho da Jordânia, em
1955. Era casado, mas emigrou sozinho.
Emigrou em razão da existência de um tio
que já vivia em Passo Fundo, Awad Moha-
mad, que havia chegado no final da década
de 1940 e exercia atividade de mascate.
O interlocutor fala que, após idas e
vindas entre o Brasil e a Jordânia, seu pai
trouxe sua esposa e seu filho Antar. Seus
pais residiram em Passo Fundo até 1973 e
retornaram para a Palestina. Porém, seu fi-
lho, Antar, permaneceu e seguiu atividade
de seu pai, o comércio. Primeiramente, as-
sociou-se com seu tio na loja “Samir Maga-
Ali Mohamad. Fonte: foto gentil-
zine” (hoje atual Casa São Paulo). Em mente cedida por seu filho Antar
Mohamad.
  Informações obtidas do livro de SEVERO, F, B.; MENDES, J, dos S. Passo Fundo: o passo das ruas.
12

Passo Fundo: Méritos, 2011.

293
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

1972, abriu uma loja, “Casa Nova”, e se-


guiu no comércio de confecções até hoje.
Seus pais morreram na Palestina, ela em
2002 e ele em 2006.

Antar Mohamad e seus filhos, Nas-


ser e Nadia (essa, em seu colo). Ao
fundo vê-se a loja “Casa Nova”, de
sua família, na Av. Brasil, ao lado
da Sorveteria Padilha.
Antar Ali Mohamad no interior de sua atual
loja em Passo Fundo, na Sete de Setembro.
Fonte: pesquisa de campo.

Família de Thadeu Annoni Nedeff

Thadeu Nedeff nasceu em 1920, filho de pai


sírio-libanês e mãe italiana. Residiu na região, pri-
meiramente em Carzinho; em meados da década
de 1940, fixou residência em Passo Fundo. Foi
um empresário de vários ramos, dentre eles: ma-
deireiro, hotelaria, revenda de caminhões, frigorí-
fico, fábrica de móveis, fazendas de gado, minera-
ção, colonizadora etc., atuando nos três estados
do Brasil Meridional.
Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁ- Thadeu foi um grande líder político e em-
RATE, H. E. Comércio, sécu- presarial e com grande sensibilidade social, foi
lo XX – Passo Fundo. Passo
Fundo: Sincomércio, 2002. fundador de entidades de assistência social em

294
Sírios e libaneses em Passo Fundo
Passo Fundo. Por esse amplo envolvimento empresarial, político, social e as-
sistencial recebeu o título de Cidadão Honorário de Passo Fundo. Faleceu em
Passo Fundo em 1987, aos 67 anos, deixando quatro filhos, Wilson, Zaida,
Salete e Thadeu Nedeff Filho.13

Família Elias

Na entrevista que obtivemos com a Sra.


Maria Gessy Elias Tarasconi, 94 anos, filha
de imigrante libanês, Antônio Manssur Elias,
ela disse que esse último emigrou solteiro em
1910, juntamente com um irmão seu, Emilio;
foi primeiramente para Alfredo Chaves, onde já
havia um tio seu emigrado anteriormente, Tufic
Manssur Elias. Ambos começaram como mas-
cates na região que hoje pertence ao município
de Nova Prata. Casou com Maria Itália Stella;
ficou muitos anos em Nova Prata, posteriormen-
te, por questões de saúde migrou para Porto Ale-
gre e lá ficou até final de sua vida.
“Os dois irmãos, Antônio e Emílio, enfren-
taram juntos, na juventude, a longa vida, longe
de sua terra natal, o Líbano; mantiveram uma
solidariedade fraternal, conjugando esforços,
amor ao trabalho, formando suas famílias, com
dedicação, numa época em que tudo era difí-
cil, nas desertas regiões do Rio Grande do Sul,
como na pequena Vila de Capoeiras, hoje Nova Antonio e Emílio Manssur
Elias. Fonte: GHIGGI, N. E.
Prata”.14
Peregrinação ao Passado.
Nova Prata, s/e, 2015., p. 12.
13
  Ver informações sobre Thadeu Nedeff no site do “Projeto Passo Fundo”, bem como no livro de
HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E. Comércio, século XX – Passo Fundo. Passo Fundo: Sincomércio,
2002.
14
  Material elaborado por Nagibe Elias Ghiggi sobre um histórico do imigrante Antonio Manssur
Elias e sua família. Nova Prata, 2015.

295
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Maria Gessy conta que ela migrou para Passo Fundo em 1959, casada
com Alcides Tarasconi, ele de Nova Prata. A migração para Passo Fundo
deu-se em razão da necessidade dos filhos avançarem nos estudos. Ela enfa-
tiza que sua família destacou-se na área médica e que busca, aos seus 94 anos,
preservar valores gastronômicos, religiosos e de respeito às diferenças, segun-
do ela, próprios da cultura libanesa.

Maria Gessy Elias


Tarasconi, 94 anos,
filha de imigrante
libanês. Fonte:
pesquisa de campo.

Família de Jorge Dadia

Segundo entrevista com Carlos Alberto Mayer, neto de Jorge Felipe Da-
dia, seu tio-avô, Jorge, emigrou do Libano no início do século XX; saiu de
Beirute, capital do Líbano; emigrou solteiro e foi para Soledade; nesse local,
possivelmente, no período, havia outros patrícios, talvez até parentes. Em
Soledade montou um curtume. A lida com couros era seu ofício no país de
origem e buscou imediatamente, no espaço de destino, otimizar esse saber.
Alguns anos depois, com a morte do bisavô, seu tio Jorge foi buscar o
avô no Libano; lá, venderam as terras e benfeitorias que tinham para a Igreja
Católica e emigraram para o Brasil no início do século XX. Carlos Mayer
informa que emigraram num navio a vapor, italiano e que ficaram seis meses
fazendo escalas. Alguns anos depois, em 1921, a mãe e o irmão do avô tam-
bém emigraram para Passo Fundo.

296
Sírios e libaneses em Passo Fundo

Segundo nosso interlocutor,

“Ele, Jorge Dadia, recebeu dinheiro da família


para emigrar, pois sua mãe não queria que ele fos-
se servir o exército, o que poderia significar perder
o filho nas guerras. Ele emigrou, mas não se esta-
beleceu primeiramente no Brasil, antes foi para a
Inglaterra, Portugal e a França. [...]. Quando veio
ao Brasil, estabelceu-se em São Paulo, com idade
em torno de 22 anos. Com o dinheiro que veio,
montou uma micro-empresa de confecção de cal-
Haifa Carubim e Jorge Dadia çados, pois ele sabia trabalhar com o couro. [...].
em pé, ao centro Malake. As jogatinas e apostas fizeram com que o mesmo
Fonte: foto gentilmente cedi- perdesse todo o dinheiro e, foi obrigado a vir para
da por Carlos Alberto Mayer. o Sul do Brasil, mascatear”.15

O avô Jorge Dadia chegou em Passo Fundo


em abril de 1921.16 Havia pouca gente no muni-
cípio que entendia de confecção de calçados. Ele
envolveu-se nisso. Segundo Carlos Alberto
Mayer, seu avô foi sapateiro oficial do Colégio
IE. Nesse período ele conheceu a Haifa, a qual já
residia em Passo Fundo. Segundo nosso interlo-
cutor, os sogros de Jorge não queriam o casa-
mento em razão de questões religiosas. Em ra-
zão disso, eles foram casar em Santa Cruz do
Sul, onde Jorge já havia residido. Não obstante à
Carteira de Trabalho de Jor- questão religiosa, o casamento foi realizado e,
ge Felipe Dadia, em 1955. algum tempo depois, retornaram à Passo Fundo
Fonte: documento cedido
e tiveram nove filhos. Carlos Alberto deu ênfase
por Carlos Alberto Mayer.

15
  Entrevista direta com o Sr. Carlos Alberto Meyer, neto de Jorge Felippe Dadia e Haifa Carubim
Dadia.
16
  No Site do “Projeto Passo Fundo” consta que Jorge Felippe Dadia nasceu na cidade de Safad
(Palestina) no dia 15 de março de 1893. Depois de residir na França, Portugal e Espanha, transfe-
riu-se para o Brasil fixando-se inicialmente em Santa Cruz, mas, logo após, transferiu-se para Passo
Fundo, onde foi proprietário de uma sapataria.

297
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

ao fato de que seu avô era muito solidário com seus patrícios que chegavam
na região, auxiliava em suas demandas mais prementes de recém-imigrante.
Jorge Dadia morreu em 1964, com 67 anos.

Documento de Jorge
Felipe Dadia; na pági-
na à direita, o nome
e data de nascimento
de seus nove filhos,
nascidos em Passo
Fundo. Fonte: docu-
mento gentilmente
cedido por Carlos
Alberto Mayer.

Carlos Alberto Mayer, com a mala de seu avô, Jorge Felipe Dadia. Fonte:
pesquisa de campo.

298
Sírios e libaneses em Passo Fundo

Família de Same Chedid

Segundo correspondência recebida17 das Sras. Sabine e Simone Chedid,


o patriarca da família, Same Chedid, nasceu em 13 de janeiro de 1897 em
Kfur al Arab, nas montanhas do Líbano, na região norte. Adolescente ainda,
aos 13 anos de idade, Same rumou para a América do Sul, inicialmente à
Buenos Aires, em seguida a Porto Alegre e logo após ao município de Vaca-
ria, para onde fora em busca de seu tio, Simão Chedid, que residia no referido
município. Same Chedid não retornou ao Líbano e nem seu tio. Ambos per-
maneceram em Vacaria, dedicando-se ao comércio.
No ano de 1924, Same deixou o município de Vacaria, rumo a São Pau-
lo, onde desenvolveu atividades para diversas firmas comerciais e industriais,
atuando, em particular, como caixeiro-viajante. Durante o tempo que residiu
em São Paulo escreveu para os jornais Folha da Manhã e Correio Paulistano, co-
laborando assiduamente para os dois órgãos de imprensa; mais tarde passou
a escrever para a Gazeta do Paraná, de Curitiba. Deixando São Paulo, rumou
à Caxias do Sul, cuja cidade, em 10 de março de 1928, casou-se com a Srta.
Nair Dib, filha do Sr. Jacob Dib e da Sra. Zeni Mussi Dib (esses, falecidos na
cidade de Passo Fundo). Nair nasceu em Kfur al Arab, em 23 de fevereiro de
1907 e faleceu na cidade de Passo Fundo, em 11 de dezembro de 1977.
No mesmo ano de 1928, Same Chedid rumou para Vacaria, onde fixou
residência com sua esposa, lá permanecendo até fins de 1930, daí transfe-
rindo-se para Porto Alegre e, depois, para Cachoeira do Sul. Em Vacaria,
nasceram os dois primeiros filhos do casal Same e Nair: Suria Chedid, em
26 de abril de 1929 (falecida em Passo Fundo, em 15 de dezembro de 2009) e
Líbano Jorge Chedid, em 4 de novembro de 1930 (também falecido em Passo
Fundo, em 20 de maio de 1995). Em 1933, Same migrou para Passo Fundo,
onde se fixou em definitivo, aqui residindo durante mais de 37 anos. Aqui
nasceu o terceiro filho do casal, Brasil Chedid, a 6 de setembro de 1935 (fa-
lecido em Passo Fundo, em 20 de março de 1990). Same Chedid participou
diretamente da Revolução de 1930, tendo partido de Vacaria no comando
de um piquete que rumou à Santa Catarina, atingindo Lages. Nessa cidade,

O conteúdo sobre a família de Same Chedid nos foi generosamente enviado, via e-mail, pelas
17 

senhoras Sabine e Simone Chedid, netas de Same Chedid.

299
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Chedid teve atuação decisiva, colocando-se na vanguarda da tropa e evitando


que ocorressem saques, depredações e atos de violência.
Mas, Same Chedid foi o pioneiro no transporte rodoviário de cargas en-
tre o Rio Grande do Sul e São Paulo, tendo, em 1939, fundado o Expresso Rio-
-Grandense, que desenvolveu intenso trabalho durante muitos anos, em geral,
no intercâmbio de mercadorias entre os dois estados. No decurso de vários
anos, Chedid dedicou-se ao comércio de Passo Fundo, tendo fundado a Casa
Rio e atuado na exploração de uma pedreira situada nos arredores da cidade,
sendo, portanto, um empreendedor em múltiplos segmentos.
Same Chedid gostava de escrever e seguidamente colaborava na impren-
sa com seus comentários sobre o panorama internacional. Poucos meses an-
tes de falecer, encerrou a redação da obra: “ONU, Árabes e Judeus”. No
ano de 1959, passou a integrar o Instituto Histórico de Passo Fundo. Same
faleceu em 26 de janeiro de 1971, aos 74 anos, em função de complicações de
um edema pulmonar. Deixou a prantear sua morte, sua esposa, Sra. Nair Dib
Chedid, os filhos Suria Chedid, à época, Diretora de Educação e Cultura do
município de Lages/SC e Diretora da Faculdade de Ciências e Pedagogia da
Fundação Universidade do Planalto Catarinense, Jorge Chedid, do comércio
local, casado com Norma Dib Chedid, e Brasil Chedid, também atuando, na
época, no comércio de Passo Fundo, esse casado Eulina Braga Chedid, além
dos netos Nadia, Nara e Líbano (filhos do casal Jorge e Norma), e Simone e
Sabine (filhas do casal Brasil e Eulina).

Família de Pedro Barquete



Segundo informações18 de Sandra Mara Barquete Benvegnú, em fins do
século XIX, seu avô, Pedro Antônio Barquete emigrara para o Brasil; era
sírio, natural de um vilarejo próximo a Damasco, ainda pertencente ao Im-
pério Otomano, de onde emigrara juntamente com alguns familiares para o
Brasil, por volta do ano de 1886, quando contava com 16 anos de idade. A
eminência do alistamento militar, assim como as dificuldades existentes na

Por intermédio da entrevistada consultamos também seu irmão, Paulo Volnei Barquete, e também
18 

sua prima, Solange Barquete que, por meio de informações orais, documentação e fotografias da
família, auxiliaram na composição desse fragmento narrativo.

300
Sírios e libaneses em Passo Fundo
região no período como a fome, pobreza e conflitos, de acordo com nossa
interlocutora, foram decisivas para o abandono da terra natal e a esperança
de se alcançar melhores condições de vida.
Ao entrar no Brasil, pelo Porto de Santos, no Rio de Janeiro, Pedro
possivelmente aportuguesara seu nome e sobrenome, não havendo registros
do original, apenas do sobrenome que originalmente, sabe-se, grafava-se “Ba-
rakat”. Em seguida, dirigira-se à São Paulo, onde teria vivido por um curto
período de tempo, encontrando alguns co-nacionais, tendo aprendido a “arte
de mascatear, de vender de porta em porta, enfim, a profissão de mascate”.
Posteriormente, Pedro migrara à Argentina, juntamente com uma irmã, onde
se estabelecera também por pouco tempo, retornando em seguida ao Brasil,
instalando-se no Rio Grande do Sul, no interior de Soledade, na segunda
década do século XX. No referido local, Pedro assumiu matrimônio com
Etelvina Ferreira, com quem viria a ter cinco filhos, Adige, Jamil, Abd-laziz,
Calir e Zaibe.

2
4
3
1

Foto do 1º aniversário de Carlos Barquete Flores, filho de Zaíbe e neto de Pedro


Antônio Barquete. Na foto: 1-Zaíbe Barquete Flores; 2-Adige Barquete Silva; 3-Calir
Barquete; 4-Abd-laziz Barquete; ao centro, sentados, Pedro Antônio Barquete e Etel-
vina Ferreira Barquete. Fonte: foto gentilmente cedida por Paulo Volnei Barquete.

301
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Em Soledade, Pedro deu início a di-


versificação de suas atividades; montou um
moinho para a moagem de milho e posterior
comercialização do produto. Entretanto, se-
gundo nossa interlocutora, “quem atendia
esse moinho era minha avó e minhas tias”,
enquanto Pedro em paralelo mantinha-se
como mascate, revendendo mercadorias ad-
quiridas em São Paulo, contrabalanceando,
a família, ambas as atividades. A atuação
em ambos os ramos do comércio permitiu
a família de Pedro condições para adquirir
propriedades na cidade de Passo Fundo, nas
proximidades da ponte do rio Passo Fundo.
Posteriormente, a família Barquete veio Certidão de nascimento de Ja-
mil Barquete, nascido em Sole-
a se estabelecer em definitivo no meio urba- dade, em 1916. Fonte: documen-
no passo-fundense. Adquirindo propriedades tação gentilmente cedida por
em ambos os lados da Avenida Brasil, nas es- Sandra Barquete.
quinas com a Rua Tiradentes, na área central
da cidade na zona de comércio dos sírio-liba-
neses e seus descendentes, estabeleceu várias
relações com seus compatriotas, tendo como
amigos mais próximos os irmãos Isa e Moi-
sés Dipp e Jorge Dadia, como destaca nossa
interlocutora. No referido local, a família es-
tabeleceu um comércio de secos e molhados,
“um ‘bodegão’, que tinha de tudo e vendia
tudo”, onde manteria atividade até o início da
década de 1950. Pedro Barquete faleceu em
27 de junho de 1963, aos 93 anos.
Os filhos de Pedro, assim como o pai,
lançaram-se em atividades diversas em Passo
Jamil Barquete, à época radio-
Fundo e região; é o caso de Jamil Barquete, telegrafista da Viação Férrea.
que durante muitos anos empreendeu varia- Fonte: foto gentilmente cedida
das atividades comerciais no centro da cidade, por Sandra Barquete.

302
Sírios e libaneses em Passo Fundo
tendo trabalhado inicialmente como radiotelegrafista da Viação Férrea e da
Companhia Varig da Aviação, adentrando, posteriormente, no ramo de secos
e molhados, comércio de carnes, armazenagem de cereais, dentre outros.

Sandra Mara Barquete Benvegnú, neta


de Pedro e filha de Jamil Barquete, em
momento de entrevista. Fonte: pesqui-
sa de campo.

Outras famílias

Estamos reconstituindo apenas alguns fragmentos de história de algu-


mas famílias e/ou sobrenomes das quais encontramos alguém disposto a in-
formar algo de seus antepassados, em geral, de famílias que produziram um
legado econômico e que possuem identificação com os grupos étnicos em
questão.
Temos consciência de que inúmeras famílias de sírios e libaneses perma-
neceram no anonimato, inclusive no interior dos grupos em questão, outras
migraram para outros municípios ou mesmo retornaram para seus países de
origem e não deixaram descendentes em Passo Fundo.
Encontramos alguns fragmentos de histórias de vida de alguns sírios e
libaneses no site do “Projeto Passo Fundo”, mas foi no diálogo com alguns
membros desses grupos que fomos constituindo nosso acervo de interlocuto-
res. Havia sempre alguém que indicava outros nomes, outras famílias, porém,
muitos não sabiam quem realmente “pudesse dizer alguma coisa”.
Um dos que nos foram informados por um interlocutor é o Sr. Estanis-
lau Zanfir. Ele nasceu em Passo Fundo, em 1916, destacou-se no comércio

303
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

da madeira na região de Passo Fundo; faleceu em 1972. José Zacharias, junto


com o Sr. Nabuco Zirbes também entram no roll dos que foram muito cita-
dos, mas não conseguimos ir muito além; o que se sabe é que mantinham um
comércio de erva mate; o estabelecimento era na “Rua dos Trilhos”, próximo
onde hoje se encontra o Jornal Diário da Manhã.

Considerações finais

Vimos alguns fragmentos históricos da ampla, variada e complexa imi-


gração de sírios e libaneses para o Brasil e, em particular, para Passo Fundo.
Porém, como havíamos mencionado no início, pouco se sabe sobre esses gru-
pos sociais, mas conserva-se a representação dos “turcos”, dos “mascates”,
das “quadras dos turcos no centro”.
Vimos que a emigração para o Brasil fundamenta-se em múltiplos pro-
cessos, tanto do cenário sírio e libanês, quanto da política imigratória brasi-
leira. Muitos dos que emigraram o fizeram em razão de causas religiosas,
porém, essas, em geral, mesclavam-se com as econômicas.
Uma parcela significativa dos que emigraram para o Brasil o fizeram em
razão da dificuldade em ir aos Estados Unidos. Vimos isso na literatura e nos
relatos de interlocutores afirmando que “vieram enganados, porque a pas-
sagem era para os Estados Unidos”. Havia pouca informação sobre o Brasil
naquele período na região do Oriente Médio. O país também não era atrativo
e o recente passado escravista amedrontava os que desejavam emigrar. No
entanto, em alguns relatos, há os que enfatizam que aqui havia possibilidade
de fazer dinheiro e prosperar pelo tamanho do país e por haver políticas mi-
gratórias que favoreciam.
Pelos relatos obtidos e pela revisão de literatura efetivada, percebemos
que os imigrantes chegavam jovens e com poucas, para não dizer nenhuma,
condições econômicas. Os dados demonstram que grande parte dos que emi-
graram eram solteiros, católicos Maronitas, as mulheres emigraram em me-
nor quantidade, as que o fizeram, em geral, vieram acompanhadas da família
(marido, em geral), porém, muitas emigraram após a vinda do marido.
A boa vontade, a esperança e o tino para o negócio lhes possibilitaram
a base para o início da vida nos espaços de destino. Porém, não esquecendo

304
Sírios e libaneses em Passo Fundo
que nem todos os emigrantes, em seu país de origem, exerciam a profissão
de vendedores/comerciantes. Muitos o fizeram no espaço de destino pelas
circunstâncias e por seguir alguns de seus co-nacionais. Eram pastores, extra-
tivistas, agricultores e trabalhadores citadinos de várias profissões no país de
origem. Segundo a literatura revisada, muitos aprenderam o ofício de nego-
ciante/comerciante no longo período que esperavam nos portos de Marselha,
Gênova ou mesmo na Alexandria para compor a carga de passageiros. A
necessidade de dinheiro, o tempo livre, a forte presença de imigrantes nesse
cenário, transformou muitos imigrantes em pequenos negociantes.
Não podemos esquecer também que, Passo Fundo, no final do século
XIX e mesmo nas primeiras décadas do século XX, era um município agríco-
la e extrativista, com pouca produção de excedentes; o latifúndio e a estrutura
pecuarista ainda preponderavam. As novas colônias e colonizações estavam
se processando, a indústria da madeira estava em evidência e o processo de
produção agrícola se diversificando. Desse modo, a dinâmica mercantil do
mascate auxiliou na alteração desse processo, bem como otimizou os fato-
res mercantis precários e centrados na figura do comerciante tradicional es-
tabelecido no meio rural. Assim como os mascates reduziram o poder e a
determinação do grande proprietário e senhor das vendas (casas de comér-
cio) no regime de colonato nas grandes fazendas de café em São Paulo, os
comerciantes tradicionais do meio rural, situados nas sedes das comunidades
da região de Passo Fundo, perderam espaços para os mascates em suas estra-
tégias e condições de vendas de produtos aos agricultores. Alguns mascates
tornaram-se também comerciantes de comunidades rurais, tendo, em grande
parte, migrado para a cidade pós-década de 1970.
Muitos dos imigrantes deslocaram na condição de apátridas; seus refe-
renciais identitários baseavam-se na religião e na aldeia de origem. Porém,
tiveram que fazer concessões identitárias. Sua ocidentalização aconteceu na
ligação com o mundo das trocas informais nos contatos diretos com os clien-
tes e seus espaços familiares e sociais. Eles tiveram de redefinir seus horizon-
tes religiosos, gastronômicos e linguísticos; adotaram estratégias matrimo-
niais mistas; souberam ser parcimoniosos e contidos o suficiente para encarar
crises econômicas, enviar dinheiro para quem ficou no espaço de origem e,
assim mesmo, empreender e “fazer os filhos estudar”, como nos disseram
alguns entrevistados. Ainda que muitos possam ter falido, o certo é que em

305
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Passo Fundo, estruturou-se uma ampla rede comercial e atacadista que levou
a marca dos sírios e libaneses. Em outros estados, como São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais, essa realidade permanece reconhecida e visível na
atualidade com os grandes espaços de comércio popular nos grandes centros
urbanos bem como nas várias áreas das atividades econômicas, científicas e
hospitalares.
Há em Passo Fundo, ainda hoje, alguns estabelecimentos comerciais de
sírios e libaneses; a segunda e/ou terceira geração dos pioneiros adentrou
para várias atividades profissionais. No município, temos médicos/as, pro-
fessores/as, advogados/as, radialistas, jornalistas, políticos, dentre várias
profissões que levam o sobrenome dos pioneiros que iniciaram mascateando
pelo município e região.

Sr. Joseph Estacia com o


pesquisador andando pelo centro
de Passo Fundo com o objetivo
de informar as residências e
estabelecimentos comerciais de
sírios e libaneses na cidade.

Através de relatos obtidos, vimos que a gastronomia permanece presen-


te em boa parte das famílias dos descendentes de imigrantes, algumas bem
identificadas e já socializadas no âmbito multiétnico. Desse modo, o contato
com imigrantes de outras etnias, com a sociedade ocidentalizada, propiciou

306
Sírios e libaneses em Passo Fundo
para os sírios e libaneses a demarcação de território, pertencimento e frontei-
ra étnica (arabizando um pouco Passo Fundo), mas, ao mesmo tempo, houve
a necessidade de incorporação do modus vivendi do espaço de destino, otimi-
zando-o em razão de seus interesses, da intencionalidade do processo migra-
tório e do pragmatismo da vida econômica.
Enfim, hoje é possível e necessário reconhecer em Passo Fundo a pre-
sença árabe, em particular, de sírios, libaneses, jordanianos e palestinos para
além dos referenciais gastronômicos (kibe, doces, esfihra, temperos, hortelã,
etc.) e profissionais; seus horizontes culturais mais amplos, sua imensa capa-
cidade de socialização e integração social, suas crenças e valores demonstram
a importância e o reconhecimento das diferenças, capacidades de convivên-
cia e harmonia social. Muito de tudo isso leva a marca de sírios e libaneses.

Referências

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“A Luta”, 1931, p. 48. Arquivo Histórico Regional de Passo Fundo.
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In: Célia Maria Borges (org.). Solidariedades e conflitos. Histórias de vida e traje-
tórias de grupos em Juiz de Fora. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000.
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do imigrante libanês no Espírito Santo (1910 -1940). Vitória, Instituto Jones San-
tos Neves, 1987.
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Livraria José Olympio Editora. Coleção Documentos Brasileiros, n. 95, 1958.
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Coletiva & Escolhas Individuais. UFRJ, Dissertação em Memória Social.
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Encontro Regional Sul de História Oral. Unila, 2013.
_____. Árabes e seus descendentes no Rio Grande do Sul. Adverso. ADufrgs

307
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

sindical, Porto Alegre, p. 28–29, 17 dez. 2013.


_____. Memória da Imigração, vol. II. Sírios e Libaneses. Arquivos do Departa-
mento de Pesquisa Universidade Estácio de Sá: Rio de Janeiro, 2005
_____. LAMARÃO, Sérgio. Sírios e libaneses e a expulsão de estrangeiros na
Primeira República. Revista Acervo. Revista do Arquivo Nacional, v. 26, n. 2, Rio
de Janeiro, p. 1-11, 2015.
INDICADOR de Passo Fundo - 1950, Arquivo Histórico Regional de Passo
Fundo.
KEMEL, Cecília L. A. Sírios e libaneses: aspectos da identidade árabe no Sul
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MORALES, Neida Regina Ceccim. A Imigração Sírio-libanesa no Sul do Brasil.
Santa Maria: 2001. Dissertação (Mestrado em Integração Latino-America-
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NUNES, H. A imigração árabe em Goiás: 1880 - 1970. Dissertação de Mestrado
(Instituto de História) Universidade de São Paulo: USP, 1986.
PIMENTEL, Valderez Cavalcante. A aculturação do imigrante sírio no Piauí (es-
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Estados Unidos: um enfoque comparativo Journal of American Ethnic History,
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308
Sírios e libaneses em Passo Fundo
TO, Boris (Org.). Fazer América: imigração em massa para América Latina.
São Paulo: Edusp, 1999, p. 315-351.
_____. De mascates a doutores. São Paulo: Editora Sumaré, 1992.

309
Alguns estabelecimentos domiciliares e comerciais no centro de Passo Fundo - de 1900 a meados do século XX1

Escritório de Economia e Advocacia de Salim Buaes Bodega de Pedro Barquete

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Sapataria de Jorge Dadia Casa Oriental


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Casa São José
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Fonte: adaptado por Alex Antônio Vanin. ua G
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

1
A localização dos estabelecimentos foi-nos informada pelos interlocutores da pesquisa; alguns não tinham plena certeza da localização, tendo sido,
portanto, indicada nas proximidades. Um mapa mais detalhado e com maiores informações se encontra no final do livro, em anexo.
A comunidade judaica em
Passo Fundo

Isabel Rosa Gritti1


João Carlos Tedesco2
Alex Antonio Vanin3
Introdução

Quando falamos em imigração judaica para o Brasil e para o Rio Gran-


de do Sul dois elementos são fundamentais para a compreensão desse proces-
so. A Jewish Colonization Association e a discriminação que historicamente
atingiu esse grupo étnico. É claro que a imigração judaica está inserida no
contexto das grandes correntes imigratórias europeias para o Brasil no final
do século XIX e início do século XX. Além da busca por melhores condições
de vida além-mar e do consequente sonho de tornar-se proprietário de um
lote de terra, no caso dos imigrantes judeus, é preciso considerar também a
violência que os atingiu, sobretudo, no leste europeu.

1 
Doutora em História; prof. da UFFS – Campus de Erechim.
2
  Doutor em Ciências Sociais; Prof. do PPGH/UPF.
3
  Graduando em História na UPF, bolsista PIBIC/CAPES

311
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A vinda dos imigrantes está ligada à atuação das Companhias de imigra-


ção e colonização constituídas para tal função. Muitas delas somente eram
responsáveis pelo transporte e vinda dos imigrantes, outras, pelo transporte
e assentamento dos próprios em território brasileiro. O Estado brasileiro e
o rio-grandense também foram responsáveis pela instalação dos imigrantes
europeus nos diversos núcleos coloniais criados em território brasileiro.
Apesar dos imigrantes judeus estarem presentes no Brasil desde o perío-
do colonial, os cristãos novos – judeus convertidos ao cristianismo para fugir
das garras da inquisição, a corrente imigratória judaica é a que mais tardia-
mente se dirige ao Brasil, no início do século XX.

A companhia de imigração e colonização Jewish Colonization


Association - ICA

Como consequência do contexto de discriminação e violência que atin-


gia os judeus no leste europeu, surgiram várias instituições de auxílio e am-
paro aos israelitas. Porém, a mais poderosa das instituições de amparo aos
imigrantes foi a Jewish Colonization Association, conhecida como ICA, fun-
dada por Maurice de Hirsch, em 1891. O objetivo declarado da associação
era:

Assistir e promover a emigração dos judeus de qualquer parte da Eu-


ropa ou Ásia e, principalmente, de países em que eles eram subme-
tidos a impostos especiais ou políticos e outras desvantagens, para
qualquer parte do mundo e formar e estabelecer colônias em vários
países do norte e do sul da América e outros países, pela agricultura,
comércio e outras atividades. Para realizar estes objetivos, a Jewish Co-
lonization Association estava autorizada a adquirir qualquer território
fora da Europa através de governos estaduais, municipais ou autorida-
des locais, corporações e pessoas (Rakos, s/d, p. 391).

Baseado em estudos feitos por seus conselheiros, o Barão de Hirsch de-


cidiu iniciar sua atividade de instalação de imigrantes russos na Argentina.
Assim, ainda no mesmo ano da fundação da ICA, isto é, em 1891, chegavam
à Argentina os primeiros imigrantes judeus.

312
A comunidade judaica em Passo Fundo

Após a morte do Barão Hirsch, em 1896, um novo conselho foi eleito.


Para Jeff Lesser (1989, p. 27), o novo conselho da Jewish Colonization As-
sociation possuía muito pouco do espírito bondoso do Barão. Em 1900, eles
decidiram “expandir o alcance da organização, sempre com a ideia de que
uma coincidência de interesses poderia ser estabelecida entre benevolência e
capitalismo”.
O enorme capital da Jewish Colonization Association dava aos mem-
bros do Conselho uma total liberdade e que, no começo de sua atividade,
os diretores resolveram não dar ao público informações sobre os ganhos e
o capital da Companhia, bem como suas decisões. Desta forma, segundo
Havin, a opinião pública tinha pouca influência sobre as decisões da ICA,
o que não acontecia com as demais instituições de amparo aos emigrantes
judeus. Igualmente, a campanha que a imprensa judia do leste europeu e de
outras regiões desenvolveu contra essa atitude da ICA não mereceu por parte
da referida nenhuma atenção (Havin, s/d, p. 26). Ainda, segundo Rakos, os
novos administradores não viraram as costas para os agricultores judeus da
Argentina, mas fizeram muito pouco para encorajá-los na atividade agrícola,
pois isso:

[...] representava uma diferença fundamental em relação à questão


russo-judaica. Os homens que assumiram a liderança da Associação
foram influentes e proeminentes líderes judeus e parte do grupo que
se havia oposto à emigração para fora da Rússia. Assim eles substitu-
íram o foco e a orientação da Associação de emigração e estabeleci-
mento para a reconstrução e assistência e, eventualmente, para ajudar
os imigrantes nos países de recepção (Rakos, s/d, p. 26).

No período que antecede a Primeira Guerra Mundial, a ICA fundou


estabelecimentos destinados a reconstruir e revitalizar a infraestrutura das
comunidades judias na Rússia e Europa Oriental. Ela abriu comércio, es-
colas agrícolas e fazendas modelos, subsidiou programas de aprendizagens
vocacionais e fundou caixas de empréstimo, em que os negociantes judeus
poderiam tomar dinheiro emprestado.
Ainda segundo Rakos, a ICA patrocinou o desenvolvimento industrial
e agrícola judeu na Rússia e Europa Oriental com o propósito de erradicar o

313
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

marginalismo econômico e para adaptar os judeus a um trabalho produtivo


e próprio, que pudesse contribuir com seus países de residência. Contudo,
russos e judeus orientais continuaram a migrar para o Ocidente em número
crescente, ano após ano. Essa migração para a América gerou uma pesada
carga nas comunidades judias ao longo da rota migratória, o que forçou os
administradores da Jewish Colonization Association a “aceitar sua responsa-
bilidade como diretores de uma das organizações judias mais ricas e ajudar
os imigrantes e suas comunidades hóspedes” (Rakos, s/d, p. 395).
No Brasil ocorreu, no período posterior à Primeira Guerra Mundial, a
intensificação da imigração judaica, que, por sua vez, passou a ser a opção
dos israelitas à medida que os Estados Unidos, a Argentina e o Canadá pas-
saram a limitar a entrada dos referidos. E mesmo assim, apesar da intensa
campanha desenvolvida pela ICA nos países do leste europeu com o objetivo
de atrair os imigrantes para suas colônias brasileiras, o número de israelitas,
que no início do século escolheram o Brasil como seu novo país, é reduzido.
Dados apresentados por Jeff Lesser indicam que, no final do século XIX,
período em que a imigração europeia para o Brasil foi mais intensa, a imi-
gração judaica foi pouco significativa, tendo crescido numericamente após a
Primeira Guerra Mundial. Isso se explica, como já mencionamos, em razão
das restrições impostas à imigração pelos países tradicionalmente receptivos
dos imigrantes israelitas e pelo crescente antissemitismo nos países europeus,
particularmente com a ascensão do nazismo na Alemanha.

A imigração judaica e geral para o Brasil, 1881-1930

Imigração Judaica
Anos Total Judaica Judaica em %
Mundial em %
1881-1900 1.654.101 1.000 0,6 0,1
1901-1914 1.252.678 8.750 0,7 0,5
1915-1920 189.417 2.000 1,0 2,2
1921-1925 386.631 7.139 1,8 1,7
1926-1930 453.584 22.296 4,9 12,9
1931-1935 180.652 13.075 7,2 5,5
Fonte: LESSER, Jeff. Pawns of the Powerful: Jewish Imigration to Brazil, 1904-1945.
New York University, 1989, p. 91.

314
A comunidade judaica em Passo Fundo

Mesmo no período pós 1930, quando o Brasil também limitara a entra-


da de imigrantes através do estabelecimento de quotas, como determinava
a Constituição de 1934, os israelitas continuavam, embora em número re-
duzido, a entrar no Brasil. E desde o início do século até o período poste-
rior à Segunda Guerra Mundial, a Jewish Colonization Association e outras
instituições de amparo aos imigrantes israelitas empenharam-se para que os
próprios pudessem encontrar países que os acolhessem e, entre esses, estava
naturalmente o Brasil.
Em 1901, a ICA enviou seu diretor argentino David Cazés e Euzébio
Lapiné, engenheiro agrônomo e administrador – chefe da colônia Argentina
de Entre Rios, para estudarem as condições de expansão no sul do Brasil. As
informações que eles colheram foram boas e a “companhia decidiu que o Rio
Grande do Sul, devido à sua proximidade com as colônias argentinas, sua
religião tolerante, comandada constitucionalmente, e ao desejo por novos
imigrantes, seria um bom lar para os judeus russos” (Lesser, 1989, p. 25).
A Jewish Colonization Association inicia sua longa trajetória de ativi-
dades no Brasil e, mais especificamente, no Rio Grande do Sul, no ano de
1902. Nesse ano, a ICA comprou sua primeira propriedade no Estado, uma
área de 5.500 hectares, em Pinhal,
no Município de Santa Maria. Esse
primeiro núcleo judaico no Rio
Grande do Sul foi denominado de
Filipson, em homenagem ao então
vice-presidente da ICA e presidente
da Compagnie Auxiliaire de Che-
mins du Fer au Brésil, empresa bel-
ga arrendatária, na época, da rede
da Viação Férrea do Rio Grande do
Sul (Cunha, 1908, p. 254).
Em 1904, a ICA dá início à
sua atividade de colonização; insta-
la em Filipson, 37 famílias judias, Localização de duas colônias de judeus
vindas da Bessarábia, em lotes de no Rio Grande do Sul. Fonte: Memorial
terra de mato e campo. Segundo da Colônia de Judeus de Quatro Irmãos.
Pesquisa de campo. Adaptado por Alex
Leon Back, quando de sua chega- Antônio Vanin.

315
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

da, os imigrantes receberam uma casa para moradia, instrumentos de tra-


balho agrícola, duas juntas de bois, duas vacas, um cavalo e, enquanto não
pudessem viver do produto de suas colheitas, a ICA lhes dava um suprimento
em dinheiro, variável de acordo com o número de pessoas da família (Back,
1958, p. 273).
A tão esperada e propalada prosperidade da colônia Filipson não acon-
teceu, uma vez que muitos dos imigrantes lá estabelecidos não tinham conhe-
cimento do trabalho agrícola e o terreno que lhes fora destinado para ser cul-
tivado era constituído por áreas de campo, que devido à sua pouca fertilidade,
eram, na época, inadequados ao cultivo agrícola. Desta forma, em 1909, a
colônia Filipson encontrava-se praticamente despovoada.

A compra da Fazenda Quatro Irmãos



Em 1909, a Jewish Colonization
Association expande sua área de atua-
ção no Brasil, particularmente no Esta-
do do Rio Grande do Sul; compra uma
área de 93.985 hectares no então Muni-
cípio de Passo Fundo.
A criação de núcleos colônias, tan-
to oficiais, – criados pelo Estado, quan-
to através de companhias de coloniza-
ção, tornou-se possível uma vez que a
ocupação de áreas despovoadas era um
dos propósitos, tanto do governo fede-
ral, quanto dos governos provinciais.
No caso específico do Rio Grande do
Sul, o povoamento de regiões pouco ha-
bitadas e a consequente valorização das
referidas através da criação de toda uma
infraestrutura necessária à fixação dos
Fonte: Arquivo Histórico Judaico imigrantes dizia respeito ao programa
Brasileiro de São Paulo.
do Partido Republicano Rio-grandense

316
A comunidade judaica em Passo Fundo

– PRR – que governou o estado ininterruptamente de 1891 a 1930. Assim,


as negociações para a compra da Fazenda Filipson, bem como da Fazenda
Quatro Irmãos, ocorreram tranquilamente. A autorização para que a Jewish
Colonization Association pudesse atuar no Rio Grande do Sul fora concedi-
da pelo Governo do Estado, em julho de 1903.
A localização da nova área adquirida pela ICA no Estado – a Fazenda
Quatro Irmãos – é similar à colônia Filipson. Ela encontrava-se nas proxi-
midades da linha férrea São Paulo – Rio Grande, ainda em construção pela
Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer au Brésil.
Se por um lado o governo do Estado viu, na ação da Jewish, a possi-
bilidade de concretizar alguns dos seus objetivos, como o de povoar as regi-
ões pouco ou nada habitadas através da imigração, por outro lado, podemos
constatar uma afinidade de interesses entre a ICA e a Compagnie Auxiliaire
de Chemins du Fer au Brésil (Gritti,1997, p. 34).
Acredita-se que Franz Filipson, vice-presidente da ICA e presidente da
Compagnie Auxiliaire de Chemins du Fer, na época da compra da Fazenda
Quatro Irmãos, não desconhecia a riqueza florestal da região nem a valori-
zação que a atividade de colonização traria aos terrenos de propriedade da
Jewish. É o que podemos constatar se considerarmos que a grande quanti-
dade de pinheiros existentes na região era do conhecimento dos engenheiros
da Auxiliaire, que, a partir de 1905, tornou-se arrendatária de toda a rede
ferroviária gaúcha.
Importante também a ser considerado na compra da Fazenda Quatro Ir-
mãos é o fato de que um dos responsáveis pela avaliação da floresta existente
na nova propriedade da ICA foi Teixeira Soares, engenheiro que, em 1887,
contratou uma equipe de técnicos para estudar a região mais adequada para
construção da ferrovia, ligando Itararé, em São Paulo e Santa Maria, no Rio
Grande do Sul.
Um ano após a compra de Quatro Irmãos, o diretor da colônia Filipson
escreveu para a direção central da ICA, em Paris, dizendo que foi comunica-
do por eles de que receberia a visita de “um enviado especial do Sr. Teixeira
Soares para estudar a questão da floresta em nossa propriedade, com a finali-
dade de vos apresentar um relatório detalhado sobre o valor desta proprieda-
de” (Pesquisas Regionais, 1982, p. 37).

317
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A instalação dos imigrantes judeus na Fazenda Quatro


Irmãos
Em 1912, são instalados os primeiros imigrantes israelitas na Fazen-
da Quatro Irmãos; são imigrantes vindos da colônia Argentina de Maurício,
num total de 33 colonizadores, 14 deles com famílias e 19 sem suas famílias.
Ao primeiro grupo de 33 israelitas argentinos seguem-se, após três semanas,
60 famílias vindas da Bessarábia. Dessas famílias, poucas eram de agricul-
tores preparados; entre elas havia cinco carpinteiros, quatro ferreiros e dois
sapateiros (Lesser, 1989, p. 57).
Quando os primeiros imigrantes começaram a chegar na Fazenda Qua-
tro Irmãos, as casas não estavam prontas e eles foram instalados em pousa-
das. Tal precariedade pôde ser parcialmente explicada pelo desconhecimento
das atividades que envolviam a instalação de imigrantes por parte do agente
designado pela ICA em 1911, com o objetivo de coordenar os referidos tra-
balhos.
A transferência da sede administrativa da ICA de Filipson para Quatro
Irmãos em 1912, sob a direção de Hugo Baruch, foi incapaz de resolver os
problemas relacionados ao assentamento dos imigrantes judeus na Fazenda
Quatro Irmãos. Ao contrário, os problemas intensificaram-se, pois os imi-
grantes continuavam chegando. Em 1913, mais famílias da Bessarábia busca-
ram abrigo em Quatro Irmãos.
Do grupo de 43 famílias que deixaram a Bessarábia, em abril de 1913,
com destino à Quatro Irmãos, Lesser faz a seguinte análise: o primeiro grupo
era composto de 307 pessoas, embora 22 doentes tenham ficado na Rússia;
os 285 que chegaram ao Brasil foram predominantemente homens (56%),
embora imigrantes solteiros estivessem incluídos no grupo, e ninguém via-
jasse sem cônjuge. A proporção por família é um pouco menor que 7, com
homens predominando 3,7 por família, 2,9 femininos. Todas as famílias eram
acompanhadas por crianças, exceto três pares jovens (Lesser, 1989, p. 57-58).
No processo inicial de assentamento as dificuldades enfrentadas pela
administração local da Companhia foram com a seleção de imigrantes com
certa experiência agrícola. Agora, em 1913, o problema caracterizava-se pelo
excesso populacional da colônia, que se programou para a instalação inicial
de um número aproximado de 50 famílias.

318
A comunidade judaica em Passo Fundo

Pela avaliação da administração local, o número de famílias que se en-


contrava em Quatro Irmãos, em abril de 1913, era de aproximadamente 300,
Chwartzman diz “o forte da colonização de Quatro Irmãos foi em 1913,
quando chegaram grandes levas de colonos” (Chwartzman, 1989, p. 04).
A afluência do elevado número de imigrantes que chegaram nos primei-
ros anos da colonização do novo núcleo da ICA no Rio Grande do Sul, se
deve a uma forte propaganda feita na Rússia pelos agentes das companhias
colonizadoras em favor da imigração para o Brasil. A ICA não foi exceção.
Marcos Iolovitch conta que:

Numa clara manhã de abril de 19..., quando a estepe começara a re-


verdecer à entrada de Zagradowka, pequena e risonha aldeia russa,
da província de Kersan, lindíssimos prospectos, com ilustrações co-
loridas, descrevendo a excelência do clima, a fertilidade da terra, a
riqueza e a variedade da fauna, a beleza e exuberância da flora, dum
vasto e longínquo país da América, denominado – Brasil – onde uma
empresa colonizadora israelita, intitulada Jewish Colonization Asso-
ciation, mais conhecida por ICA, proprietária duma grande área de
terras, duma Fazenda chamada Quatro Irmãos, situada no município
de Boa Vista do Erechim, Estado do Rio Grande do Sul, oferecia
colônias, mediante vantajosas propostas, a quem se quisesse tornar
lavrador” (Iolovitch,1987, p. 9).

Os dados abaixo apresentados pela administração da ICA em Quatro Ir-


mãos, no ano de 1924, possibilitam uma melhor compreensão do movimento
de emigração/imigração, nos treze primeiros anos de atividades da Jewish
Colonization Association no seu novo núcleo israelita no Estado.
Podemos observar que o maior fluxo imigratório para a colônia Qua-
tro Irmãos ocorre nos cinco primeiros anos de sua instalação. O movimento
migratório nesse período é intenso, pois, da mesma forma que os imigrantes
foram atraídos para o novo núcleo israelita, dá-se o movimento inverso, o de
repulsão, uma vez que a direção local da ICA revelou-se extremamente limi-
tada para administrar a seleção e a instalação dos imigrantes, considerando
que o elevado afluxo inesperado de imigrantes contribuiu grandemente para
a ineficiência do quadro administrativo local.

319
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Movimento de imigração e emigração judaica na


Fazenda Quatro Irmãos, 1911-1924
Ano Início do ano Emigram Imigram Emigram Total do ano
1911/1912 63 - 10 - 73
1912/1913 73 - 54 03 124
1913/1914 124 7 126 - 243
1914/1915 243 71 - 100 72
1915/1916 72 - 217 - 299
1916/1917 299 100 - 116 83
1917/1918 83 17 - - 66
1918/1919 66 01 05 - 70
1919/1920 70 02 01 - 69
1920/1921 69 04 - - 65
1921/1922 65 12 02 - 55
1922/1923 55 12 - - 43
1923/1924 43 - - - 43
Fonte: De Quatro Irmãos para Paris, 2 Rapport sur Quatro Irmãos, em 1 de novembro
de 1924, p. 4, CX. 33, M.2, AHJB-SP.

Pelos dados da tabela, identifica-se que, a partir de 1917, a corrente imi-


gratória sofre uma queda significativa, enquanto o abandono da Colônia é
constante e crescente. Ocorre também uma redução no número de assen-
tamentos, como consequência da redução da imigração. A colônia Quatro
Irmãos viveria um novo mo-
mento de razoável movi-
mento migratório nos anos
de 1926 e 1927, quando a
Companhia cria dois novos
núcleos de colonização na
Fazenda Quatro Irmãos, Ba-
rão Hirsch e Baronesa Clara,
respectivamente. Rua Principal de Quatro Irmãos. Fonte: Museu
Judaico de Porto Alegre/ICJMC
Diante do intenso mo-
vimento de emigração/imigração vivenciado pela colônia Quatro Irmãos,
particularmente em 1913, a ICA decide conceder como medida emergencial,
subsídios aos imigrantes. Contudo, entende que a medida mais eficaz para
resolver o angustiante problema vivido pela colônia consiste no auxílio finan-

320
A comunidade judaica em Passo Fundo

ceiro aos imigrantes para que abandonem Quatro Irmãos, buscando estabe-
lecerem-se em outras áreas agrícolas e, mais especificamente, distribuindo-se
pelas cidades do sul do país. Argumenta: “Em vez de empregar um sistema
defeituoso, seria melhor ajudar os imigrantes a deixar a colônia e a procurar
trabalho nas cidades” (Gritti, 1997, p. 46).
O auxílio da Jewish Colonization Association aos imigrantes, para que
procurassem outras áreas, ou mesmo para que retornassem ao seu país de
origem, foi precedido de uma certa relutância por parte da própria, pois,
apesar dos imigrantes terem sido vítimas de agentes pouco escrupulosos, ela
considerava-se moralmente responsável pelos referidos, devido ao seu caráter
filantrópico. Preocupou-se também com a má impressão que esses retornos
poderiam causar na Europa. Assim é que o retorno de 48 pessoas para a
Europa, via Hamburgo e Bremen, ocorre sob reservas da direção central,
enquanto que a dispersão dos imigrantes internamente era apoiada por ela.

Recibo de comprovante de de-


sembolso financeiro dos judeus
para o pagamento do lote na
colônia ICA, em 1925. Fonte:
Memorial da Colônia de Judeus
de Quatro Irmãos. Pesquisa de
campo.

Com o propósito de oferecer alternativas aos imigrantes israelitas para


que se fixassem na colônia agrícola de Quatro Irmãos, a ICA cogitava várias
medidas que pudessem contribuir com tal objetivo. Entre elas, a possibilidade
de utilizar o trabalho dos imigrantes na construção do ramal férreo que liga-
ria a sede de Quatro Irmãos à rede da Viação Férrea do Rio Grande do Sul
em Erebango, a formação de vilas, através do assentamento dos imigrantes,
próximos uns dos outros, e a venda de uma área localizada no Polígono “D”,
inclusive a não-judeus.
Desta forma, a estabilização dos 65 colonos israelitas existentes em

321
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Quatro Irmãos, no ano de 1922, estava longe de efetivar-se. Ao contrário, en-


contravam-se mergulhados em plena crise. Solicitavam que a Companhia os
isentasse do pagamento da anuidade correspondente ao ano de 1922 e redu-
zisse suas dívidas para com a própria e lhes permitisse a exploração livre da
madeira de seus lotes, uma vez que a exploração da madeira só era possível
mediante autorização da ICA.
Após avaliar o pedido dos colonos, a ICA manifestou que os referidos
eram os únicos responsáveis pela difícil condição que vivam. E, a única alter-
nativa que apresentou a eles foi a prorrogação do seu contrato num período
de até 30 anos, de forma a diminuir a anuidade, se eles assim o desejassem.
A colonização problemática e deficitária, até 1923, não impediu a instalação
de serrarias particulares, por meio de contratos de exploração florestal com
a ICA. Em 1922, “a metade da propriedade da Fazenda Quatro Irmãos esta-
va sendo usada para explorar a madeira e erva-mate para exportação, todas
transportadas sobre as linhas da Compagnie Auxiliaire” (Lesser, 1989, p. 62).
Assim, quando em 1923 eclode a Revolução de 23 no Rio Grande do
Sul, a colônia agrícola de Quatro Irmãos encontra-se praticamente despovo-
ada. Dos 65 colonos, que reivindicam auxílio à ICA, em 1922, vamos encon-
trar, um ano depois, 55. E, ao término do movimento de 1923, isto é, no final
de 1924, habitam em Quatro Irmãos, 45 colonos israelitas.
Não se trata de desconsiderar as consequências negativas do movimento
revolucionário de 1923 sobre o êxodo da colônia Quatro Irmãos. Os colo-
nos que lá habitavam, de fato sofreram com os saques, requisições, e com a
invasão da referida pelas tropas revolu-
cionárias comandadas por Felipe Nery
Portinho em setembro de 1923. O que
estamos demonstrando é que a Revo-
lução de 1923 não foi a causa principal
do êxodo israelita da colônia Quatro
Irmãos.

Sinagoga de Quatro Irmãos. Fonte:


Museu Judaico de Porto Alegre/ICJMC

322
A comunidade judaica em Passo Fundo

Os núcleos Barão Hirsch e Baronesa Clara

Para dar novo impulso ao povoamento da Fazenda Quatro Irmãos, a


Jewish Colonization Association cria dois novos núcleos populacionais den-
tro da Fazenda Quatro Irmãos, os núcleos Barão Hirsch e Baronesa Clara nos
anos de 1926 e 1927, respectivamente. Em julho de 1926, o jornal Correio
do Povo explicava a razão pela qual o novo núcleo populacional da Fazenda
Quatro Irmãos, denominava-se Barão Hirsch.

A colonização israelita na colônia Quatro Irmãos está sendo intensifi-


cada, como se sabe, pela ICA. Esta associação, que tem ramificações
em vários pontos no mundo, foi fundada pelo Barão de Hirsch, que,
ao falecer há 30 anos, deixou, para fins de colonização, vários milhões
de libras esterlinas. A viúva, também com o mesmo fim, fez grandes
legados que estão sendo muito bem empregados, neste ou naquele
país, em colonização e obras beneficentes para os israelitas. Por isso,
ao novo núcleo colonial situado a 16 km da sede da fazenda, foi dado
o nome de Barão Hirsch, em homenagem à memória de tão grande
benfeitor (Jornal Correio do Povo, 1926).

A formação deste novo núcleo colonial é descrita por Leon Back num
artigo publicado no jornal Correio do Povo de 27 de julho de 1926, da seguin-
te forma:

É atravessado em sua sede, por uma rua de 2 km de extensão. As casas


dos colonos estão de ambos os lados dessa rua, que é toda arborizada.
Nela também se encontram o hospital, uma escola, uma biblioteca,
a sede da administração da colônia e um edifício para reuniões dos
colonos e diversões. Cada grupo de duas casas tem um poço de água
potável (Jornal Correio do Povo, 1926).

Os imigrantes poloneses e lituanos selecionados pela ICA com o au-


xílio de Ioschp – que viajou para a Europa com tal objetivo – e que se desti-
nam a povoar Barão Hirsch chegam à Quatro Irmãos em dois grupos. O pri-
meiro deles chegou em junho de 1926, e o segundo, grupo menor, composto

323
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de sete famílias, num total de 53 pessoas, chegou em setembro do mesmo


ano. O número total de famílias vindas da Polônia e da Lituânia, em 1926, e
que são assentados em Barão Hirsch é de trinta e três.
Em 1927, 35 famílias europeias escolhidas como o grupo anterior na
Polônia e Lituânia com o auxílio de Gregório Ioschp, formaram o grupo
Baronesa Clara em homenagem à esposa do Barão Maurício de Hirsch. Esse
grupo localizou-se próximo ao ramal férreo de Quatro Irmãos- Erebango.
Antes da instalação desses imigrantes, o local era conhecido como Chalet.
A proximidade do ramal férreo permitiu que os colonos do grupo Baronesa
Clara vendessem à Viação Férrea do Rio Grande do Sul a madeira que ela
utilizava como combustível. A venda da madeira proporcionou aos imigran-
tes uma renda suplementar àquela do trabalho agrícola.
Para cada um desses novos grupos, à semelhança de Quatro Irmãos, a
Companhia organizou uma cooperativa que se ocuparia basicamente da ven-
da de produtos alimentícios, isso porque os colonos receberam, ou melhor,
compraram diretamente da ICA todos os instrumentos necessários à explo-
ração de suas terras. Contudo, as cooperativas de Barão Hirsch e Baronesa
Clara tiveram o mesmo destino que a de Quatro Irmãos. Dois anos após a sua
criação foram fechadas e a ICA advertiu que “as mercadorias depositadas no
armazém, da mesma forma que a serraria, constitui a garantia dos adianta-
mentos consentidos à coo-
perativa” (ICA,1928, apud
Gritti, 1987, p. 79).4
Da mesma forma
que os israelitas instala-
dos nos anos anteriores, os
imigrantes assentados nos
grupos Barão Hirsch e Ba-
ronesa Clara enfrentaram
sérias dificuldades para
Colonos reunidos em frente à cooperativa do nú- sua estabilização. No gru-
cleo Barão Hirsh, em 1942. Fonte: Museu Judaico de po Barão Hirsch, o êxodo
Porto Alegre/ICJMC.
4
  A referência ICA seguida de data na identificação do autor significa que a informação citada é
da Correspondência enviada pela Administração da Jewish Colonization Association de Quatro
Irmãos para a direção central da ICA em Paris.

324
A comunidade judaica em Passo Fundo

ocorreu já a partir do ano seguinte ao de seu assentamento. Os problemas


vão do pouco conhecimento da atividade agrícola ao desconhecimento de
sua dívida para com a ICA, passando pelas reduzidas colheitas agrícolas de-
correntes das condições climáticas.
Em 1931, a Jewish Colonization Association cogitou liquidar sua obra
no Brasil, considerando, inclusive, a transferência dos colonos israelitas de
Quatro Irmãos para a Argentina. Porém, logo retifica sua posição argumen-
tando que isso seria reconhecer o fracasso de toda a atividade iniciada há
quase vinte anos em Quatro Irmãos. Além disso, o “efeito desastroso que
provocaria esta medida em todos os meios judaicos teria uma repercussão
que conduziria a entraves o nosso trabalho em todas as nossas outras obras de
colonização” (ICA, 1931, apud, Gritti, 1997, p. 90). Entretanto, o principal
argumento para que a ICA mantivesse e consolidasse seus estabelecimentos.

É o resultado indireto que temos realizado e realizamos ainda. Refe-


rimo-nos à imigração brasileira que se encontra largamente facilitada
e encorajada por nossas obras de colonização. Pensamos que o Bra-
sil permanecerá no futuro um dos principais países de imigração do
Novo Mundo. O conselho lembrar-se-á, aliás, do número imponente
de imigrantes que, até estes últimos anos e diante da crise atual, pude-
ram, ao concurso da HICEM5, entrar e ser colocado nas aglomerações
urbanas do Brasil. Nos tempos atuais, onde tantos países se fecham
à imigração judia, seria de temer que a liquidação definitiva de nossa
colonização brasileira não trouxesse um corte fatal a toda imigração
judia ao Brasil, e é fundamental sublinhar as consequências deplorá-
veis de semelhante perspectiva (ICA, 1931, apud Gritti, 1997, p. 90).

A decisão da ICA de suspender a colonização de imigrantes israelitas


em 1931 não interferiu na corrente imigratória dirigida ao Brasil, uma vez
que, desde 1921, a Companhia decidiu que sua atividade prioritária seria a de
auxiliar a entrada de judeus no país e não mais a de colonizar.
A suspensão da instalação de imigrantes judeus nos 93.985 hectares

Três sociedades filantrópicas, HIAS (Hebrew Imigration Aid Society) de Nova York, ICA (Jewish
5 

Colonization Association) de Paris e Londres durante algum tempo, EMIGDIREKT (Emigrations-


-Direktion) de Berlim formaram em conjunto a HICEM para auxiliar os judeus em sua emigração
da Europa para diversos países.

325
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de propriedade da Jewish Colonization Association não significou a inter-


rupção das atividades de exploração madeireira e venda de terrenos. A ICA
permaneceu em Quatro Irmãos até 1962, quando encerrou definitivamente
sua atuação na Fazenda, uma vez que a exploração madeireira encontrava-
-se esgotada e os terrenos todos vendidos. O número de imigrantes israelitas
instalados pela Companhia em Quatro Irmãos, durante o meio século que lá
atuou, revela que o assentamento dos imigrantes judeus não era sua tarefa
prioritária.

Colonos instalados em
Quatro Irmãos pela Jewish A Jewish Colonization
Colonization Association Association e os intrusos
(1912-1930)
Além das dificuldades com a estabi-
Anos Colonos instalados lidade dos imigrantes israelitas assenta-
1912 73
dos em seus domínios, a ICA vivenciou
1913 120
a constante ocupação de sua propriedade
1914 101
1915 03 por colonos em busca de terras. Essa ocu-
1916 09 pação era definida pela Companhia como
1917 10 intrusão. A intrusão caracterizada como a
1918 03 ocupação de terra da qual não possui título
1919 04 legal foi constante na Fazenda Quatro Ir-
1920 02 mãos. Porém dois períodos foram de maior
1921 - intensidade pela dimensão das discussões
1922 -
em torno da questão.
1923 -
No primeiro período, de 1927 a 1929,
1924 -
1925 02 época em que as intrusões passam a ter um
1926 45 caráter político bem definido. Elas estão li-
1927 63 gadas à contestação da posse da Fazenda;
1928 12 e o período de 1948 a 1950, momento em
1929 06 que as discussões chegam até a Assembleia
1930 01 Legislativa do Estado e a desapropriação
Fonte: ICA, apud Gritti, 1997. da própria é proposta.
As ocupações mostraram-se oscilan-
tes quanto à quantidade de indivíduos pre-

326
A comunidade judaica em Passo Fundo

sentes, porém tornaram-se perenes pela constância delas. O período de 1927


a 1929 ganha notoriedade, porque em decorrência das ações desencadeadas
pela ICA com o propósito de expulsar os ocupantes, o diretor da Companhia,
Marc Leitchic é preso por um período de quarenta e oito horas. Em novem-
bro de 1928, o processo é encerrado e o diretor da ICA e demais denunciados
são absolvidos.
Como medida de proteção à sua propriedade, a ICA decide organizar
um grupo de homens “chefiados pelo comissário da Secção para policiar os
limites da Fazenda, principalmente nos pontos de mais fácil penetração e
nos lugares mais ricos” (Jornal O Nacional, Passo Fundo, nov., 1928). Como
propósito de tornar pública a decisão de defender pela força sua propriedade,
a Companhia publicou pela imprensa o seguinte aviso:

Chegando ao nosso conhecimento que certos indivíduos, instigados


por terceiros, pretendem invadir a Fazenda Quatro Irmãos, estabe-
lecendo posses clandestinas, levamos ao conhecimento público que
faremos no caso aplicação do artigo 502 do Código Civil que diz:
o possuidor turbado, ou esbulhado poderá manter-se ou restituir-se
por sua própria força, HICEM: Três sociedades filantrópicas, HIAS
(Hebrew Imigration Aid Society) de Nova York, ICA (Jewish Coloni-
zation Association) de Paris e Londres e durante algum tempo, EMIG-
DIREKT (Emigrations-Direktion) de Berlin formaram em conjunto
a HICEM para auxiliar os judeus em sua emigração da Europa para
diversos países contanto que o faça logo. Prevenimos mais que nas
zonas ameaçadas se encontram empregados nossos encarregados de
evitar a invasão (Jornal O Nacional, Passo Fundo, nov., 1927).

As invasões à Fazenda não só prosseguem, como se intensificam, e a


ICA decide recorrer ao chefe de Polícia em Porto Alegre.

Nós temos recorrido às expulsões judiciárias e destruição de ranchos,


construídos pelos intrusos, mas estes têm começado a praticar outro
sistema: sendo expulsos de um lugar, eles se transportam para outro,
e os novos intrusos ocupam os lugares evacuados; nós temos obtido
menos de 60 restituições judiciárias, cujo resultado é, por assim dizer,
nulo. No último tempo, o número de intrusos começou a aumentar

327
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de uma maneira inquietante atingindo atualmente 200 (ICA, 1930,


apud, Gritti, 1997, p. 99).

O pedido de ajuda feito ao chefe de Polícia de Porto Alegre teve resulta-


do positivo. Em março de 1931, soldados da Força Pública foram deslocados
para Quatro Irmãos e o processo de expulsão iniciado cuidadosamente “para
que não se possa acusar em seguida nossos amigos chefes de polícia do muni-
cípio do delito de abusar dos poderes” (Gritti, 1997, p. 100).
Apesar da vigilância ininterrupta, as invasões à Fazenda foram uma
constante durante o longo período em que a Companhia desenvolveu suas
atividades em Quatro Irmãos. O período em que as invasões causaram maio-
res problemas foi compreendido entre os anos de 1948 e 1950. Nesse período,
não só o número de invasores e a área ocupada pelos referidos são superiores
às ocupações anteriores, mas também e, principalmente, a amplitude do de-
bate em torno dessas.
O debate em torno das intrusões sofridas pela ICA atinge a Assembleia
Legislativa, onde, além da discussão em torno dos objetivos da Companhia
que fora declarada de utilidade pública pelo Governo do Estado, quando au-
torizara seu funcionamento no Rio Grande do Sul, discute-se a conveniência
ou não, para o Estado, em desapropriar a Fazenda. Essa nova invasão à fa-
zenda fora comandada por José da Rosa Sutil, o “Capitão Belo” que propa-
gava a distribuição gratuita dos terrenos ocupados, pois dizia:

Que a terra por ele e seu bando ocupada não é ‘bem legal’ ou que o
registro está viciado, portanto, posse duvidosa e, como tal, é terra ‘de
todos’ que deve ser partilhada entre os atuais ocupantes. Mas, admite,
também, que é terra particular que ao Estado cabe desapropriar ou
comprar para distribuir ou vender baratinho, sem prazo e sem quotas
determinadas de pagamento (Anais da Assembleia Legislativa do RS,
1949, p.30).

Paralelamente à discussão desenvolvida na Assembleia Legislativa, a


imprensa, da capital e os jornais dos municípios vizinhos às terras da ICA,
envolviam-se na discussão da importante questão. O jornal Diário de Noti-
cias da capital gaúcha enviou correspondentes ao local e realizou uma série

328
A comunidade judaica em Passo Fundo

de reportagens sobre a invasão. Após muitas discussões em torno da atuação


da ICA na Fazenda Quatro Irmãos, é proposta a desapropriação da área in-
trusada. Em junho de 1948, a Assembleia Legislativa aprova a solicitação
para que o governo do Estado avalie a possibilidade de desapropriar a área.
A desapropriação da área intrusada que pertence ao município de Ge-
túlio Vargas (emancipado de Erechim em 1934) não se concretiza, pois a co-
missão encarregada de estudar a questão e que era composta pelos deputados
Raymundo Fiorelo Zanin e Godoy Ilha, ambos representantes da região de
Erechim e do engenheiro agrônomo José Martins, elemento indicado pelo
Governo do Estado, chega à conclusão de que o alto valor da terra no local
determinaria a desapropriação por elevado preço, o qual, somado às custas,
etc., oneraria demasiadamente o Estado. Além disso, abrir-se-ia um perigoso
precedente: imediatamente, do dia para a noite, nova área seria intrusada
para forçar o Governo do Estado a novas desapropriações e, assim, até a
desapropriação de toda a área da fazenda, bem como das propriedades vizi-
nhas.
A fórmula encontrada para a pacificação, segundo a Comissão, foi a
venda direta dos terrenos pela Jewish, pois, dessa forma, o processo seria
mais rápido, menos oneroso ao Estado, além de dispensar toda uma trabalho-
sa e morosíssima tramitação burocrática por parte do Estado. A Companhia
proprietária da terra obriga-se a medir, lotear, demarcar e vender toda a área
aproveitável e disponível à lavoura e à criação, sob condições razoáveis de
preços e prazos, tão logo permitam o intrusamento e a autorização do Con-
selho Nacional de Imigração e Colonização.

Venderá terras aos atuais intrusos de suas terras, desde que o can-
didato tenha condições financeiras ou credenciais para garantir o
pagamento a prazo. Quanto aos que não dispuserem de meios ou
possibilidades de pagamento à vista ou a prazo, serão retirados da
área intrusada, cabendo, ao Estado, promover a sua locomoção, bem
como promover a remoção dos intrusos que não puderem ou não
quiserem adquirir terra por compra na área intrusada (Anais da As-
sembleia Legislativa do RS, 1949, p. 545-546).

A invasão da Fazenda e a consequente proposta de desapropriação da

329
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

área não chegaram a constituir-se em uma séria ameaça ao patrimônio da


Jewish. As invasões tampouco impediram que a ICA prosseguisse com a ex-
ploração florestal e a venda de terrenos.

A exploração florestal

O interesse da Jewish Colonization Association pelas florestas de Qua-


tro Irmãos não era recente. A avaliação das florestas e a viabilização de sua
exploração são anteriores à atividade de colonização israelita, ocorrida a
partir de 1912. Já no ano de 1911, foram feitas por diferentes pessoas, qua-
tro avaliações das florestas na área recentemente adquirida pela ICA. Nesse
mesmo ano, o diretor geral da Companhia vem ao Rio Grande do Sul colher
informações em relação ao mercado madeireiro.
A riqueza florestal existente na mais nova propriedade da Jewish Colo-
nization Association é por demais evidente no entusiasmo do diretor da co-
lônia Filipson. Na correspondência de 06 de fevereiro de 1911 exclamava que
os cálculos a respeito do valor da madeira provam suficientemente as grandes
riquezas que há por explorar, e eu não saberia fazer melhor comparação do
que chamando-as de mina de ouro.
Como consequência do interesse pela exploração florestal, a ICA tomou
o cuidado de incluir, nos Contratos de Promessa de Compra e Venda, realiza-
dos com os colonos israelitas, uma cláusula proibindo-os de desmatar o lote
adquirido, sem a prévia autorização da Companhia. Da mesma forma, os
terrenos só eram vendidos aos não – israelitas após a ICA ter extraído a ma-
deira dos respectivos lotes, através de um contrato de exploração florestal,
onde a Companhia arrendava uma determinada área arborizada aos madei-
reiros, israelitas ou não, para que a explorassem (Gritti, 1997, p. 123).
A intensificação da exploração florestal da Fazenda Quatro Irmãos
ocorreu no período da Primeira Guerra Mundial, uma vez que não sofreu a
concorrência dos produtores europeus, exportando, assim, para os países vi-
zinhos, a Argentina e o Uruguai. Para a exportação madeireira a ICA criou
toda uma estrutura de transporte. Concomitante a avaliação da riqueza flo-
restal da Fazenda Quatro Irmãos, a ICA definiu a construção de um ramal
férreo numa extensão de dezenove quilômetros, ligando a sede da Fazenda à

330
A comunidade judaica em Passo Fundo

Rede da Viação Férrea do


Rio Grande do Sul em Ere-
bango. Assim, quando do
movimento revolucionário
de 1923/1924, que impossi-
bilitava a Viação Férrea de
fornecer vagões aos madei-
reiros e, na década de 1940,
quando os madeireiros da
região foram novamente
atingidos pela insuficiência
de vagões para o transporte Serraria na Colônia Quatro Irmãos. Fonte: Memo-
da madeira, a ICA é pouco rial da Colônia de Judeus de Quatro Irmãos. Pes-
atingida pela deficiente rede quisa de campo.
de transporte, uma vez que o parque ferroviário da referida era composto por
46 vagões e que transitavam sobre os trilhos da Viação Férrea, por força de
um Contrato de Tráfego Mútuo.
Durante o período de
atuação em Quatro Irmãos
1912/1962, a ICA foi constan-
temente denunciada ao Gover-
no do Estado por não se preo-
cupar com o replantio das áre-
as devastadas. Contava a ICA
com a proteção do Delegado
Florestal do Rio Grande do
Sul, que afirmava ao Governo
Trem da ICA. Fonte: Museu Judaico de Porto do Estado que a Companhia
Alegre/ICJMC. cumpria com suas obrigações
de reflorestamento.
Apesar de o delegado florestal afirmar que a ICA repovoava as áreas
desmatadas com o plantio de novas árvores e que passou, desde 1948, a plan-
tar essencialmente o pinheiro, os resultados do reflorestamento, observados
em 1959, diferem totalmente do apregoado. É a própria Companhia que ava-
lia o resultado do reflorestamento, em substituição aos pinheiros abatidos:

331
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Como resultado do reflorestamento, temos atualmente uma área de


aproximadamente 200 hectares com plantio de eucaliptos, cuja idade
varia entre um e dez anos. Esta área de terra está incluída nas nossas
reservas. Infelizmente, este eucaliptal não tem valor comercial maior
do que se fosse apenas considerado o valor da terra. Este plantio de
eucaliptos foi uma consequência do compromisso de reflorestamento
a que estávamos sujeitos por lei (ICA, 1959, apud, Gritti, 1997, p.
128).

Além disso, toda madeira extraída pelos madeireiros em atividade na


Fazenda, por força de um contrato de exploração florestal, deveria ser trans-
portada pelo ramal férreo da Jewish Colonization Association. O ramal fér-
reo, construído pela Brazil Railway e entregue ao tráfego em 1917, encerrou
suas atividades em 1958, quando a exploração florestal da Fazenda Quatro
Irmãos chegou ao seu final com o esgotamento das florestas.

Migração de judeus para a cidade de Passo Fundo

Segundo entrevistas realizadas com membros da comunidade judaica


de Passo Fundo, algumas causas da migração para o meio urbano de Pas-
so Fundo tornaram-se comuns nas narrativas. Dentre elas estão os conflitos
com posseiros e invasores no interior da área da colonização (ICA), fruto,
em grande parte, da pressão pela terra nas primeiras décadas do século XX
no centro-norte do Rio Grande do Sul. No roll de outras causalidades está a
grande peste de gafanhotos que aconteceu em 1918, que acabou dizimando
a produção agrícola e as pastagens para o gado. A intensa atração às cidades
da região, em particular, Passo Fundo e Erechim, não ficou de fora, principal-
mente em razão da possibilidade dos filhos estudarem, dos pais atuarem no
comércio e indústria otimizando os capitais oriundos da poupança efetivada
na colônia. Há também questões ligadas à assistência de saúde, à valorização
dos lotes de terra, à inexistência da madeira em razão da intensa derrubada
das matas e da presença de serrarias no interior da colonização, além de que,
o histórico baixo preço dos produtos agrícolas da economia de excedentes,
em particular, o trigo e o milho, que acabaram desestimulando a produção e
preferindo vender a terra.

332
A comunidade judaica em Passo Fundo

Na realidade, o desejo de saída dos filhos para estudar aliava-se ao dos


pais no sentido de evitar trabalhar na terra. “Daí, um foi atraindo o outro”;
filhos saíam e não queriam mais voltar, daí os pais é que acabaram ficando
perto dos filhos. “O esvaziamento da ICA ocorreu quando os filhos preci-
savam de colégio mais adiantado do que tinha lá” (Entrevista direta com
Daniel Winik, membro da comunidade Judaica de Passo Fundo). Segundo o
referido entrevistado,

“De acordo com a necessidade da família e dos filhos. Hoje você tem
uma filha ou um filho que termina uma parte do estudo aqui em
Passo Fundo e precisa sair daqui, manda o filho ou a filha, leva junto,
vai lá, aluga um apartamento para o filho ficar. Naquela época não,
a família ia junto, porque na Europa eles eram muito perseguidos e
aqui eles tinham medo de que pudesse acontecer, então eles iam de
atrás” (Entrevista direta com Daniel Winik).

A família era central para o judeu; por isso, separar filhos dos pais, so-
mente em casos extremos de imigração internacional ou em outras circuns-
tâncias, mas para estudos e/ou trabalho, raramente os pais separavam-se dos
filhos.
Essa questão da educação revelou-se central para os judeus. A escola
Instituto Educacional (IE), de Passo Fundo, em 1920, liderava no número
de matrículas de judeus; havia em torno de 260 judeus (Silva, 2002, p. 104).
O número de alunos revela a intensa preocupação das famílias judias com a
educação dos filhos. Nesse sentido, os pais sentiam-se também pressionados
para residir junto aos filhos; isso auxiliaria na vigilância e na decisão sobre
casamentos, na manutenção do pertencimento religioso e grupal.
O casamento era um ritual muito importante para as famílias de judeus,
principalmente para a manutenção da identidade, princípios, hábitos, tradi-
ções, preceitos religiosos e proteção contra a discriminação. Nesse sentido,
a endogamia era muito incentivada. Portanto, estudo, trabalho e casamento
eram importantes para o núcleo familiar. Segundo Berel,

“Meu avô pegou a minha mãe e foram a Porto Alegre para conhecer
a coletividade de Porto Alegre, no bairro Bonfim e lá ela conheceu
o meu pai. Um tempo depois começaram a namorar e aí casaram.

333
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Quando eles casaram, tiveram três filhos, eu e meu irmão mais ve-
lho nascemos em Porto Alegre, também no bairro Bonfim, esse meu
irmão já é falecido. Meu irmão mais novo nasceu em Passo Fundo.
Quatro anos depois de casados, eles vieram para cá (Passo Fundo),
onde o meu pai ficou até seu falecimento. Ele está também no cemi-
tério israelita de Passo Fundo. O meu pai trabalhou como massagista.
O Arão Baril era meu tio, irmão da minha mãe, filho do Waldemar
com a sua primeira esposa Sofia” (Entrevista direta com Berel Natan
Engelment, líder religioso da comunidade judaica em Passo Fundo).

Em meados do século XX, tanto Passo Fundo, quanto Erechim cres-


ciam muito; a urbanização já dava os ares de cidades de referência regional;
havia indústrias em expansão, abertura de escolas, intenso comércio de pro-
dutos agrícolas e da indústria têxtil. Nesse sentido, a possibilidade de montar
algum tipo de negócio, em geral, no ramo comercial, tornava-se atrativa para
judeus da ICA, não muito diferente do que aconteceu em Santa Maria e em
outros lugares onde houve colonização com as mesmas características.

“A coletividade aumentou e daí muitos vieram morar em Passo Fun-


do, outros foram morar em Erechim, ou para outras cidades como
Porto Alegre. Então, a necessidade de se ter, assim como se tinha,
uma sinagoga, tinha que ter também, um local, o cemitério israeli-
ta. Aí vocês podem perguntar, e os imigrantes, quando vieram, onde
eram enterrados tão logo não tinha cemitério israelita? Eles eram en-
terrados em cemitérios ecumênicos, têm muitos judeus enterrados
em cemitérios ecumênicos, em São Paulo em grande maioria. Exis-
te no interior do Rio Grande do Sul cemitérios israelitas; em Passo
Fundo, Quatro Irmãos, Erechim e Santa Maria, todas também detêm
uma sinagoga da mesma forma, ambos preservados (sinagoga e cemi-
tério)” (Entrevista direta com Berel Natan Engelman, líder religioso
da comunidade judaica em Passo Fundo).

Muitos judeus estabeleceram-se no ramo comercial no meio urbano de


Passo Fundo. Mas, muitos deles começaram como mascates, vendendo pro-
dutos de casa em casa, no meio rural, urbano e regional. Nos anos 30, já
havia registros de várias lojas, em geral, de armarinhos, bem como comércio

334
A comunidade judaica em Passo Fundo

de madeira, fábrica de móveis, farmácias, sapatarias e lojas de calçados de


judeus.

“Quando chegamos em Passo Fundo, o pai foi ser um tipo de masca-


te; ele viajava para as colônias ao redor das cidades grandes daquela
época, tirando fotografias de casais. [...]. Depois, o pai conseguiu abrir
uma casa comercial em Passo Fundo, um lojão; num lado era bazar,
em outro era tecidos e confecções. Era um lojão à moda antiga”.6

Outro judeu diz que,

“Eu comprei um mercadinho na Avenida Brasil de Passo Fundo.


Dava um bom movimento. Vendia bem. Era ao lado do Banco do
Rio Grande. E já depositava ali ao lado minhas finanças. Aí viemos
para Porto Alegre e compramos um armazém na Rua Santana”.7

Num levantamento que fizemos, a partir de informações fornecidas em


entrevista com o Sr. Daniel Winik, localizamos mais de 40 estabelecimentos
de judeus em Passo Fundo. Nesse sentido, segundo fontes do Jornal Diário
da Manhã de Passo Fundo, havia, entre 1930 a 1980, na cidade, em torno de
80 estabelecimentos comerciais e industriais de judeus; os mais importantes
eram tecidos, calçados e confecções (esses, no todo, correspondiam em quase
30% dos estabelecimentos de judeus). As atividades ligadas ao setor madei-
reiro, aos bares, armazéns e armarinhos também carregou sua marca. Em
1950, havia em torno de 500 pessoas judias no meio urbano de Passo Fundo.
“O que atestava isso era o número de pessoas que participava na sinagoga”
(Entrevista com Daniel Winik).
Segundo Brumer (1994), entre 1930 e 1950, no Rio Grande do Sul, a
atividade de comerciante absorvia 31% da comunidade judaica.8 Algumas
famílias de judeus foram de grande expressão no comércio e na indústria
de Passo Fundo, dentre elas estão os Birmann, Sirotsky, Baril, Bacaltchu-
ck, Winik, Viuniski, Freitag, Corralo, Engelman, Kleiman, Ioschp, Melnick,
6
  MESTER, Efraim. Entrevista. Acervo do Departamento de Memória. Museu Judaico de Porto
Alegre. Entrevista n. 363. Porto Alegre, 1991, apud Silva, 2002.
7
  CHOTGHIS, Jaime. Entrevista. Acervo do Departamento de Memória. Museu Judaico de Porto
Alegre. Entrevista n. 208. Porto Alegre, 1988.
8
  BRUMER, A. Identidade em mudança..., p. 88.

335
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Schuwartzmann, Maltchik, Meder, Bronchtein, Nedef, Kwitko, Berlowitz,


Matone, Tabasnik.

Casa Elétrica, de Abrahão Birmann;


loja no centro, na Rua Moron,
ao lado do Banco da Província.
Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E.
Comércio, século XX – Passo Fundo.
Passo Fundo: Sincomércio, 2002.

Anúncio das Casas comerciais


de José Sirotski. Fonte: Guia
Ilustrado..., 1939.

Casa Carioca, loja de móveis, de


Samuel Bacaltchuk, na Av. Brasil.
Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E.
Comércio, século XX – Passo Fundo.
Passo Fundo: Sincomércio, 2002.

Anúncio do armazém de secos


e molhados de Waldemar Baril,
localizado na Avenida Mauá, atual
Presidente Vargas. Fonte: Guia
Ilustrado..., 1939.

336
A comunidade judaica em Passo Fundo

O campo religioso judeu migrou também para a cidade de Passo Fundo.


O seu atual líder religioso nos disse em entrevista que a dimensão religio-
sa deles é parte integrante da vida. Uma das primeiras demandas do grupo
quando migrou para Passo Fundo foi a sinagoga.

“Essa sinagoga é de 1922, aqui, no mesmo prédio, mesmo local, so-


mente uma sinagoga em Passo Fundo. Com certeza, já faz parte do
patrimônio do município de Passo Fundo, assim como o cemitério
israelita, que é de 1924. Tanto o cemitério, quanto a sinagoga foram
terrenos adquiridos pelos judeus daquela época. Os judeus daque-
la época, aqueles que tinham mais condições foram e adquiriram (o
terreno). Quando se tinha sinagoga, ou antes mesmo de ter sinagoga,
quando morria um judeu em Passo Fundo, eles eram enterrados em
Quatro Irmãos. [...]. Daí viram que eram duas coisas fundamentais
para o judeu e construíram em Passo Fundo” (Entrevista direta com
Berel, líder religioso da comunidade judaica de Passo Fundo).

Em nossas entrevistas, esses pilares (família, trabalho, estudo e religião)


são sempre expressos e revelam a ligação com as migrações, as saídas da co-
lônia, o reagrupamento familiar. Um entrevistado disse que o “judaísmo se
aprende em casa, é junto à família”.

Sede da União
Israelita Passo-
fundense e
antiga Sinagoga
em Passo
Fundo.

337
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Atual Sinagoga
Abrahão Melnick
em Passo Fundo.
Fonte: foto de
Flavio Tissot.

Convivência e integração social

A revisão de literatura que fizemos indica com clareza que os judeus


sempre foram, de uma forma geral, habitantes de povoados com caracterís-
ticas urbanas. A terra era importante, mas mais como extrativismo e pasto-
reio do que propriamente produção agrícola. O tino para os negócios exigia
consumidores, população, circulação mercantil e financeira. Nesse sentido,
os judeus estabelecidos em Passo Fundo e que saíram da ICA buscaram ati-
vidades que envolvessem com mais intensidade a dimensão da troca, do uso
do dinheiro, do comércio em geral.
Em razão disso, em entrevistas, percebemos que houve uma intensa in-
serção e integração social. No meio urbano de Passo Fundo havia espaços
para os negócios. A cidade estava crescendo em múltiplos âmbitos, em par-
ticular, geográfica e demograficamente. Havia muitos sírios e libaneses, bem
como italianos e alemães no ramo comercial. Isso pode ter provocado algu-
mas reações em razão da ampliação da concorrência com os já estabelecidos,
até porque grande parte dos judeus localizou-se na parte central da cidade, ao
redor da Av. Brasil e das ruas Moron, General Osório e General Netto.
Nas entrevistas, ficou clara que a concorrência no setor de comércio

338
A comunidade judaica em Passo Fundo

também era reveladora de processos de discriminação, da mesma forma


como o foi no interior da ICA com os intrusos e posseiros “que diziam que
judeu não deveria receber terra; poucos sabem que eles tiveram de comprar e
pagar a terra, ninguém ganhou” (Silva, 2002, p. 79). Por isso, muitos judeus
migraram para cidades maiores como Porto Alegre e São Paulo, onde o ano-
nimato era maior.
Foram os judeus que iniciaram a venda de produtos a prestações. “Isso
deixava outros comerciantes com temor”. Jornais de Passo Fundo, em geral,
expressavam a preocupação de comerciantes não judeus em torno das “prá-
ticas dos judeus” (Silva, 2002, p. 124). Jornais do país também expressavam
essa preocupação de comerciantes, bem como usavam formas múltiplas para
desqualificar os judeus como prejudiciais ao país, “salteadores e piratas do
mar”, “um povo sem pátria”;9 “[...] aqui em Passo Fundo, tenho notado algo
interessante. E é com referência aos judeus. A menor desinteligência que haja
com um judeu, um que seja, é motivo para que os muros da cidade, no dia
seguinte, amanheçam cobertos de rabiscos como estes: ‘Abaixo os judeus’,
‘Morram os judeus’ e outras coisas mais”.10
Nas entrevistas que efetuamos, há clara expressão de ações e situações
de discriminação, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, pois
“existiam pessoas aqui na cidade que eram muito contra os judeus; nossos fi-
lhos tinham muito medo, nós tínhamos medo. Primeiro com Getúlio, depois
com a infiltração de nazistas em vários setores”. Isso fez com que os judeus
buscassem viver próximos, produzir círculos de pertencimentos; reuniões em
encontros na Sinagoga foram intensificados no período. Religião, hábitos,
língua, experiências partilhadas, produziam pertencimentos, memórias cole-
tivas, fatos mundiais que os tocavam diretamente e produzia temores e fecha-
mentos no interior e exterior ao grupo (Silva, 2002).
Entrevistados relatam que houve muita discriminação ainda no período
inicial da ICA e isso se intensificou no meio urbano de Passo Fundo e Ere-
chim. Há também fortes indícios de que houve discriminação de judeus junto
a um clube recreativo de grande expressão na cidade de Passo Fundo.

  Ver Jornal O Nacional. Passo Fundo, 26 set., 1936, p. 3.


9

10
  Jornal O Nacional. Passo Fundo, 17 abr., 1940, p. 2.

339
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

“De 1940 a 1945, eu vivi em Passo Fundo. Lá a hostilidade contra os


judeus era muito forte, sendo que os dois clubes mais importantes lá
não aceitavam sócios judeus. [...]. Havia meia dúzia de famílias judias
que conseguiram entrar, mas normalmente o judeu era discrimina-
do”.11

“Em Passo Fundo houve uma época em que foram pichadas todas as
paredes – ‘Abaixo os Judeus’. Quebraram vitrines de todos os judeus.
[...]. Eles não deixavam idish se reunir [...]. No meio de uma reunião
chegou a polícia e prenderam todo o mundo. Eu saí na hora junto
com o marido. Um se escondeu embaixo da cama, outro dentro do
armário, outro no banheiro, mas eles levaram todos lá presos”.12

Com o fim do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial esse proces-


so de discriminação foi reduzido e os judeus retomaram normalmente suas
atividades comerciais, porém, muitos decidiram migrar para centros maiores,
para espaços de maior agrupamento geográfico, como é o caso do Bairro
Bom Fim em Porto Alegre.
Em fragmentos obtidos de histórias de vida de entrevistados em Passo
Fundo, elementos comuns, como sacrifício nos primeiros tempos da colônia,
a repressão, o trabalho árduo, a parcimônia nos gastos, a migração para cen-
tros urbanos, a família, o estudo e a religião compõem o quadro central das
narrativas.
Segundo Daniel Winik13,

O meu pai é oriundo do Pinsk, veio de lá com 19 anos de idade, dos


pântanos de Pinsk da Polônia. Atualmente essa cidade pertence a Bie-
lorrússia A minha mãe é da Romênia, também hoje não é mais Romê-
nia, hoje é Moldávia. Meu avô materno veio para o Brasil através da
ICA em 1911, foi um dos primeiros a vir. Ele se chamava Bernardo
Zeltzer. Meu pai veio com os irmãos e os pais, veio meu avô, minha
vó, tios. Eles eram duas mulheres e dois homens, com os filhos, e veio

11
  WAINSTEIN, Boris. Entrevista. Acervo do Departamento de Memória. Museu Judaico de Porto
Alegre. Entrevista n. 46. Porto Alegre, 1987, apud, Silva, 2002.
12 
BLOCHTEIN, Adelina. Entrevista. Acervo do Departamento de Memória. Museu Judaico de
Porto Alegre. Entrevista n. 3. Porto Alegre, 1988. Ver, também, dissertação de Silva, 2002.
13
  Entrevista com Daniel Winik, 83 anos; realizada no dia 15 de maio de 2015:

340
A comunidade judaica em Passo Fundo

um sobrinho junto também. Meu pai tinha 19 anos, sapateiro. Meu


avô era sapateiro, meu tio também era sapateiro. Meu avô paterno
veio direto a Passo Fundo, eu nunca consegui uma explicação sobre
o porquê, acho eu que ficava perto de Quatro Irmãos e de Erechim,
por que Erechim ficava perto de Quatro Irmãos, então ficaram per-
to. Eles queriam abrir uma
banca de sapateiro, já que
eles eram em três. Eles des-
ceram em Santos e de San-
tos vieram para cá (Passo
Fundo). Meu pai acabou
conhecendo minha mãe
em Quatro Irmãos. [...].
Meu avô paterno chegou
em Passo Fundo e com-
prou aquela casa que tem
a loja do João Café. Eles
montaram uma banca de
sapateiro, era o que eles
O Sr. Daniel Winik. Fonte: pesquisa de campo.
tinham lá na Polônia; era
o meu pai, meu avô e meu tio que eram sapateiros, meu pai morreu
sendo sapateiro. Ele morreu em 1965, e no dia em que ele morreu, ele
forrou dois pares de sapatos para um baile que tinha, era um sábado,
tinha um baile no Comercial [Clube], então quem tinha dinheiro
mandava forrar os sapatos.

Na entrevista com Berel Natan Engelman14,

Os Engelman eram primos irmãos, tinham os mesmos sobrenomes,


eram os meus avós paternos. Era bastante comum, mais ainda nas
famílias, hoje ainda existe uma tendência a manter isso um pouco,
mas isso é nos judeus ortodoxos. [...]. Os meus avôs paternos então,
ele se chamava Israel e ela se chamava Fany, estou dando os nomes
em brasileiro para ficar mais acessível o entendimento. Eles eram pri-
mos irmãos, que acabaram então tendo cinco filhos, sendo quatro

Berel Natan Engelman, Líder Espiritual da Comunidade Israelita de Passo Fundo Sinagoga Abrahão
14 

Melnick.

341
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

nascidos na Europa, dois nasceram em Woldavia, na Polônia, e dois


nasceram em Losne, na Ucrânia, então eles passaram pela Europa. O
meu pai, que é o mais novo e o temporão, nasceu em Porto Alegre,
ele foi o único que nasceu no Brasil em 1938, no bairro Bom Fim.
Aí acontece que, o meu avô Israel, ele veio para Brasil, isso em 1929.
Ele veio já casado com os quatro filhos lá, somente cinco anos depois
que minha vó veio para o Brasil. Só depois de cinco
anos é que ela veio com os quatro filhos. Ambos
estão enterrados no cemitério israelita de Porto Ale-
gre, os demais filhos, da mesma geração que meu
pai, dois ainda estão vivos, ambos com mais de no-
venta anos de idade, continuam morando no bairro
Bom Fim. [...]
Por parte da minha mãe, existe então o meu avô,
seu Waldemar Baril, que veio aos seis anos de idade
para o Brasil, talvez eu erre a data, em 1912. Esses
judeus vieram a princípio, em sua maioria no porto
de Santos e Rio de Janeiro, meu avô desceu no Rio
de Janeiro, por algum motivo acabou vindo aqui en-
Berel Natan e Rivka Engel- tão, em Quatro Irmãos, através da ICA. Com certe-
man. Fonte: http://www.si- za, eles vieram com alguns amigos de lá, da mesma
nagogapf.com.br/historico
região que viviam, da mesma comunidade e assim
era feito. Vinham em grupos e recebiam uma ajuda inicial que a ICA
oferecia. É o grupo que aprendeu a trabalhar como uma colônia agrí-
cola. Meu avô Waldemar se casou a princípio com uma judia que tam-
bém era advinda da Rússia, chamada Sofia, com quem teve três filhos.
Ele ficou viúvo muito cedo e acabou casando, posteriormente, com a
Sara, nascida em Quatro Irmãos. Ambos, tanto meu avô Waldemar,
quanto a Sofia e a Sara estão enterrados aqui no cemitério israelita
de Passo Fundo. Com a Sara, meu avô teve cinco filhos, sendo uma
delas a minha mãe. Eu tenho uma tia que mora em Israel há 45 anos,
tem um tio que mora em Curitiba, a minha mãe que mora em Passo
Fundo e mais dois irmãos também em Passo Fundo.

Outro entrevistado, o advogado Daniel Viunisk, fala da imigração e mi-


grações que faziam parte da cultura judaica, tentando sempre buscar algo

342
A comunidade judaica em Passo Fundo

melhor para seus filhos, bem como as várias profissões e os estabelecimentos


comerciais de Passo Fundo de propriedade de judeus:

[...]. Em 1943, meu pai resolveu sair de Quatro Irmãos [...]; ele veio a
Passo Fundo para dar escola aos seus filhos, éramos em dois. Aqui ele
se estabeleceu juntamente com uma quantidade enorme de famílias
que já tinha em Passo Fundo. Lá [em Quatro Irmãos] chegou a existir
quinhentas famílias,
enquanto em Passo
Fundo, no início da
colonização e da ocu-
pação judaica [...],
nós tínhamos umas
cem famílias. Os que
vieram pra cá, com-
praram um terreno
e fizeram uma sina-
goga, que até hoje
funciona. Ao judeu Sr. Daniel Viunisk. Fonte: pesquisa de campo.
tem um valor muito
grande a morte, e aí então compraram uma gleba grande no cemitério
de Passo Fundo. [...] Aqui em Passo Fundo, os judeus se estabelece-
ram principalmente com o comércio; comércio de tecidos, comércio
de confecções, mas havia outras atividades: havia o açougueiro, havia
o alfaiate, cada um com suas habilidades.
O meu pai se estabeleceu inicialmente, por ser carpinteiro, com um
engenho de madeira; ele cortava madeira na região e trazia para Passo
Fundo. Com o passar do tempo resolveu abrir uma loja [...], uma das
dezenas de lojas de Passo Fundo de propriedade de judeus. Com o
passar do tempo, a sociedade israelita em Passo Fundo foi diminuin-
do, porque os filhos foram saindo pra faculdade, não tinha ainda fa-
culdades em Passo Fundo, aí muitos se transferiram para Porto Alegre
e para São Paulo. Hoje, a sociedade passo-fundense tem apenas 15
famílias judaicas, mas a sinagoga continua funcionando, tem reuniões
todas as sextas-feiras onde nós comemoramos o shabat, o sábado, e
participamos das festas judaicas.

343
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Documento de entra-
da no Brasil do judeu
Moisés Viuniski, pai de
Daniel, em 1927. Fonte:
Daniel Viunisk.

Considerações finais

Foram várias as causas que levaram os imigrantes judeus instalados na


Fazenda Quatro Irmãos, a partir de 1912, a abandonarem a própria. As di-
ficuldades com o trabalho agrícola, pois muitos deles não conheciam tal ati-
vidade, o solo e as condições de trabalho diferentes das que conheciam na
Europa, o movimento revolucionário de 1923/1924, as dificuldades dos anos
iniciais no assentamento, uma vez que a Jewish Colonization Association
não estava preparada e organizada para assentar um elevado número de imi-
grantes, como demonstramos no texto.
Contudo, acreditamos que todos esses problemas decorreram do fato de
que a instalação dos imigrantes não era prioridade da Companhia. A Jewish
foi uma das mais poderosas Companhias de Imigração e Colonização e pos-
suía em seus quadros administrativos de Quatro Irmãos elementos conhe-
cedores da atividade agrícola, como o engenheiro agrônomo Hugo Baruch.
Além disso, em seus mais de 50 anos de atuação em Quatro Irmãos,
o número de imigrantes israelitas instalados em seus 93.985 hectares foi de
apenas 453. Encerra sua atividade de assentamento de imigrantes no ano de
1930. Mesmo com o pedido dos poucos colonos judeus ainda residentes em
Quatro Irmãos no período de ascensão do nazismo na Europa, a ICA recu-

344
A comunidade judaica em Passo Fundo

sa-se a assentar novos imigrantes. Ela argumenta que auxilia os referidos a


entrarem no Brasil e a se estabelecerem em diferentes regiões do país.
Pelo estudo que realizamos sobre a colonização judaica de Quatro Ir-
mãos e que brevemente apresentamos, acreditamos que o interesse primeiro
da Jewish Colonization Association foi o da exploração florestal e venda dos
terrenos principalmente a não judeus, isso já a partir de 1927. Para tanto,
construiu toda uma rede de apoio que incluiu, inclusive um ramal férreo para
o transporte da madeira, a propriedade de vagões para o transporte da pró-
pria, e o contrato com a Viação Férrea do Rio Grande do Sul, administrada
por Franz Philipson, então vice-presidente da ICA, que possibilitava o tráfe-
go de seus vagões sobre os trilhos da Viação Férrea Gaúcha.
Assim, a colonização judaica de Quatro Irmãos não foi exitosa, uma
vez que os imigrantes logo abandonaram a Fazenda. Porém, o mesmo não se
pode dizer da ICA. Suas atividades de exploração florestal e venda de terre-
nos foi plenamente atingida.
A migração para o meio urbano de Passo Fundo teve, segundo as nar-
rativas, várias causas, porém, a mais em evidência é que havia conflitos e
pressões pela terra na ICA, que os filhos não queriam trabalhar na roça, que
a madeira estava terminando, os filhos queriam estudar e os pais tinham a
obrigação de acompanhá-los.
Em Passo Fundo, os judeus organizaram-se em torno da Sinagoga, sen-
do essa um espaço para além do religioso, como identidade de grupo, socia-
bilidade e entreajuda. Muitos judeus tornaram-se comerciantes de várias ati-
vidades; essa foi uma das marcas do grupo no meio urbano de Passo Fundo.
Porém, não foi de grande duração; por volta das décadas de 1960 e 70, muitos
deles migraram para outras cidades de maior expressão, como é o caso de
Porto Alegre. Segundo um dos nossos entrevistados, isso se deu também em
razão dos estudos superiores dos filhos, do fato de que Passo Fundo era uma
cidade onde os negócios giravam muito em torno da sinergia com a agricultu-
ra. Os judeus queriam ser dinâmicos em outras esferas dos negócios e, Passo
Fundo, naquele período, não demonstrava ser o espaço ideal.
Enfim, é um grupo de grande expressão em Passo Fundo, que deixou e
continua deixando (em torno de uma dúzia de famílias atualmente compõem
a comunidade judaica) sua marca em vários campos, em particular, em ativi-
dades econômicas, mas, acima de tudo, no seu exemplo de vida, sociabilida-
de, expressão cultural e religiosa, de convivência e integração social.

345
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Referências

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1994.
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PESQUISAS REGIONAIS. Erechim, 1982-1985 (Biblioteca da Universidade
Regional Integrada –URI –Erechim).
RAKOS, Kennee Switzer. Baron de Hirsch, the Jewish Colonization Associ-
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do Sul. Porto Alegre: Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, 1990.
SILVA, Nayme, M. N. A presença judaica em Passo Fundo – século XX. UPF/
PPGH, 2002. Dissertação em História.

346
A comunidade judaica em Passo Fundo

Anexos
Sede da Colônia
Quatro Irmãos; hoje
sede da Prefeitura
Municipal de Quatro
Irmãos. Fonte: pes-
quisa de campo.

Prédio do Hospital na sede da Colônia de Judeus de Quatro Irmãos;


hoje restaurado e funcionando como Casa de Cultura e Museu.
Fonte: pesquisa de campo.

Cemitério judaico em Quatro Irmãos.


Fonte: pesquisa de campo.

347
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Madeireira Sirotsky e Birmann em


Passo Fundo, na rua XV de Novembro.
Fonte: http://www.sinagogapf.com.br/
familias/17

Propaganda da serraria à vapor Sirotsky e Birmann. Fonte: Guia Ilustrado..., 1939.

“Casa Henrique”, da família


Freitag, na Rua Quinze de
Novembro, em Passo Fundo;
fundada em 1936. Fonte:
sinagogapf.com.br.

Recibo do estabelecimento comercial de Luiz Chwartzmann, a Casa Rayon. Fonte:


HEXSEL, C. A.; GÁRATE, H. E. Comércio..., 2002.

Propaganda do estabelecimento comercial de Luiz Milman,


a Casa Americana. Fonte: Guia Ilustrado..., 1939.

348
A comunidade judaica em Passo Fundo

Propaganda do
estabelecimento comercial
de Paulo Parglender. Fonte:
Guia Ilustrado..., 1939.

Propaganda do
estabelecimento comercial
de Abrão Birmann. Fonte:
Guia Ilustrado..., 1939.

Jayme Sirotsky. Fonte: : http://www.sinagoga-


pf.com.br/familias/17

Casal Samuel e Celina Bacaltchuk.


Fonte: HEXSEL, C. A.; GÁRATE,
H. E. Comércio, século XX – Passo
Fundo. Passo Fundo: Sincomércio,
2002.

349
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Lista de estabelecimentos comerciais de judeus e


descendentes em Passo Fundo - de 1910 a meados de 19601

Nome do estabelecimento
Proprietário Localização
e/ou tipo de comércio
Abraão Birmann Venda de rádios e eletrônicos Rua Moron
Abraão Birmann
“Drogabir” (farmácia) Rua Moron
Sobrinho
Abraão Birmann
“Farmácia Rosa” Avenida Brasil
Sobrinho
Abrahão Melnick e
Tecidos e armarinhos Rua Moron
Jaime Kwitko
Arão Baril Armazém Av. Presidente Vargas
Arão Litvin Armarinhos Av. Brasil
Daniel Viuniski Escritório de Advocacia Rua Gal. Osório
Daniel Viuniski Farmácia Av. Brasil
Daniel Viuniski Farmácia Rua Bento Gonçalves
Família Maltick Tecidos e armarinhos Rua Bento Gonçalves
Família Wainsten Consultório médico Av. Presidente Vargas
Família Neirus e Litvin Camisaria Rua Bento Gonçalves
Francisco Sirotá Fruteira Rua Bento Gonçalves
Henrique Freitag Armazém Rua Moron
Henrique Freitag “Casa Henrique” (fruteira) Rua XV de Novembro
Henrique Winik “Casa Henrique” (sapataria) Avenida Brasil
Irmãos Ioschp Madeireira Rua Frei Caneca
Isac Raskin Armarinhos Avenida Brasil
José Birmann Venda de automóveis Rua Moron
José Sirotsky “Armazém Econômico” Rua Moron
Luiz “Casa Rayon” (tecidos, arma-
Rua Gal. Netto
Chwartzmann rinhos e venda de calçados)

  A listagem resulta de entrevistas orais e pesquisa em catálogos e listas comerciais.


1

350
A comunidade judaica em Passo Fundo

“Casa Americana”
Luiz
(armarinhos e venda de cal- Avenida Brasil
Millman
çados)
Manoel Waistein Tecidos e armarinhos Rua Bento Gonçalves
Miguel Glock Tecidos e armarinhos Av. Presidente Vargas
Moisés Méster “Bazar Novo” Rua Independência
“Loja Confiança”
Moisés Viuniski Avenida Brasil
(Armarinhos)
Nathan Kwitko Armarinhos Av. Presidente Vargas
Paulo Parglender “Livraria Americana” Avenida Brasil
Paulo Parglender “Livraria Progresso” Rua Coronel Chicuta
Pedro Wainer Venda de móveis Avenida Brasil
Salamão Sukster Armarinhos Rua XV de Novembro
“Casa Paraíso”
Salomão Zeltzer Rua Moron
(bar e quitanda)
“Casa Carioca”
Samuel Bacaltchuk Avenida Brasil
(venda de móveis)
Samuel Bacaltchuk Tinturaria “Europea” Avenida Brasil
Samuel Winik Sapataria Avenida Brasil
Saul Winik Sapataria e venda de calçados Avenida Brasil
Sidney Melnick Construtora Rua Bento Gonçalves
“A Preferível”
Simão Brunsten Rua Moron
(tecidos e armarinhos)
Sirotsky e Birmann Madeireira Rua XV de Novembro
Waldemar Baril Tecidos e armarinhos Av. Presidente Vargas

351
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Vistas do Cemitério judaico em


Passo Fundo, localizado junto ao
Cemitério Vera Cruz.
Fonte: Djiovan Weller Carvalho.

352
Entre o barco e a enxada: recortes da
imigração polonesa em Passo Fundo

Isabel Rosa Gritti1


João Carlos Tedesco2

Introdução

O objetivo do presente texto é discutir alguns elementos relativos à pre-


sença de poloneses no município de Passo Fundo. Quando os imigrantes po-
loneses se dirigem a esse município, sua extensão territorial atingia o atual
município de Erechim, que se emancipou de Passo Fundo em 1918, dez anos
após a criação da Colônia Erechim. Para melhor compreendermos a presença
dos poloneses e/ou descendentes no município de Passo Fundo na atualida-
de, apresentamos o contexto que possibilitou a “febre imigratória polonesa” e
a consequente instalação dos mesmos no território brasileiro e riograndense.
Os imigrantes poloneses, assim como muitos outros grupos étnicos, di-
rigem-se ao Brasil e ao Rio Grande do Sul atraídos pela política imigratória

  Doutora em História e Professora da UFFS.


1

  Doutor em Ciências Sociais e Professor do PPGH/UPF.


2

353
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

desenvolvida pelo governo brasileiro, a qual possibilitava a concretização do


sonho de tornar-se proprietário de um lote de terra. A presença dos mesmos
torna-se numericamente significativa a partir de 1893 a 1895, período conhe-
cido como o da febre imigratória brasileira.
Quando os imigrantes poloneses dirigem-se ao Brasil, a Polônia estava
dividida entre os países vizinhos, quais sejam, a Rússia, a Prússia e a Áustria,
em virtude disso há uma significativa dificuldade na definição numérica dos
mesmos. No Brasil, esses imigrantes eram registrados como russos, austría-
cos ou prussianos, embora se declarassem poloneses. A Polônia só se tornará
independente no final da Primeira Grande Guerra, isto é, em 1918.
As dificuldades encontradas por esse grupo foram muitas, assim como
o fora com os imigrantes de outras etnias instalados no Brasil. Porém, os
poloneses reagiram mais incisivamente que imigrantes italianos e alemães,
por exemplo.
Na região que corresponde aos atuais municípios de Passo Fundo (RS)
e Erechim (RS), o assentamento dos mesmos ocorreu de forma tranquila, o
que não se verificou nos demais núcleos coloniais do Estado. No Rio Grande
do Sul, esse grupo concentrou-se em determinados locais que posteriormente
evoluíram para municípios, onde compõem a maioria ou a grande maioria
da população na atualidade. No território correspondente ao município de
Passo Fundo foram estabelecidos e assentados imigrantes provenientes dire-
tamente da Europa, e também das chamadas “colônias velhas” que com uma
nova frente de colonização buscaram melhores condições de sobrevivência, e
reemigraram. Processo esse presente até a atualidade.

A conjuntura imigratória polonesa no século XIX

A imigração polonesa para o Brasil está no contexto da corrente imi-


gratória europeia do século XIX. Dentre as causas destes deslocamentos, a
mais fulcral nesse processo é a busca de condições dignas de sobrevivência.
No caso dos imigrantes poloneses, além dessas péssimas condições de vida, é
preciso considerar o fato de que quando se dirigem para o Brasil no final do
século XIX, a Polônia encontrava-se dividida politicamente entre a Rússia, a
Prússia e a Áustria. Fator esse que dificultou o mapeamento desses indivídu-

354
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

os poloneses que entraram no Brasil, pois muitos adentraram com passaporte


russo, austríaco ou alemão, figurando assim nas estatísticas como imigrantes
pertencentes a estas nacionalidades. Por isso, a complexidade na definição
numérica desses imigrantes, e a consequente fragilidade dos dados estatís-
ticos referentes a presença deste grupo imigratório no território brasileiro e
riograndense.
A Polônia só se libertará da dominação estrangeira, pondo fim “na pe-
rene questão polonesa” (Hobsbawm, 1990, p. 54) em 1918, isto é, no final da
Primeira Grande Guerra. A primeira partilha da Polônia ocorre em 1772,
quando Catarina II da Rússia e Frederico II da Prússia, sob o pretexto das re-
beliões camponesas e valendo-se da rivalidade entre os nobres poloneses, rea-
lizaram a primeira partilha da Polônia para “fazer deter o furor da desordem
polonesa e assegurar a justa satisfação de seus direitos legais” (Wachowicz,
1974, p. 53).
Em maio de 1791, a Polônia promulga sua constituição, que fora prepa-
rada sigilosamente, o que desagradou os países vizinhos que planejavam sua
anexação. Além disso, vários nobres poloneses formaram, em 1792, a Confe-
deração de Targowica e pedem a Catarina II a intervenção do exército russo.
O exército polonês é derrotado. A Prússia não cumpriu com o acordo defen-
sivo que havia feito com a Polônia. Assim, em 1792, a Rússia decidiu uma se-
gunda partilha do país. Em 1795, ocorreu a terceira partilha da Polônia, após
o fracasso da insurreição liderada por Tadeu Kosciusko. Para Wachowicz:

Não é só na passividade do camponês polonês que se deve encon-


trar a explicação do fracasso da insurreição de 1794. Os mesmos não
afluíram às legiões na quantidade desejada. Armados com foices e
gadanhas, tiveram de enfrentar exércitos modernos bem armados e
treinados. Por outro lado, a Polônia, amputada de muitos de seus ter-
ritórios, não possuía mais uma estrutura estatal. Na realidade, nestas
condições, o levante foi romântico, mas polarizou a participação de
importantes segmentos de todas as classes sociais do país. Pela primei-
ra vez na história do país, nobreza, burguesia e campesinato se haviam
aliado espontaneamente por uma causa comum (Wachowicz, 1974,
p. 69).

355
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Após a terceira parti-


lha da Polônia, os polone-
ses passam a fazer parte
do exército de Napoleão,
através das legiões polone-
sas. Napoleão não estava
interessado em resolver o
problema polonês. Assim é
que em 1806, após a con-
quista de Varsóvia, cria o
Ducado de Varsóvia. A
servidão foi abolida, po-
rém a terra permaneceu
Mapa 1: A Polônia em 1795. Fonte: Gritti, 2004, p. 24.
propriedade dos senhores,
e os mesmos obtiveram o direito de expulsar os camponeses de suas terras
quando desejassem.

Com a derrota de Napoleão, o Ducado de Varsóvia se desestruturou


e do que sobrou foi criado o Reino do Congresso (Królestwo), perten-
cente à Rússia. A população do Reino, como passou a ser conhecida
a parte russa da Polônia, era predominantemente camponesa e sub-
metida à servidão restabelecida pelo domínio russo (Doustdar,1990,
p. 79).

Segundo Wachowicz, de 1863 a 1890, a população do Reino cresceu


68,2% enquanto a expansão das terras cultivadas neste mesmo período foi
de 9%. Com a população crescendo em níveis superiores à expansão da ter-
ra cultivada, a incipiente indústria de alguns centros urbanos não conseguia
absorver o excedente de mão-de-obra do meio rural. Essa situação provocou
o excessivo parcelamento das propriedades camponesas e o empobrecimento
dos pequenos proprietários rurais, apesar de, após a abolição das obrigações
senhoriais, terem experimentado uma melhora, bem como a migração sazo-
nal, especialmente para a Alemanha. Segundo Tempski:

356
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Todo esse processo de ocupação progressiva do solo, e do seu parcela-


mento deu à Polônia, no final do século XIX, uma população aproxi-
mada de 30.000.000 pessoas, sendo que a população exclusivamente
rural era de 19.500.000 pessoas. Dessas, 31% não possuíam qualquer
terreno, eram os proletários rurais, os agregados, ao todo 6.000.000
(Tempski,1971, p. 315).

A historiadora Eva Trzeciak nos diz que, trigo, aveia, centeio, batata
inglesa eram os produtos cultivados nas pequenas propriedades. Nelas o uso
da terra era intensivo, mas sua produtividade era inferior à da grande pro-
priedade. Para Trzeciak, isso se deve ao baixo nível cultural do camponês do
reino que não tinha acesso à escola. A escolaridade estava num nível inferior
ao existente em outras Províncias do Império Russo, pois em 1861, 81% da
população do Reino eram analfabetas.
Os latifundiários e a alta nobreza eram aliados do governo russo, tendo
renunciado por completo ao desejo da independência. Por sua vez, a alta
burguesia urbana polonesa era ligada aos latifundiários, em virtude de serem
os detentores dos capitais usados na expansão das indústrias. O Reino da Po-
lônia no final do século XIX, era a região que mais se industrializou, tendo a
Rússia como grande consumidora desses produtos, principalmente os têxteis
(Trzeciak, 1983, p. 98-99).
Na região da Galícia, que fora conquistada pelo Império Austríaco na
primeira partilha da Polônia em 1772, e, portanto, sob ocupação austríaca,
o governo desejava o apoio dos latifundiários. Esse apoio ficou conhecido
como a Doutrina da Trilealdade, ou seja, como no Reino da Polônia, os lati-
fundiários aceitavam a dominação e colaboravam com as potências ocupan-
tes.
A Galícia era uma região essencialmente agrícola e o grande proble-
ma era a estrutura da propriedade agrícola. Em 1859, as propriedades ca-
dastradas que possuíam menos de 2 hectares representavam 35,6% do total,
em 1902 correspondiam a 42,3%. Se considerarmos o rápido crescimento
da população galiciana, constata-se que a mesma não produzia o suficiente
para seu próprio consumo, pois “o agricultor galiciano, comparado com os
agricultores dos países ocidentais da Europa, trabalhava por ¼ e comia por
meio homem. Na Galícia morriam de fome cerca de 50 mil pessoas por ano”

357
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

(Tempski,1971, p. 304, apud Gritti, 2004, p. 28). Segundo Wachowicz, esta


situação era acompanhada por um sistema escolar arcaico, mesmo sendo mi-
nistrado a partir de 1848 o ensino em língua polonesa, 70% da população era
analfabeta. Ainda segundo o autor, a vida do camponês polonês, tanto sob
o domínio prussiano como sob os outros domínios, era altamente hierarqui-
zada.

Numa aldeia, as classes sociais eram nítidas e sua mobilidade muito


reduzida. No cume da hierarquia aldeã do início do século XIX, en-
contravam-se as famílias dos Kmiec, considerados grandes proprietá-
rios, mas que não chegavam a ser latifundiários. Eram pouco numero-
sos na Galícia, mas existiam em número maior no Reino da Polônia e
nas terras Prussianas (Wachowicz, 1974, p. 86).

Os grandes proprietários, os Kmiec, não possuíam mais de 50 hectares


de terras. Essas propriedades estavam livres da subdivisão, uma vez que eram
dominadas ainda pela mentalidade medieval, isto é, apenas o filho mais ve-
lho herdava a propriedade paterna, enquanto os outros filhos deviam ocupar-
-se de outras atividades para ganhar a vida.
Logo após os latifundiários, vinham os proprietários dos minifúndios,
suas propriedades não eram superiores a 10 hectares. A maior parte deles
possuía de 2 a 3 hectares, são os denominados chalupniki ou zagrodniki, que
com uma área tão reduzida eram obrigados a procurar trabalho nas grandes
propriedades, e quando possível alugar, um pedaço de terra para produzir
mais.
Também integravam a pirâmide social camponesa os Komorniki, que
não tinham propriedades, o que às vezes possuíam era uma choupana, co-
mumente ocupada por 2 ou 3 famílias. Na base da pirâmide estão os traba-
lhadores rurais (parobki), os quais possuíam apenas a força do seu trabalho
braçal que era empregada nas grandes propriedades. A distância social entre
os latifundiários e os demais aldeões era muito grande e se manifestava em
todas as atividades.

Uma das manifestações da qual pode depreender-se a falta de mobi-


lidade social é entre os casamentos. Estes, entre as várias categorias
aldeãs, eram bastante diminutos. Na aldeia de Siolkowice, nas proxi-

358
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

midades da cidade de Opole na Alta Silésia, que forneceu os primei-


ros grupos de imigrantes aportados ao Brasil, o casamento misto, isto
é, entre as categorias aldeãs, chegava apenas a 10% dos matrimônios
contraídos na aldeia. Nestes matrimônios sobressaíam os casamentos
com grande diferença de idade, solteiros com viúvas ou vice-versa.
Desta forma, na maior parte dos casamentos mistos a distância social
era compensada pela diferença de idade, ou seja, quanto maior fosse
a diferença de classe, maior a diferença etária entre os cônjuges. (Wa-
chowicz, 1974, p. 88).

A conjuntura imigratória polonesa do século XIX mostra claramente a


situação de exploração e marginalização dos poloneses, esse grupo se apre-
senta econômica, política e culturalmente dominado. As estruturas feudais
que, segundo Topolski, duraram oito séculos na Polônia, aliadas ao domínio
imperialista das nações que a partilharam, levaram a grande maioria dos po-
loneses à miséria.

Os poloneses no Brasil

As péssimas condições de vida e a propaganda que era feita no exterior


pelo governo brasileiro com o objetivo de atrair imigrantes para povoar o ter-
ritório através da instalação de imigrantes como pequenos proprietários no
sul do Brasil e trabalhadores nas fazendas de café de São Paulo, foram fatores
decisivos para a vinda dos imigrantes poloneses ao Brasil e ao Rio Grande
do Sul.
Para Marcin Kula, três eram os fatores de atração decisivos para que o
camponês polonês se dirigisse ao Brasil: a possibilidade de se tornar proprie-
tário de terras, a ampla liberdade e o democratismo. A liberdade e a recu-
peração da dignidade de seres humanos que acontecia com os camponeses
poloneses no Brasil, é que Kula chamou de democratismo. Primeiramente, o
camponês polonês via no Brasil:

A possibilidade de alcançar o ideal inalcançável na Polônia: de pro-


prietário rural, senhor de fazenda, como diziam os camponeses. Em
segundo lugar, o elemento que exercia grande atração no novo país

359
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

era a concessão ao imigrante de uma grande liberdade. Aqui esse fator


agia tão mais fortemente, quanto menos liberdade tinha o camponês
na Polônia (Kula, S/d, p. 02).

O ano de 1869 marca o início da imigração polonesa em massa para o


Brasil. Os primeiros imigrantes que se dirigem para o Brasil vêm da Silésia,
região polonesa dominada pela Prússia. Chegam ao Brasil, secundados por
Edmundo Sebastião Wós- Saporski, chamado mais tarde de “o pai da colo-
nização polonesa no Brasil”. Esses são instalados na Colônia Príncipe Dom
Pedro (hoje Brusque), em Santa Catarina, que alguns anos mais tarde, em
1871, migram para o Paraná.
Em 1889, outro grupo de imigrantes poloneses vindos de Lódz (um dos
mais importantes distritos industriais poloneses) instalou-se na Colônia Ita-
jahy, cuja maior necessidade era mão-de-obra para desenvolver um trabalho
voltado para a lavoura, que possibilitasse a ocupação da terra e se transfor-
masse numa atividade econômica significativa para a própria colônia e seus
habitantes.

Mas as famílias de Lodz não se adaptaram à agricultura, e dedica-


ram-se a uma atividade pioneira: a indústria têxtil. Sua aptidão, na-
turalmente estava ligada à atividade desenvolvida na Polônia, e foi de
mansinho que o imigrante de Lodz começou a fabricar teares manuais
de madeira, iniciando uma rudimentar fiação caseira. Para a colônia
Itajahy isso foi o começo de uma nova etapa, encerrando o ciclo colo-
nial na região e estabelecendo alicerces da indústria têxtil catarinen-
se, tornando Brusque, anos depois, conhecida como Berço da Fiação
Catarinense, e, mesmo, como Capital dos Tecidos de Santa Catarina
(Goulart, 1984, p. 04).

Os primeiros imigrantes poloneses que se dirigiram para Santa Catarina


em 1869 migram para o Paraná em 1871, esses foram estabelecidos em terras
pertencentes à Prefeitura de Curitiba. Assim nasceu Pilarzinho nos arredo-
res de Curitiba, a primeira colônia polonesa no Paraná. O chamamento via
cartas, feito por estes imigrantes aos familiares e amigos que permaneceram
na Polônia, foi o responsável pelo surgimento de outra colônia Curitibana,
Abranches, em 1873.

360
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

O Paraná é o Estado brasileiro que mais recebeu imigrantes poloneses e,


consequentemente, é o que hoje apresenta o maior número de descendentes
desses. Wachowicz explica da seguinte forma:

Dada a excelente adaptação dos colonos poloneses em terras curitiba-


nas, a partir de 1875 o presidente da Província do Paraná, Lamenha
Lins, implantou pela primeira vez, no Brasil, um novo sistema de co-
lonização com imigrantes europeus. Objetivava fixá-los ao redor de
Curitiba, formando um cinturão verde, a fim de abastecer a capital
com produtos hortifrutigranjeiros. Surgiram então, ao derredor de
Curitiba, inúmeras colônias com esmagadora maioria composta de
poloneses: Santa Cândida, Orleans, Santo Inácio, D. Augusta, D. Pe-
dro, Rivieira, Lamenha, e Tomás Coelho (Wachowicz, 1999, p. 12-13).

Como nos referimos anteriormente, a partilha da Polônia, dificulta a
contagem dos imigrantes poloneses em solo brasileiro. Da mesma forma di-
ficulta a identificação de quem é o “Polonês”. Para o padre Alberto Vitor
Stawinski, este imigrante vítima da partilha polonesa é considerado imigran-
te polonês no Brasil, uma vez que:

No Brasil são considerados imigrantes poloneses os que vieram para


cá falando a língua polonesa, trazendo nas veias sangue polonês e de-
clarando-se poloneses, apesar de seus passaportes terem sido emitidos
por autoridades russas, prussianas ou austríacas (Stawinski,1976, p.
36).

Dificuldade esta também expressa por Vilson Martins ao estudar a pre-
sença estrangeira no Paraná. Diz que é absolutamente impossível saber com
segurança o número de estrangeiros entrados no Paraná. Isto se deve, segun-
do ele, ao fato de que as pesquisas estatísticas sempre foram contraditórias
e falhas, além de fugirem a todo controle os estrangeiros que se dirigiam ao
Paraná emigrados de outros Estados. Outro elemento destacado pelo autor
é certa confusão de nacionalidade, como a de contarem duas vezes os rus-
sos-alemães, como russos e como alemães, ou a que jamais distinguiu os
austríacos e suíços dos alemães e os poloneses dos ucranianos, por exemplo
(Martins, 1995, p. 68).

361
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

A tabela publicada na Revista de Imigração e Colonização, sob título


“O Movimento Imigratório no Brasil de 1820 a 1920”, demonstra claramen-
te essa situação. Os imigrantes poloneses não foram contabilizados, pois na
coluna correspondente aos imigrantes russos há uma nota, e no rodapé da
tabela se esclarece que aí estão incluídos os poloneses. Estes, obviamente,
portavam em seus passaportes os registros feitos pelas autoridades russas.
O que chama a particular atenção é o fato de que no período conhecido
como a “febre imigratória brasileira” de 1890 a 1894, os imigrantes poloneses
continuam sendo ignorados pelas estatísticas oficiais. Conforme dados divul-
gados pelo Consulado Polonês em Curitiba, nesse período entraram no Brasil
63.500 imigrantes poloneses, distribuídos da seguinte forma.

Tabela 01: Imigração Polonesa para o Brasil 1890-1894

Estado Número de Imigrantes


Paraná 15.000
Santa Catarina 5.000
Rio Grande do Sul 25.000
São Paulo 13.500
Outros Estados 5.000
Total 63.500
Fonte: GLUCHOWSKI, Kazimierz. Curitiba, 1924

Segundo o Consul Kazimierz Gluchowski, na obra “Subsídios para o
Problema da Emigração Polonesa no Brasil”, publicada em 1924, teríamos
em 1920:

Segundo as estatísticas, e adotando-se o critério de seis pessoas por fa-


mília, no início da década de 1920 (portanto, 50 anos após a chegada
das primeiras famílias de imigrantes poloneses no Brasil) viviam no
Brasil cerca de 300 mil poloneses, incluindo-se naturalmente os nasci-
dos no novo país, que hoje chamaríamos de brasileiros de descendên-
cia polonesa. Naquela época, a população do Brasil era de 30.635.000

362
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

habitantes. Portanto, os poloneses e seus descendentes representavam


1 % dessa população (Gluchowski, 1924, p. 43).

Várias entidades, como consulado polonês no Brasil, as diversas asso-
ciações de imigrantes e descendentes, estudiosos de origem polonesa, ten-
taram definir o número de imigrantes poloneses entrados no Brasil. Todos
eles partiram dos dados apresentados pelo Cônsul Gluchowski, em 1924. As
dificuldades encontradas foram comuns. Dados imprecisos, poloneses regis-
trados de acordo com a nacionalidade constante em seu passaporte. Esse fato
provocou problemas além da definição estatística da presença polonesa no
Brasil, propiciou situações embaraçosas aos próprios imigrantes.
É o caso das restrições impostas pelo governo federal aos alemães exis-
tentes no Brasil por ocasião da Segunda Grande Guerra. O documento envia-
do pelo Cônsul Geral da Polônia, Josef Gieburowski, ao chefe de polícia do
Estado do Paraná, em fevereiro de 1942, diz:

O Consulado Geral da Polônia em Curitiba atesta pelo presente que


o padre JOSEF DAMEK, nascido em Nedza, município de Raciborz,
Silésia Alemã de Opole, a 16 de outubro de 1911, filho de Emil Da-
mek e de Anna Damek – residente em Prudentópolis, é de NACIO-
NALIDADE POLONESA, apesar de possuir a cidadania alemã e o
passaporte emitido pelas autoridades alemãs. [...] O referido sacerdote
é polonês e foi sempre tido como tal, o que além de outras circuns-
tâncias – prova também o documento – carteira n. 001076, datado
de 9.3.1936, emitido pela Associação dos Poloneses na Alemanha,
de que o padre Josef Damek era membro permanente. Este atestado
foi emitido para ser apresentado às autoridades policiais brasileiras
(Arquivo Público do Paraná. In: Gritti, 2004, p. 48).

O jornal da comunidade polonesa, LUD, editado em Curitiba, no dia 4


de fevereiro de 1970, apresenta os seguintes dados relativos à presença polo-
nesa no Brasil.

363
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Tabela 02: Poloneses no Brasil em 1970

Estado Total
Paraná 307.000
Santa Catarina 89.000
Rio Grande do Sul 256.000
Outros Estados 190.000
Total 842.000
Fonte: LUD, fevereiro de 1970.

A breve discussão acima apresentada sobre o número de poloneses no


Brasil mostra claramente a dificuldade ou a impossibilidade de termos núme-
ros precisos sobre a presença dos mesmos em território brasileiro. Da mesma
forma, sobretudo no período inicial de assentamento dos imigrantes polone-
ses no Brasil, a definição da nacionalidade dos mesmos é complexa. Eles de-
claravam-se poloneses, os seus documentos os declaravam austríacos, russos
e alemães.

A conquista da terra: “ou no Brasil sinto-me livre e patrão”



Os imigrantes alemães, italianos e poloneses, após sua chegada ao Brasil,
escreviam aos seus familiares, relatando a viagem realizada e o processo de
instalação dos mesmos nos núcleos coloniais. Esses relatam as dificuldades,
e principalmente enfatizam o acerto da escolha. Imigrar para além–mar foi a
decisão correta. Mais do que isso, os familiares e amigos que permanecem na
Europa são convidados a concretizar seu sonho de tornarem-se proprietários
aqui, na nova terra.
É inegável que os imigrantes europeus que se dirigiram para o sul do
Brasil com o propósito de se tornarem patrões de si mesmos, se não na sua
totalidade, pelo menos na sua grande maioria, realizaram este sonho. No
caso dos imigrantes poloneses não foi diferente. Eles também tornaram-se
proprietários. Escreviam aos familiares que ficaram na Polônia relatando a
conquista da terra.

364
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

De São Feliciano no Rio Grande do Sul, João Jaras, em fevereiro de


1891, dizia para a esposa:

Agora imploro-te a fim de te prepares para chegar o mais depressa


possível ao Brasil. Querida esposa informo que ganhei muita terra
que nem sei quantos eitos podem ser e ainda existem algumas tiras de
mato, para completar. Quanto às plantações, crescem duas vezes ao
ano e tudo produz da mesma forma como na Polônia: batatas, repo-
lho, trigo, milho e tudo cresce como na Polônia, apenas o calor é um
pouco mais forte, mas não é muito maior do que na Polônia. É quase
a mesma coisa. Agora vou falar sobre a nossa viagem ao Brasil (Anais
da Comunidade Brasileira – Polonesa, 1977, apud Gritti, 2004, p.
51).

Linha Dourado Erechim, 1912, casa de um colono polonês. Fonte: Arquivo Histórico
Municipal de Erechim.

Na localidade de Santo Antônio da Patrulha (RS), o imigrante polonês


Antônio Zielinski, em 1891, escreveu para os familiares, contando que:

365
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Além de poloneses há por aqui também espanhóis, suíços e italia-


nos. Disseram-nos na Polônia que no Brasil não havia nada. Ao invés
disso, aqui há de tudo. Disseram que havia animais ferozes. Mas nós
ainda não vimos nenhum. Disseram que não havia igrejas. Ora, igre-
jas há, mas são mais raras e só nas cidades. A missa é celebrada como
na Polônia, em Latim.
O idioma daqui é diferente do nosso e se parece com a vozearia dos
gansos. Durante a nossa longa viagem por terra não vimos grandes
lavouras, mas apenas aparecia de vez em quando um casebre cercado
de alguns pés de milho e melancia. A população é 50% branca e 50
% preta. Os pretos são muito bons e até melhores do que os brancos,
pois estes são exibidos e sem religião. No Brasil sinto-me livre e patrão
e não como na Polônia. Não troco a minha condição pela tua. Meu
caro se estás passando privações, então é melhor que venhas morar
conosco (Stoltz, 1997, p. 115-116).

A dominação de que eram vítimas por parte das potências vizinhas,
quais sejam a Rússia, a Áustria e a Prússia, aliada à espoliação interna que
vitimava o camponês polonês pela sua condição de servo, somada às facili-
dades que o Brasil oferecia aos possíveis colonos, criou um clima propício
às representações míticas, sobre a nova Terra, onde o Brasil aparecia como a
verdadeira “Terra Prometida” ou o “Paraíso Terrestre”.
A criação desse mito e a crença nele tornam-se fatores de sobrevivência.
As representações sociais que idealizavam o Brasil na Polônia correspondiam
à ideologia da pequena propriedade como fator determinante do progresso
e da independência, e se adaptavam ao anseio do camponês, gerado pelas
necessidades gerais e concretas de uma existência que enfrenta um processo
de subproletarização.

Os poloneses no Rio Grande do Sul



Os imigrantes europeus que se estabelecem no Rio Grande do Sul no
final do século XIX o fizeram atraídos pela possibilidade de se tornarem pro-
prietários de um lote de terra. Contudo, os que primeiro chegam ao Estado,
no caso, os alemães, tornam-se proprietários de uma área de terra maior e de

366
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

melhor qualidade do que os italianos e, principalmente, de que os poloneses,


que dirigem-se ao Rio Grande do Sul após 1875, isto é, quando a Lei de Ter-
ras determinava que a única maneira de tornar-se proprietário de um lote era
através da compra.
Segundo vários autores, os primeiros imigrantes poloneses no Rio Gran-
de do Sul foram assentados nos municípios de Garibaldi e Caxias do Sul, na
região de colonização italiana. Os poloneses foram assentados em terras da
Colônia Conde d’Eu (Garibaldi), em 1875, no mesmo ano em que suíços-
-franceses foram ali estabelecidos. Estes imigrantes foram registrados como
prussianos, sendo na realidade imigrantes poloneses que viviam na região
ocupada pela Prússia.

Na Colônia Conde d’Eu, linha Azevedo Castro, I Secção, foram re-


gistrados nomes poloneses de 26 famílias com a indicação étnica de
prussianos, por serem provenientes da região ocupada pela Prússia.
Além disso, os registros de batizados, casamentos e óbitos da então
freguesia de São Pedro de Conde d’Eu, hoje Garibaldi, trazem esses
mesmos nomes com a indicação textual de “polacos”, com a anotação
de que eram originários da Prússia, Província Vestfálica, ou ainda da
região de Marienwerden. Ainda como prova de que esses imigran-
tes, registrados como prussianos, eram poloneses podem ser invoca-
dos os peremptórios depoimentos de seus filhos, netos e bisnetos, os
quais afirmam serem descendentes de poloneses e não de prussianos
(Stawinski,1976, p. 31-32).

Além de tornarem-se proprietários apenas mediante a compra do terre-
no, os imigrantes poloneses enfrentam um outro problema muito sério e que
contribuiu significativamente para o êxodo que se verificará constante nos
primeiros anos da instalação dos imigrantes poloneses nos diversos núcleos
coloniais do Estado. Trata-se da péssima qualidade das terras que lhes são
destinadas.

Uma vez chegados ao Rio Grande do Sul, os desolados poloneses


eram imediatamente encaminhados às novas colônias ou eram obri-
gados a ocupar terras sobradas nas montanhas, peraus ou muito dis-
tantes de qualquer centro. Diga-se de passagem que na Polônia, por

367
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

pior que fosse a vida, estavam ao menos habituados a cultivar terras


planas e muito produtivas. Para eles, foi penoso amansar terras tão
selvagens e bravias, cobertas de pura floresta. Santa Tereza de Bento
Gonçalves e os peraus do Rio das Antas, nas secções 8 e 9 de Alfredo
Chaves era tudo o que lhes restava (Farina,1986, p. 136).

Apesar de os imigrantes poloneses estarem presentes no Rio Grande do


Sul desde 1875, é a partir de 1891 que eles se tornam numericamente expres-
sivos. De 1891 a 1894 é o período de maior afluência dos mesmos ao Brasil
e ao Rio Grande do Sul. É a “febre imigratória brasileira”, responsável pela
entrada no país de 63.000 imigrantes poloneses.
O período de maior intensidade da corrente imigratória polonesa para
o Rio Grande do Sul coincide com a Revolução Federalista (1892 -1895),
que se desencadeia no Estado e provoca queda no fluxo imigratório polonês,
que é retomado em 1907, e novamente interrompido no período da Primeira
Grande Guerra, 1914-1918. O ano de 1918, além do término do conflito in-
ternacional, marca a independência da Polônia, que estivera, de 1772 a 1918,
dominada pelos russos, alemães e austríacos.
Assim, com a Polônia independente, conquista há muito desejada pe-
los poloneses, desapareceu uma importante causa propulsora do movimento
emigratório polonês, que só será retomado quando da ascensão dos governos
totalitários na Europa e que atingem mais particularmente os judeus, e, ob-
viamente, os judeus poloneses.
Entre os poucos estudiosos da imigração polonesa no Estado, está o
engenheiro Edmundo Gardolinski, provavelmente o que mais se dedicou ao
tema, e nos diz que de acordo, com elementos estatísticos dignos de fé, entre
os anos de 1870 e 1920, ingressaram no Brasil o total de 103.500 poloneses,
além de 32.100 rutenos. Deste total, couberam ao Rio Grande do Sul 34.300
imigrantes poloneses. Estes, ainda segundo Gardolinski, estariam assim dis-
tribuídos:

368
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Tabela 03: Imigrantes poloneses no Rio Grande do Sul (1886 a 1913)

Ano de Nome da Colônia Número de Total


fundação Imigrantes
Santa Bárbara
1886 Santa Tereza 300 300

Alfredo Chaves 800


Nova Virgínia 500
Nova Bassano 900
Monte Veneto 200
Nova Roma 300
Capoeiras e arredores 300
Antônio Prado 1.000
São Marcos (Caixas do Sul) 3.000
Santo Antônio da Patrulha 1.000
São Luiz da Casca (Guaporé) 1.000
1890 a 1894 Ernesto Alves 1.000 27.000
Guaporé e arredores 1.000
São Feliciano 3.000
Mariana Pimentel 1.500
Barão do Triunfo e arredores 500
Porto Alegre e Rio Grande 1.000
Jaguari 3.000
Ijuí 3.000
Guarani das Missões 2.500
Outras localidades 500
Guarani das Missões 1.000
1911 a 1913 Erechim 5.000 7.000
Outras Localidades 7.000
Fonte: GARDOLINSKI, Edmundo. 1958, p. 20.

369
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Pelos dados apresentados, percebemos que os imigrantes poloneses es-


palham-se praticamente por todo o Estado do Rio Grande do Sul. Algumas
localidades ou municípios com presença significativa dos mesmos, outros
com presença mais reduzida. Importante destacar que apesar de estar regis-
trado como ano de fundação das colônias, as datas da tabela acima corres-
pondem ao ano de ingresso dos imigrantes nos referido núcleos coloniais.
Em 1937, o Consulado Polonês em Curitiba apresentou novos números
sobre a presença dos poloneses no território brasileiro. No Rio Grande do Sul
teríamos 80.024 poloneses, distribuídos nos seguintes municípios gaúchos.

Tabela 04: Poloneses no Rio Grande do Sul – 1937

Município População Total População Polonesa %


Boa Vista do Erechim 80.000 15.953 19,9
Encruzilhada 38.500 13.000 33,7
Getúlio Vargas 10.000 3.600 36,0
Guaíba 25.720 2.222 8,06
Ijuí 44.700 2.349 5,25
Iraí 9.230 600 6,5
Palmeira 53.430 3.000 5,61
Prata 16.100 900 5,59
São Luiz Gonzaga 52.800 9.000 17,1
Santa Rosa 38.666 5.000 12,9
Santo Ângelo 33.160 3.000 9,9
São Gerônimo 30.230 2.000 6,66
São João do Camaquã 19.230 3.000 15,6
Outros 2.548.234 16.400 0,6
Total 3.000.000 80.024 2,69
Fonte: GLUCHOWSKI, Kazimierz, 1924.

370
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Pelos dados acima apresentados, percebemos que alguns dos primeiros


núcleos de assentamento de imigrantes poloneses no Estado não estão, nesse
ano de 1937, entre os que concentram um número significativo de poloneses
na formação de sua população, como é o caso de Mariana Pimentel, Dom
Feliciano e Guarani das Missões.
Evidentemente que no decorrer do tempo os dados apresentam varia-
ções e/ou alterações até radicais em alguns municípios. Isso se deve a vários
fatores, entre os quais a transformação de colônias em municípios, o des-
membramento e a consequente emancipação de outros, o movimento migra-
tório das populações rurais e urbanas.
A observação feita pelo cônsul Gluchowski, em 1924, relativa à inexis-
tência de dados estatísticos precisos sobre a presença dos poloneses e des-
cendentes no Brasil continua atual. E em relação ao Rio Grande do Sul, não
há até o momento nenhum estudo que aponte neste sentido. Contar quantos
chegaram ao Estado e quantos são na atualidade não é tarefa fácil.

Propriedade de um
colono polonês em
Carlos Gomes, em
1954. Fonte: Arquivo
Histórico Municipal de
Erechim.

Os poloneses em Passo Fundo

O município de Passo Fundo não figura nas estatísticas como um núcleo


de imigração polonesa no Estado. Contudo, poloneses e seus descendentes se
fazem presentes até a atualidade em seu território. Tal fato deve-se à mobili-
dade dos imigrantes e descendentes, à extensão territorial do município que,

371
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

até 1918, abrangia a Colônia Erechim, onde a presença de poloneses e des-


cendentes, inclusive na atualidade é significativa. Encontramos aqui, por
exemplo, o atual município de Áurea, emancipado de Erechim no ano de
1987, conhecida como a “capital polonesa dos brasileiros” onde mais de 90%
da população descende de poloneses.
A criação da Colônia Erechim
deu-se a partir de argumentos apre-
sentados pelo Diretor de Terras e Co-
lonização, Carlos Torres Gonçalves,
de que as terras disponíveis nas Co-
lônias Ijuí e Guarani eram insuficien-
tes para a colonização. Além disso,
fundamentava sua proposta na ferti-
lidade do solo e na grande procura de
terras por particulares que aí estavam
se estabelecendo de forma tumultu-
Mapa do Estado do Rio Grande do Sul osa e cuja instalação necessitava ser
em 1915. Fonte: Evolução Administrati- regularizada.
va do Rio Grande do Sul-Instituto Geral
de Reforma Agrária. Porto Alegre, S/d. Uma das características mar-
Adaptado por Alex Antônio Vanin. cantes da região hoje polarizada por
Erechim, e consequentemente, Passo
Fundo, é a diversidade étnica e cultu-
ral de sua população. Isso se eviden-
cia desde a sua fundação. A diversi-
dade étnica não foi problema para a
administração da Colônia Erechim.
As reclamações e queixas apresenta-
das pelos imigrantes são considera-
das normais por Severiano de Souza
e Almeida.
Na correspondência enviada ao
Mapa do Estado do Rio Grande do Sul
em 1920. Fonte: Evolução Administrati-
presidente da Sociedade União Ope-
va do Rio Grande do Sul-Instituto Geral rária do Rio Grande em março de
de Reforma Agrária. Porto Alegre, S/d. 1915, o chefe da Comissão avalia que
Adaptado por Alex Antônio Vanin. “tratando-se de uma classe tão nume-

372
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

rosa, constituída por nacionalidades, costumes e índoles diferentes, não é de


estranhar que haja queixosos e descontentes entre os poucos afeitos ao tra-
balho” (Arquivo Particular Antônio P de Souza, apud Gritti, 2004, p. 117).
Os imigrantes poloneses que aqui chegaram, ainda que muito tempo de-
pois daqueles que foram assentados em Mariana Pimentel e Dom Feliciano,
por exemplo, também são registrados como imigrantes das nações que ocu-
param a Polônia. No caso do território passofundense, mais particularmente
na Colônia Erechim, encontramos os russos-polacos.
A correspondência datada de maio de 1912, do Inspetor de Serviço de
Povoamento, à Secretaria de Obras Públicas Terras e Colonização, comprova
isso. Refere-se à “imigrante russo-polaca R. W. viúva do imigrante da mesma
nacionalidade, J. W. que solicita passagem para si e seus filhos” (Arquivo
Particular Antônio P de Souza, apud Gritti, 2004, p. 118).
A prosperidade e a pre-
sença de bons elementos na
Colônia Erechim (que se
emancipa de Passo Fundo no
ano de 1918) são destacados
pelo chefe da mesma, Seve-
riano de Souza e Almeida.
Da mesma forma destaca a
estabilidade do imigrante,
Casamento Polonês no meio rural de Erechim isto é, poucos, muito poucos
(s/d). Fonte: Arquivo Histórico Municipal de abandonaram a Colônia Ere-
Erechim. chim, contrariamente ao que
ocorreu nos demais núcleos coloniais onde os imigrantes poloneses foram
assentados.

[...] Vindo nas grandes remessas de imigrantes, como sabeis, gente de


toda espécie, inclusive especuladores que já tem estado em núcleos
coloniais de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, não é de admirar que
apareça algum elemento péssimo, que em parte alguma fica, sendo
que o bom elemento é estável e por isso permanece nos lotes que lhes
são destinados, nestas condições a Colônia Erechim conta em quase
sua totalidade com imigrantes que, por serem agricultores, garantem

373
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

o bom aproveitamento das terras (Arquivo Particular Antônio P. de


Souza, apud Gritti, 2004, p. 119).

Importante destacar que os imigrantes poloneses, conforme pode ser


visualizado na tabela número 3, mais do que os das demais etnias, concen-
tram-se em determinados locais, como São Feliciano, Ijuí, Mariana Pimentel,
Guarani das Missões, e no território da Colônia Erechim, pertencente ao
município de Passo Fundo, tais como, Floresta (Barão de Cotegipe), Nova
Polônia (Carlos Gomes), Treze de Maio (Áurea) que evoluíram para muni-
cípios e que compõe na atualidade um elevado número de descendentes de
poloneses, quando não correspondem à grande maioria do município.
Na região correspondente à Colônia Erechim, a instalação dos imi-
grantes poloneses ocorreu de forma tranquila, pois as condições de instalação
oferecidas aos imigrantes apresentavam-se melhores e mais adequadas, uma
vez que o assentamento dos povoadores europeus fora detalhadamente pla-
nejada pelo Estado, o que não ocorreu na grande maioria dos demais núcleos
coloniais criados no território gaúcho.

Escola com alunos e


professor Longines
Malinoski, em 1924.
Fonte: Arquivo
Histórico Municipal de
Erechim.

374
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

“O polonês anda muito! Não se fixa no núcleo colonial a


ele destinado!”

Na nova pátria, na tão desejada e sonhada terra prometida, e, no caso,


terra gaúcha, os imigrantes poloneses constroem suas vidas, como os demais
grupos étnicos que aqui se instalaram, com muito trabalho e dificuldades.
Contudo no caso dos poloneses, o fato de imigrarem de uma Polônia domi-
nada, contribuiu para a construção de ideias negativas e de inferioridade em
relação á este grupo étnico no Rio Grande do Sul. É aqui, no momento da
instalação dos mesmos, que surgem, expressam-se e se registram as ideias
negativas em relação aos imigrantes poloneses, e seus descendentes.
O acesso a terra, nos diversos núcleos coloniais no Rio Grande do Sul,
com exceção de Erechim, não ocorreu de forma tranquila e imediata. Os imi-
grantes poloneses percorreram vários núcleos coloniais antes de se fixarem
num deles, bem como se defrontaram com condições precárias de assenta-
mento. Os lotes que adquiriram depois de muitos conflitos eram menores que
os adquiridos ou ganhos pelos imigrantes italianos e alemães que os precede-
ram. Da mesma forma, os terrenos que a eles foram destinados nos principais
e primeiros núcleos de colonização polonesa no Estado eram acidentados e
pouco férteis.
É no período de implantação da República Gaúcha comandada pelo
Partido Republicano Rio-Grandense – PRR – que o maior número de imi-
grantes poloneses dirigem-se para o Brasil e particularmente para o Rio
Grande do Sul.
Neste momento, a paisagem gaúcha já está modificada pelo trabalho
dos imigrantes europeus aqui instalados desde 1824. São os imigrantes ale-
mães e italianos aqui estabelecidos em consequência da política imigratória
desencadeada pelo governo brasileiro os principais responsáveis pela altera-
ção da paisagem gaúcha até esta data.
Porém, as dificuldades e os conflitos enfrentados pelos imigrantes polo-
neses no Estado não são amenizados pelo fato de o assentamento dos mes-
mos e a administração dos respectivos núcleos coloniais estarem sob a res-
ponsabilidade do Governo Estadual.
Os princípios positivistas se fazem presentes na administração do Esta-

375
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

do através da influência exercida pela obra de Augusto Comte sobre os in-


tegrantes do Partido Republicano Rio-Grandense – PRR – responsável pelo
destino do Rio Grande do Sul durante toda República Velha - 1889-1930.
Para Paulo Pezat (1987), as relações entre a Igreja Positivista do Brasil e o
Partido Republicano Rio-Grandense foram estreitas desde o princípio das
duas instituições, fundadas respectivamente em maio de 1881 e janeiro de
1882.
Segundo Comte, o Estado deve ser portador do interesse de todas as
classes. O seu fim é eminentemente social, isto é, o encaminhamento da hu-
manidade, regulando a sociedade segundo uma ordem lógica e estável. Den-
tro desta concepção, ao Governo cabe promover a estabilidade, a ordem, o
ajustamento do indivíduo à sociedade. Esta sociedade será hierarquizada,
rígida, marcada pelo autoritarismo.
Os imigrantes poloneses que chegaram ao Rio Grande do Sul são vistos
como elementos perturbadores da ordem estabelecida. Provocam a desordem
e impedem o andamento regular dos trabalhos executados pelo Estado, rela-
tivos à recepção e assentamento dos mesmos nos núcleos coloniais. Os con-
flitos entre os colonos poloneses e as Comissões de Terras representadas por
seus funcionários, foram frequentes e constantes. Os conflitos ocorriam pelas
mais diversas razões. Aconteciam em decorrência de problemas de hospeda-
gem, alimentação, transporte e instalação dos imigrantes nos núcleos colo-
niais. Os conflitos envolvendo os imigrantes poloneses e os administradores
dos núcleos coloniais, administradores estes indicados pelo Estado, foram
intensos e ocorreram principalmente durante o período de implantação da
República Gaúcha comandada pelo PRR.
As manifestações de descontentamento, que, obviamente, quebravam a
ordem estabelecida eram com muita frequência reprimidas através do uso da
força policial. O retorno à pátria, a busca de trabalho nas cidades e, sobre-
tudo, a procura de melhores condições em outros núcleos coloniais eram al-
ternativas que se apresentavam aos colonos. Os colonos poloneses buscavam
novos núcleos coloniais com muita frequência, ou melhor, percorriam vários
até se fixarem em um deles (Gritti, 2004, p.131-132).

Estes eram responsabilizados pela quebra da tranquilidade e da nor-


malidade dos núcleos coloniais, além de representarem gastos infru-

376
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

tíferos para o Estado. Aliás os choques entre colonos e comissões, ao


contrário do que a literatura geralmente narra, eram muito comuns.
Existiram em função da cobrança da dívida colonial e dos problemas
com hospedagem, alimentação, transporte e localização nos núcleos.
Essas manifestações eram, quase sempre, por ordem da presidência
do Estado, reprimidas pela Brigada Militar (Kliemann, 1986, p. 67).

Para os positivistas a ordem é condição de progresso. Para os administra-


dores dos núcleos coloniais, simpatizantes das ideias defendidas por Augusto
Comte, os imigrantes poloneses não se submeteram às regras e às condições
estabelecidas para o assentamento nos lotes coloniais. Logo, perturbam a or-
dem pública e, ao perturbarem a ordem, demonstram sua inferioridade técni-
ca e moral e não contribuem para a prosperidade do Estado.
Os imigrantes poloneses não foram os únicos imigrantes europeus que
manifestaram seu descontentamento, ou melhor, sua decepção com a rea-
lidade aqui encontrada. Contudo, sem dúvida nenhuma, foram os colonos
poloneses que enfrentaram as maiores dificuldades no solo gaúcho e, conse-
quentemente, os que, de forma mais intensa, manifestaram sua insatisfação.
Os funcionários responsáveis pelos núcleos coloniais não só relataram
as manifestações de descontentamento dos imigrantes poloneses, mas tam-
bém propalaram a ideia de que os mesmos eram pouco dados ao trabalho.
Em todos os documentos enviados pelos diretores dos núcleos coloniais à
Secretaria de Terras e Obras Públicas expressam sua avaliação sobre os imi-
grantes poloneses de forma clara, direta e enfática. O documento seguinte,
enviado ao Delegado de Terras e Colonização pelo Diretor do núcleo de Al-
fredo Chaves no ano de 1892, é um exemplo disso

Em aditamento ao meu ofício número 277, de 10 de dezembro corren-


te, devo levar ao vosso conhecimento que os polacos-russos me vieram
pedir trabalho por mais um ano, aí a repatriação. São decorridos dois
anos que, oficialmente mostrei a desgraçada escolha de semelhantes
imigrantes; logo de chegada – reiterei por diversas vezes o meu juízo e
no meu relatório do ano próximo passado, tanto de Alfredo Chaves,
como da extinta comissão de Caxias, encontrareis a minha previsão
sobre o fato. Se desejam que esta delegacia atenda a exigência desta
péssima colonização, satisfazendo o pedido que irá custar enormes

377
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

sacrifícios por mais um ano, pois como trabalhadores de estradas são


péssimos ou negar-lhes, aproveitando 15 ou 20% deles que se confor-
mam com a resolução indispensável tomada, peço responder-me.
Desde julho, que foram avisados e pouco caso fizeram e lamento que
o Exmo Ministro da Rússia que levou tão agradáveis impressões das
estradas feitas nas linhas e casas construídas não volte a percorrê-las
para certificar-se da ociosidade destes imigrantes com os quais toda
minha paciência está esgotada (Montaury Leitão, apud Gritti, 2004,
p.135).

No território correspondente à grande região de Passo Fundo não en-


contramos documentos oficiais, relativos ao processo de assentamento dos
imigrantes, em que a manifestação dos diretores do núcleo colonial seja de
inferioridade em relação a um ou a outro grupo étnico. Isso, porém, não
significa que a ideia de inferioridade, ou de preconceito não se faça presente.
O processo-crime número 142 de 1973, da Comarca de Erechim, exis-
tente no Arquivo Histórico Municipal de Erechim, demonstra claramente
que o preconceito criou raízes e se expandiu pelo território gaúcho. É através
do processo – crime que o juiz de direito nos diz que há racismo e que ele
atinge especialmente dois grupos: os negros e os poloneses.

[...] Esta, por certo, decorreu de provocações da vítima, mormente se


considerando o racismo imperante em zona de colonização italiana,
que se expressa no refrão muito comum nesta zona: “Dai ai polachi,
copari ai Negri”. (Bater nos polacos e matar os negros).

A breve discussão realizada acima pretende mostrar que apesar do as-


sentamento dos imigrantes, particularmente dos poloneses, na região que
hoje corresponde aos municípios de Passo Fundo e Erechim, ter sido tran-
quila, a ideia de inferioridade do grupo étnico polonês se faz presente. Este
preconceito emerge no momento do assentamento dos mesmos em território
gaúcho comandado pelo Partido Republicano – Riograndense de inspiração
positivista. Isso decorre do fato de os imigrantes poloneses reagirem às con-
dições que lhes eram oferecidas no momento de sua instalação como agricul-
tores. Reclamavam, não se fixavam no núcleo inicialmente a eles destinados,
fazendo com que os administradores dos núcleos coloniais os comparassem

378
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

aos italianos e alemães aqui estabelecidos e, portanto, os “polacos sem pá-


tria” impediam o progresso, uma vez que alteravam a ordem estabelecida. O
preconceito criou raízes, e, se expandiu no tempo e no espaço.

Enfim...

A região polarizada pelos atuais municípios de Passo Fundo e Erechim


caracteriza-se pela diversidade étnica e cultural de sua população. Nela esta-
beleceram-se vários grupos étnicos europeus, além dos indígenas e dos cabo-
clos que se encontravam. Dentre os diversos grupos imigratórios europeus,
os poloneses também se fazem presentes. Eles são estabelecidos, dominante-
mente, no início do século XX, quando o atual município de Erechim per-
tencia ao município de Passo Fundo, uma vez que sua emancipação data de
1918.
Se, no território rio-grandense, a mobilidade dos poloneses foi carac-
terística marcante, o que contribuiu para a emergência do preconceito em
relação aos mesmos, como brevemente demonstramos no texto, aqui, nessa
região, caracterizaram-se pela estabilidade. É claro, que isso não significou
imobilidade, pois o imigrar/emigrar são processos naturais e permanentes. O
que varia é sua intensidade e a causa propulsora.
Em ambos os municípios, os poloneses marcaram presença, principal-
mente na agricultura. Porém, o meio urbano de Passo Fundo registra a pre-
sença de muitos poloneses que atuaram, e ainda o fazem, em várias ativida-
des. No antigo território de Passo Fundo das primeiras décadas do século XX
há vários municípios com grande característica da etnia polonesa, como é o
caso de Áurea, Getúlio Vargas e Erechim. Os poloneses deixaram suas mar-
cas nos saberes ligados às atividades agrícolas, no artesanato, na culinária, na
arquitetura de suas casas, na sua língua e expressões culturais. Há várias as-
sociações de poloneses na região norte do Rio Grande do Sul e que mantêm
vínculos com a Polônia atual.
Enfim, é um grupo étnico que, em geral, inserido em meio aos italianos,
tanto das antigas colônias, quanto das mais recentes, soube demarcar territó-
rios étnicos, conviver e integrar-se na sociedade nacional, aplicar seus saberes

379
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

e inserir-se em esferas sociais, políticas, religiosas, científicas e econômicas


regionais e nacionais.

Algumas famílias de poloneses em Passo Fundo

Família Tabaczinski

Segundo entrevista com Leo-


nardo Tabaczinski, neto de Estevan
e Catarina Krieger Tabaczinski, seu
avô migrara de Casca, antiga colônia
de Guaporé, em 1923, para Carazi-
nho, afim de abrir uma cervejaria ar-
tesanal nessa localidade, onde mais
tarde, obteria destaque na Revolução
de 1932, lutando a favor de Getúlio
Vargas, fato esse que lhe rendeu o tí- Leonardo Tabaczinski, neto de Estevan
Tabaczinski, administra o posto de
tulo de Major. Segundo o interlocu- combustível da família. Fonte: pesquisa
tor, seu avô seguiu a função de escri- de campo.
vão cartorial na cidade de Erechim,
tendo quatro filhos e falecendo na
referida localidade em 1969.
Seu pai, Pedro Tabaczinski,
depois de passar por algumas expe-
riências como jogador de futebol,
formou-se em contador em Porto
Alegre e, em 1950, migrou para Pas- Primeira nota fiscal do Posto “Brasília”,
so Fundo, para gerenciar uma filial da família Tabaczinski, em 1960. Fonte:
da Texaco com sede na cidade. Nes- gentilmente cedida por Leonardo
sa atividade Pedro permaneceu até Tabczinski.
1955, quando passou a constituir parceria no ramo de transportes com Lírio
Suzin, até 1960. Em 1960, Pedro montou um posto de gasolina, o “Posto
Brasília”, conhecido popularmente como “Posto Tabaczinski”, trabalhando
nessa atividade até 1976, quando veio a falecer.

380
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Família Czamanski

Família de Jorge Alberto e Mariana Czamanski. Fonte: Ronaldo Czamanski.

Segundo entrevista com Ronaldo Czamanski, seus avôs foram imigran-


tes poloneses, oriundos de Gdanski (seu avô) e de Cracóvia (sua avó). Chega-
ram ao Brasil em 1891; estabeleceram-se na colônia Guaporé, na região onde
hoje pertence para Nova Prata. Segundo ele, ficaram pouco tempo nessa re-
gião, tendo migrado para a comunidade rural de Balisa, à época pertencente
a Erechim. Alguns anos depois foram para Santo Ângelo e montaram uma
sapataria no meio urbano. Eles tiveram 12 filhos. Em 1922 migraram para
Passo Fundo. O avô faleceu aqui em passo Fundo em 1933.
Segundo nosso interlocutor,

Meu pai, Deoclides, nasceu em 1922, e casou em 1944, com Iracema


Garcia Gil, filha de imigrantes espanhóis. Com a morte do pai, os
filhos tiveram de lutar pela vida; o mais velho, Armando, começou a
fotografar em 1930, quando comprou a Foto moderna que era, des-

381
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

de 1920, de Benjamin D´Agnoluzzo. Ele montou o primeiro estúdio


fotográfico de Passo Fundo em 1937 e trabalhou até 1946, tendo ido
à Porto Alegre. Seu irmão Daniel trabalhou junto na foto e comprou
a parte do Armando. O tio Da-
niel trabalhou até 1952, daí foi
para o ramo do cinema e, ven-
deu o estúdio para meu pai, De-
oclides. Esse trabalhou então de
1952 até 2004 quando começou
a adoecer, vindo a morrer em
2005. [...]. Eu comecei a foto-
grafar em 1958, com 11 anos e,
estou até hoje. [...]. O Deoclides,
meu pai, era especialista em fo-
tos aéreas, eu também tive des-
Ronaldo Czamanski. Fonte: pesquisa de campo. taque, porém, mais no campo
científico, ou seja, fotografando
cirurgia, de todos os tipos, para auxílio dos médicos e para estudo;
bem como fotos ligadas à agricultura, para detectar pestes, insetos,
plantas doentes. [...]. O digital, aos poucos, foi tomando conta e a
conhecida Foto Moderna teve de fechar.

A Foto Moderna se mescla com a história de Passo Fundo, primeira-


mente com a família D´Agnoluso, a qual ainda possui um amplo acervo de
cenas do cotidiano urbano da cidade; produziu uma importante série de car-
tões postais sobre Passo Fundo. Mas foi com as duas gerações da família
Czamanski que ganhou notoriedade, grande expressão e referência nos am-
plos registros dessa longa história.

Anúncio do Estúdio da Photo Moderna de Armando Czamanski, irmão mais velho de


Deoclides e tio de Ronaldo. Fonte: Guia Ilustrado..., 1939.

382
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Segundo comentários
contidos no site do Proje-
to Passo Fundo, Deoclides
fotografou a cidade “de
cima abaixo”, como atesta
a mais numerosa série de
fotos aéreas e urbanas. De-
oclides recebeu, em 1998,
uma homenagem da As-
sociação dos Laboratórios
Fotográficos do Rio Gran-
de do Sul (ALASUL) por
Deoclides Czamanski. Fonte: foto gentilmente
ser o fotógrafo mais antigo cedida por Ronaldo Czamanski.
em atividade no estado. As
fotografias dele são encontradas em recordações de eventos sociais da época,
fotos áreas da cidade e acontecimentos do cotidiano
Em 2005, Ronaldo
Czamanski assumiu a
direção após o faleci-
mento do pai; o referi-
do fotografa com seu fi-
lho Rafael Czamanski,
dando continuidade à
tradição familiar. O ma-
terial acumulado pela
família Czamanski é
hoje a maior coletânea
Deoclides Czamanski segurando trigo para seu irmão, fotográfica sobre Passo
Armando, fotografar, nas proximidades da faculdade
Fundo. Este material já
de Agronomia da UPF. Fonte: Ronaldo Czamanski.
foi usado num sem-nú-
mero de publicações em jornais e livros que versam acerca da história da
cidade.3

3 
http://projetopassofundo.com.br/principal.php?modulo=texto&tipo=texto&con_codigo=14708

383
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Família Sobiesiak

Em contato com a Sra. Eliane4, ela nos informa que seu bisavô, José
Sobiesiak, nasceu em 26 de setembro de 1866. Era sapateiro. Casou-se com
Josefa Wenzoski. Ambos tinham 25 anos quando decidiram vir para o Brasil
em 1890.

“Saíram de Zyrardów e levaram 18 dias até chegar ao Rio de Janeiro.


Após vieram para Porto Alegre e de lá para o Barracão dos Imigrantes
da Colônia de Alfredo Chaves, no final de novembro. Foi encaminha-
do para os lotes da Linha General Osório, conhecida como Linha dos
Polacos, em Capoeiras, 2º Distrito de Alfredo Chaves, onde desbrava-
ram o mato construindo sua casa”.

Eliane informa que, em 1897, José e esposa, transferiram sua residência


para Vila de Capoeiras, hoje município de Nova Prata, instalando uma ofi-
cina de sapataria, tendo sido o primeiro a se dedicar a esse ofício na referida
cidade. José Sobiesiak e Josefa tiveram nove filhos; dentre eles, José Antônio
Sobiesiak, pai de Elóy Sobiesiak, esse nascido em 28 de fevereiro de 1902 e
falecido em 24 de janeiro de 1994.

“Não há data precisa de quando José Antônio saiu de Nova Prata.


Ele casou com Floriana Bucholz em 30 de setembro de 1922. Sabe-se
que o casal morou em Ciríaco, onde nasceu o filho Elóy Sobiesiak em
27.10.1926, sendo o terceiro dos seus quatro filhos. A data que o casal
José Antônio Sobiesiak e Floriana Buchholz Sobiesiak veio morar em
Passo Fundo não foi possível localizar. Sabe-se que o Elóy Sobiesiak
e Walter Sobiesiak tiveram estabelecimento comercial (“Armazém In-
ternacional”) em Carazinho. [...]. Elóy Sobiesiak casou-se com Elsa
Leyser Sobiesiak, no dia 21 de junho de 1955, em Passo Fundo, tive-
ram cinco filhos. Viveram 52 anos de casados. A esposa Elsa faleceu
em 12 de agosto de 2008”.
4 
Eliane Flora Sobiesiak Moretto, filha do Elóy Sobiesiak e Elsa Leyser Sobiesiak, passaram-nos
gentilmente algumas informações via e-mail. No momento em que entramos em contato com ela,
o Sr. Elóy não se encontrava em boas condições de saúde, por isso não tivemos possibilidade de
efetivar um contato direto com ele.

384
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Segundo informações de Ca-


rina Sobiesiak5, Walter Feliz Sobie-
siak, casou-se com Elayne Teixei-
ra Sobiesiak, em 22 de Janeiro de
1945, sendo natural de Carazinho.
Tiveram dois filhos: Juarez e Jai-
ro. Ela informa que Walter e Elóy
trabalharam na Agêcia Ford de Ca-
razinho com o Sr. Bucholz, onde Elóy e Walter Sobiesiak. Fonte: foto
adquiriram muita experiência no gentilmente cedida por Carina Sobiesiak.
ramo de autopeças. Após esta etapa, os irmãos abriram um negócio próprio,
um Armazém, em Carazinho. O Elóy ficou cuidando do Armazém, enquan-
to o Walter fora trabalhar na Agência Chevrolet de Cachoeira do Sul.
Depois de anos trabalhan-
do com autopeças, os irmãos
resolveram seguir no ramo,
abrindo a loja Auto Esporte na
cidade de Passo Fundo em 14 de
junho de 1950. O negócio se ex-
pandiu e, após alguns anos, abri-
ram filiais nas cidades de Cara-
zinho e Erechim. Com 66 anos
de existência e com a segunda
Empresa da família Sobiesiak em Passo e terceira gerações trabalhando
Fundo. Fonte: autoesportepecas.com.br juntos, a Auto Esporte continua
tradicional no ramo de autope-
ças. O Walter faleceu em 2010,
a Elayne em 2016 e a Elsa, es-
posa do Elóy em 2008. Elóy e
Ondina continuam presentes
entre nós. O esposo da Ondina
também faleceu.

A família Sobiesiak. Fonte: foto gentilmente cedida por Carina Sobiesiak.


5
  Obtivemos mais informações sobre a família Sobiesiak, via e-mail, com a atual administradora de
uma das empresas da família, Carina Sobiesiak.

385
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

Família Ianisky

No diálogo que obtivemos com o Sr. Nelson Ianisky, neto de imigrante


polonês, que migrou para Passo Fundo por volta de 1890, seu bisavô, Pedro,
emigrou solteiro e se estabeleceu no meio rural de Passo Fundo, onde hoje
é o Distrito de São Roque. Sempre aliou atividade de agricultura com a de
marcenaria e de ferraria.

Meu bisavô casou aqui. Meu avô Nico-


lau nasceu em 1899; era uma família
de sete irmãos. Ele casou com Angeli-
na Lago em São Roque; seguiu o seu
pai nas profissões de agricultor e ferrei-
ro, mas tinha pouca terra para toda a
família. Eles tiveram cinco filhos. Meu
avô morreu em 1979. [...]. Meu pai,
José, nasceu em 1926; trabalhou tam-
bém na ferraria e marcenaria; casou-se
com Maria da Silva, filha de agricultor.
[...]. Ele se estabeleceu em Passo Fundo
Nelson Ianisky e sua esposa Nelsa Gehlen em 1954, já casado e com dois filhos.
Ianisky. Fonte: pesquisa de campo.
A terra era pouca e tinha de achar al-
ternativas. Primeiramente, trabalhou na Menegaz, convidado por um
tio e, depois, os três irmãos botaram uma carpintaria e ferraria em
Passo Fundo, na Vila Santa Terezinha, atrás do comércio do Arão
Baril, era a “Ferraria e Carpintaria dos Irmãos Ianisky”.

O entrevistado enfatiza que sempre trabalharam com ferraria e fábrica


de carroças, posteriormente, carrocerias de caminhão. Porém, com a consti-
tuição de novas famílias, os três irmãos homens foram incorporando outras
atividades, um irmão permaneceu com o ramo da chapeação e outro com
madeireira. “Meu pai José faleceu em 1993, com 67 anos, e a mãe, Maria,
em 2005”.

386
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Família de Nicolau Ianisky. Fonte:


foto gentilmente cedida pela Sr. Nel-
Família de José Ianisky. Fonte: foto
son Ianisky.
gentilmente cedida pela Sr. Nelson
Ianisky.

Família Revers

Casper Revers, sua esposa e mais cinco filhos, emigraram de uma região
dos arredores de Cracóvia, Polônia, em 1889, para o Brasil. Estabeleceram-se
no Rio Grande do Sul, à época, na Colônia de Conde D´Eu, onde hoje é o
município de Nova Roma. Após alguns anos migraram para a Colônia de
Alfredo Chaves, no atual município de Veranópolis, e, por volta de 1912, para
a Colônia Guaporé, onde hoje é o município de Casca.
Quem nos dá essas infor-
mações é o Sr. Antônio Revers,
77 anos, casado com Elenice
Volpi. Ele é bisneto do imigran-
te Casper Revers; diz que seu
avô Alexandre, casou com Ma-
ria Wronski, essa com 14 ou 15
anos; tiveram 9 filhos, dentre
eles seu pai, João, casado com
Anastácia Klanovicz. Tanto
o bisavô, quanto o avô e o pai Alexandre Revers e sua esposa Maria
foram agricultores, porém, alia- Wronski. Fonte: foto gentilmente cedida
vam a agricultura a outros ofí- pelo neto, Antônio Revers.

387
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

cios, dentre eles o de carpintaria. Seu pai teve 11 filhos e, segundo ele, “con-
seguiu colocar todos os filhos dando terras para todos”. Seu avô faleceu em
1961, a avô em 1964; seu pai em 1993, sua mãe em 1991.

“Vim para Passo Fundo em 1960 para continuar estudar e para tra-
balhar. Estive por seis anos no seminário e, ao sair, meu pai disse
que deveria continuar nos estudos. Daí, estudei na escola noturna
do Colégio Conceição, fiz três anos de contador e, ao término, cursei
economia na UPF. Mas, o interessante é que comecei a trabalhar na
empresa Grazziotin logo que cheguei em Passo Fundo e, nela fiquei
por 43 anos”

João Revers, ao centro, com seu


violino. Fonte: foto cedida pelo
filho, Antônio Revers.

Antônio Revers e
sua esposa Elenice.
No detalhe, há um
amplo acervo de
livros em polonês,
fotografias, o
violino do Sr. João
Revers, dentre
uma série de
outros objetos
que simbolizam o
passado da família
Revers. Fonte:
pesquisa de campo.

388
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Família Lech

Segundo entrevista com Osvandré Luiz Can-


field Lech, seu pai, João Lech, nasceu no municí-
pio de Barra do Ribeiro em 1926; era o mais novo
de uma família de oito irmãos. A família atuava na
agricultura, como pequenos proprietários familia-
res. Aos 14 anos, João mudou-se para Porto Alegre
para estudar, dedicando-se ao trabalho em diferen-
tes ramos e atividades como cozinheiro, verdurei-
ro, dentre outras, para o custeio de seus estudos.
Em idade adulta, João Lech dedicou-se à atividade João Lech, aos 60 anos.
comercial de caixeiro-viajante. Fonte: foto gentilmente
cedida por seu filho
Osvandré Lech.

“Em 1952, migrou para Passo Fundo, enviado para ser representan-
te comercial do laboratório que trabalhava em Porto Alegre. Migrou
solteiro; residia primeiramente no Hotel Avenida. [...]. Casou-se com
Almery Canfield, a qual descende de antigos imigrantes e de tradicio-
nal família do antigo território de Passo Fundo e, em particular, do
bairro Boqueirão. [...]. O pai sempre se dedicou ao ramo comercial,
como representante da empresa Merck Sharp & Dohme, onde traba-
lhou por 28 anos até se aposentar. [...]. Dedicou-se também ao campo
social, cultural e político, tendo sido um dos fundadores do Parque
Grêmio dos Viajantes, fiel torcedor do Gaúcho, engrossou as fileiras
do trabalhismo de Getúlio e Brizola, um exímio leitor e amante da
história e da política contemporânea do país. Recebeu inúmeras ho-
menagens da municipalidade”.

O casal João e Almery teve três filhos. João Lech faleceu no dia 9 de ja-
neiro de 1998, aos 71 anos; sua esposa, com seus 89 anos, permanece presen-
te no núcleo familiar. Seu filho, Osvandré, enfatiza o estilo simples do pai, de
valorização das coisas simples, da capacidade de aglutinar amigos, de extre-
ma dedicação à família e ao trabalho. Nesse campo do trabalho, seu pai des-
tacou-se como caixeiro-viajante, em específico como vendedor de produtos

389
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

farmacêuticos na região de Passo


Fundo. O interlocutor menciona si-
tuações vividas por seu pai, as quais
faziam parte da vida cotidiana de
representante comercial de alguma
empresa, como os obstáculos da
mobilidade pelas estradas da época
(chão batido, poeira e barro), a im-
portância das inovações e redes de
informações em cenários como de
municípios e lugarejos distantes dos
grandes centros, com poucas possi- Família Lech em sua residência no bairro
bilidades, as várias malas com seus Boqueirão, em 1961.
mostruários, o encontro com amigos em bares e hospedarias, etc. No caso es-
pecífico da atividade de seu pai, no campo da revenda de medicamentos, diz
Osvandré que era comum, nos finais de semana, pessoas buscarem remédios
em sua casa, principalmente crianças mandadas por seus pais.

O filho Osvandré alcança a pasta de viajante


ao pai João, em 1972. Fonte: foto gentilmente
cedida por seu filho Osvandré Lech. 

Família Lech (Osvandré, Marilise,


Graciela e Leonardo) por ocasião da
formatura da filha Graciela em Relações
Públicas na PUCRS, em 2016.

390
Entre o barco e a enxada: recortes da imigração polonesa em Passo Fundo

Referências

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(Org.). Enciclopédia Rio-Grandense. Canoas: Regional, 1958.
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emergência do preconceito. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2004.
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dade. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
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Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
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PEZAT, Paulo Ricardo. Auguste Comte e os Fetichistas: estudos sobre as rela-
ções entre a Igreja Positivista do Brasil, O Partido Republicano Rio-Granden-
se e a Política Indigenista na República Velha. Porto Alegre: UFRGS, 1987.
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Brasil. In: Estudos Latinoamericanos. Varsóvia, sem data.
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Geográfico e Etnográfico Paranaense. Curitiba, 1971.
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WACHOWICZ, Ruy Christovam. O Camponês polonês no Brasil- raízes medie-
vais da mentalidade emergente. Curitiba: UFPR, 1974.

391
Anexos

393
A formação étnica de Passo Fundo: história, memória e patrimônio

394
Alguns estabelecimentos comerciais e industriais na Vila Victorio Veneto - de 1890 a meados do século XX1
Família Busatto Família Susin Ofícios:
Família Bortolon Família de João Biasus ne
r Ferraria
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Família De Toni ran
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4d Família Vendrame Av
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o Família Fasolin Leitaria
Família de Clemente Bernardon
Família de Pedro Bilibio Açougue
Família Formighieri
Família Bonotto Família Patussi
Bodega
Família Consalter
Família Giavarina
Família Reolon Banha

iro
Rua Min
Família Venturini as Gerais

be
Ri
Família de Z. D. Costi Casa de Comércio

ilo
am
Família Zancanaro Brigada Militar

aC
Família de Miguel Serena

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Família Rossetto Hotel

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Família Verardi

ilit
Família Adami Casa de pasto

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Família Ricci
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Família de Guerino Possan rig
Frigorífico
aB
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Paróquia São Cristóvão


Ru

Família Bilibio Moinho


Família de Atílio Pavan
Família de Albino Lazzaretti Construção civil
Família de Felice Bilibio
Metalúrgica
Família Bortolussi

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zio
Família Scortegagna Sapataria

az
Gr
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Família Gobbi Chapelaria

ale
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Família Damiani Fábrica de sabão

Família Nazari Engarrafamento e


Fonte: adaptado por Alex Antônio Vanin. venda de bebidas
1
A localização dos estabelecimentos foi-nos informada pelos interlocutores da pesquisa; alguns não tinham plena certeza da localização, tendo sido, portanto, indicada nas proximidades.

395
Alguns estabelecimentos domiciliares e comerciais no centro de Passo Fundo - de 1900 a meados do século XX1
Famílias:
C Bodega de Pedro Barquete
A Escritório de Economia e Advocacia de Salim Buaes A Buaes

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Sociedade Beneficente G Tufi-Mouzer
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E Casa São José


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Fonte: adaptado por Alex Antônio Vanin.

1
A localização dos estabelecimentos foi-nos informada pelos interlocutores da pesquisa; alguns não tinham plena certeza da localização, tendo sido, portanto, indicada nas proximidades.

397
Alguns estabelecimentos domiciliares e comerciais no centro de Passo Fundo - de 1910 a meados do século XX1
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Família Bacaltchuk Família Winik
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Famílias Melnik e Kwitko Família Sirotá


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Mo Família Sukster
Rua Família Waistein
Família Millman Família de Arão Baril
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Família Wainer Família Chwartzman Famílias Neiros e Litvin te Va
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Fonte: adaptado por Alex Antônio Vanin.

Estabelecimentos: Armazém Armarinhos Sapataria Construção


Bazar Rádios Farmácia Livraria Bodega
civil
Advocacia Móveis Carros Camisaria Calçados Fruteira Tecidos Consultório Madeireira
1
A localização dos estabelecimentos foi-nos informada pelos interlocutores da pesquisa; alguns não tinham plena certeza da localização, tendo sido, portanto, indicada nas proximidades.

399
O livro aborda fragmentos de história de vida
e de grupos sociais que estão na constituição
histórico-cultural do município de Passo Fundo:

• Indígenas Guarani e Kaingang;


• Afrodescendentes e luso-brasileiros;
• Alemães, italianos e poloneses;
• Sírios e libaneses;
• Comunidade judaica.

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