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ADMINISTRACKO PUBLICA NO BRASIL Gas—irisese - Mudan¢as de an, .- Haradigmas -. Tania Margarete Mezomo Keinert RFAPESP ; ioe B9331 Keinert, Tania Margarete Mezzomo. Administracdo publica no Brasil : crises e mudangas de paradigmas / Tania Margarete Mezzomo Keinert. 2" edigio ~ Sdo Paulo : Annablume : Fapesp, 2007 2200p. 14x 2lem Originalmente apresentada como Tese (doutorado ~ FGV/ EAES, 1998) como titulo Do aparetho estatal ao interesse publico : crise e mudanga de paradigmas na produgio téenico-cientifica em ad- ministragio piiblica no Brasil (1937-1997) ISBN 85-74 19-166-3 Inclui bibliografia. ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL: CRISES E MUDANCAS DE PARADIGMAS Coordenacao editorial Joaquim Antonio Pereira Capa Carlos Ciémen CONSELHO EDITORIAL. Eduardo Pefuela Cafizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevdo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff Cecilia Almeida Salles Pedro Jacobi 1" edigdo: novembro de 2000 2 edigio: junho de 2007 © Tania Margarete Mezzomo Keinert ANNABLUME editora . comunicagio Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 05427-100 . Sdo Paulo . SP . Brasil Tel e Fax. (011) 3812.6764 http://www.annablume.com.br SUMARIO PREFACIOIS INTRODUCAO23 PARTE | PARADIGMAS DA ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL EM FUNGAO DO CONCEITO DE PUBLICO CAPITULO I -A CONSTRUCAO DO OBJETO DE EsrupO) APROBLEMATIZACAO INICIAL: 0 QUEE ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL. 29 OCOMPORTAMENTO DO FOCUS 34 OCOMPORTAMENTO DOLOCUS 8G Consideragdes sobre os dados quantitativos obtidos 39 Paradigmas ¢ produgao de conhecimento 42 PROBLEMATIZACAO: O QUE E PUBLICO NOBRASI? Organizacao da anilise 52 Aplicagio do método 55 Es 6 a 5 ARELACAO ESTADO-SOCIEDADE 73 A matriz estadocéntrice 16 Re 3 ‘i spe at O modelo de gestio piblica pés-burocritico 104 OCONCE! Pi PARADIGMATICO. 106 PARTE I CRISE E MUDANCA DE PARADIGMAS NA PRODUCAO EM ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL “pry ” COMO ESTATAL (1930-1979) 1 SUPREMACIA DO ESTADO EAUTORITARISMO: THEONEBESTWéy CENTRALIZAGAO E RACIONALIZACAO: NEM TUDO QUE ELOGICO E PSICOLOGICO 130 CARREIRAS E CONTROLES FORMAIS: A BUROCRACIA DOS COITADINHOS CAPITULO IV - CRISE DO REFERENCIAL PARADIGMATICO 149 AREDEMOCRATIZACAO POS-45 151 OQ DESENVOLVIMENTISMO POS-50 1S AADMINISTRACAO INDIRETA: O POS-64 161 CRISE DO ESTADO E CRISE DO REFERENCIAL PARADIGMATICO 166 CONCLUSOFS aS BIBLIOGRAFIA, 193 ANEXO: QUADROS 207 POSFACIO: 213 Ivan Beck Ckagnazaroff APRESENTACAO Preocupagées e tensdes que influenciam o estado de animo de quem escreve uma tese, agora livro, estéo bem expressas na citagao “uma tese é uma tese”.! Preocupagécs estas que também se encontram bem presentes, mesmo que com tempo ¢ intensidade menor, em quem. tem a tarefa de apresentar o trabalho. Procurei, portanto, escrever um texto que nao pretende ser 0 convencional resumo do texto, enriquecido de alguma citacdo sobre temas de moda, tarefa relativamente facil para quem esta freqiiente- mente em contato com a rede de escolas, universidades ¢ centros de gestdo publica atuantes no continente europeu. Ao pensar nesta apresentacao, parti de uma cons geral e possivelmente um pouco provocativa sobre os livros, como instrumento de difusio do conhecimento e das idéias, que me foi sugerida por um recente artigo publicado na imprensa especializada italiana, por ocasiao da feira do Livro de Turim 2000, sobre “fantas- mas editoriais em rede” que assinalou, diante do sucesso intemacional de www.amazon.com ena Italia de www.internetbookshop it (incre- mento nas vendas entre 1999 e 2000 de 300%) que “cada livraria re- gistra 35 a 40% dos titulos que nao vendem nenhuma cépia” e que “cada ano acabam fora de catalogo pelo menos 30.000 titulos com milhées e milhdes de cépias”. Isto significa que o “mercado” nem sempre é um bom juiz para decidir a qualidade e 0 valor do trabalho. Neste sentido, cabe louvar a iniciativa da Fapesp — Fundagao de Amparo A Pesquisa do Estado de So Paulo — em instituir uma linha de financiamento destinada a incentivar co-edigées de textos com carater predominantemente académico. Também cabe destacar o empenho da Annablume Editora, através da colegdo “Selo Universidade”, na divulgagao de trabalhos que atingiriam uma clientela mais restrita. 1. “ Escrever uma tese & quase um voto de pobreza que a pessoa se autodecreta. O mundo para, o dinheiro entra apertado, os filhos so abandonados, o marido que se vire. “Estouacabando a tese’. Esta frase significa que a pessoa vaisairdo mundo, ‘Nao por alguns dias, mas anos. Tem gente que nunca mais volta.” “Uma tese é uma tese”, Mario Prata, in O Estado de S. Paulo, 7.10.98. 16 ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL Procurei, desta forma, responder, nesta apresentag4o, a duas questdes de fundo que sao discutidas (senéio solucionadas) para fa- vorecer a circulagao dos resultados do trabalho de pesquisa da Mezzomo Keinert, hoje livro, para além dos circuitos tradicionais de difusio, representados pelos cursos universitarios, pelas escolas de formacao de funcionarios piblicos (como a Enap, Egap, dentre outras), institutos e centros de pesquisa universita A primeira questao é dirigida a efetiva utilidade para os diversos grupos de Ieitores, dos superespecialistas (que sao sempre poucos) aos potenciais interessados (que sdo muitos, ainda que com muito menos tempo a disposicao), de um texto baseado exclusivamente so- bre uma experiéncia nacional, como aquela brasileira, em um contexto no qual ndo apenas as empresas, as agéncias e as fundagées sem fins lucrativos, mas também as organizagGes nio-governamentais ¢ a pro- pria administragao publica sdo sempre mais internacionais ¢ globais. Para evitar que um livro especializado em um argumento prova- velmente pouco acessivel para a maioria dos leitores, como a admi- nistragdo publica, termine por alongar a fila dos textos especificos so- jos. bre as prateleiras das bibliotecas, torna-se necessario, a meu ver, retor- nar a relagdo entre as especificidades dos casos nacionais ¢ as compa- rages internacionais, e, sobretudo, relembrar com algum dado con- creto a relevancia que assumem atualmente as andlises comparadas sobre temas do setor publico e da administragao publica. Se pense, com este propdsito, na experiéncia do Public Management Center da Organizacio para a Cooperagao e o Desen- volvimento Econémico (OCDE), fundada no ano de 1990 e destinada uma comparacao sistematica entre as experiéncias de modernizacao administrativa e gerencial dos sistemas de administracao publica dos principais paises desenvolvidos e de alguns paises emergentes e, sobretudo, sobre a transferéncia de conhecimento, know-how, best practices sobre varios temas — da descentralizagao institucional 4 gestdo de recursos humanos, a ética ¢ a accountability dos servigos publicos, ao desenvolvimento da information communication technology, 4 comunicagao com o publico ¢ ao desenvolvimento da qualidade (ver com este motivo www.oecd.org). Outros exemplos significativos sdo representados pelos progra- mas de internacionalizagiio das organizagées publicas dos paises per- tencentes a instituigdes supra-nacionais, antes de tudo a Unido Européia com intimeros projetos que favorecem a formagao dos fun- APRESENTACAO 7 ciondrios, 0 intercambio de know how; bem como a criagao do European Institute for Public Administration. E, por fim, recorde-se a presenga, junto as intervengdes mais institucionalizadas, do néimero de redes de pesquisa que internacio- nalmente reagrupam funcionarios publicos, universidades e escolas de administracao, centros de pesquisa piblicos e privados, sociedades de consultoria e as préprias associagdes de consumidores e usuarios cada vez mais interessados no melhoramento da qualidade dos ser- vigos oferecidos. Emblemiatico é, na América latina, 0 caso do CLAD — Conselho Latino Americano de Administragao para o Desenvolvimento — que congrega intimeras universidades e centros de pesquisas e que pro- moveu, recentemente, uma catedra virtual de Administragao Publica na web e¢ outras importantes redes de pesquisa como 0 international network on new public management, que dedica particular atengio a difusio e ao desenvolvimento do paradigma do new public management ao qual sio em parte reconduziveis as consideragdes contidas no trabalho de Mezzomo Keinert, especialmente no tocante a gestao piblica ¢ ao estilo de gestio pés-burocratico. Outras redes importantes fazem referéncia as experiéncias pro- movidas em paises de area angléfona — network on public sector management, promovido pela Aston Science Park University of Birmingham, que recebeu, no ultimo congresso, 300 contribuigdes internacionais (dentre elas algumas brasileiras) — e as redes de pesquisas de area francéfona — promovidas pela Revista Politiques et Management Public — sem falar nos numerosos (e em competicao entre si) networks americanos de pesquisa. No quadro da crescente internacionalizagio, a analise das sim- ples experiéncias nacionais, vistas como case studies, tem, ameu ver, uma significativa validade para o desenvolvimento do conhecimento sobre 0 tema da administragao publica de cada contexto nacional especifico com direta ligacdo aos paradigmas de pesquisa defendidos em nivel internacional. Esta ligagao se toma um elemento importante para 0 trabalho de Mezzomo Keinert, tendo em vista que foi o proprio Brasil que sediou 0 Global Forum sobre a reinvencao da administracao publica através da discussao de quatro casos nacionais representados pela experiéncia americana, do Reino Unido, do Brasil (pais anfitriao) eda experiéncia jadecenal de modernizagao da Administragdo Publica Italiana. 18 ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL Perspectiva integrada significa 0 aprofundamento da evolucado histérica e, sobretudo, das perspectivas futuras, nao se limitando a uma simples descrigao do sistema de Administragao Publica existente —as fungdes atribuidas aos diversos niveis de governo, os processos de reforma e de descentralizacao em andamento, as experiéncias inovadoras, como, no caso brasileiro, os programas desenvolvidos pelo antigo Mare — Ministério da Administragao e Reforma do Estado, ou, conjuntamente, pela Ford Foundation ¢ pela FGV/SP, sobre inovagées nadotagio de pessoal, receitas, despesas de gestio e de investimentos. Considerando, portanto, a evolucao histérica e as perspectivas futuras sobre o tema da administragao publica como indicadores para um juizo sobre a utilidade do livro relacionado as expectativas de um publico sempre mais numeroso, tambem gragas a Internet, a resposta 4 nossa questao inicial nao pode ser outra, a nao ser positiva, ainda que com algumas criticas, vistas como estimulos, indicagdes e suges- tdes 4 autora, a outros estudiosos ¢ pesquisadores brasileiros dedi- cados a temas da administracdo publica, do public management, sejam eles ligados a universidades, aos centros de pesquisa e, por que nao, a web. Essas criticas sao dirigidas a falta de aprofundamento da espe- cificidade dos paradigmas de pesquisa sobre a administragao publica. No trabalho de Mezzomo Keinert, de particular interesse 6 a parte dedicada aos paradigmas do conhecimento, com a citagdo obrigatoria a Kuhn e, sobretudo, a identificacao, em uma perspectiva histérica, dos dois paradigmas de Publico como Estatal(1930-79) e de Publico como Inieresse Ptiblico (periodo pés-90). Outra importante contribuicao é a ligacao dos dois paradigmas antes colocados aos diversos modelos de Estado que Mezzomo Keinert identifica no modelo regulador-liberal e no modelo intervencionista, em parte associavel ao bem-estar dos dois paradigmas. O que falta, entéo? Em primeiro lugar, na parte final sobre os modelos de estado “emergentes” no Brasil nao sao efetuadas ligagées especificas com os dois modelos que esto se consolidando em nume- rosos paises em nivel internacional, representados pelo Estado dos Servigos e pelo Estado Regulador, que sao retomados, por exemplo, nos numerosos trabalhos de Bresser Pereira. Mas, sobretudo, deveriam ser aprofundadas as ligacées entre os dois paradigmas brasileiros com 0 debate em ato sobrea existéncia dos paradigmas do new public management e da public governance. O primeiro, elaborado partindo de uma verificagao empirica dos processos de modemizacao administrativa e institucional em ato a partir dos anos 80 em numerosos paises europeus, antes de tudo o Reino Unido, o Japio, a Australia, o Canada, a Nova Zelandia e, obviamente, no contexto estadunidense (programa National Performance Review). Esses programas tém em comum o fato de basearem-se na adogio de agées administrativas especificas, como a criagdo de agéncias publicas, pela redefinigao dos limites entre publico ¢ privado, pela adogdo de técnicas gerenciais provenientes das empresas priva- das, em ambitos como a gestao de pessoal, marketing e comunicagao aos usuarios, e, sobretudo, pela adogao difusa de mecanismos de mer- cado (contracting out e delegacao de servigos, competicao entre pu- blico e privado, competicao entre piblico e puiblico). O paradigma da public governance, ao contrario, reserva parti- cular atencio ao sistema de relacdes que se ativam entre a adminis- tragdo publica e os diversos atores do sistema social e econdmico, das empresas privadas, as associagSes de interesse, lobbies, as organiza- g6es nfio-lucrativas e Aquelas nfio-governamentais. Nesta perspectiva a administragao piblica desenvolve um papel de animador ¢ de catalisador de projetos, energias ¢ interesses ope- rando nao mais como “centro” do sistema social e econdmico, mas como um dos tantos “modos” de redes interinstitucionais e interorga- nizacionais formadas por diversos atores. As consideragdes conclusivas fazem referencias a segunda per- gunta de fundo sobre o trabalho de Mezzomo Keinert — reconhecida a efetiva utilidade do texto em relacfio ao processo de globalizacio do conhecimento — que é a inovacSo em relagio as tendéncias em andamento na disciplina de administragao publica, que com um jogo de palavras podemos definir sempre mais multidisciplinar. O grau de inovagiio pode ser avaliado fazendo referencia a meto- dologia de pesquisa adotada—a pesquisa foi desenvolvida analisando os artigos publicados nas duas principais revistas sobre administragao publica brasileira, fazendo referéncia a um periodo de tempo bastante longo e colocando em destaque a evolugao de temas-chave. A metodologia apresenta um elevado nivel de coeréncia com outros trabalhos de pesquisa elaborados a partir dos anos 90 por nu- merosos autores em nivel internacional, desde os trabalhos de pes- quisa conduzidos pela rev a estadunidense Public Administration 20 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL, Review (analise dos artigos publicados no periodo 1975-1984) ¢ outros, mais especificos, conduzidos pela revista Politiques et Management Public? Um elemento de inovagio no trabalho de Mezzomo Keinert é 0 fato de ter sido aplicado a um contexto de administracio publica de paises emergentes uma chave de leitura e de interpretagao tipica de sistemas administrativos piiblicos de paises avangados, permitindo assim desenvolver no futuro interessantes comparagées. Na tabelaa seguir decidiu-sc, portanto, apresentar os métodos de pesquisa sobre a administragao publica majoritariamente utilizados nas escolas de pensamento, aquela americana ¢ a dos paises fran- cOfonos. A tabela evidencia como na Franca sao predominantes os mé- todos ligados ao estudo de casos (de organizagées publicas especificas e de politicas publicas) e em medida menor as pesquisas histéricas as quais pode estar relacionado 0 trabalho de Mezzomo Keinert. No contexto estadunidense prevalecem ~ em flagrante contra- digdo com as opinides consolidadas —metodologias nio-empiricas as s de correlagao (¢ outros instrumentos sofis- ticados como anilise longitudinal ¢ path analysis) ¢, por tiltimo, os quais seguem-se anal estudos de casos. POLITIQUES ET MANAGEMENT PUBLIC Métodos de Analise Empirica (1984-1988) PuBLiC ADMINISTRATION REVIEW, Métodos de Andlise Empirica (1975-1984) Numero de artigos Numero de Artigos Contribuigées teéricas (25) Metodologias niio-empiricas (138) Estudos de Caso (Organizagdes Piiblicas ou Politicas Publicas Especificas) (25) Analises de Correlagio, andlises longitudinais ou path analysis (92) Analises comparativas (17) Estudos de Caso (56) Pesquisa Historica (4) 2. Ver, por exemplo, o trabalho de Meneguzzo, M. “Metodologie di ricerca sulle aziende ¢ amministrazioni pubbliche: una analisi comparaia”, in Azienda Publica n. 3, del 1990; o artigo de Perry J. L. ¢ Kraemer K. L.“Research methodology in Public administration research 1975-1984", publicado na Public Administartion Review, may june 1986, além de outros trabalhes publicados por Mezzomo Keinert, constantes da bibliografia deste livro APRESENTAGAO 21 Reconstruida a evolugao historica, ¢ agora necessario na “multi- disciplina” da administragao publica brasileira comparar-se os mé- todos de pesquisa. A inovacio do trabalho de Mezzomo Keinert reside, portanto, no fato de haver aberto a porta para o futuro; o desafio parao mundo da universidade, das pesquisa, da consultoria e das escolas de for- magio ¢ gerenciamento piiblico sera representado pela escolha de quais métodos aplicar, da andlise dos casos de especificas realidades publicas, da pesquisa de base quantitativa, da avaliacao e do reconhe- cimento das politicas publicas. Em conclusao, uma contribuigao util, que se liga estreitamente as tendéncias que percebem a administragéo publica sempre mais global, ainda que reconhecendo a especificidade dos contextos e a inovagiio que oferece amplos espacos para o aprofundamento de temas novos. O que falta, entdo? Cada vez mais leitores ¢ um trabalho cons- tante e continuo para a divulgagao e a difusdo de contetidos. Professor-Associado da Area de Administragao Publica Universidade Luigi Bocconi Milo Universidade Roma Tor Vergata INTRODUCAO A questo inicial que motivou este trabalho pode ser resumida no seguinte enunciado: o que é “Administragao Publica” no Brasil? Detalhando-se, pode ser acrescentado: Comoa disciplina se constituiu historicamente? Quais suas caracteristicas e especificidades? Ha aproximacées com outros campos? Qual seu objeto de estudo? E possivel construir uma periodizagio? Pode-se falar em referenci paradigmaticos? Em fungo de que nogées se estruturam estes consensos que se estabelecem na comunidade de estudiosos? Posteriormente, vinculou-se o referencial paradigmatico da disciplina de AP no Brasil ao conceito de “publico”. Esta é a pro- ble ‘a que aprofundou-se neste estudo: a caracterizagdo dos Paradigmas da Administragao Publica no Brasil, em fungio do conceito de publico. O trabalho divide-se em duas partes. Na Parte I, reconstitui-se o “caminho da pesquisa”, desde os primeiros levantamentos quan- titativos e os resultados preliminares obtidos, até a nova proble- matizacio e operacionalizagao da pesquisa, desta vez utilizando uma metodologia qualitativa. Os artigos publicados na Revista do Servigo Piblico (a partir de 1937) ¢ Revista de Administragao Ptiblica (1967) foram anali- sados tendo em vista estabelecer relagGes entre os “sentidos dos refe- ridos artigos” e 0 conceito de piiblico subjacente a eles. Utilizando-se 0 método de andlise de conteddo, passou-se entao ao tratamento dos resultados, a inferéncia e a interpretagao. Para tanto, construiu-se um referencial analitico com base nas proposig6es e construgGes tedricas selecionadas, apresentado no Quadro I. Posteriormente, na Parte II, apresenta-se em detalhe a andlise de contetido efetuada nos artigos publicados pelas duas Revistas, a partir da década de 30. Aponta-se no sentido da existéncia de um is 24 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL Paradigma do “Publico como Estatal” que vigora no periodo de 1930 a 1979, mesmo que sofrendo algumas oscilagées, especialmente nos anos de 1945, 56 e 67. No entanto, estes pontos de inflexao nao foram suficientemente fortes para abalar aquele consenso, 0 que ocorte somente a partir da década de 80, quando, em fungao de uma série de crises em diversos ambitos, aquele entendimento torna-se insustentavel. Crises siio momentos de fragmentacao ¢ instabilidade. O campo se pulveriza, abrindo espago para a emergéncia de um novo consenso. Surgem evidéncias de que existe um Paradigma Emergente: “O Publico como Interesse Puiblico”. Sustenta-o uma visao de publico como espaco institucional complexo, mais amplo que o estatal, norteado por uma nogdo de valores morais e éticos. As conclusdes do trabalho apontam nesta diregdo. CapiTuLo I A CONSTRUGAO DO OBJETO DE ESTUDO PARTE I PARADIGMAS DA ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL EM FUNCAO DO CONCEITO DE PUBLICO A PROBLEMATIZACAO INICIAL: O QUE E ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL A questao inicial que se procurava responder era: 0 que ¢ “Administragao Publica” no Brasil? Como a disciplina se constituiu historicamente? Quais suas caracteristicas e especificidades? Ha aproximag6es com outros campos? Qual seu objeto de estudo? E possivel construir uma periodizaca& Para responder a estas questées utilizou-se, como ponto de partida metodolégico, os trabalhos de Golembiewski (1974; 1977)! e Henry (1975)? focus — dando-se inicio ao trabalho de pesquisa,} tendo como objeto empirico de andlise a produgao académica divulgada nas duas revistas de administragdo publica mais importantes no Brasil. Por outro lado, os quais desenvolveram os conceitos de /ocus ¢ 1. A proposigdo inicial do autor foi publicada em Robert T. Golembiewski, “Public Administration as a Field: Four Developmental Phases”, Georgia Political Science Journal, v. 2 (Spring 1974), p. 21-49; e, posteriormente, desenvolvida em “Public Administration as a Developing Discipline”, New York: Decker, 1977 2. Henry, N. “Paradigms of Public Administration”, Public Administration Review 35 (July 1975): 384, Este trabalho foi desenvolvido posteriormente ao primeiro trabalho de Golembiewski dedicado ao tema, ¢, anteriormente ao segundo; de maneira que eles se influenciam mutuamente. Henry, assim como Golembiewski, trabalha com obras-marco no campo de Administragdo Piblica atribuindo-thes importincia de acordo com sua vivéncia profissional, endo por meio de pesquisa cexaustiva. O autor adverte que as obras server mais para datar os periodos que para caracterizé-los, e que devem ser tratados como “rough indicators”. 3. A pesquisa quantitativa, iniciada em marco de 1993, teve como titulo inicial “A :volugdio do Campo de Administragao Piblica no Brasil (1930-1992), projeto desenvolvido junto ao Centro de Estudos de Administragao Publica e Governo da EAESP/FGV com 0 apoio do Niicleo de Pesquisas e Publicagdes da mesma instituigdo. Posteriormente, iniciou-se o trabalho qualitativo o qual contou com 0 apoio do PAP — Programa de Apoio Pesquisa em Administragio Piblica CAPES/ENAP/ANPAD. 30 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL utilizou-se como referéncia basica para compreender o periodo analisado 0 trabalho de Warhlich (1978). O locus é 0 que delimita 0 territorio a ser explorado pelo estudo, definindo os fenémenos empiricos que constituem o objeto da pesquisa. O Jocus € 0 local institucional do campo (institutional where). No caso da administracio publica, um /ocus recorrente tem sido a burocracia governamental, embora esta localizagéo venha sendo questionada ¢ substituida por um leque de estudos bem mais amplo, relativos a um nimero maior de iniciativas relacionadas ao “Gnteresse publico”. O focus € a perspectiva tedrica que coloca a disposigao conceitos para selecionar e interpretar os fatos reais eas observagées integrativas relevantes para as principais questes, 0 que individualiza as posigdes e da meios para mapear 0 territério. O focus é0 instrumental analitico utilizado, um certo “enfoque especializado” sobre 0 campo (specialized what). Um focus usual na Administragdo Publica tem sido os “Principios da Administracio”, que expressam uma idéia de neutralidade e aplicabilidade a qualquer contexto. Mas, novamente, o focus da disciplina vem sendo alterado com as mudangas em suas concepges. Como a Ciéncia Social Aplicada a Administracado Publica, sempre sofreu de um mal congénito ~ a dicotomia “politica- administragao”, 0 que impediu que se definisse com mais clareza seus locus e focus. Henry (1975) advoga a necessidade de uma certa “‘autonomi- zacao da disciplina” para que a mesma se fortaleca, superando aquela polarizacao inicial, e, inclusive, incorporando as contribuigées da Ciéncia Politica, sem, no entanto, perder sua identidade. Warhlich (1978), por sua vez, relaciona o desenvolvimento da disciplina aquele das Ciéncias Administrativas, na América Latina, acrescentando — tendo em vista a realidade latino-americana ~ a questdo da administragdo para 0 desenvolvimento. A autora critica seu mecanicismo que, nao obstante, inspirou varios processos de reforma. Destaca, ainda, o forte impacto que a Ciéncia Juridica teve na génese da disciplina de Administragao Publica na América Latina diferentemente do que ocorre nos EUA, por exemplo ~ responsdvel, até hoje, por uma grande dose de“legalismo” nos estudos e na pratica administrativa publica. ACONSTRUCAO DO OBL ETO DE ESTUDO 31 Kliksberg (1996, 1997) retoma a questao da dicotomia politica- administragao, procurando resgatar a complexidade do processo de implementagao das politicas publicas, superando, inteiramente, a visio mecanicista segundo a qual, ai, apenas se “executam instrugdes”: Segundo tal dicotomia (politica-administra- ¢a0), 0 problema central circunscreve-se ao campo do planejamento e da formulagao de estratégias. Superado este problema, me- diante uma concepgdo adequada das poli- ticas publicas, empreender-se-ia a etapa administrativa de “pura implementagdo”, na qual poderia haver dificuldades que, contudo, seriam de carater secundério (KLIKSBERG, 1996: 79). Oque se coloca, desta forma, é o fato de que todos os processos so politicos, inclusive a implementagdo. Por outro lado, existe a necessidade de tecnologias adequadas, adaptadas a administragdo publica — ou seja, tudo nao se resume a politica. B preciso superar a concepcao dicotémica com abordagens integrativas. Foi estaa preocupacao que deu origem 4 pesquisa, ou seja, ane- cessidade de se conhecer mais a fundo as caracteristicas da produgao em Administragdo Publica com vistas a contribuir para o avango da mesma em termos de ensino e pesquisa. Aquela inquietagao repousava na observacio da inexisténcia ou do pouco desenvolvimento de tecno- logiaadministrativa adequadaas especificidades da gestdo publica. Em termos simples, ou a disciplina se voltava para 0 juridico — dentro de uma visio legalista—ou passava a privilegiar a questio politica—-dentro de uma yvisdo baseada na famosa dicotomia antes mencionada. Com cstc intuito — o de conhecer o campo de Administragao Publica no Brasil ~ utilizou-se, como unidade de andlise, os artigos publicados em Revistas especializadas, uma vez que, aS mesmas, constituem-se 0 veiculo que com maior rapidez expressa as mudangas ocorridas no campo.? Assim foram utilizadas as publicagdes Revista 4. Autilizagdo das Revistas como objeto empirico paraa identificagdode paradigmas deum grupo de pesquisadores pode ser justificada utilizando-se as nogdes de Kuhn. Conforme observa Hochman: “Para Kuhn, a aceitagiio de um paradigma pode ser verificadacom o surgimento de jornais, revistas especializadas, fundagio de socie- 32 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL do Servigo Publico (1937- ...) ¢ Revista de Administragdo Piblica (1967-...), consideradas representativas da disciplina. A Revista do Servigo Publico (RSP) passou a ser publicada em 1937, pelo Conselho Federal do Servico Publico Civil. Em 1938, passou a responsabilidade do DASP (Departamento Administrativo do Servigo Publico) ¢ foi publicada ininterruptamente pelo orgio até 1974. Em 1981, voltou a ser publicada pela Fundagao Centro de Formagio do Servidor Publico (FUNCEP), que sucedera 0 DASP, seguindo até 1989 com muitas interrupgdes ¢ mudangas de linha editorial. Finalmente, foi retomada em 1994 pela Fundagao Escola Nacional de Administragao Publica (FENAP), por sua vez sucessora da FUNCEP. A Revista de Administragao Publica (RAP) teve sua publicagao iniciada em 1967, pela Escola Brasileira de Administragdo Publica (EBAP), da Fundagao Gettlio Vargas, e prosseguiu sem interrup¢des. ARSP assumiu uma importancia pioneira na disseminagao da produgao em Administragio Publica. Nas primeiras décadas de circulagao, foi, sem dtivida, o principal meio de divulgagao das idéias no campo da Administragéio Publica. Organicamente vinculada ao DASP, foi perdendo gradualmente sua importancia ¢ impacto con- comitante & perda de poder do primeiro. Com o surgimento da RAP em 1967, a RSP perdeu a primazia anterior, até ser interrompida em 1974. Durante 0 periodo 1981-1989, sua instabilidade do ponto de vista editorial nao permitiu que a antiga importancia fosse reassumida, inclusive porque nao propiciou a presenga de artigos de cardter académico, em varios momentos, privilegiando artigos de interesse restrito ao publico interno. A fase iniciada em 1994 tem sido marcada pela busca de um nivel elevado de qualidade dos artigos e pela elei¢ao de temas diretamente relacionados a questdes importantes colocadas para a Administragdo Publica. A RAP apresentou, desde 1967, uma maior estabilidade em. termos de linha editorial, periodicidade e nivel de qualidade dos artigos, e consolidou-se como principal publicacao representativa da dades cientificas, curticulos de cursos universitarios, citagdes, livros didaticos etc, Estas sio algumasdas formas de socializagio e comunicagao entre os membros do grupo” (HOCHMAN in PORTOCARRERO (org. )., 1994). Oucitando Kuhn: “A transigao para uma ciéncia desenvolvida sera acompanhada da formagao de revistas espe- cializadas, sociedades de especialistas ¢ curiculos académicos”. The Structure of Scientic Revolutions”, 2nd ed, Chicago University of Chicago Press, 1970,p. 19 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 34 b) que autores utilizavam como referencial; c) 0 “jeito” de colocar a questo (postura do autor, linguagem, etc.). Como colocou Golembiewski, “a escolha dual entre locus e focus” ajuda a determinar o tipo de trabalho realizado e quem o fez (1974: 9). O COMPORTAMENTO DO FOCUS Estes foci’ correspondem aos possiveis “modelos tedric compdem o campo de Administracao Publica.’ Ciéncia Politica? ¢ Ciéncia Administrativa!® constituem-se seus pilares basicos. A Ciéncia Juridica pode ser considerada a “disciplina-mae” uma vez que a Administracao Publica originou-se, como area de ensino, do Direito Administrativo, especialmente nos paises latinos.!'! A Ciéncia Econémica sempre tangenciou o campo de Administragao Publica, especialmente no periodo em que o Estado faz-se mais presente no planejamento e na atividade produtiva. Os dois restantes — Episte- miologia ¢ Outros — foram incluidos por serem de especial interesse para a pesquisa. No que se refere ao primeiro — Epistemiologia ~ objetivou-se destacar o grau de reflexdo desenvolvido no campo, sobre ele proprio. Assim, foram incluidos neste focus aquelas reflexdes que visavam uma andlise do campo de ensino ¢ pesquisa ou da disciplina de Administragao Publica. Em “Outros” foram classificados diagnés- ticos, propostas ¢ relatos de experiéncias, além de reportagens, impres- sdes e defesas de opinido, Estes artigos, de carater mais descritivo, nao tinham um enfoque claramente definido. ~ 1. Ciéncia Politica, Ciéncia Juridica, Ciéncia Administrativa, Ciéncia Econdmica, Epistemologia e Outros (artigos sem enfoque definido). . Os titulo foram sendo abertos conforme surgia a necessidade. . Considerou-se Ciéneia Politica aquele focus que utiliza conceitos e autores considerados “cléssicos” da disciplina tomada de forma “pura”, ou seja, no aplicada. 10. Entendeu-se por Ciéncia Administrative 0 referencial tedrico normalmente utilizado no Brasil, nas disciplinas de Teoria Geral da Administragio e Teoria Organizacional, além daqueles constantes no grupo anterior quando utilizados de forma aplicada dadministragao, |. Beatriz Warhlich atribuiu o grande peso do enfoque legalistana América Latina a0 fato destes paises terem sido colénias de Portugal e Espanba, que, por sua vez, carregam doze séculos de legislagdo romana. Ver, para este fim: WARELICH, 1978 70-92. en aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 38 ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL, entendida como uma resposta da linha editorial da revista as demandas especificas do campo de Administragao Publica. O grupo de /oci Politicas Setoriais tem uma presenga mais forte na RAP, algumas vezes superando, inclusive, 0 grupo Estruturacao do Estado, como na segunda metade da década de 80, ou em 1978, quando responde por 80% da produgio veiculada na Revista. No periodo 1967-1992, responde por 41,1% da produgio total publicada na RAP. O locus Saide ¢ Previdéncia ¢ 0 mais importante do grupo, © corresponde a 13,2% do total de artigos publicados na Revista, chegando a 33,3% em 1985. Também se destacam os loci Planejamento Urbano (5,3% no total geral, chegando a 19,4% do total de 1989), Meio Ambiente (3,2%) e Politica Tecnoldgica (2,8%). Como no caso dos ultimos anos da RSP, os /oci também se comportam com grande dispersao, e 0 grupo Politicas Setoriais é justamente o que apresenta o maior desvio-padrao. O grupo de /oci Ensino e Pesquisa é, dos trés, o menos des- tacado eo que concentra um menor numero de /oci. Em contraste com os grupos Estruturagio do Estado e Politicas Setoriais, é mais estavel, apresentando 0 menor desvio-padrio na maioria dos anos. Na RSP, inicia-se com niveis de participagado muito reduzidos (0% em 1937), e assume 0 patamar de cerca de 10% em 1940. No total, o grupo corresponde a 14,2% da produgdo veiculada na RSP, mas raramente alcanga 20% da produgdo (em 1951, 1955, 1957 a 1960, 1967, 1981 ¢ 1988). Até 1967, quando alcanga 35,3% da pro- dugio total da Revista, segue uma tendéncia de crescimento, com algumas oscilagées. A partir dai, volta para o patamar médio, mas, como os outros dois grupos de loci, sujeita-se a grandes variagdes. Os principais Joci dentro do grupo so Anilises Tebrico-Conceituais (8,2% do total da produgao veiculada na RSP, chegando a 33,3% em 1982), Legislagao (4,3% da produgio total)!3 ¢ Ensino ¢ Adminis- tragdo (1,3% da producao total). O primeiro /ocus deixa entrever a entrada de novos conceitos no processo de formagao do novo campo de conhecimento; inicialmente com artigos traduzidos ou escritos pelos técnicos do DASP, alguns deles com acesso a cursos nos EUA, posteriormente incorporando produgao de outras fontes. O locus Legislacdo tem presenga mais significativa nos periodos iniciais, mas vera sua importancia crescer ao longo dos anos 50, para, a partir dos 13. Durante as primeiras décadas, a RSP possuia uma sega0 de Direito Administrativo, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 42 ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL, A produgao em Administracao Publica, assim, entra em um periodo de irregularidade do ponto de vista do locus e, como dito acima, também do focus. A interpretagdéo mais segura para este fenémeno é que se trata de uma crise no campo de conhecimento em Administracdo Pablica, que deve, de alguma maneira, produzir um novo consenso em seu interior. Daquela preocupacio e desenvolvimentos iniciais, 0 trabalho acumulou condig6es de permitir uma releitura das conclusées preliminares. Em especial, do ultimo artigo publicado (KEINERT, 1994a), em que se utiliza, pela primeira vez, a nogio de paradigma!s fazendo-se uma andlise mais ampla dos dados obtidos, tanto no plano da abrangéncia historica quanto no plano da inferéncia realizada. Realiza-se, também, uma periodizagao especialmente referida ao contexto politico-histérico, que foi uma forma inicial e preliminar de organizacdo dos dados (ver Quadro I). Entendida como ponto de chegada, naquele momento, demandou uma releitura posterior, especialmente a partir do aprofundamento dos conceitos de KUHN (1975; 1970; 1977a; 1977b), que discutiremos em seguida. Paradigmas e produgao de conhecimento Ahistoria do conhecimento, contemporaneamente, retine abor- dagens interdisciplinares — notadamente historicas, filosoficas e sociolégicas — objetivando a constituigdo de um espago independente para a critica ¢ a reflexdo acerca dos caminhos e descaminhos do de- senvolvimento cientifico.!6 15. Anogdo de paradigma era utilizade de forma mais restrita, provavelmente mais proxima da idéia de modelo, a qual foi ampliada posteriormente. A propria idéia de “evolugao” da disciplina foi substituida pela de “desenvolvimento”, uma vez que, para ser coerente com a nogo kuhniana, deve-se respeitar alguns principios como o da descontinuidade, do externalismo, da incomensurabilidade, dentre outros, na produgao do conhecimento; isto é, o ndo-evolucionismo 16. Agradecimentos devem ser dirigidos ao grupo de estudos do Programa de Pés- Graduagdo em Comunicagdo e Semidtica da PUC/SP ~ que realiza quinze- nalmente os Semindrios sobre Historiografia e Metodatogia em Historia da Ciéncia ~ pela grande contribuigao que representou para esta reflexdo a participagdio da autora naqueles encontros. Umagradecimento especial & dirigido 4 Professora Ana Maria Alfonso-Goldfaro, sua coordenadora, pelo convite & participacio. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 46 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL Kuhn consegue, com a nogao de paradigma, justificar a descon- tinuidade da ciéncia, 4 medida que lhe atribui a propriedade de ser incomensurdvel, ou seja, 0 novo paradigma nao engloba nem deriva do velho, nao podendo ser considerado nem superior, nem inferior, nao podendo, inclusive ser medido ou comparado ao anterior. Desta forma, 0 conceito kuhniano de mudanga cientifica a ca- racteriza como um processo descontinuo dado por um salto nao quan- tificavel entre o velho e 0 novo, 0 que obviamente desmonta com a visio positivista de cumulatividade. Ainda, na proposi¢ao kuhniana o conceito de revolugdo cientifica é de importancia fundamental, a medida que representa uma “quebra” no pensamento cientifico. Estes periodos revolucionarios - momentos em que varios candidatos a paradigma, ainda incompletos, tentam substituir o anterior — so, para Kuhn, sempre precedidos de periodos de crise — periodos de inseguranga em que o paradigma vi- gente nao mais consegue explicar satisfatoriamente os fendmenos a serem analisados. Da transicao de um paradigma em crise para outro pode surgir um novo periodo de Ciéncia Normal, periodo no qual volta a prevalecer 0 consenso em torno de um paradigma. Otermo paradigma — apesar de sua defini¢do pouco precisa?! ~ pode ser considerado “chave” no entendimento da proposi¢ao kubniana, e, essencial, para os propésitos deste trabalho. Para Kuhn esta importancia se expressa ja no prefacio da obra antes citada quando se manifesta especialmente impressionado com o mimero e a extenséio dos desacordos expres- Sos existentes entre os cientistas sociais no que diz respeito a natureza dos métodos e problemas cientificos \egitimos (grifo nos- so). Conforme expressou-se 0 autor: A ten- tativa de descobrir a fonte desta diferenga levou-me ao reconhecimento do papel de- sempenhado na pesquisa cientifica por 21. Margaret Masterman em seu trabalho “A Natureza do Paradigma”, in LAKATOS, 1. & Musarave, A. (orgs.). “A Critica ¢ o Desenvolvimento do Conhecimento”, Sio Paulo”: Cultrix/EDUSP, 1979, discute as miltiplas definigdes de paradigma na obra de Kuhn. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 50 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL Retomando o ja discutido, pode-se afirmar que a nogao de para- digma revela a auto-identidade de um campo de conhecimento dada por um consenso sobre os problemas considerados pertinentes a ele por uma determinada comunidade cientifica.?6 No presente trabalho, estas formas paradigmiticas de conceber o campo de Administragao Publica no Brasil revelaram-se associadas 4 nogdo de piiblico que, num primeiro momento, se reporta a esfera estatal, sendo que 0 mesmo nao ocorre posteriormente. Assim, inicialmente, havia um consenso sobre o conceito de publico que levava a definir-se como auténtico problema do campo de Administragao Publica 0 estudo do aparelho do Estado (/ocus) através de uma 6tica notadamente administrativa (focus). Este entendimento, que denominamos 0 Paradigma do Piblico enquanto Estatal, seria questionado especialmente motivado pelas discussées em tomo da chamada “Crise do Estado”,”” 0 que instau- raria a disputa entre varios candidatos a paradigma e forgaria a emer- géncia de um novo consenso. Oestudo da Administragéo Publica, passou, entio, a nao mais restringir-se ao aparelho do Estado e a burocracia governamental, mas a estender-se a uma série de atores envolvidos com questées publicas (locus); através de um enfoque politico-organizacional (focus). O consenso emergente no campo de Administragdo Publica passava a ser, entao, 0 Paradigma do Publico enquanto Interesse Publico. Os dados obtidos ¢ as andlises preliminares permitem que se cs- tabelega, desta forma, uma nova periodizagao, atribuindo ao primeiro paradigma a vigéncia entre 1930-79, e, ao segundo, o periodo pés-80.28 continua sendo uma referéncia atual para o campo de historia da Ciéncia. Nao obstante, 0 proprio Kuhn, falecido em 1996, veio atualizando seu polémico conceito. 26. Os Conselhos Editoriais das Revistas 4 medida que sio constituidos por pesquisadores renomados representam a “comunidade cientifica” quepartilha de ‘um paradigma, jé quea decisio de publicar ou no um determinado artigo depende, além de sua qualidade intrinseca, de ser considerado “‘pertinente”. Ainda, 0 artigo cientifico, entendido como produto de pesquisa, revels o aval da comunidade na escolha daquele tema e enfoque pelo pesquisador. 27. Ver Bresser Pereira, 1992. 28. Ocorte nos anos 80 justifica-se a partir das oscilagdes ocorridas na década de 70 tanto em termos de /ocus quanto de focus, 0 que seria um indicio da crise ¢ ‘emergencia de novo entendimento. Como diria Kuhn, nestes periodos ¢ comam brotarem ‘antas teorias quantos pesquisadores ha na érea. Cada tedrico vé-se como que obrigadoa partir do zero, como se acomegar tudo de novo, de modo a poder justificaro tipo de enfoque adotado. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 34 ADMINISTRACAQ PUBLICA NO BRASIL b) Exploragao do Material Esta fase, longa e fastidiosa, consiste essencialmente de opera- goes de codificagao ou enumeragio, em fungio de regras previamente formuladas. A codificagao corresponde a uma transformagao dos dados brutos do texto, transformagao esta que, por recorte, agregacao e enumerago, permite atingir uma representagao do contetido, ou da Sua expressao, suscetivel de esclarecer 0 analista acerca das caracte- risticas do texto.34 Ocritério de recorte da anilise de contetido por exceléncia é 0 tema, ou seja, um recorte ao nivel semdntico, dado que ¢ sobretudo, anilise das significagées >> Anogio de tema, largamente utilizada em anilise de contetido, pode ser entendida, conforme coloca Berelson como “uma afirmagao acerca de um assunto. Quer dizer, uma frase, ou uma frase composta, habitualmente um resumo ou uma frase condensada, por influéncia da qual pode ser afetado um vasto conjunto de formulagées singulares” (1952). Assim 0 tema 6 a unidade de significagao que se liberta natu- ralmente de um texto analisado segundo certos critérios relativos a teoria que serve de guia a leitura. Assim o texto pode ser recortado em idéias constituintes, em enunciados e em trechos portadores de significagdes isolaveis. Fazer uma anilise tematica consiste em descobrir, portanto, os “nicleos de sentido” que compdem a comunicagao, cuja presenga, ou freqiiéncia, pode significar alguma coisa para 0 objetivo analitico escolhido. 34, Torna-se necessério, entio, saber a razio por que & que se analisa, ¢ expliciti-lo de modo a saber como analisar. Daqui, a necessidade de se precisarem hipsteses e de se enquadrar a técnica dentro de um quadro tedrico de referéncia — a menos que se fagam fishing expeditions, como dizem os anglo-saxdnicos, ou seja, analises exploratorias para “ver o que ha”. Em ambos 0s casos, contudo, existe um elo entre os dados do contetido a ser analisado ¢ a teoria do analista. 35. Este critério difere especialmente do adotado quando da “andlise das expresses”, isto 6, dos aspecios formais das significagdes, como, por exemplo, contagem de repeti¢do de palavras. Este critério lingiistico, bastante utilizado e de ficil realizagio com autilizagao de softwares relativamente simples, pode, por vezes, evar a conclusdes equivocadas, Para esta discussio ver Bardin (1977:104), d’Unrug (1974), Minayo (1996), Becker (1997), Richardson (1985), Gil (1994), Morgan (1983), Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998), Contrandriopoulos et alii (1997), dentre outros. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. CapiTuLo IT O CONCEITO DE “PUBLICO” aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 64 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL normatizar uma realidade em mutagio, dado que as formulagées legais, via de regra, sao reativas. Segundo os juristas, os regimes juridicos caracterizam-se por: — um regime de equilibrio comutativo entre iguais (regime privado), — um regime de supremacia unilateral (regime publico) caracte- rizado pelo exercicio de prerrogativas especiais de autoridade e contengées especiais ao exercicio das ditas prerrogativas. Neste sentido, quando o Estado estiver atuando em ambientes competitivos onde existam outros agentes em igualdade de condigées, transporte coletivo, por exemplo, por meio de uma empresa de eco- nomia mista, submetida ao direito privado, esta atividade deste carater serevestira. Esta concepgio legalista nao consegue dar conta de um contexto social em rapida mutacdo, tornando-se, nao raro, uma classificagao meramente formal, dado que o Estado, por meio das institui juridicas, decide unilateralmente a natureza da atividade, se publica ou privada, por meio da submissao ao respectivo regime juridico. Partir do pressuposto de um espago puiblico construido na inter- relagaio Estado-Sociedade implica tornar a formulagio de leis mais dindmica, fazendo com que a normatizacao juridica incorpore com maior agilidade as mudangas sociais por meio de, por exemplo, maior valorizagao da jurisprudéncia.38 Cabe indagar, ainda, em que medida o regime privado 6, efetivamente, um regime de equilibrio comutativo entre iguais, dado que se trata de uma igualdade formal "todos sao iguais perante a lei", 0 que representou obviamente um avango, quando, de sua conquista. Nao obstante, existem desigualdades ¢ inigiiidades no espago privado, em que predomina, como principio, a competitividade, ¢ ndo a coo- peracdo. Neste sentido, a eqilidade pode transformar-se em critério de publicizagao, dado que se reconhecem as falhas do mercado em termos de igualdade de oportunidades. Sendo assim, a garantia de po- liticas piblicas de carater universalista em areas sociais estratégicas € essencial para a produgao da justiga social, no sentido de demo- cratizagao de oportunidades. 38. Como coloca Warhlich (1978), nos Estados Unidos, diferentemente do que ocorre nos paises latinos, que carregam pesada heranga legalista do direito romano, common law tem grande valor. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 68 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL nao-publicas), dado que tém caracteristicas de empresa privada, ou seja, “distribuem” seus resultados positivos. Temos também exemplos opostos, como é 0 caso das fundagdes sem fins lucrativos, de direito privado, ligadas a entidades publicas*4 que reinvestem os resultados positivos obtidos dos pacientes que pagam pelo atendimento (por desembolso direto ou cobrado de seus convénios privados) na complementagio dos salirios dos funcionarios que so servidores piblicos, além de ter um quadro proprio de fun- ciondrios que também atuam na institui¢ao. A questo das organizacoes sem fins lucrativos parece referir- se, na verdade, ao destino dado aos resultados; ou seja, 0 termo “sem fins lucrativos” deveria ser substituido por “que nao distribui resul- tados”, dado que, em principio todas as organizagGes existem para ter resultados positivos, sejam eles financeiros ou relativos 4 missao da organizacao. Neste sentido, ¢, inclusive, tendo em vista a impor- tancia que a Area financeira vem adquirindo nos tltimos tempos, a persecucao a resultados positivos pode contribuir para que estas orga- nizag6es sejam administradas de forma “profissional”, aumentando © impacto dos recursos investidos. Bresser ressalva que a confusio nao deriva da divisdo bipartite do Direito, mas do fato de que, em seguida, 0 Direito Publico foi confundido ou identificado com o Direito Estatal, enquanto o Direito Privado foi entendido como englobando as instituigd -estatais sem fins lucrativos, que, na verdade, so publicas. E publica a propriedade que é de todos e para todos. E estatal a instituigdo que detém 0 poder de legislar e tributar, é estatal a propriedade que faz parte integrante do aparelho do Estado, sendo regida pelo Di- reito Administrativo. E privada a proprie- dade que se volta para o lucro ou para o consumo dos individuos ou dos grupos, A distingao que se faz, entao, é em relagao as finalidades. De acordo com esta concepgao 44, Tome-se como exemploa Fundagao E. J. Zerbini ligada ao INCOR (Instituto do Coragaio) que faz parte do complexo HC (Hospital das Clinicas) da Faculdade de Medicina da Universidade de Sio Paulo (universidade estatal), aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 72 e) O ptiblico como oposto a secreto A “segunda grande dicotomia” de Bobbio (1987) pode ser esclarecedora 4 medida que destaca outro aspecto: o carater de visibilidade no conceito de piblico, o ptiblico como oposto a secreto. Recentemente este principio da “publicidade” das acdes envol- vendo recursos ptiblicos vem ganhando forca: a transparéncia © a prestacdio de contas passam a ser uma exigéncia. Até mesmo os avan- gos na tecnologia da informagdo que encurtaram distancias ¢ inten- sificaram a velocidade das comunicagées contribuiram para que a demanda pela visibilidade destas agdes surgisse. Trata-se de um processo de democratizagado que se opde ao principio do segredo burocratico fundamento do poder racional- legal dos funcionarios, conforme descrito por Weber (ver Quadro I] ~Tipologia Weberiana de Dominagao). O “piiblico”: valor compartithado e espago institucional E interessante notar como o poder explicativo de determinadas categorias varia historicamente. O critério delimitagdo institucional, que prioriza, por exemplo, forma de propriedade, regime juridico ou carater da atividade (objetivos) vem tornando-se incapaz de dar conta dos novos contextos em que se constréi 0 “publico”™. Alternativamente coloca-se com mais forga a perspectiva ba- seada nos valores ptblicos, tais como moral, ética, visibilidade (transparéncia), democracia, eqiiidade, participagao popular, controle social, cidadania ativa e novos direitos; colocada, por exemplo, na viso dos direitos coletivos ¢ difusos ou na da “publicidade” como nocao oposta 4 de secreto. Na associagiio destas duas perspectivas explicativas — valores piblicos e organizagao institucional-legal — 0 espaco piblico se redefine a partir: da Relagdo Estado-Sociedade e do Modelo de Gestéo Publica. Relagao Estado-Sociedade Os valores ptiblicos compartilhados determinam a configuracao, deste espago em movimento dialético no sentido de definir a) quem é 0 “centro”, ou seja, quem é 0 agente catalisador das agSes publicas; aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 76 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL Esta parece ser uma perspectiva aglutinadora das novas relagdes Estado-Sociedade ji que 0 desenvolvimento resulta de um compro- misso de miultiplos atores com a realizacdo de objetivos publicos amplos.52 A nogao de piblico transforma-se, assim, no referencial para entender estas mutages com base no carater das relagdes Estado— Sociedade, Observa-se, por exemplo, que o movimento que hoje invo- caa transformagao do Estado também clama pelo fortalecimento da sociedade civil, o qual, por sua vez, depende de suas proprias insti- tuigdes, mas também de algumas do Estado. Da mesma forma, o forta- lecimento da sociedade civil como esfera publica sera irreal e in- completo se nao se fortalecer a capacidade de regulacao por parte do Estado. Trata-se, portanto, de “controles reciprocos” (CUNNIL GRAU, 1997). A matriz estadocéntrica A Matriz Estadocéntrica surge quando 0 pensamento politico adere ao intervencionismo pés-liberal do inicio do século e vai enfa- tizando o Estado como agente responsavel por tudo. Ocrescente intervencionismo estatal, tipico deste século, vem a ser uma tradugao politica dos conflitos de interesses que nado puderam mais seguir desenvolvendo-se no marco da esfera privada. Conforme coloca Habermas: “Ao assumir a tarefa de estruturagdo social, afeta de uma maneira mais taxante a necessidade de influir sobre o Estado e, particularmente, sobre suas politicas, criando assim a necessidade da estruturagdo do Estado pela “*sociedade”” (1986: 173). Os meios oferecidos pela democracia parecem ser insuficientes, de maneira que a sociedade passa a influir diretamente sobre a for- mulagdo de politicas, por meio da interpenetragao direta dos centros de decisdo estatal por parte das grandes organizagGes destinadas 4 defesa de interesses setoriais no sistema politico ¢ administrativo. 52. Ampliaram-se também o nimero eas caracteristicas destes alores, até por forga das priprias agéncias internaciomais que passaram a relacionar-se mais com ONG’ que com os proprios estados nacionais, a partir dos anos 80, dado que estas organizagdes eram menos burocratizadas e, via de regra, mais democriticas que a maioria dos govemnos desta época. Ver Comissio sobre Governanga Global (41996), aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 80 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL desenrola-se entre os partidos, enquanto suas relagées sao dominadas pela légica privada do acordo; na pratica — contrariamente aos argu- mentos normativos ~ opera o mandato imperativo, ao invés do man- dato livre. Ainda, assinala 0 autor, esta mudanga pode ser interpretada como a passagem de uma concepgao privatista do mandato — pela qual o mandatario atua em nome e por conta do mandante, e se ndo atua dentro dos limites 0 mandato pode ser revogado —a uma concepeao publicista, pela qual a relagdo entre eleitor e eleito ja ndo pode ser representada como uma relagdo contratual ~ porque tanto um, como outro estéo in- vestidos de uma fungao publica e seu vinculo é wma tipica relagao de investidura — pela qual o investido recebe um poder publico e portanto deve exercer dito poder em favor do interesse piblico (BOBBIO, 1986b: 109 — grifos nossos). Arelagdo entre publico-partidos-parlamento se interrompe,em detrimento dos primeiros, dado que os partidos atuam mais como mediadores (e representantes) de interesses estritamente particulares ao invés de exercer seu mandato livremente em favor do “interesse publico”. Finalmente, também, a propria relagdio entre o piiblico e os par- tidos é objeto de transformacao: “os cidadaos eleitores investidos — enquanto eleitores — de uma funcdo publica, se transformam em clientes, e uma vez mais uma relagdo de natureza publica se trans- forma em uma relagio de natureza privada” (Bopio, 1986b: 110). Do voto de opiniao (¢ dos partidos de uma “causa”) passa-s¢ cada vez mais ao voto de intercambio. Trata-se, portanto, da passagem do Estado liberal — no qual os conflitos se resolviam na propria sociedade ~ para o Estado Interven- cionista, no qual o Estado passa a ser 0 grande centro das decis6es politicas. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 84 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL Versdes moderadas a respeito do processo de mundializagao adotam uma postura critica: “Muitas dessas andlises enfatizam as restri¢des crescentes 4 governabilidade de nivel nacional, que impede politicas macroeconémicas ambiciosas significativamente divergentes das normas aceitaveis pelos mercados financeiros internacionais” (Hirst & THompson, 1998: 17). Para a esquerda, que, tradicionalmente, identificou-se com 0 estatismo, torna-se dificil reconhecer a necessidade de mudangas na forma de atuacao do Estado, identificando-as, normalmente, com a diminuicao das fungdes estatais: Toda tentativa de reavaliar as estratégias da esquerda no contexto da globalizagao deve comegar com o entendimento de que apesar de que a natureza da intervengao esiatal mudou consideravelmente, o papel do estado nao foi necessariamente diminui- do. Longe de estar testemunhando a ultra- passagem do estado por um capitalismo global, 0 que nds vemos séo estados muito ativos e grupos de classes capitalistas altamente politizadas trabalhando ardua- mente para assegurar o que Stephen Gill...) chamou de “um novo constitucionalismo para disciplinar o neoliberalismo” (PANITCH, 1994: 14). Soberania do estado ou soberania popular? Neste mesmo sentido, dada a emergéncia ¢ o fortalecimento de instituigdes democraticas na sociedade civil, coloca-se outro aspecto da questdo da soberania: mas, qual soberania? Nos classicos, Hobbes destaca a nogao de soberania do Estado, isto 6, das condigdes para o exercicio legitimo da autoridade sobre um territ6rio e uma populacao. A idéia de soberania do Estado evoluiu posteriormente para a de soberania popular no pensamento de Locke e Rousseau, que, pela primeira vez, desenvolvem a nogdo de que a fonte e a origem do poder politico deve ser 0 consentimento dos cidaddos. A partir dai surgem as teorias da democracia que foram aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 88 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL da ordenagao constitucional dentro de seu proprio territorio da relagao de poder e au- toridade entre governos centrais, regionais e loc e, também, aos governos privados publicamente reconhecidos pela sociedade civil (Hirst & THOMPSON 1998: 295). Hobsbawm (1995), por sua vez, considera a intervengio estatal indispensdvel para enftentar as iniqtiidades sociais e ambientais do mercado e para garantir algum tipo de redistribuigdo da renda nacional. Em outros termos, por mais que se verifique uma espécie de vacuo de poder ao nivel supranacional, demandando novos formatos institucionais, parece estar longe o propalado fim dos Estados-Nagaio. Sinaliza-se, no entanto, que a mudanga fundamental refere-se, na verdade, ao amplo movimento de redemocratizaga@o que vem ocorrendo na sociedade e, por conseqiiéncia, nos arranjos institucio- nais de corte nacional ou supranacional. Trata-se de um movimento de redefinigdes profundas, em que se questionam os pressupostos tradicionais da politica. Neste contexto resulta falacioso pretender que todas as transformacdes sociais se realizem pelos meios convencionais e, menos ainda, por meio de um Estado paternalista e autoritério (CUNNIL GRAU, 1995). O pensamento politico-administrativo vai rumando concreta- mente em diregao 4 sociedade. Surgem novas formas de repre- sentagdo e manifestagao da sociedade que ampliam a esfera publica, clamando também por uma reforma do Estado ~no sentido de torna- lo mais permeavel a participagio da populagao e aos novos atores sociais — e por formatos institucionais inovadores. Novos Conceitos de Desenvolvimento Neste contexto, parece logico que ocorra uma “reconecituagdo io deste de desenvolvimento” que incorpore a emergéncia e consolid: modelo mais participativo de gestao publica que engloba a sociedade civil. Desenvolvimento passa a ser relacionado as miltiplas dimen- sdes da qualidade de vida. Qualidade de Vida entendida em sentido préximo ao de “Desenvolvimento Sustentavel” (Agenda 21, 1992) aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 92 ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL sugere que nao existem, satisfatoriamente, solugdes excludentes e “puras”. A orienta- ¢ao desta pesquisa, insisto, consiste no reco- nhecimento da necessaria complementa- ridade entre representagdo e formas de participagdo direta (BENEVIDES, 1991: 48). Asociedade volta a fazer-se presente na revitalizagao de antigos valores um tanto adormecidos, como o engajamento voluntario, a vida comunitaria, associativa e até espiritual. Parece constituir-se um contraponto a ferocidade do individualismo competitivo que obriga todos a um “certo grau de egoismo, necessario para a sobrevivéncia”. Como resposta, percebe-se uma “sociedade civil nao s6 em expansio como dotada de crescente densidade organizacional” (Diniz, 1997: 35). Estes sdo alguns elementos que vém construindo a chamada “Matriz Sociocéntrica”, que, como o colocado, expre: |-se por uma visdo pluralista em termos de atores politicos ¢ sociais, o que inclui, além de uma vasta rede de novos agentes, obviamente, o Estado Democratico.*® Contempla, ainda, forte conotacao valorativa, no sentido de recuperar a dimensio ética do desenvolvimento, resgatando o ser humano como seu verdadeiro objetivo. Ainda, a nogdo de “so- berania popular” parece resgatada, demandando, inclusive, o for- talecimento de uma cidadania ativa global, e nao somente “nacional”. O MODELO DE GESTAO PUBLICA Aampliagao do conceito de publico exige novos formatos orga- nizacionais que garantam efetivamente a publicizagao do modus operanti do Estado, das organizagdes da sociedade civil e, até mesmo, das préprias empresas, ja que, como se disse, 0 puiblico precisa tornar- seum valor compartilhado, mais do que uma localizagio institucional. Neste sentido, mesmo que, a primeira vista parega que aadmini tragaio piiblica tenha perdido sua relevainciaem fingdo desta ampliagao, ocorre exatamente 0 contrario— torna-se estratégica para preservar o espago ptiblico num contexto institucional bem mais complexo. 56, Castells (1998) salienta 0 surgimento de um “Estado-Rede”, que se articula de forma flexivel com entidades supranacionais, regionais ¢ locais, conta com a participacto cidada e busca a transparéncia. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 9 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL. em termos de como produzir uma influéncia sobre ele, sem ser invadido por seus termos. O enfoque tradicional-burocratico A administragio burocratica tornou-se inadequada porque, nas iltimas décadas, foram marcadas por crises e transformagdes profun- das, tanto no campo da administragao de empresas quanto no da gest4o publica. Desnecessdrio se faz mencionar as causas, ja ampla- mente debatidas: reestruturacao produtiva, avangos na tecnologia da informagao, globalizacao sociocultural, internacionalizagio de capitais financeiros, formagao de blocos regionais, crise do Estado-nagao, descentralizagao, fragmentagao... Morgan (1996) e Mintzberg (1994, 1996) sao altamente criticos em relagdo ao modelo burocratico, j4 que regras, regulamentos, carreiras formais, hierarquias rigidas e centralizagio nao respondem necessidades de um ambiente competitivo, onde aumentou cnor- memente a velocidade das transagSes, a complexidade e 0 escopo com que mudangas ocorrem — provocando outras mudangas — num Pprocesso de multicausalidade em nivel global. Mintzberg questiona fortemente a fungio planejamento, em especial, sua forma tradicional ~ tecnicista, quantitativista, buro- cratica, autoritaria, centralizada, rigida. Afirma que a definicao de “objetivos” mina o compromisso, criando uma tendéncia ao conser- vadorismo, ao controle, gerando clima de conformidade e postura de inflexibilidade ~-o que favorece mudangas apenas incrementais. O planejamento pode ser entendido como uma forma buro- cratica de reduzir riscos — 0 estabelecimento de planos avangados tende a manter a administracao inflexivel: quanto mais detalhados os planos, maior a inflexibilidade. Ou seja, a organizagio passa a sentir- se “protegida” pelo plano e seus membros tomam-se desatentos as mudangas. Realmente, a tendéncia 6, uma vez elaborado o plano, “fazé-lo trabalhar”, coloca-lo para funcionar. Aconstrugio de uma forma pés-burocratica de realizar o plane- jamento governamental e a gestao das politicas publicas, para o autor, repousa na necessidade de construir consensos e, especialmente, compromissos em torno das metas acordadas. A missao da orga- nizacao passa a ser compartilhada como valor, garantindo 0 compro- misso no plano da organizagdo como um todo, e, inclusive, estendendo-se aos seus clientes e usuarios. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 100 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL fornecesse uma ponte entre mandante e mandado. Assim, acreditava que cada modelo de dominagao era acompanhado por um ti particular de legitimidade e por uma forma especifica de organizacaio administrativa. Para Weber, “o processo de burocratizagdo representava uma séria ameaga a liberdade do espirito humano ¢ aos valores da liberal- democracia, uma vez que aqueles que s¢ encontravam no controle tinham um meio de colocar em subordinagao os interesses e 0 bem- estar das massas”. Dai a sua visio de que a burocracia poderia facil- mente transformar-se numa prisao. Tratou a burocracia como um instrumento de poder de primeira grandeza e acreditava que onde a burocratizacao da administracao estivesse completamente instalada, uma forma de relagio de poder estabelecia-se, forma esta “pratica- mente invaridvel”, por isso serviu ao Estado intervencionista. Apesar das melhores intengées, estas organizagées pareciam desenvolver tendéncias que davam aos seus lideres praticamente o monop6lio do poder, transformando a propria burocracia em grupo de poder. Conforme coloca Vacca: Nas democracias européias o sistema par- lamentar coincide substancialmente com o sistema dos partidos. Estes, para poder ter peso no “mercado politico”, tendem a pene- trar sempre mais nos 6rgaos do Estado e nos ganglios da economia piblica. Por forga desses processos esfarela-se a unidade da bu- rocracia. Os érgdos da administragao ptbli- cae do Estado so “enfeudados” pelos par- tidos.Vem dai uma crise sempre maior da burocracia: do seu “espirito de corpo” edo “espirito de servigo” Esgota-se a aparente neutralidade dos érgios e das técnicas admi- nistrativas, que constituia um elemento essencial da motivagdao, unidade e identi- dade dos corpos burocrdticos. A perda de homogeneidade incentiva os conflitos poli- ticos no seu interior. Perdem-se a aura do “civil servant” e a expectativa de compor- tamentos homogéneos e leais por parte dos aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 104 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL, Retomandoa Weber, nao émera coincidéncia existir uma intima conex4o entre o desenvolvimento da burocratizacao, o papel do Estado nasociedade capitalista e 0 crescimento do poder corporativo. Para ele, 0 processo de burocratizacao representava uma ameaca a liber- dade do espirito humano e aos valores da liberal democracia, uma vez que aquelesque se encontravam no controle tinham um meio de colocar em subordinacao os interesses ¢ o bem-estar das massas. Daia funcio- nalidade que representou este casamento entre burocracia e autorita- rismo, OU, NOs nossos termos, a unio entre o modelo de gestao publica burocratico e a matriz estadocéntrica (ver Quadro 1). O modelo de gestao publica pés-burocratico O estilo de gestio publica pés-burocritico tem que dar conta de uma realidade emergente, cada vez mais complexa ¢ plural. Esse “plurilateralismo” pode ser identificado no aumento dos modos de organizagao dis- poniveis: transnacional, internacional, macro-regional, nacional, micro-regional, municipal e local. Esses niveis organiza- cionais séo cruzados por redes funcionais de corporagées, organizagées internacio- nais, organizagées ndo-governamenta e movimentos sociais, assim como profissio- nais e usuarios de computador (AXTMANN, 1997: 143). Em termos da AP faz-se necessario, para respeitar este plura- lismo, torna-la verdadeiramente piblica e democratica em lugar de dominada por uma burocracia auto-referida ou por capitalistas interessados em apropriar-se do patriménio econémico piiblico. A sociedade civil adquire entio uma nova definigio, como espaco piblico ndo-estatal, 0 qual 6 necessario distinguir das formas de representagao corporativa de interesses: "uma rearticulagao das re- lagdes entre sociedade e estado, que transite de uma matriz centrada no Estado a uma matriz centrada na sociedade. Conforme coloca Cunill, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 108 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL. O paradigma do “publico” como estatal A nogao de ptiblico que norteou os estudos de Administragao Publica no Brasil, no periodo 1937-1979, reporta-se a de Estatal. Os fatores estruturadores do conceito de “Publico” — Relagao Estado— Sociedade ¢ Modelo de Gestao Publica (discutidos nos Capitulos Ie 11) — quando relacionados com o Estatal, tornam-se Estadocéntrica e Burocratico, respectivamente (ver Quadro I). O “piblico” como “interesse pitblico” Apés um periodo de crise, nos anos 80, surgem indicios de um paradigma emergente baseado nos novos desenvolvimentos em termos. de administragio publica e nas novas formas de participagéio da socicdade na construgiio ¢ gestdo do espago publico. A relagdo Estado—Sociedade adquire entao caracteristicas Sociocéntricas ¢ a Gestdo Publica tende ao modelo Pés-Burocratico (ver Quadro I). A seguir, na parte II, demonstra-se como os dois entendimentos manifestam-se na produgao académica em Administragao Publica no Brasil, publicada na Revista do Servigo Piiblico e Revista de Administracao Piiblica no periodo 1937-1997, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. OPARADIGMA DO“PUBLICO™ COMO ESTATAL us nada tinha a lucrar, ou, mais precisamente, tinha tudo a recear da agdo do poder pibli- co no sentido de tragar-lhe diretrizes con- sentdneas com as exigéncias e aspiragées nacionais. Um falso e vao liberalismo estava sempre pronto a denunciar qualquer tenta- tiva empreendida nesse rumo como uma invasao pelo Estado de um dominio que de- vera ser reservado exclusivamente a livre iniciativa intelectual. A anarquia no terreno da produgao, do intercambio ¢ do consumo parecia aos corifeus desse liberalismo, agora irremediavelmente demodeé, tdo itil ao bem da sociedade na ordem cultural, co- mo na ordem econémica (RSP, jul./38; Cultura e Servico Social; p. 3 ¢ 4). Esta forma de atuagdo era considerada a unica possivel ou, quase inevitavel, “sinal dos tempos”: “O Estado é e tera de ser neces- sariamente doravante, com nitidez crescente, nio em conseqiiéncia de quaisquer teorias, mas pela imposigdo dos fatos, o supremo regu- lador das atividades econdmicas nacionais” (RSP, Jun./38; A Racionalizagao de nossa Economia Rural; p. 3). Tal supremacia expressou-se claramente no dominio econdémico, como agente da “prosperidade coletiva”: “Nao existe mais 0 Estado ‘espectador’ da ‘economia livre’, nem o Estado ‘intervencionista’ da “economia regulada’, mas sim o Estado ‘dirigente’ da prosperidade coletivana ‘economia organizada’” (RSP, abr./40; Reflexdes sobre um novo orgao do Servigo Publico-— A criagdoda Comissao de Orgamento —Arizio de Viana— Técnico de Administracdo do DASP; p. 43). A superacdo do liberalismo e a submissao dos interesses indi- viduais aos coletivos torna “Conhecida a crescente intervengdo do Estado nas relagées da propriedade privada. Hoje, a intervengio nos variados setores da economia privada constitui a caracteristica mar- cante do Estado modemo” (RSP, out./45; Introdugdo as concessdes de servigos ptiblicos. Francisco Burkinski -Técnico de Orgamento; p- 24). Oque superava, inclusive, posturas ideolégicas: “Quaisquer que sejam, todavia, o escopo e a forma da intervencdo do Estado — quer aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 128 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL nova disciplina intitulada “Administracao para o Desenvolvimento”: “A idéia da nova disciplina surgiu da preméncia de preencher a grande defasagem que havia entre a elaboragdo de planos de desenvol- vimento econémico e a capacidade administrativa das nagées em desenvolvimento para implementar estes Planos” (RAP, 3/72, p. 39 ~ grifos nossos). Por outro lado, a falta de um objeto de estudo consistente, aliada aemergéncia de novos conceitos como os da Teoria Geral de Sistemas, leva a disciplina a manifestar os primeiros sinais de crise: Hoje, entretanto, a administragao tem sido tao receptiva e permissiva a influéncias provenientes das diferentes areas do conhe- cimento, que se encontra num estado de identidade extremamente confuso. Embora as relagdes interdisciplinares sejam, em geral, positivas € mesmo necessdrias a criatividade, parece que jé 6 hora de uma avaliagdo séria da situagdo da adminis- tragdao antes que ela se torne mera confitsGo de forgas teéricas, destituida tanto de ener- gia como de diregdo. (...) E fato largamente difundido, por exemplo, que 0 modelo orga- nico originariamente perlinente apenas ao campo da biologia tornou-se, também, no final do século XIX, conceptualmente fértil no campo das ciéncias sociais. Mais recen- temente os atuais modelos sistémicos resul- taram da transferéncia dos modelos orga- nicos. De fato, a utilidade do modelo orga- nico no campo social parece limitada, Algu- mas vezes, observa Alvim Gouldner, “tem sido tao mal utilizado na andlise sociolé- gica, que tem levado a enfatizar caracte- risticas peculiares ao organismo, mas néio inerentes @ nogdo generalizada de um sistema” (“A teoria administrativa ¢ a uti- lizagdo inadequada de conceitos”, RAP, 3/73, p. 5-8). aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 132 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL interface com outros setores da sociedade: “A Reforma Administrativa que 0 Governo Federal pretende implantar no pais tem uma de suas tonicas na descentralizacao, na interiorizacdo, na privatizagado e na produtividade dos servigos piblicos” (RSP, jan.-fev./69; Agao Descentralizadora; p. 3). Em consonancia ao movimento de reptidio ao empirismo verificado no estilo gerencial, exige-se do corpo de funcionarios publicos maior dedicagao e estudo: A razdo da necessidade imperiosa dessa atitude é simples. O servigo piblico, devido em parte a extensaio e complexidade da esfera a que se estendem hoje as novas atri- buigées do Estado, mas também por terem surgido novos métodos técnic 8, impri- mindo ao velho trabalho burocratico uma fisionomia racional e cientifica, tornou-se uma profissdo andloga as carreiras em que é imprescindivel 0 estudo constante para ndo perder contato com o progresso teérico e€ pratico nos métodos de atividade pro- fissional (RSP, nov./37, p. 4). Na mesma linha de raciocinio argumenta-se salientando o movimento voltado a profissionalizagdio, dado que ser funcionério publico tornou-se uma carreira: A idéia de profissionalizagao deve ser ne- cessariamente a pedra angular de toda a estrutura de um servico publico capaz de satisfazer as exigéncias da vida e do pro- gresso de qualquer coletividade nacional contempordnea. A administragéo de um pais, grande ou pequeno, rico ou pobre, forte ou fracamente povoado, ndo pode mais ser conduzida por processos emptricos, pois a complexidade dos problemas de varias ordens que o seu campo hoje abrange re- clama solugdes que o simples bom senso é aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 136 ADMINISTRACAO PUBLICA NO BRASIL, Municipal (IBAM) o qual é anunciado como "uma nova organizagio, politicamente neutra, cujo objetivo principal era de natureza técnica: promover 0 aumento da capacidade administrativa dos municipios" (RAP, 1/69, p. 120). Desta forma, a obra de “racionalizagdo da Administragao Publica” se perpetua ja que o DASP conseguiu introduzir na subcultura administrativa brasileira alguns valores de maior relevancia para a modernizagao de nossa sociedade (...) Dessa raiz comum nas- ceu a Fundagao Getilio Vargas, a Escola Brasileira de Administragdo Publica e 0 Instituto Brasileiro de Administragado Municipal (IBAM). Um estudo mais apro- fundado da genealogia das instituigées brasileiras dedicadas ao estudo dos proble- mas da adminisiracdo publica certamente mostraria idéntico efeito multiplicador de cada uma dessas organizagées na nossa sociedade (RAP, 1/69, p. 15 — grifos nossos). De alguma forma, porém, percebe-se, na década de 70, sinais de que o treinamento operacional, com forte énfase na estrutura formal das organizagées tinha pouco impacto no processo de tomada de decisGes: A Escola de Servigo Publico do DASP é 0 6rgGo que methor ilustra esse tipo de trei- namento, tanto em termos de natureza quanto de volume de programas realizados. Sua contribuigdo ao aperfeigoamento do servidor piblico brasileiro é consideravel sob varios aspectos mas, virtualmente, irre- levante para o processo decisério governa- mental. Dentre as principais causas disso ressaliam a concepgdo de administragao que tem orientado a Escola, bem como a natureza de sua clientela (RAP, 2/72, p. 47). aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 140 ADMINISTRAGAO PUBLICA NO BRASIL Em fins da década de 40, no entanto, j4 manifesta-se certa reagao ao poder que a burocracia administrativa vinha acumulando no regime de Vargas : A luz dessas idéias, facil é compreender que, relativamente ao administrador, 0 “fato” haja precedido 0 “conceito”. Antes, muito antes de se poder teorizar sobre o conteudo da profissao de administrador, ja as neces- sidades praticas the haviam assegurado um lugar ao sol entre as grandes profiss6es sur- gentes. A fungao precipua de um Técnico de Administragéo nao é dirigir, mas auxiliar a dirigir (RSP, mar./43; A Carreira Adminis- trativa; p. 3 e 4). Jaem pleno regime militar, no final dos anos 60, 0 funciona- lismo clamava por mudangas: Seja qual for a medida a ser adotada, desde a redistribuigao geografica dos funcio- narios, para dar ensejo ao salario regional, G rigorosa hierarquizagdo de suas cate- gorias, mediante o sistema de complexidade intelectual e técnica de suas fungdes, —0 cer- to € que se impoe, urgentemente, uma nova politica salarial para o servigo piblico, rei- vindicagao que ja conquistou, inclusive, o apoio de respeitéveis érgaos da opinido ptiblica do Pais (RSP, abr.-mai.-jun./66; Do concurso Piblico; p. 5). E, na década de 70, reconhecia-se a degradagdo daquela estrutura de incentivos para os servidores publicos que, pensada em outro contexto, dava sinais de esgotamento, tentando, ainda, ressaltar a competéncia do DASP nesta época ja esvaziado: Programa de formagao do Patriménio do Servidor Piblico— PASEP, instituido com a aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. O PARADIGMA DO“PUBLICC 'OMO ESTATAL 145 O proprio instrumento do concurso piiblico, vital na idéia da contratagao por mérito parece desacreditado. Acrescente-se a isto a percepcao de que se torna dificil selecionar se nio ha pessoas suficientemente preparadas: Mais grave que as criticas a enfatizagao dos aspectos meramente formais de muitos concursos, vale ressaltar que a concen- tragdo de recursos humanos e financeiros na selecdo fez-se em detrimento de outras fases da administragao de pessoal, como o treinamento, as quais, nas condigées especificas do sistema educacional brasi- leiro, teriam tido muito maior relevancia paraa profissionalizagao do servigo pitblico (RAP, 1/67, p. 33). Sugere-se que a definigdo do sistema de mérito, ao invés de copiada acriticamente da experiéncia norte-americana (e, diga-se de passagem, da fase preliminar daquela experiéncia, por volta de 1883), tivesse passado pelo que Guerreiro Ramos chamou de “redugao sociolégica” —o foco de agao teria sido 0 treinamento e nao a selegao. O “concursado” e 0 “nao-concursado” eram categorias importantes dentro das repartigdes piiblicas apesar de comegar a surgir sérios questionamentos ao sistema de selegao existente: “Um sistema de mérito de cobertura parcial, mas respeitado, ¢ incompa- ravelmente melhor que um de cobertura integral, desacreditado” (RAP, 1/67, p. 34). Durante os periodos de ditadura, a inexisténcia de barreiras legislativas torna-se um convite e incentivo 4 reforma total: “O resultado das tentativas de reforma global tem sido o formalismo —a distancia entre planejamento e execugao, entre lei e comportamento que cada vez mais destr6i a idéia de reforma” (RAP, 1/67, p. 8). Pouco a pouco, a obra iniciada na década de 30, relacionada 4 implantacdo de carreiras e de um sistema de cargos ¢ salarios para a burocracia governamental, parece desmoronar: Esta nova orientagdo, ilustrada tipicamente por aumentos salariais gerais indiferen-

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