Você está na página 1de 54
Henry James , “ QO DESENHO no TAPETE O DESENHO DO TAPETE Henry James 1896 1° Publicagao Ficha Catalografica © DESENHO DO TAPETE Autor: Henry James (1843-1916) Tradugao 1993 by Companhia das Letras ‘Traducao; Paulo Henriques Brito — Capa: Moema Cavalcanti Preparagao: Stella Weiss — Revisio: Sandra Garcia e Ana Maria Barbosa © Antologia 1993 “O Mestre e suas Ligdes” by José Geraldo Couto, com os seguintes contos originais: The lesson of the master (A Ligao do Mestre) The real thing (A coisa autémtica) Greville Fane (Greville Fane) The death of the lion (A Morte do Ledo) The figure in the carpet (O Desenho do Tapete) E posfécio de José Geraldo Couto (O Mestre e suas Licdes) Tados os direitos desta edicao reservados & Editora Schwarcz. Ltda. R. Tupi 522 Sao Paulo SP 0123-000 Tel: (11) 826-1822 Fax: (11) 826-5523 Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ISBN 85-7164-300-8 James, Henry (1843-1916) A morte do led: Historias de artistas e escritores; tracugo Paulo Henriques Brito. — So Paulo: Companhia das Letras, 1993, 1, Contos norte-americanos I, Titulo. | ‘93-0236 CDD-813 indice para catdlogo sistemético: Contos: Literatura norte-americana Conversio Digital 2020: O conto disponibilizado na web integra a antologia acima e a coletdnea A Morte do Ledo - Histérias de artistas ¢ escritores. Atendido o Acordo Ortogréfico da Lingua Portuguesa na revisdo, cujas eventuais observagdes esti em Notas (N.R.). Produzido sem fins lucrativos visando deficientes visuais; se ndo 0 for, compre um e doe para biblioteca. Eu ja havia feito algumas coisas e ganho alguns tostées — havia mesmo, talvez, tido tempo de comecar a me achar melhor do que julgavam os condescendentes; porém quando reavalio minha trajetéria (um habito nervoso, pois que ela ainda é bem curta), considero meu verdadeiro ponto de partida a noite em que George Corvick, ofegante e preocupado, veio pedir-me um favor. Ele ja tinha feito mais coisas, e ganho mais tost6es, que eu, embora por vezes me desse a impressao de que perdia oportunidades de agir com inteligéncia. Porém naquela noite nao pude deixar de Ihe dizer que ele jamais perdia uma oportunidade de fazer uma gentileza. Fiquei quase em éxtase quando me foi proposto que preparasse para O Meio — o érgio de nossas elucubracées, cujo nome aludia a posico ocupada na semana pelo dia em que ele era posto a venda — um artigo pelo qual Corvick havia se responsabilizado, e cujo tema, bem amarrado com barbante forte, ele colocou em minha mesa. Apossei-me da oportunidade — ou melhor, do primeiro volume dela — e dei pouca atencao a explicacdo que meu amigo me dava para seu pedido. Que explicagao poderia ser mais relevante que 0 fato ébvio de que eu era a pessoa adequada para assumir a tarefa? Eu ja havia escrito a respeito de Hugh Vereker, mas nunca para O Meio, onde me ocupava sobretudo com as damas e os poetas menores. O que estava a minha frente era seu novo romance, um exemplar de divulgacdo, e independentemente do que ele pudesse vir a representar para a reputagao do autor, de imediato percebi qual seria seu efeito sobre a minha. Além disso, eu, que lia todas as suas obras tao logo as obtinha, tinha agora um motivo em particular para querer Ié-las: fora convidado a ir a Bridges no domingo seguinte, e o bilhete de Lady Jane dizia que o senhor Vereker estaria presente. Eu era jovem o bastante para me empolgar com a perspectiva de conhecer um homem renomado como ele, e ingénuo o bastante para achar que a ocasiao exigiria de mim demonstrar conhecimento de sua tiltima publicagao. Corvick, que prometera uma resenha do livro, sequer tivera tempo de lé-lo; entrara em panico ao receber uma noticia que o levara — precipitadamente —, a resolver tomar 0 correio noturno rumo a Paris. Chegara-lhe as mos um telegrama de Gwendolen Erme em resposta a carta em que ele se propunha a ir ajudd-la imediatamente. Eu ja ouvira falar de Gwendolen Erme; jamais a vira, mas tinha 14 minhas ideias a seu respeito, basicamente a de que Corvick haveria de casar-se com ela tao logo falecesse a mae da jovem. A senhora em questao parecia prestes a fazer sua vontade; apds uma decisao terrivelmente equivocada a respeito de um clima ou um tratamento, ela adoecera de stibito ao voltar do estrangeiro. Sua filha, sozinha e assustada, querendo voltar para casa de imediato, mas hesitante diante do risco envolvido, aceitara a oferta de ajuda de meu amigo; e eu tinha a conviccao secreta de que, tio logo o visse, a senhora Erme se recuperaria. JA a conviccao de meu amigo nada tinha de secreta, e era bem diversa da minha. Ele me havia mostrado a foto de Gwendolen, comentando que ela nao era bonita, mas era interessantissima: havia publicado aos dezenove anos de idade um romance em trés volumes. No fundo, que ele resenhara, em O Meio, de modo muito favordvel. Agradeceu a presteza com que assumi 0 encargo e garantiu-me que o periddico em questao me seria igualmente grato; por fim, j4 com a mao na porta, disse: — E claro que vai dar tudo certo. — Percebendo que eu nao entendera bem o sentido de seu comentario, acrescentou: —Quero dizer que vocé nao vai escrever tolices. —Tolices? A respeito de Vereker? Ora essa! Eu, que acho tudo que ele escreve inteligentissimo! — Pois esta ai um bom exemplo do que chamo de tolice! Afinal, o que quer dizer isso de ‘inteligentissimo’? Pelo amor de Deus, tente chegar ao amago do autor. Nao quero que ele seja prejudicado por esta substituicao. Fale dele, se vocé conseguir, como eu o faria. Hesitei por um momento. — Ou seja, devo dizer que ele € de longe o maior de todos... esse tipo de coisa? — Corvick quase gemeu. — Ah, vocé sabe que eu nao faco nenhuma comparagao desse tipo; isto 6 0 bé-é-ba da critica! Mas ele me da um prazer to raro, uma sensacio de... —e ficou a pensar por um momento — “sabe-se Id 0 qué”. Hesitei de novo. — Sensacao de que, afinal? — Meu caro, é justamente isto que Ihe peso que diga! Antes mesmo que a porta batesse, eu jd havia comegado, com o livro na méo, a preparar-me para dizé-lo. Passei metade da noite lendo Vereker; 0 proprio Corvick nao poderia ter feito melhor. De fato, Vereker era inteligentissimo, mas nao era de modo algum o maior de todos. Porém no fiz alusdo aos outros; congratulava-me por haver conseguido, nesta ocasiao, ir além do bé-4-ba da critica. “Ndo estéd mau”, afirmaram com veeméncia na redacao; e, quando o artigo saiu, senti que jé tinha uma base para encontrar- me com o grande homem. Aquilo deu-me confianga por um ou dois dias — e ent&o a confianca desapareceu. Eu o imaginara lendo o artigo com prazer, mas se Corvick nao ficasse satisfeito, como poderia ficar o préprio Vereker? Cheguei a refletir que o ardor do admirador era as vezes ainda mais voraz que © apetite do escrevinhador. De qualquer modo, Corvick mandou-me de Paris uma carta um pouco mal-humorada. A senhora Erme estava se recuperando, e eu nao conseguira exprimir de modo algum a sensacao que Vereker Ihe dava. Minha visita a Bridges levou-me a tomar a decisio de aprofundar-me mais. Hugh Vereker — foi esta a impressdo que me deu — permitia um contato tio desprovido de angulos que me fazia enrubescer ao pensar na pobreza de imaginaco que havia em minhas pequenas precaucoes. Se ele estava bem-humorado, nao era por ter lido minha resenha; alias, na manha de domingo convenci-me de que ele nao a havia lido, embora O Meio tivesse sido publicado havia trés dias e florescesse conforme eu havia verificado — no duro jardim de periédicos que transformava uma das mesas douradas numa espécie de banca de jornais de estado ferrovidria. A impressio pessoal que o escritor me causou foi tal que me levou a desejar que ele lesse meu artigo, e com este fim corrigi, sub-repticiamente, a posigao pouco conspicua da folha em questo em meio as outras. Confesso que fiquei a observar 0 resultado de minha manobra, mas até a hora do almoco meu esforco foi desperdicado. Mais tarde, quando me vi, no decorrer de uma caminhada gregaria, por meia hora — e talvez como resultado de outra manobra — ao lado do grande homem, o resultado de sua afabilidade foi inspirar em mim um desejo ainda mais vivo de que ele viesse a conhecer o texto em que eu fazia justiga a seu talento. Nao que ele parecesse ansiar por justiga; pelo contrario, em nada que 0 ouvira dizer eu havia percebido o mais sutil sinal de rancor — uma nota que minha experiéncia, ainda que pouca, jé me ensinara a identificar. Recentemente seu reconhecimento vinha aumentando, e era agradivel — como diziamos na redagao de O Meio — vé-lo desabrochar. Vereker nao era popular, é claro; mas parecia-me que uma das fontes de seu bom humor era precisamente 0 fato de que seu sucesso nao dependia da popularidade. Nao obstante, havia se tornado, de certo modo, um escritor da moda; a critica, ao menos, tinha acelerado o passo até alcanga-lo. Afinal haviamos descoberto 0 quanto Vereker era inteligente, e agora ele teria de fazer o possivel para compensar a perda de seu mistério. Caminhando a seu lado, sentia-me tentado a dizer-Ihe que aquele desvendamento fora em parte obra minha; e houve um momento em que eu provavelmente o teria feito, ndo houvesse uma das damas de nosso grupo se aproximado do escritor pelo lado oposto e lhe dirigido um apelo um tanto egoista. Fiquei muito desanimado: era quase como se aquela liberdade tivesse sido tomada comigo. De minha parte, eu tinha na ponta da lingua uma ou duas expressdes a respeito da palavra certa dita na hora certa; mais tarde, porém, achei bom nao ter falado, pois quando, voltando do passeio, nos reunimos para tomar cha, vi Lady Jane, que nao havia saido conosco, brandindo O Meio com o brago espichado. A falta do que fazer, ela 0 pegara para folhear e adorara o que lera; e percebi que, assim como um defeito num homem pode muitas vezes ser uma qualidade numa mulher, ela faria por mim quase exatamente aquilo que eu nao conseguira fazer por mim mesmo. “Algumas pequenas verdades agradéveis que precisavam ser ditas”, ouvi-a afirmar, impondo a folha a um casal um tanto perplexo que estava sentado ao pé do fogo. Tomou-lhes de volta 0 periédico quando reapareceu Hugh Vereker, que apés 0 passeio havia subido para trocar alguma pega de indumentéria. “Sei que o senhor em geral ndo lé esse tipo de coisa, mas trata-se de uma ocasido em que realmente vale a pena fazé-lo. O senhor ndo leu? Entdo precisa ler. O homem de fato chegou ao dmago, exprimiu 0 que eu sempre senti”. Lady Jane assumiu um olhar que claramente pretendia dar uma ideia do que ela sentia sempre; porém acrescentou que seria incapaz de exprimi-lo. O articulista o fazia de modo notavel. “Veja aqui, e ali, onde eu sublinhei, como ele consegue captar o sentido”. Ela havia literalmente destacado para ele as passagens mais felizes de meu texto, e se eu achava um pouco de graca naquilo é bem possivel que Vereker também sentisse 0 mesmo. E ele demonstrou 0 quanto aquilo o divertia quando, diante de todos, Lady Jane se propés a ler algo em voz alta. Gostei de vé-lo impedir que ela realizasse seu intento, arrancando-lhe o jornal das mos com um gesto afetuoso. Ele levaria 0 artigo para ler quando fosse se vestir. Foi o que fez meia hora depois — vi-o em sua mo quando subiu para seu quarto. Foi entdo que, pensando em dar prazer a Lady Jane, afirmei que era eu 0 autor da resenha. Dei-lhe prazer, de fato, mas talvez nao tanto quanto esperava. Se o autor ndo era ninguém mais do que eu, entao a coisa nao parecia tao notavel assim. Nao tive eu o efeito de diminuir o brilho do artigo ao invés de lhe acrescentar meu proprio brilho? O humor de Lady Jane era sujeito as flutuagdes mais extraordindrias. Nao importava; 0 unico efeito que me interessava era 0 que 0 artigo teria sobre Vereker, sentado ao lado da lareira de seu quarto. Durante o jantar, tentei encontrar sinais da impressdo que minha critica causara, algum brilho mais alegre nos olhos de Vereker; mas para minha decepgao Lady Jane nao me deu oportunidade de verificd-lo. Eu tinha esperancas de que ela perguntasse em voz alta, 4 mesa, publicamente, se nao tivera mesmo razo. O grupo era numeroso — havia pessoas de fora, também — mas eu jamais vira uma mesa tao grande que impedisse Lady Jane de proclamar seu triunfo. Estava justamente a refletir que esta mesa interminavel me impediria de proclamar o meu triunfo quando a pessoa sentada a meu lado — era a querida senhorita Poyle, a irma do vigdrio, uma mulher robusta e desprovida de modulacées — teve a feliz inspiragdo e a rara coragem de dirigir-se a Vereker, que estava do outro lado da mesa, mas nao diretamente em frente a ela, de modo que, quando ele respondeu, ambos tiveram que se debrugar para a frente. A senhorita Poyle perguntou, em sua santa ingenuidade, 0 que ele achara do “panegirico” de Lady Jane, o qual ela prépria lera — sem, no entanto, estabelecer qualquer ligacao entre o artigo em questéo e seu vizinho de mesa; e quando me esforcei para ouvir a resposta, Vereker, para minha estupefagao, respondeu alegre, com a boca cheia de pio: — Ah, nada mau... a mesma bobagem de sempre! — Ao falar, Vereker olhou para mim, mas felizmente a surpresa da senhorita Poyle encobriu a minha. — O senhor acha que ele nao lhe fez justiga? — Perguntou a excelente criatura. Vereker riu, e tive o prazer de conseguir fazer 0 mesmo. —E um artigo encantador —, disse-nos ele. A senhorita Poyle espichou um queixo que chegava até a metade da Jargura da mesa. — Ah, o senhor é impenetravel! —, alfinetou ela. — Como 0 Saara! $6 estou dizendo que o autor nao percebe... Mas nesse ponto uma travessa foi colocada 4 sua frente, e tivemos que esperar enquanto ele se servia. — Nao percebe o qué? —, insistiu minha vizinha. — Nao percebe coisa alguma. — Entéo ele ha de ser muito obtuso! — Absolutamente —, disse Vereker, e riu de novo. — Ninguém percebe nada. A senhora sentada a seu lado dirigiu-se a ele, e a senhorita Poyle recorreu a mim, — Ninguém percebe nada! —, proclamou ela, animada; respondi eu que muitas vezes esta ideia j4 me ocorrera, s6 que de algum modo eu a interpretava como prova de que a minha percepcao, em particular, era das mais aguadas, Nao lhe disse que o artigo era meu; e observei que Lady Jane, ocupada, 4 cabeceira da mesa, nao tinha ouvido as palavras de Vereker. Apés o jantar passei a evitd-lo, pois confesso que ele me pareceu cruelmente presuncoso, e esta revelacao era dolorosa. “A mesma bobagem de sempre” — meu artigo tdo perceptivo! Entdo irritava-o de tal modo ver que a admiragao de um critico continha uma ou duas ressalvas? Eu 0 julgara cheio de si, e era verdade; tal era a dura superficie de vidro polido que encerrava a joia barata de sua vaidade. Sentia-me deveras irritado, e 0 unico pensamento que me confortava era o de que, se ninguém percebia nada, entao George Corvick percebia tao pouco quanto eu. Este conforto, porém, nao bastou para me fazer entrar, depois que as senhoras se dispersaram, da maneira correta — ou seja, com um paleté de bolinhas, cantarolando —, no saldo de fumar, Subi em direc3o a meu quarto, um tanto abatido; mas no corredor encontrei 0 senhor Vereker, que havia subido mais uma vez para trocar-se. Ele estava cantarolando, com um paleté de bolinhas, e assim que me viu sobressaltou- se. — Meu caro jovem — exclamou ele —, que bom encontré-lo aqui! Creio que 0 magoei sem querer com 0 que disse senhorita Poyle hoje no jantar. Foi s6 meia hora atrés que fiquei sabendo, através de Lady Jane, que 0 senhor é 0 autor da pequena resenha que saiu em O Meio. Argumentei que nado sofrera qualquer ferimento mais grave, mas ele levou-me até minha porta, com a méo em meu ombro, delicadamente tentando localizar alguma fratura; e ao ser informado de que eu ia deitar-me pediu-me permissao para entrar em meu quarto e me dizer em poucas palavras o que representava sua qualificagio de meus comentarios. Sem duvida alguma, ele temia ter me magoado, e esta sua solicitude de repente mudou toda a situagdo para mim. Minha pobre resenha desapareceu no espaco, e as melhores coisas que nela eu dissera pareciam insossas diante daquela presenca brilhante a meu lado. Ainda 0 vejo, em pé sobre o tapete, a luz do fogo, com seu paleté de bolinhas, seu rosto belo e limpido iluminado pelo desejo de ser delicado com minha juventude. Nao sei o que ele pretendia me dizer de inicio, mas creio que meu alivio o comoveu, excitou-o, trouxe- Ihe aos labios palavras vindas das profundezas. Estas palavras exprimiram para mim algo que, como vim a saber depois, ele jamais dissera a ninguém. Sempre reconheci 0 impulso generoso que 0 levou a falar; era uma simples compuncao despertada pela humilhagao que ele infligira sem querer a um homem de letras em posigao inferior 4 sua, o qual, além disso, tivera precisamente a intencdo de elogid-lo. Para compensar, ele dirigiu-se a mim exatamente como um igual, e com base nas coisas que nds dois mais amdvamos. A hora, o lugar, 0 inesperado do gesto, tiveram o efeito de aprofundar a impressao: ele nao poderia ter agido de modo mais eficaz. — Nao sei muito bem como explicar — disse ele —, mas foi justamente o fato de que sua resenha de meu livro tinha o brilho da inteligéncia, foi justamente a sua argticia excepcional que inspirou em mim o sentimento — que costuma acometer-me de longa data, peco-Ihe que me acredite — sob cuja influéncia tempordria eu proferi, ao dirigir-me Aquela boa senhora, as palavras que o senhor, com toda a raziio, achou tao ofensivas. Nunca leio as coisas que saem nos jornais a menos que alguém me obrigue a Iélas; e € sempre o nosso melhor amigo que o faz! Mas antes eu lia, as vezes... dez anos atrs. Eu diria que, de modo geral, eram bem mais obtusas antigamente que agora; seja como for, sempre me surpreendi de constatar que clas distorciam minha despretensiosa intencéio com uma perfeicdo admiravel, que eram absolutamente idénticas tanto quando me davam uma tapinha nas costas como quando me chutavam as canelas. Desde entao, sempre que dou uma olhada nessas resenhas constato que elas continuam com a mesma pontaria de antes: ou seja, sempre errando 0 alvo, de modo delicioso. E 0 que © senhor faz, meu caro jovem, com uma confianca absoluta; e 0 fato de o senhor ser inteligentissimo e de seu artigo ser simpaticissimo nao faz a menor diferenca. E principalmente vendo vocés, jovens em ascensio — disse Vereker, rindo —, que mais claro fica para mim o meu fracasso! Eu ouvia-o com muito interesse, e meu interesse crescia 4 medida que ele falava. — 0 senhor, um fracasso? Meu Deus! Mas entio, qual é a sua ‘despretensiosa intengdo’, afinal? — Serd que eu tenho de lhe dizer o que é, depois de tantos anos e tanto trabalho? — Havia naquela repreensdo amigavel, jocosamente exagerada, algo que fez com que eu, um jovem ardoroso em busca da verdade, corasse até a raiz dos cabelos. Continuo até hoje no escuro, tanto quanto naquele dia, ainda que de certo modo tenha me acostumado 4 minha obtusidade; no momento em questao, porém, o tom alegre de Vereker teve o efeito de fazer com que eu me visse, e provavelmente com que ele também me visse, como 0 mais rematado paspalhao. Estava eu a ponto de exclamar “Ah, nao o diga: por minha honra, e pela honra de nosso oficio, ndo o diga! ”, quando Vereker passou a demonstrar que havia lido meus pensamentos e que tinha la sua prépria viséo da possibilidade de que algum dia nés pudéssemos nos redimir. — Minha despretensiosa intengao é — como dizé-lo? — O motivo basico pelo qual escrevi meus livros, Nao terd cada escritor algo de especifico, a coisa que mais o leva a esforcar-se, a coisa que, nao fosse 0 esforco de realizé-la, ele simplesmente nao escreveria, a propria paixao de sua paixao, a parte de seu trabalho na qual, para ele, a chama da arte arde com mais intensidade? Pois bem, é isso. Fiquei a pensar por um momento — melhor dizendo, acompanhei-o a uma distancia respeitosa, um tanto esbaforido. Eu estava fascinado; o leitor dird que me fascino por pouco, mas nao deixei que ele me levasse de roldao. — Sua explicagdo é sem dtivida bela, mas ela nao explica nada com muita clareza. — Garanto-lhe que estaria bem clara se o senhor pudesse apreendé-la. — Vi que o encanto daquele tema de meu interlocutor transbordava numa emocao tao vivida quanto a minha. — Seja como for — prosseguiu ele —, falo por mim: ha em minha obra uma ideia sem a qual eu nao daria a menor importancia a nada do que fago. E a mais bela e mais plena de todas as intengdes, e sua aplicagao tem sido, c cu, um triunfo da paciéncia, do engenho. Estas coisas, eu devia deixd-las para que Os outros as dissessem; mas o problema é precisamente o fato de que ninguém as diz. Este meu pequeno truque passa de livro a livro, e tudo 0 mais, relativamente falando, so apenas lampejos sobre sua superficie. A ordem, a forma, a textura de meus livros algum dia talvez venham a constituir para os iniciados uma completa representacdo desta ideia. Assim, naturalmente deveria caber a critica procurd-la. Eu diria até — acrescentou meu visitante, com um sorriso —, que caberia a critica encontra-la. Isto me pareceu uma tremenda responsabilidade. — 0 senhor diz que é um pequeno truque? — Isto é apenas modéstia minha. Na verdade, trata-se de um plano sofisticado. — Eo senhor acha que conseguiu realizé-lo? — O modo como 0 realizei é a inica coisa em minha vida que me faz ter um conceito razodvel de mim mesmo. Fiz uma pausa. — O senhor nao acha que deveria... ajudar a critica, s6 um pouquinho? — Ajudar a critica? E 0 que mais tenho feito cada vez que tomo a pena? Nao faco outra coisa senao gritar minha intengao na cara aparvalhada da critica! — Ao dizé-lo, rindo de novo, Vereker pés a méo em meu ombro para dar a entender que nao estava fazendo qualquer referéncia a minha aparéncia pessoal. — Mas 0 senhor fala nos iniciados. Neste caso, tem que haver uma iniciagao. —E o que deve ser a critica, homem de Deus, sendo uma iniciagao? Confesso que corei ao ouvir isto, também; porém esquivei-me repetindo que a explicagao que ele apresentara faltava algo, sabe-se Id o qué, por meio do qual um homem comum pudesse reconhecer as coisas. — Isto é s6 porque o senhor jamais a vislumbrou — retrucou ele. — Se © senhor apreendesse o elemento em questo, praticamente nao conseguiria ver mais nada. Para mim, é algo tao palpdvel quanto o marmore desta chaminé. Além do que, o critico nio é um homem comum: se fosse, o que estaria ele fazendo no jardim dos outros? O senhor esté longe de ser um homem comum, e a raison d’étre de todos vocés precisamente é 0 fato de serem verdadeiros deménios de sutileza. Se meu grande projeto é um segredo, trata-se de um segredo malgré lui” — um evento extraordinario transformou-o em segredo. Eu nao apenas jamais tomei qualquer precaucio no sentido de manté-lo em segredo, como também jamais sonhei com a possibilidade de um tal acidente. Caso contrério, nao teria tido Animo de seguir em frente. Na verdade, sé fui tomando consciéncia da situagao pouco a pouco, e quando dei por mim havia realizado minha obra. —E agora o senhor a admira? — Arrisquei. — Minha obra? — Sua ideia. Seu segredo, E a mesma coisa. — Esta sua constatagao” — replicou Vereker —, é prova de que 0 senhor é mesmo tao inteligente quanto afirmei! Este comentario incentivou-me a dizer que ele claramente nao gostaria de abrir mao deste segredo, e ele confessou-me que este tornara-se de fato 0 maior prazer de sua vida. — Quase chego a dizer que vivo na expectativa de que um dia alguém © descobrird. — Olhou-me como se me desafiasse de modo jocoso: algo no fundo de seus olhos parecia vir a tona. — Mas nao tenho por que me preocupar; isto nao ha de acontecer nunca! — O senhor me provoca como nunca fui provocado antes — afirmei; — inspira-me a determinaco de descobrir 0 segredo ou morrer tentando. — Em seguida perguntei: — Trata-se de uma espécie de mensagem esotérica? Ao ouvir isso, seu rosto exprimiu desdnimo; ofereceu-me a mio como se para despedir-se de mim. — Ah, meu caro, nao € coisa que possa se exprimir em jornalés barato! — Eu sabia, é claro, que ele seria terrivelmente sensivel, mas nossa conversa mostrou-me que seus nervos estavam a flor da pele. Eu estava insatisfeito; continuei segurando-lhe a mao. — Entdo nao usarei a expressiio — disse eu —, no artigo em que algum dia anunciarei minha descoberta, embora pareca-me que sera dificil safar-me sem ela. Mas neste interim, sé para apressar este parto dificil, 0 senhor nao poderia me dar uma pista? — Eu estava bem mais 4 vontade. — Todo meu esforgo consciente consiste em dar pistas — em cada pagina, cada linha, cada letra. A coisa esta ta0 concretamente presente quanto um passaro numa gaiola, uma isca num anzol, um pedaco de queijo numa ratoeira. Esta dentro de cada volume, tal como seu pé esta dentro do sapato. Governa cada linha, escolhe cada palavra, pe o pingo em cada i, coloca cada virgula. — Cocei a cabega. — E algo ligado ao estilo ou ao pensamento? Um elemento de forma ou de sentimento? — Ele apertou-me a mao de novo, indulgente, e senti que minhas perguntas eram obtusas, minhas distingdes eram patéticas. — Boa noite, meu jovem; nao se preocupe com isso. O importante é que me tem afeto. — E um pouco de inteligéncia poderia estragé-lo? — Eu ainda o detinha. Ele hesitou. — Bem, o senhor tem coracao. Serd isto um elemento de forma ou de sentimento? O que afirmo que ninguém jamais mencionou em minha obra é 0 6rgao da vida. — Entendb... trata-se de uma ideia a respeito da vida, uma espécie de filosofia. A menos ... — acrescentei, ansioso por exprimir um pensamento quid ainda mais feliz —, que seja uma espécie de jogo que o senhor esta fazendo com seu estilo, algo que o senhor procura na linguagem. Talvez seja a predilegao pela letra pé! — Arrisquei, irreverente. “Papai, palmeira, polenta... esse tipo de coisa? Ele foi indulgente, como exigia a ocasido: disse apenas que eu nao encontrara a letra certa. Mas jd nao achava mais graca naquilo; percebi que estava entediado. Nao obstante, havia ainda uma coisa que era muito importante eu saber. — Seria possivel para o senhor, com a caneta, exprimi-la com clareza para si proprio? Identificd-la, exprimi-la, formulé-la? — Ah — suspirou ele, quase passional — se eu fosse, com a caneta, um de vocés! — Seria uma grande oportunidade para 0 senhor, é claro. Mas como pode o senhor desprezar-nos por fazer algo que o senhor nao é capaz de fazer? — Nao sou capaz de fazer? — Ele abriu os olhos. — Entéo nao o fiz em vinte volumes? Eu faco a meu modo —, prosseguiu ele. — Vocés que facam segundo 0 seu. — O nosso é terrivelmente dificil —, foi minha débil observacao. — O meu também! Cada um escolhe o seu. Nao ha obrigacao. O senhor nao desce para fumar? — Nao. Quero pensar nessa questo. — Ento o senhor me diré amanha de manha que conseguiu me destrinchar? — Vou ver 0 que posso fazer; amanha é outro dia. Sé mais uma coisa —, acrescentei. Haviamos saido do quarto, e caminhei com ele um pouco pelo corredor. — Esta sua extraordinéria ‘intencao geral’, como o senhor a chama — pois foi essa a definicdo mais clara que consegui extrair do senhor — é entao, por assim dizer, uma espécie de tesouro enterrado? Seu rosto iluminou-se. — F, pode encaré-la assim, se bem que eu talvez nao possa. — Ora, qual! — Exclamei, rindo. — O senhor sabe que se orgulha muito dela. — Eu no pretendia dizer-lhe isto, mas é a alegria de minha alma! ’” — Por ser de uma beleza tao rara, tao grande? Ele fez uma pausa novamente. — A coisa mais bela do mundo! Haviamos parado, e com estas palavras ele afastou-se; mas no final do corredor, enquanto eu o contemplava com um olhar um tanto curioso, ele virou-se e viu minha expresso perplexa. Isto 0 fez sacudir a cabeca e o dedo com uma énfase que me pareceu um tanto ansiosa: — Desista, desista! Aquilo nao era um desafio; era um conselho paterno. Se tivesse em minhas maos um de seus livros, teria repetido meu recente ato de fé, passando metade da noite lendo-o. As trés da manha, insone, pensando além disso no quanto Vereker era indispensavel para Lady Jane, fui pé ante pé até a biblioteca com uma vela. Nao consegui encontrar na casa absolutamente nada escrito por ele. De volta 4 cidade, juntei febrilmente todos os seus escritos; esquadrinhei-os frase por frase. Este trabalho enlouquecedor ocupou-me por um més, durante o qual diversas coisas ocorreram. Uma delas, a ultima, é talvez a primeira que devo mencionar: segui o conselho do autor e abandonei minha ridicula empresa. Aquilo nao estava levando a nada; era pura perda de tempo. Afinal de contas, eu sempre gostara de Vereker, como ele propt observara; e agora o fato novo de que eu ficara sabendo e meu empenho vao estavam prejudicando este meu sentimento. Nao apenas nao consegui encontrar a intengdo geral que procurava como também deixei de desfrutar as intengdes subordinadas que antes me deleitavam. Seus livros perderam o encanto para mim; a frustragdo de minha busca fez-me perder 0 alto conceito em que os tinha. Nao eram mais para mim um prazer adicional, e sim um recurso a menos; pois a partir do momento em que constatei nao ser capaz de seguir a pista que me dera o autor, é claro que passou a ser uma questdo de honra nao usar profissionalmente 0 conhecimento que eu tinha de sua obra. Eu nao sabia nada — nem eu nem ninguém. Era humilhante, porém suportavel; seus livros agora apenas me incomodavam. Por fim, aborreciam- me, e expliquei a confusdo em que me via — de modo um tanto irracional, reconheco — dizendo a mim mesmo que Vereker havia zombado de mim. O tesouro enterrado era uma brincadeira de mau gosto; a intencdo geral nao Ppassava de uma pose monstruosa. O mais importante de tudo isso, porém, é que contei a George Corvick © que me havia ocorrido, e esta informagao teve um efeito tremendo sobre ele. Ele havia voltado, mas infelizmente a senhora Erme voltara também, e por enquanto nao havia possibilidade de seu casamento realizar-se. Corvick ficou muitissimo intrigado com o episddio ocorrido em Bridges; aquilo se coadunava perfeitamente com a impressao, a qual ele tivera, desde 0 inicio, de que havia mais em Vereker do que era visivel. Quando observei que a pagina impressa fora feita para ser visivel, Corvick de imediato acusou-me de estar sendo despeitado por ter sido derrotado. Nosso relacionamento sempre permitia estas agradaveis liberdades. Era precisamente a respeito da coisa a qual Vereker aludia que ele me pedira que eu falasse em minha resenha. Quando retruquei que, com base na ajuda que eu Ihe dera agora, ele proprio com certeza estaria preparado para falar a respeito dela, Corvick reconheceu prontamente que para tal ainda precisava compreender muitas coisas. O que ele teria dito, se tivesse escrito a resenha do novo livro, era que havia sem duvida algo no amago da arte daquele escritor que precisava ser compreendido. Eu sequer tocara nesta questéo; nado admirava que o autor nado se sentisse lisonjeado! Perguntei-Ihe o que ele de fato queria dizer com esta sua extrema sutileza, e ele respondeu, visivelmente excitado: — Nao é para qualquer um! Nao é para qualquer um! — Ele havia agarrado algo pela cauda, e ia puxd-lo para fora, se ia! Fez-me relatar nos menores detalhes a estranha confidéncia de Vereker, e qualificando-me de 0 mais venturoso dos mortais mencionou meia diizia de perguntas que Jamentava nao haver eu tido coragem de fazer. Por outro lado, porém, nao queria que eu Ihe dissesse demais, o que lhe poderia estragar o prazer de descobrir 0 que estava por vir. Quanto ao meu prazer, naquele momento ainda nao estava todo estragado, mas eu sabia que isto no demoraria para acontecer; e Corvick sabia que eu 0 sabia. De minha parte, eu sabia também que uma das primeiras coisas que ele faria era contar minha histéria a Gwendolen. No dia seguinte apds esta conversa, surpreendi-me ao receber um bilhete de Hugh Vereker, que havia se lembrado de nosso encontro em Bridges, segundo ele, ao se deparar, numa revista, com um artigo assinado por mim. — Li-o com grande prazer — escreveu ele — e, sob a influéncia desta leitura, lembrei-me de nossa interessante conversa ao pé da lareira de seu quarto. Como consequéncia, comecei a dar-me conta da minha temeridade ao The comunicar uma informacao que poderia tornar-se um Gnus para o senhor. Findo 0 momento de entusiasmo, nao entendo como pude me empolgar de um modo que me é tao pouco costumeiro. Mesmo em meus momentos mais expansivos, jamais mencionara antes meu pequeno segredo, e jamais voltarei a falar neste mistério. Por acidente, acabei sendo muito mais explicito com 0 senhor do que pretendia ser, a tal ponto que meu pequeno jogo — ou seja, 0 prazer de jogé-lo — foi consideravelmente prejudicado. Em suma: se 0 senhor entendeu o segredo, estraguei meu jogo. Nao desejo de modo algum dar ‘deixas’ a ninguém, para usar 0 termo que julgo ser empregado por jovens inteligentes como o senhor. Trata-se, naturalmente, de uma consideracao bem egoista, e revelo-a ao senhor pelo que possa vir a ser-lhe util. Se quer fazer minha vontade, nao transmita a terceiros minha revelagao. Julgue-me louco; é seu direito. Mas nao diga a ninguém por qué. Em resposta a esse bilhete, na manha seguinte parti o mais cedo que ousei em diregao a casa do senhor Vereker. Naquela época, ele morava numa das casas velhas e honestas de Kensington Square®!, Recebeu-me de imediato, e assim que entrei percebi que nado havia perdido meu poder de diverti-lo. Vereker comecou a rir to logo se deparou com meu rosto, 0 qual sem duivida exprimia minha perturbag3o. Eu fora indiscreto; era grande minha compuncao. — Contei a uma pessoa — fui dizendo, ofegante —, e estou certo de que a esta altura ela ja terd contado a uma outra pessoa! Que é uma mulher, ainda por cima. — A pessoa a quem o senhor contou? — Nao, a outra. Estou certo de que ele falou com ela. —O que nao muda as coisas em nada para ela — nem para mim! Uma mulher jamais descobriria. — Nio, mas ela ha de contar a todo mundo; fara justamente 0 que 0 senhor nao queria que acontecesse. Vereker pensou por um momento, mas ndo estava téo desconcertado quanto eu temera; sentia que, se o mal estava feito, entéo era bem feito para ele. — Nao importa; nao se preocupe. — Prometo fazer o que for possivel para que o teor de nossa conversa nao se espalhe ainda mais. — Muito bem; faca o que puder. — Por outro lado — prossegui —, pode ser que George Corvick, conhecendo a deixa, chegue a alguma descoberta. —B ver para crer. Falei-lhe da perspicdcia de Corvick, sua admiracdo, seu vivo interesse por meu relato; e sem dar muita énfase a divergéncia entre minha avaliagao e a dele, observei que meu amigo julgava entender bem melhor uma determinada questao do que a maioria das pessoas. Estava tio empolgado quanto eu proprio ficara em Bridges. Ademais, estava apaixonado pela jovem; talvez os dois juntos resolvessem 0 enigma. Isto pareceu impressionar Vereker. — Quer dizer que eles vio se casar? — Creio que é 0 que vai terminar acontecendo. — Isto pode ajudé-los — reconheceu ele —, mas temos de Ihes dar tempo! Falei de minhas tentativas renovadas e confessei minhas dificuldades; ele repetiu seu conselho: “Desista! Desista! ”. Estava claro que néo me considerava intelectualmente 4 altura da faganha. Fiquei com Vereker meia hora, e ele foi muito simpatico; mas no pude deixar de julgé-lo um homem de humor instavel. Havia se aberto comigo num momento; arrependera-se em outro momento; e agora tornava-se indiferente. Esta sua inconstancia ajudou a convencer-me de que a tal deixa nao levaria a nada de muito importante. Nao obstante, consegui fazé-lo responder a mais algumas perguntas referentes questio, ainda que com uma impaciéncia indisfargdvel. Para ele, sem diivida alguma, a coisa que nos parecia tao obscura era evidente. A meu ver, devia estar em primeiro plano, como o desenho complexo de um tapete persa. Ele aprovou enfaticamente esta imagem quando a usei, e propés outra: — E 0 fio onde estado enfiadas minhas pérolas! — Se me escrevera 0 bilhete, fora porque na verdade nao queria nos dar a menor pista: nossa obtusidade era algo to perfeito, a sua maneira, que nao se devia perturbé-la. Esta ideia dava-lhe sustento, e se 0 encantamento viesse a se quebrar, seria por obra de uma forca endégena. Quando penso em Vereker neste nosso Ultimo encontro — pois nunca mais vim a falar com ele — vejo-o como um homem que possuia um refiigio protegido onde se divertia. Ao ir embora, fiquei a perguntar-me onde teria ele encontrado a sua deixa. Quando falei a George Corvick da adverténcia que me fora feita, ele me fez sentir que qualquer dtivida quanto a sua discri¢do seria quase um insulto. Ele havia contado a Gwendolen quase de imediato, mas Gwendolen em resposta se comprometera a guardar o segredo. A questdo os absorveria e Ihes ofereceria um passatempo precioso demais para ser compartilhado com as multiddes. Aparentemente, os dois haviam captado de modo instintivo o sentido lidico de Vereker. Porém seu orgulho intelectual ndo era tanto que os tornasse indiferentes a quaisquer esclarecimentos adicionais que eu lhes pudesse proporcionar em relagao ao problema. Eram dotados do verdadeiro “temperamento artistico”, e mais uma vez impressionou-me o poder que tinha meu colega de empolgar-se com problemas estéticos. Ele diria que era uma questo de literatura, ou diria que é uma questo de vida, mas dava no mesmo. Ouvindo-o agora, entendi que falava também por Gwendolen, a quem, tao logo o permitiu a satide da senhora Erme, ele fez questao de me apresentar. Lembro que fomos juntos, num domingo de agosto, a uma casa apertada em Chelsea, e que mais uma vez senti inveja de Corvick por ter ele uma amiga para ajuda-lo a tentar elucidar o enigma. A ela podia dizer coisas que eu jamais poderia dizer a ele. Na verdade, Gwendolen era totalmente desprovida de senso de humor; com seu jeito de manter a cabega inclinada para o lado, era uma dessas pessoas que, como se diz, nos dao ganas de estranguld-las, mas que sdo capazes de aprender o hiingaro por conta propria. Talvez ela conversasse em htingaro com Corvick, pois disse muito pouco em inglés ao amigo de seu namorado. Mais tarde Corvick explicou-me que eu Ihe desagradara por parecer nao Ihes querer dar mais detalhes a respeito do que Vereker me dissera. Justifiquei-me com a observaciio de que, a meu ver, eu ja pensara demais naquele assunto; pois nao chegara até mesmo a conclusio de que o esforgo era inttil e ndo levaria a nada? A importancia que os dois lhe davam irritava-me e inspirava-me diividas venenosas. A afirmativa acima é um tanto biliosa, e 0 que provavelmente aconteceu foi que me senti humilhado ao ver outras pessoas absolutamente fascinadas por algo que s6 me proporcionara mortificagdo. Eu permanecia ao relento enquanto os dois, ao pé do fogo, a luz do lampiao, avancavam na cacada que eu proprio inaugurara com um toque de trombeta. Puseram-se a fazer 0 mesmo que eu fizera, porém de modo mais ponderado e a dois; repassavam a obra do escritor desde o inicio. Nao havia pressa, disse Corvick; tinham todo o futuro pela frente, e o fascinio daquele projeto sé faria crescer; leriam tudo, pagina a pagina, como quem 1é um classico, lentamente inalando aquela obra, impregnando-se dela. Nao teriam se absorvido de tal modo nesta tarefa, creio eu, se nado estivessem apaixonados: © significado secreto do pobre Vereker dava-lhes infinitos pretextos para aproximarem suas cabecas juvenis. Assim mesmo, tratava-se do tipo de problema apropriado as aptidées de Corvick, que nele despertava aquela paciéncia concentrada da qual, se tivesse vivido mais tempo, ele teria fornecido mais exemplos; e exemplos mais frutiferos, era de se esperar. De qualquer modo, Corvick era — para usar a expresso de Vereker — um deménio de sutileza. Haviamos comecado com uma disputa, porém logo percebi que sem minha intervencdo aquela sua obsessdo teria seus maus momentos. Tal como eu, ele seguiria pistas falsas; fecharia as mos em concha sobre novas luzes que seriam apagadas pelo ato de virar a pagina. Ele era exatamente, disse-lhe eu, como os monomaniacos que abragam alguma teoria maluca a respeito do sentido oculto da obra de Shakespeare. Respondeu-me Corvick que se 0 proprio Shakespeare tivesse afirmado que sua obra guardava um sentido oculto, ele acreditaria sem qualquer hesitagao. Mas o caso era bem diferente; s6 quem via sentidos ocultos em Shakespeare era 0 senhor Fulustreco. Retorqui que estava estupefato de vé-lo dar tal valor 4 palavra do senhor Vereker. Em resposta, ele perguntou-me se eu achava que o senhor Vereker era um mentiroso. Nao estava eu pronto para defender a tal ponto meu infeliz argumento, porém insisti que, até prova em contrario, eu diria que a imaginacao do escritor era demasiadamente fértil. Confesso que nao disse — como alids naquela época eu nao sabia — tudo que sentia. No fundo, como diria a senhorita Erme, eu estava intranquilo, na expectativa. No mago de meu estado de incerteza — pois minha curiosidade habitual ainda vivia em meio a suas préprias cinzas — havia a nitida convicc’o de que Corvick terminaria por encontrar alguma coisa em algum lugar. Em defesa de sua credulidade, ele argumentou que de longa data, em suas leituras da obra do genial autor, ele vinha percebendo laivos e insinuagdes — do qué, ele nao sabia; vagas notas errantes de uma melodia oculta. Era justamente isto 0 que havia de raro, de fascinante: pois coadunava-se a perfeicdo com o que eu Ihe havia relatado. Se voltei varias vezes 4 casinha em Chelsea, creio que foi para ter noticias tanto de Vereker quanto da mae adoentada da senhorita Erme. As horas que Corvick ld passava eram, na minha imagina¢ao, como as que passa um jogador de xadrez, silencioso, de cenho franzido, durante todo o inverno, & luz do lampiao, debrugado sobre o tabuleiro, a lucubrar jogadas. A medida que minha imaginagao ia completando este quadro, mais e mais ele intrigava- me. Do lado oposto do tabuleiro havia uma figura mais espectral, 0s vagos contornos de um antagonista, tranquilo e bem-humorado, porém um pouco cansado — um adversério que se refestelava em sua cadeira com as maos no bolso e um sorriso no rosto belo e limpido. Atrés de Corvick havia uma jovem que comecava a me parecer um tanto palida e abatida, e até mesmo, quando ja me familiarizara mais com ela, bela, e que ficava apoiada em seu ombro, observando cada jogada sua. Corvick tomava uma peca e segurava-a por algum tempo acima de um quadrado; depois recolocava-a no lugar de antes com um prolongado suspiro de desanimo. Neste momento a jovem mudava de posi¢do, com um gesto quase imperceptivel, porém inquieto, e voltava um olhar muito fixo, muito demorado, muito estranho, para o adversario indistinto. Ainda no inicio do proceso, perguntei-lhes se nao seria util manter alguma espécie de contato com o escritor. Dadas as circunstancias especiais, com certeza eu tinha o direito de apresentd-los a ele. Corvick respondeu de imediato que nao sentia nenhuma vontade de se aproximar do altar enquanto nao estivesse preparado para o sacrificio. Estava de pleno acordo com nosso amigo quanto ao prazer e & honra daquela cacada; ele derrubaria o animal com seu préprio rifle. Quando Ihe perguntei se a senhorita Erme era uma atiradora tao entusiasmada quanto ele, Corvick pensou um pouco e respondeu: — Nio; tenho vergonha de confessar que ela quer armar uma arapuca. Daria tudo para falar com ele; diz que exige mais uma pista. Chega a ser mérbida quanto a este ponto. Mas tera que jogar limpo: nao vai falar com ele! — Acrescentou, categérico. Teria a questo provocado algum arrufo entre eles? Esta suspeita nao foi dissipada pelo comentario que ele me fez mais de uma vez: — Ela é extraordinariamente, fantasticamente literdria) — Uma vez comentou que ela sentia em itdlico e pensava em maitisculas. — Ah, depois que eu conseguir destrinchd-lo — disse ele também —, entdo vou bater A sua porta. Ora se ndo vou! Pode crer — ainda hei de ouvi-lo dizer: ‘Isso mesmo, meu rapaz; desta vez vocé acertou! ’ Ele hé de me coroar vencedor, com 0 louro da critica. Enquanto isso, Corvick fazia questo de evitar as oportunidades sociais de encontrar-se com o eminente romancista; este perigo, porém, desapareceu quando Vereker ausentou-se da Inglaterra por tempo indeterminado, conforme anunciaram os jornais — foi em direg3o ao Sul, por motivos ligados a satide de sua esposa, que havia muito tempo obrigava-a a levar uma vida retirada. Um ano — mais de um ano — tinha se passado desde 0 incidente de Bridges, mas eu nunca mais o vira. Creio que na verdade eu estava um tanto envergonhado; nao queria adverti-lo de que, ainda que eu tivesse fracassado por completo, alguém conhecido por sua argiicia estava avancando rapidamente em meu encalco. Este escriipulo me fez dancar uma danca complicada; impediu-me de frequentar a casa de Lady Jane, levou-me até a declinar seu convite, gentilmente repetido, para que eu me instalasse em seu belo camarote, apesar de minha indelicadeza. Uma vez divisei-a ao lado de Vereker num concerto, e percebi que fora visto por eles, mas consegui escapulir. La fora, na chuva, chapinhando as pocas da calcada, pensei que no poderia ter agido de outra forma; assim mesmo, lembro que disse a mim mesmo que fora duro, até mesmo cruel. Eu perdera nao apenas os livros, mas também o homem: obra e autor haviam se estragado para mim. Além disso, sabia também qual das perdas mais me doia. Eu gostara do homem mais ainda do que dos livros. Seis meses depois que nosso amigo partiu da Inglaterra, George Corvick, que vivia da pena, assumiu um compromisso profissional que Ihe impunha uma auséncia prolongada e uma viagem um tanto dificil, e que muito me surpreendeu. Seu cunhado havia se tornado diretor de um grande jornal interiorano, e 0 grande jornal interiorano, num voo de imaginacio, resolvera destacar um “enviado especial” para a india. Na “imprensa metropolitana” estava comecando a moda dos enviados especiais, e 0 6rgio ‘em questo devia estar cansado de ser visto como um mero primo da roca. Corvick nao tinha 0 toque necessario, eu sabia, para manusear o grande pincel do correspondente, mas isso era problema de seu cunhado, e 0 fato de uma determinada tarefa estar fora de sua alcada era para ele, no mais das vezes, precisamente um motivo para aceitd-la. Ele estava preparado para ser mais metropolitano que toda a imprensa metropolitana; tomou precaugdes solenes contra 0 provincianismo, e sutilmente afrontou o gosto dominante. Ninguém jamais o percebeu; o alvo da afronta era um principio puramente seu. Além de ter cobertas todas as suas despesas, ele seria adequadamente Pago, e neste ponto constatei que eu poderia ajudd-lo a fechar, pelo gordo livro de praxe, um bom contrato com o gordo editor de praxe. Inferi, naturalmente, que seu 6bvio desejo de ganhar um dinheirinho nao estaria desvinculado da perspectiva de casar-se com Gwendolen Erme. Tinha eu consciéncia de que o principal motivo pelo qual a mae da jovem opunha-se a esta unidio era sua auséncia de recursos financeiros e qualificagdes lucrativas; quando, porém, na tltima vez em que falei com Corvick, mencionei que ele ia afastar-se da jovem, meu amigo exclamou, com uma énfase que me surpreendeu: — Ora, nao somos noivos nem nada! — Nao explicitamente — retruquei —, porque a mie dela nao gosta de vocé, Mas sempre imaginei que houvesse um entendimento secreto entre vocés dois. — E havia, sim, Mas agora nao ha mais. — Foi tudo que ele disse, salvo um comentario adicional no sentido de que a senhora Erme havia se recuperado de modo extraordinario — cujo sentido, interpretei, era 0 de que os entendimentos secretos de nada adiantavam quando o médico nao estava de acordo. Tomei a liberdade de inferir, no intimo, que de algum modo a jovem Ihe teria alienado os sentimentos. Se era uma questo de citime, por exemplo, certamente que ele nao estaria com citimes de mim. Neste caso — deixando- se de lado o absurdo da hipdtese — Corvick néo iria ausentar-se e deixar-nos os dois juntos. Antes de sua partida, havia algum tempo que jd nao faziamos nenhuma alusao ao tesouro enterrado, e o siléncio de Corvick, do qual o meu nao passava de uma emulacao, levara-me a tirar uma conclusao categérica. Ele havia perdido a coragem; seu ardor havia esfriado tanto quanto o meu — ou pelo menos ele dava espac¢o para que eu tivesse esta impressao. Mais do que isso nao poderia fazer; nado poderia suportar o ar de triunfo com que eu reagiria caso ele me confessasse sua capitulacao. Mas meu pobre amigo nao tinha por que nutrir tais temores, pois a esta altura eu jd perdera a necessidade de triunfar. Na verdade, julgava estar sendo magnanimo ao abster-me de criticd-lo por seu fracasso, pois ao sentir que ele havia desistido dei-me conta, mais do que nunca, do quanto eu terminara dependendo dele. Se Corvick de fato se considerava derrotado, eu jamais saberia; se ele fracassara, ninguém mais teria sucesso. Nao era, de modo algum, verdade que eu havia perdido 0 interesse pela questo; pouco a pouco minha curiosidade havia nao apenas voltado a incomodar-me como também se tornado a tortura habitual de meus dias e noites. Sem dtivida, pessoas haverd para quem tais tormentos devem parecer tao pouco naturais quanto os sofrimentos causados por uma doenga; mas pensando bem nao vejo sentido em sequer mencioné-las neste contexto. Para as poucas pessoas, anormais ou nao, a quem minha pequena narrativa se dirige, a literatura era um jogo que exigia pericia, e pericia implicava coragem, e coragem implicava honra, e honra implicava paixao, vida. O que estava em jogo na mesa era uma substancia especial; nossa roleta era a mente, a rodopiar; porém em torno da mesa verde estavamos tao absortos quanto os mais sérios jogadores em Monte Cario. Alids, Gwendolen Erme, com seu rosto alvo e seus olhos fixos, era bem do tipo das damas magras que vemos nesses templos da sorte. Na auséncia de Corvick, percebi o quanto ela dava vida a esta analogia. Reconheco que era extravagante 0 modo como ela vivia para a literatura. Esta paixdo claramente a consumia, e em sua presenga meu interesse parecia quase tépido. Reli “No fundo”: era um deserto no qual a autora se perdera, mas em que ela cavara um maravilhoso buraco na areia — e o mais notavel de tudo era que Corvick conseguira tird-la de dentro dele. No inicio de marco, recebi um telegrama de Gwendolen que me fez ir a Chelsea imediatamente. Quando cheguei, a primeira coisa que ela me disse foi: — Ele descobriu! Ele descobriu! — Era téo profunda sua comosao, percebi, que ela sé poderia estar se referindo a grande questao. — A ideia de Vereker? — A intengdo geral dele. George mandou-me um cabograma de Bombaim. A mensagem estava aberta a sua frente; era enfatica, embora concisa. Eureca. Enorme. — Era tudo — ele sequer assinara, para economizar. Compartilhei a emogéo de Gwendolen, porém estava decepcionado. — Ele nao diz o que é. — Como poderia fazé-lo num telegrama? Ha de mandar uma carta. — Mas como ele pode ter certeza? — Que descobriu mesmo? Ah, tenho certeza que quando a gente descobre, nao tem nenhuma dtivida. Vera incessu patuit dea!“ — A senhorita também é uma vera dea’! por me dar esta noticia! — Minha alegria nao conhecia limites. — Mas quem diria que encontrariamos nossa deusa no templo de Vishnu! Que estranho, George ter retomado sua investigagaéo no meio de tantas ocupacGes diferentes portantes! — Ele nao retomou coisa alguma, eu sei; foi a ideia em si que, depois de permanecer absolutamente intata por seis meses, brotou de repente, num salto, como uma tigresa no meio da floresta. Ele nao levou nenhum livro, de propésito; alids, nem precisava, pois conhece de cor todas as paginas, como eu. Elas todas atuaram sobre ele, em conjunto, e algum dia, em algum lugar, quando ele nem estava pensando nisso, juntaram-se na tinica combinacio correta, formando uma soberba e intricada tessitura. Surgiu 0 desenho do tapete. Era assim que ele sabia que surgiria, e foi esse o verdadeiro motivo — © senhor nao fazia a menor ideia, mas agora acho que ja posso Ihe dizer — que o levou a ir para ld e que me levou a aceitar que ele fosse. Nés sabiamos que esta mudanga resolveria o problema; que a diferenga de pensamento, de ambiente, seria 0 toque necessdrio, a sacudidela magica. Calculamos tudo com uma perfeicao admiravel. Os elementos estavam todos em sua cabeca, e com a secousse"®? de uma experiéncia nova e intensa eles geraram a luz. Ela prépria parecia gerar luz — estava literalmente, facialmente, luminosa. Gaguejei algum comentirio a respeito da cerebracao inconsciente, e ela prosseguiu: — Ele vai voltar imediatamente; s6 faltava isso”. — Para ter com Vereker? — Com Vereker, e comigo. Pense no que ele terd a me dizer! — Hesitei. — Sobre a india? — Qual india! Sobre Vereker, sobre o desenho do tapete. — Mas a senhorita disse que ele certamente dird tudo numa carta. — Ela pensou, como se estivesse inspirada, e lembrei-me que Corvick dissera, muito tempo antes, que seu rosto era interessante. — Talvez nao caiba numa carta, se for algo de ‘enorme’. — Talvez nao, se for uma enorme bobagem. Se ele captou algo que ndo pode ser dito numa carta, ento nao captou nada. O que Vereker me disse foi precisamente que o tal ‘desenho’ caberia numa carta. — Pois mandei um telegrama para George hd uma hora: duas palavras —, disse Gwendolen. — Seria indiscrigio minha perguntar quais eram elas? Ela fez uma pausa, mas por fim disse: — ‘Anjo, escreva’. — Otimo! — Exclamei. — Vou reforgar; vou mandar-Ihe a mesma mensagem. Minhas palavras, porém, nao foram exatamente as mesmas: usei outra em lugar de “anjo”; e a luz do que ocorreu em seguida, meu epiteto revelou- se mais apropriado, pois a carta que nosso viajante enviou tinha o tinico intuito de nos espicacar cruelmente a curiosidade. Magnifico em seu triunfo, ele qualificava de estupenda sua vitéria; mas seu éxtase apenas a obscurecia: 6 apresentaria detalhes depois que submetesse sua ideia a suprema autoridade. Havia abandonado seu cargo, havia abandonado seu livro, havia abandonado tudo, menos a necessidade premente de ir a Rapallo, na costa de Génova, onde Vereker estava passando uma temporada. Escrevi-lhe uma carta que o esperaria em Aden, pedindo-lhe encarecidamente que aliviasse meu suspense. Que ele havia recebido minha carta, indicava-o um telegrama que, chegando a minhas maos apos dias de espera nervosa e na auséncia de qualquer resposta a lacdnica mensagem por mim enviada a Bombaim, claramente deveria ser tomado como resposta a ambas as comunicagoes. Estas poucas palavras vinham em francés comum, 0 francés da época, que Corvick usava com frequéncia para mostrar que nao era pedante. Sobre algumas pessoas, tinha o efeito oposto; mas sua mensagem pode ser parafraseada mais ou menos como se segue: “Tenha paciéncia; fago questéo de ver a cara que vocé vai fazer quando ouvir”! “Tellement envie de voir ta téte”!”’ — Foi o que tive de engolir enquanto esperava sentado. Esperar sentado certamente nao foi o que fiz, pois lembro-me que nessa 6poca eu vivia zanzando da casinha em Chelsea para a minha e vice-versa. Nossa impaciéncia — a minha e a de Gwendolen — era a mesma, porém eu sempre tinha esperancas de que ela saberia mais do que eu. No decorrer deste episddio, gastamos uma quantia vultosa, para nds, em telegramas e taxis, e eu esperava receber noticias de Rapallo tao logo ocorresse 0 encontro do descobridor com o descoberto. A espera parecia imensa, porém um dia, a tardinha, ouvi um fiacre® chegar 4 minha porta com a rapidez que $6 se torna possivel com um pouco de generosidade. Eu vivia com 0 coraco nas maos e, portanto, corri até a janela, de onde vi uma jovem em pé no estribo do veiculo, olhando para minha casa com ansiedade. Ao ver-me, ela brandiu um papel de tal modo que me fez descer num atimo: 6 assim que, nos melodramas, se brandem lencos e comutagées de penas ao pé do cadafalso. — Acabo falar com Vereker. Tudo exato. Abracou-me forte. — “Fico aqui um més”. Foi o que li no papel enquanto 0 cocheiro, do alto da boleia, sorria irénico. Excitado, recompensei-o generosamente; excitada, ela nao opés resisténcia; entao, enquanto o fiacre se afastava, ficamos a andar de um lado para 0 outro, conversando. Ji haviamos conversado juntos muitas e muitas vezes, mas aquela vez foi especial. Imagindvamos a cena em Rapallo, de onde ele teria enviado um bilhete, mencionando meu nome, pedindo permissio para visitd-lo; melhor dizendo, assim eu imaginava a cena, pois tinha mais material para a imaginago do que a jovem, a qual, percebi, bebia minhas palavras quando parévamos de propésito diante de vitrines sem olhar para elas. De uma coisa estévamos certos: se ele ia permanecer em Rapallo por algum tempo para conversar melhor, receberiamos ao menos uma Carta que nos ajudasse a suportar a espera. Entendiamos por que ele resolvera ficar, porém creio que um sabia que o outro odiava ter que esperar. A carta que estavamos certos de receber de fato chegou: era para Gwendolen, e fui visita- laa tempo de poupar-Ihe o trabalho de vir mostré-la a mim. Nao a leu para mim, como era de se esperar; porém transmitiu-me a substancia de seu contetido, que se resumia na extraordindria afirmacdo de que ele s6 Ihe diria exatamente o que ela queria saber depois que se casassem. — $6 depois, quando eu for sua esposa; antes, nio — explicou ela. — E 0 mesmo que dizer — nao 6? — Que eu tenho que me casar com ele imediatamente”! Gwendolen sorriu para mim, e corei de decep¢do com a perspectiva de ter de esperar mais, a qual fez com que de inicio nao me desse conta da surpresa que sentia. Aquilo parecia-me um sinal bem claro de que ele imporia também a mim uma condicao incémoda. De stibito, enquanto a jovem falava-me de mais coisas contidas na carta, lembrei-me de algo que ele me dissera antes de partir. Havia achado 0 senhor Vereker tremendamente interessante; e a sensacéo de conhecer 0 segredo era uma verdadeira embriaguez. O tesouro enterrado era $6 ouro e pedras preciosas. Agora que o tinha diante dos olhos, parecia crescer mais e mais; seria, no decorrer das eras, traduzido em todas as linguas, uma das mais maravilhosas flores da arte literdria. Diante dele, nada parecia mais perfeitamente elaborado. Quando revelado, seu esplendor era tal, que inspirava vergonha; e nao havia outro motivo que nao a infinita vulgaridade de nosso tempo, a corrupcao generalizada do gosto, para que até agora ninguém o tivesse descoberto. Era grande, porém simplicissimo; simples, porém enorme; e esta revelacao era uma experiéncia a parte. Corvick dava a entender que 0 encanto desta experiéncia, 0 desejo de bebé-la, em todo seu frescor, até a ultima gota, era o que o mantinha la, junto a fonte. Gwendolen, radiante, jogando-me estas migalhas, demonstrava o juibilo de perspectivas mais seguras que as minhas. Isto levantava de novo a questéo de seu casamento, e levou-me a perguntar se 0 que ela queria dizer com a noticia com que acabava de surpreender-me, era que estava noiva. — Claro que estou! — Respondeu. — O senhor nao sabia? — Parecia at6nita, mas eu o estava ainda mais, por Corvick me ter dito exatamente 0 contrario. Nao mencionei este fato, no entanto: limitei-me a observar que eu recebera poucas confidéncias dela, e mesmo de Corvick, com relacao a este assunto, e que ademais estava ciente da oposi¢ao de sua mae. Na verdade, intrigava-me a discrepancia entre os dois relatos; mas apds algum tempo senti que o de Corvick era 0 que me inspirava menos dhividas. Isto levava-me a perguntar a mim mesmo se a jovem havia inventado ali mesmo um noivado — ressuscitando um antigo ou fabricando um novo — a fim de chegar a satisfagdo que desejava sentir. Sem diivida, ela teria recursos que me faltavam, mas pouco depois tornou sua posi¢ao um pouco mais inteligivel, dizendo-me: — A nossa situacaéo, naturalmente, era a de nao podermos nos comprometer a nada enquanto mamie estivesse viva. — Mas agora a senhorita pretende dispensar a permissao de sua mae? — Ah, pode nao chegar a isso! — Nao entendi a que, neste caso, a coisa chegaria; ela prosseguiu: — Coitada, talvez ela engula a pilula. Alias, sabe? — Acrescentou ela, rindo — ela vai ter que engolir! — Uma proposigaio cuja verdade eu, em nome de todas as partes envolvidas, reconhecia plenamente. Jamais me ocorrera algo tao aflitivo quanto saber, antes da chegada de Corvick na Inglaterra, que eu nado poderia estar presente para recebé-lo. Subitamente vi-me obrigado a ir 4 Alemanha, onde adoecera gravemente meu irmo mais mogo, o qual, contra minha vontade, fora para Munique com o fim de estudar, com um grande mestre, ¢ bem verdade, a arte de pintar retratos a 6leo. A parenta proxima que lhe enviava uma mesada havia ameagado suspendé-la, caso ele decidisse, com argumentos especiosos, buscar verdades superiores em Paris — pois por algum motivo, para uma tia de Cheltenham, Paris era a escola do mal, 0 abismo. Na época, critiquei este preconceito, e suas profundas consequéncias agora estavam claras — primeiro, porque nao havia salvo o pobre rapaz, que era inteligente, fragil e sem juizo, de uma congestao dos pulmées, e segundo, porque agora obrigava- me a me afastar mais ainda de Londres. Confesso que a ideia que mais me preocupou durante varias semanas ansiosas foi a de que, se estivéssemos em Paris, talvez, eu pudesse correr até Londres para falar com Corvick. Mas esta possibilidade estava fora de questao por todos os motivos possiveis: meu irmio, cuja recuperacaio nos dava a ambos muito o que fazer, ficou doente por trés meses, perfodo durante o qual permaneci todo o tempo a seu lado e ao fim do qual nos vimos absolutamente impedidos de voltar para a Inglaterra. Era necessario levar em conta o problema do clima, e meu irmao nao podia de modo algum ficar sozinho. Levei-o a Merano e lA passei 0 vero com ele, tentando mostrar-lhe, através de meu exemplo, como retomar o trabalho, e alimentando uma raiva bem diversa, que eu tentava nado lhe mostrar. Toda esta situagdo terminou configurando 0 primeiro de uma série de fenémenos tao estranhamente entrelagados que, tomados em conjunto — e eu nao poderia tomé-los de outra forma —, perfazem o melhor exemplo que conhe¢o do modo como, sem diivida para o bem de nossa alma, o destino por vezes impée freios a nossa avidez. Estes incidentes com certeza tiveram implicagdes mais sérias do que a consequéncia relativamente menor de que estamos tratando aqui — embora assim mesmo ela me pare¢a merecedora de certo respeito. Seja como for, confesso que é sobretudo 4 luz deste fato que o feio fruto de meu exilio se me afigura agora. E mesmo no inicio 0 modo como minha avidez foi este o termo que empreguei — me levava a encarar esta minha estada nao foi em absoluto atenuado pelo fato de que, antes de voltar de Rapallo, George Corvick dirigiu-se a mim de uma maneira que no me agradou. Sua carta nao teve, em absoluto, o efeito sedativo que, hoje parece- me claro, fora sua intengdo proporcionar-me, e os acontecimentos que se sucederam entio nao puderam suprir esta deficiéncia. Corvick havia imediatamente comegado a escrever, para uma revista literdéria, um grande estudo sobre a obra de Vereker, que seria definitivo, 0 unico que teria importancia, 0 tnico que existiria, que acenderia uma luz nova, que proferiria —e com que discrigo! — A verdade inimaginada. Em outras palavras, seu estudo destacaria 0 desenho do tapete com todas as suas circunvolugées, reproduzi-lo-ia com todos os seus tons. O resultado, dizia meu amigo, seria 0 maior retrato literdrio jamais pintado, e o que me pedia era apenas que eu lhe fizesse 0 obséquio de nao o importunar com perguntas, enquanto ele nao pendurasse sua obra-prima diante de meus olhos. Fez-me a honra de declarar que, afora o grande homem que lhe servia de modelo, e que pairava nas alturas, indiferente, era eu, mais do que qualquer outro, 0 connaisseur para quem ele escrevia. Que eu me comportasse, pois, e nao tentasse espiar atras da cortina antes da hora de o espetaculo ter inicio: se ficasse quietinho agora, eu me divertiria muito mais depois. Tentei com todas as forgas ficar quieto, mas nao pude conter um salto ao ler no Times, uma ou duas semanas depois de chegar em Munique e, como eu sabia, antes que Corvick tivesse tido tempo de voltar a Londres, a noticia do stibito falecimento da pobre senhora Erme. Imediatamente despachei uma carta a Gwendolen, pedindo-lhe detalhes, e ela escreveu-me que sua mae havia sucumbido a um ataque cardiaco que se anunciava havia muito. A jovem nao disse, porém tomei a liberdade de ler nas entrelinhas de sua carta, que do ponto de vista de seu casamento e também de sua ansiedade, que era t3o grande quanto a minha, aquela era uma solugao mais rdpida do que se esperava, e mais radical do que aguardar até que a pobre senhora engolisse a pilula. Confesso, com toda franqueza, que nessa época — pois recebi outras comunicagdes suas — li coisas singulares nas palavras de Gwendolen, e outras ainda mais extraordindrias em seus siléncios. Agora, com a pena na mao, revivo aqueles momentos, o que redesperta em mim a curiosa sensa¢ao de ter sido, durante meses e contra a minha vontade, uma espécie de espectador involuntario. Toda a minha vida havia se refugiado em meus olhos, que a sucessao de eventos parecia estar decidida a manter sempre bem abertos. Por vezes eu chegava a pensar em escrever a Hugh Vereker e simplesmente apelar para sua misericérdia. Porém no fundo sentia que nao seria capaz de tamanha humilhagdo — e além disso ele certamente, e com toda razdo, me mandaria as favas. ‘A morte da senhora Erme apressou a volta de Corvick, e um més depois ele jd havia se casado “com muita discri¢éo” — tal como, pensei eu, ele pretendia revelar sua trouvaille"” em seu artigo — com a jovem que amava e de quem havia se separado. Uso esta palavra, acrescento entre parénteses, porque em seguida convenci-me de que, quando Corvick enviou a grande noticia de Bombaim, nao havia qualquer compromisso definitivo entre os dois namorados. Nao havia qualquer compromisso entre eles no exato momento em que Gwendolen tentava convencer-me do contrario. Por outro lado, sem diivida ele pediu-a em casamento no dia em que chegou de viagem. O feliz casal foi passar a lua-de-mel em Torquay, e 14, num momento de imprudéncia, 0 pobre Corvick resolveu dar um passeio com sua jovem esposa, ele proprio assumindo as rédeas, Nao tinha ele competéncia para tal, 0 que ficara claro para mim uma vez, havia muitos anos, quando nés dois demos uma volta numa carruagem leve. Foi num veiculo da mesma espécie que levou sua mulher para dar uma volta nas serras de Devonshire, e foi la que freou seu cavalo — o qual, 6 bem verdade, havia disparado — com tal violéncia que os passageiros foram jogados longe; ele caiu de cabeca numa posigao horrivel e morreu na hora. Gwendolen escapou incdlume. Passo rapidamente por cima desta tragédia irremedidvel, do que representou para mim a perda de meu melhor amigo, e encerro a curta histéria de minha paciéncia e minha dor confessando com toda sinceridade que, num pés-escrito a primeira carta que Ihe escrevi ap6s receber a pavorosa noticia, perguntei a senhora Corvick se seu marido nao teria ao menos terminado seu grande artigo sobre Vereker. A resposta veio tio imediata quanto a pergunta: o artigo, que mal fora comecado, nao passava de um melancélico fragmento. Explicou-me ela que nosso amigo, no estrangeiro, mal havia comecado a escrevé-lo quando foi interrompido pela morte da senhora Erme, e que depois, ao voltar, foi impedido de prosseguir pelos afazeres que se fizeram necessarios por causa da calamidade. As primeiras paginas eram as Unicas que chegaram a ser escritas; eram notaveis, eram promissoras, mas nao desvelavam o idolo. Este grande feito intelectual teria, sem dtivida, sido o climax do estudo. Ela nao me disse mais nada, nada que me esclarecesse a respeito da extensio de seus proprios conhecimentos — conhecimentos que, julgava eu, ela agira de modo prodigioso para adquirir. Mais do que tudo, era isto que eu queria saber: afinal, teria ela visto 0 idolo desvelado? Teria Corvick realizado uma cerim6nia privada para uma plateia ansiosa composta de uma s6 pessoa? Pois com que fim, se nao este, se realizara aquele casamento? Nao quis pressiond-la to cedo, muito embora seu siléncio me surpreendesse quando eu recordava o que havia se passado entre nés na auséncia de Corvick. Portanto, foi s6 muito depois, j4 em Merano, que arrisquei enviar-lhe outro apelo, com certa trepidagao, pois ela continuava a néo me dizer nada. “Naqueles breves dias de felicidade”, escrevi eu, “teria a senhora ouvido algo a respeito daquilo que tanto nos interessava”? Disse ‘nos’ A guisa de meia palavra; e ela revelou-se boa entendedora. “Ouvi tudo”, respondeu-me, “e pretendo guardd-lo sé para mim”! Era impossivel nao sentir por ela a mais profunda compaixao; e ao voltar para a Inglaterra manifestei minha consideracao de todas as maneiras a meu alcance. Com a morte da mae sua renda tornara-se satisfatéria, e Gwendolen fora morar num bairro mais conveniente. Porém a perda fora grande, sua aflicdo era profunda; ademais, nunca me ocorreria que ela pudesse encarar o conhecimento de uma pista técnica, do fragmento de uma experiéncia literdria, como algo que compensasse sua dor. Nao obstante, por estranho que pareca, depois de vé-la algumas vezes nao pude deixar de sentir que eu percebera nela algo assim. Apresso-me a acrescentar que j4 me acontecera antes nao poder deixar de sentir, ou ao menos imaginar, algumas coisas; € como em relacao a elas nunca pude ter certeza absoluta, quero crer que, no caso em pauta, minha impressio foi enganosa. Abalada e solitdria, altamente prendada e agora, de luto fechado, com sua graca mais madura e sua dor contida, indubitavelmente bela, ela parecia levar uma vida de uma dignidade e uma beleza singulares. De inicio eu havia encontrado uma maneira de convencer a mim mesmo de que em pouco tempo me seria possivel contornar a reserva com que, na semana apos a catastrofe, ela respondera a minha pergunta, a qual, eu sabia, talvez lhe tivesse parecido intempestiva. Sem duivida, esta reserva causava-me certo espanto intrigava-me mais quanto mais eu pensava nela, mesmo que eu tentasse explicd-la (conseguindo-o, por alguns instantes) imputando-lhe sentimentos exaltados, escrtipulos supersticiosos, uma lealdade refinadissima. Sem dtivida, ao mesmo tempo sua reserva aumentava em muito o preco do segredo de Vereker, por mais precioso que esse mistério ja me parecesse. E desde j4 confesso, sem nenhum pudor, que a atitude inesperada da senhora Corvick foi a gota d'égua que faltava para fazer transbordar minha infeliz ideia, converté-la na obsessao da qual jamais me esquego. Mas isto apenas teve 0 efeito de tornar-me mais ardiloso, mais habil, deixar passar algum tempo antes de retomar o ataque. Havia muito o que especular neste interim, e uma das questées era profundamente absorvente. Corvick s6 revelara seu segredo a sua jovem amiga depois que caiu a tiltima barreira a sua intimidade — so entao exibira seu tesouro. Seria a intengao de Gwendolen, imitando a atitude de Corvick, s6 dar acesso a quem renovasse esta relacdo? Seria o desenho do tapete algo que so podia ser mostrado ou descrito a cnjuges — a pessoas que o amor conduzira a uniao suprema? Volta-me 4 mente a lembranga intrigante de que em Kensington Square, quando comentei que Corvick deveria ter contado o segredo a jovem que ele amava, Vereker dissera algo que tornava mais plausivel esta possibilidade. Talvez ela fosse remota, mas nao o suficiente para impedir-me de cogitar a hipdtese de ter de me casar com a senhora Corvick para obter 0 que eu desejava. Estaria eu disposto a oferecer-lhe este prego em troca da dadiva de seu conhecimento? Ah, isto seria loucura! — Era, ao menos, 0 que eu me dizia nas minhas horas de perplexidade. Neste interim, eu via 0 archote que ela se recusava a passar adiante, extinguindo-se na camara de sua meméria — seus olhos deixando escapar uma luz que brilhava em seu lar solitério. Ao final de seis meses, eu no tinha diivida quanto a perda que esta presenga célida compensava para ela. Haviamos falado muitas e muitas vezes do homem através do qual nos conhecéramos — de seu talento, seu cardter, seu encanto pessoal, a carreira que certamente teria tido, seu pavoroso destino, e até mesmo da clareza com que empreendera aquele grande estudo que teria sido um retrato literdrio supremo, uma espécie de Van Dyck ou Veldzquez critico. Ela havia me transmitido, de modo inequivoco, a ideia de que se sentia impedida de falar por sua obstinagao, sua fidelidade, sua conviccao de que jamais revelaria 0 segredo que nao pudera ser desvendado pela “pessoa certa”, como ela dizia. Porém a hora afinal chegara. Uma noite em que eu ficara a conversar com ela mais tempo do que de costume, pus a mo em seu braco com firmeza. — Mas, afinal, o que é? Ela ja esperava por aquilo, e estava pronta. Sacudiu a cabega, lenta, demorada e silenciosamente; de misericordioso naquele gesto havia apenas 0 fato de que fora mudo. Porém nem isto impediu que ele representasse 0 maior, 0 mais belo, 0 mais frio de todos os “Jamais”! que, no decorrer de uma existéncia que conhecera mais de uma recusa, eu jd recebera em cheio no rosto. Recebi-o, e percebi que, com a rudeza do golpe, meus olhos haviam se enchido de lagrimas. Assim, ficamos iméveis por algum tempo, um olhando para o outro; em seguida, lentamente levantei-me. Perguntava-me se algum dia ela me aceitaria; mas nao foi isto que eu disse, e sim, enquanto alisava o chapéu: — Entio jd sei o que pensar. Nao é nada! Havia em seu vago sorriso um pouco de pena, remota e desdenhosa, dirigida a mim; depois ela falou, com uma voz que ouco ainda hoje. — E minha vida! — Detive-me a porta, e ela acrescentou: — O senhor o insultou! — Refere-se a Vereker? — Ao falecido! Ao chegar & rua, reconheci que sua acusagdo fora justa. Sim, era a sua vida; também isso reconheci. Nao obstante, havia lugar em sua vida para outros interesses. Um ano e meio apés a morte de Corvick ela publicou, em volume tinico, seu segundo romance, A derrota, que li com sofreguidao, na esperanga de nele encontrar algum eco sugestivo, algum rosto a espreita. Tudo que encontrei foi um livro muito melhor do que o que ela havia publicado quando mais jovem, o que me pareceu ser consequéncia das melhores companhias com que andara desde entdo. Tinha uma tessitura bastante intricada — era um tapete com desenho préprio; mas nao era 0 desenho que eu procurava. Ao enviar uma resenha para O Meio, fui informado, para surpresa minha, de que j4 fora publicada uma critica do livro. Quando a revista saiu, nao hesitei em atribuir o artigo, que me pareceu de um. exagero um tanto vulgar, a Drayton Deane, que fora outrora uma espécie de amigo de Corvick, mas que havia apenas algumas semanas travara conhecimento com a vitiva. Eu recebera um exemplar de divulgagao do romance, mas sem dtivida Deane recebera 0 seu ainda mais cedo. Fosse como fosse, faltava-lhe 0 toque leve com que antes Corvick dosava seus enfeites — Deane despejava punhados de lantejoulas a torto e a direito. 10 Seis meses depois foi publicado Direito de passagem, que seria a Ultima oportunidade — embora ainda néo o soubéssemos — de nos redimirmos. Todo escrito durante a estada de Vereker no estrangeiro, o livro fora saudado, em cem pardgrafos, com as tolices de sempre. Levei um exemplar — desta vez um dos primeiros, eu me orgulhava — direto & senhora Corvick. Era a tinica serventia que o livro tinha para mim; deixei 0 inevitavel tributo de O Meio a cargo de algum espirito mais engenhoso e algum temperamento menos irritado. — Mas eu ja tenho — disse Gwendolen. — Drayton Deane teve a bondade de me trazer um exemplar ontem, e acabo de terminar de Ié-lo. — Ontem? Como ele o obteve tao depressa? — Ele recebe tudo muito depressa! Vai resenhé-lo para O Meio. — Ele — Drayton Deane — vai resenhar Vereker? — Eu nao acreditava no que estava ouvindo. — Por que nao? Uma ignorancia vale tanto quanto outra qualquer. — O. comentario atingiu-me, mas em seguida retruquei: — A senhora é que devia escrever a critica! —Nio sou critica”, ela riu. — Sou criticada! Neste exato momento a porta se escancarou. — Ah, eis o seu critico! — La estava Drayton Deane, com suas pernas compridas e sua testa alta: viera para saber 0 que ela achara de Direito de Passagem e para trazer uma noticia da maior relevancia. Os vespertinos acabavam de sair, com um telegrama a respeito do autor da obra em questdo, o qual, em Roma, estava havia alguns dias atacado de malaria. De inicio 0 mal nao parecera grave, porém houvera complicacées, que talvez tornassem a situagdo preocupante. E agora, nas ultimas horas, havia de fato motivo para preocupacao. ‘Ao receber esta noticia, impressionou-me a indiferenca fundamental que as manifestages de solicitude da senhora Corvick nao conseguiram em absoluto ocultar: percebi ento como era completa sua independéncia. Esta independéncia baseava-se no conhecimento que ela detinha, 0 conhecimento que agora nada poderia destruir, e nada poderia modificar. O desenho do tapete poderia ganhar uma ou duas volutas a mais, porém a sentenga jd estava praticamente escrita. O escritor poderia muito bem recolher-se a sua sepultura: em todo o mundo, ela era a pessoa a quem — como se fosse sua herdeira favorita — menos importava que ele continuasse vivo. Isto trouxe- me a lembranca o fato que eu observara, num momento especifico — apds a morte de Corvick: a extingéo de seu desejo de vé-lo face a face. Ela conseguira 0 que queria sem precisar disso. Eu estava certo de que, se nao 0 tivesse conseguido, nao a impediriam de ir sondé-lo pessoalmente aqueles escrtipulos superiores, mais concebiveis num homem que numa mulher, que em meu caso fizeram-me hesitar. Nao que — apresso-me a acrescentar, apesar desta comparagao odiosa — meu caso nio fosse também bastante ambiguo. Ao pensar que Vereker poderia estar morrendo naquele exato momento, fui engolido por uma onda de anguistia — pela consciéncia pungente de que eu, incoerente que era, ainda dependia dele. Uma delicadeza a que me submetia — e que era minha tinica compensacéo — mantinha os Alpes e os Apeninos entre nds, mas a consciéncia de que a oportunidade estava se esgotando levou-me a pensar que, em meu desespero, eu afinal poderia ter ido visita-lo. E claro que, na verdade, nao faria tal coisa de modo algum. Fiquei ali por cinco minutos, enquanto os outros dois conversavam sobre 0 novo livro, e quando Drayton Deane quis saber minha opinido, respondi, levantando-me, que detestava Hugh Vereker e simplesmente nao conseguia 1é-lo. Sai moralmente convicto de que, tio logo a porta se fechasse, Deane me rotularia de superficial demais. Ao menos isso sua anfitria nao negaria. Continuo a relatar em linhas mais gerais os eventos muito estranhos que se sucederam, Trés semanas depois deste encontro Vereker morreu, e antes do fim do ano era sua esposa que morria. Eu nunca chegara a conhecer esta pobre senhora, mas nutria a teoria fiitil de que, se ela sobrevivesse a ele por um intervalo de tempo suficiente para me permitir procurd-la sem maiores constrangimentos, talvez eu lhe dirigisse meu débil apelo. Saberia ela? E, se soubesse, falaria? Era de se esperar que, por mais de um motivo, ela nada tivesse a dizer; mas quando sua morte tornou qualquer aproximacao impossivel, senti que a rentincia era mesmo meu destino. Fiquei trancado dentro de minha obsessio para sempre — meus carcereiros tinham ido embora com a chave. Tal como um homem preso ha muito numa masmorra, nao saberia dizer quanto tempo se passou até a senhora Corvick casar-se com Drayton Deane. Detras das grades, eu havia previsto este desfecho, mas a coisa nao se deu com uma pressa indecorosa, e além disso nossa amizade estava um tanto minguada. Os dois eram “muitissimo intelectuais”, de modo que as pessoas julgavam a unido acertada, porém eu havia compreendido melhor do que ninguém a riqueza de conhecimentos com que a noiva contribuiria. Jamais, num casamento em circulos literérios — diziam os jornais — uma noiva viera acompanhada de dote tao vultoso. Mais que depressa comecei a procurar o fruto daquela alianga — refiro-me ao fruto cujos sinais premonitorios seriam visiveis no marido. Cénscio do esplendor do presente nupcial que Ihe dera sua cénjuge, esperava eu que ele desse mostra do aumento de seus recursos. Eu sabia quais eram seus recursos antes — seu artigo sobre Direito de passagem deixara isso bem claro. Como ele estava agora exatamente na situagao em que eu, ainda mais exatamente, nao estava, todos os meses eu folheava os periédicos, 4 procura da mensagem ponderosa que o pobre Corvick no pudera entregar, e pela qual seu sucessor era agora responsdvel. A vitiva e esposa teria quebrado, junto & lareira reacesa, 0 siléncio que s6 uma vitiva e esposa poderia quebrar, e Deane ficaria tio inflamado com aquele conhecimento quanto ficara Corvick antes, e Gwendolen em seguida. Sem dtivida ele estava inflamado, mas pelo visto aquele fogo nao seria ptiblico. Em vao eu vasculhava os periédicos: Drayton Deane enchia-os com paginas exuberantes, porém guardava para si a pagina que tantos anseios despertava em mim. Escrevia sobre mil e um assuntos, mas jamais sobre Hugh Vereker. Sua pratica era revelar verdades que os outros ou “ndo ousavam dizer”, segundo ele, ou entao nao percebiam; mas jamais revelou a tinica verdade que importava a mim, naquele tempo. Encontrava-me com 0 casal nos tais circulos literdrios de que falavam os jornais: j4 deixei claro que era apenas nestes circulos que todos nés féramos feitos para circular. Gwendolen estava mais do que nunca comprometida com eles desde que publicara seu terceiro romance, e fiquei definitivamente estigmatizado ao manifestar a opinido de que esta obra era inferior A que a precedera. Seria pior porque ela agora andava em piores companhias? Se seu segredo era, tal como me dissera, sua vida — fato este que se manifestava em sua beleza cada vez maior, um ar de privilégio consciente que, corrigido com sagacidade por delicados atos de caridade, dava-Ihe uma aparéncia de distincéo — nao tivera ainda influéncia direta sobre sua obra. Este fato era mais um motivo — tudo era mais um motivo — para eu ansiar ainda mais pelo segredo, e o revestia de um mistério mais fino, mais sutil. at Assim, era de seu marido que eu nao conseguia tirar os olhos: meu assédio era tamanho que poderia té-lo constrangido. Cheguei mesmo a puxar conversa com ele. Saberia? Teria recebido a informagéo de modo perfeitamente natural? Essa pergunta zumbia na minha cabega. Claro que ele sabia; caso contrario nao reagiria a meus olhares de modo tao estranho, Sua mulher Ihe dissera o que eu queria, e ele achava graca de minha impoténcia. Nao ria — nao era 0 tipo de homem que ri: seu sistema era confrontar minha irritagdo, de modo a me obrigar a expor-me da maneira mais indisfarcada, com uma falta de assunto tao enorme quanto sua testa alta e nua. Eu sempre terminava me afastando convicto de que eram inteiramente despovoadas estas vastas regides, que pareciam completar-se uma a outra geograficamente e simbolizar, juntas, a auséncia de voz e de forma que caracterizavam Drayton Deane. Simplesmente faltava-lhe arte para usar 0 que ele sabia; 0 homem era literalmente desprovido da competéncia necesséria para levar adiante a tarefa do ponto em que Corvick havia parado. Fui ainda mais longe — foi este o tinico lampejo de felicidade que tive. Convenci-me de que esta obrigacéo nao Ihe dizia nada. Ele nao estava interessado, nado se importava. Sim, confortava-me a ideia de que ele era parvo demais para desfrutar a alegria que nao me era dado gozar. Continuava tio parvo quanto antes, e isto tinha para mim o efeito de aprofundar ainda mais a gloria dourada que envolvia o mistério. Naturalmente, tinha eu também de levar em conta a possibilidade de que sua esposa Ihe houvesse imposto condigées e exigéncias. Acima de tudo, tinha de lembrar a mim mesmo de que, com a morte de Vereker, o principal incentivo desaparecera. Ele permanecia como um nome a ser honrado pelo que fosse descoberto — mas nao mais como uma pessoa que sancionaria a descoberta. Quem, sendo ele, teria esta autoridade? O casal teve dois filhos, mas 0 segundo custou a mae sua vida. Depois deste golpe, julguei divisar mais uma vaga possibilidade. Em meu pensamento, saltei sobre ela de imediato, mas por uma questio de delicadeza esperei algum tempo, e por fim minha oportunidade surgiu, de forma lucrativa. Um ano depois da morte de sua mulher, encontrei Drayton Deane no salao de fumar de um pequeno clube do qual nds dois éramos sécios, mas onde havia meses — talvez por ir ld raras vezes — eu nao 0 via. A sala estava vazia e a ocasido era propicia. Deliberadamente ofereci-lhe, para resolver aquele assunto de uma vez por todas, aquela vantagem pela qual, parecia-me, ele vinha esperando havia muito tempo. — Como conhecia sua falecida esposa ha mais tempo até que o senhor — comecei —, peco-Ihe que me deixe dizer-lhe algumas coisas. Eu teria 0 maior prazer de lhe dar qualquer espécie de compensaciio que o senhor julgar adequada em troca da informagao que lhe foi com certeza transmitida por George Corvick, informaciio essa que, como 0 senhor sabe, 0 pobre rapaz recebeu, num dos momentos mais felizes de sua vida, diretamente de Hugh Vereker. Ele me encarava como um desses bustos usados pelos frenologistas"”. — Informacao — O segredo de Vereker, meu caro —a intengao geral de suas obras, 0 fio em que ele enfiava suas pérolas, 0 tesouro enterrado, 0 desenho do tapete. Ele comegou a enrubescer; os mimeros das bossas cranianas comegaram a se tornar visiveis. — 0s livros de Vereker tinham uma intencdo geral? — Foi minha vez, de ficar perplexo. — O senhor est me dizendo que nao sabia? — Por um momento pensei que ele estivesse zombando de mim. — Sua esposa sabia; como ja Ihe disse, quem contou a ela foi Corvick que, ap6s infinitas pesquisas, chegou, com a aprovacao de Vereker, a entrada da caverna. Onde fica a tal caverna? Depois do casamento, ele contou — e com exclusividade — a pessoa que, quando as circunstancias se repetiram, sem diivida contou ao senhor. Estarei equivocado ao presumir que ela revelou ao senhor, como um dos mais elevados privilégios que Ihe cabiam como seu marido, a informacao que, apés a morte de Corvick, somente ela detinha? Tudo que eu sei é que esta informagao é infinitamente preciosa, e 0 que eu gostaria que o senhor entendesse é que se, por sua vez, o senhor a revelar a mim, estaré me prestando um favor pelo qual lhe serei eternamente grato. A esta altura ele jd estava escarlate; tenho a impressdo de que ele comegara achando que eu estava louco. Pouco a pouco foi entendendo minha argumentacao; eu, por minha vez, estava de olhar fixo, surpreso. Entao ele disse: — Nao sei do que o senhor esté falando. — Ele nao estava fingindo; era a verdade, a absurda verdade. — Ela nao lhe contou...? — Nada a respeito de Hugh Vereker. Eu estava estupefato; a sala girava a meu redor. A coisa era boa demais para isso! —Palavra de honra? — Palavra de honra. Que diabo deu no senhor? — Rosnou ele. — Estou estupefato. Estou decepcionado, Eu queria extrair a informagao do senhor. — Mas ela no esté em mim! — Ele riu, constrangido, — E mesmo se estivesse...” — Se estivesse, 0 senhor me diria, ah, me diria, sim, por uma simples questao de humanidade. Mas acredito no senhor. Entendo. Entendo! — Prossegui, cénscio, agora que a roda dera uma volta completa, de minha grande ilusdo, da minha visio errénea da atitude do pobre homem. O que eu entendia — mas isto eu nao podia dizer — era que sua esposa nao o julgara merecedor daquela informacGo. Isto parecia-me estranho, j4 que ela o julgara merecedor de ser seu marido. Por fim, conclui que ela certamente nao teria se casado com ele por sua inteligéncia, e sim por outro motivo. Até certo ponto, ele agora estava informado, porém ainda mais aténito, mais desconcertado: levou alguns instantes para comparar minha historia com suas lembrangas reavivadas. O resultado de suas meditagées foi ele me dizer, a seu modo um tanto débil: — E a primeira vez que ouco falar deste assunto, Creio que o senhor deve estar enganado se imagina que minha mulher tinha algum conhecimento irrevelado — e menos ainda irrevelavel — a respeito de Hugh Vereker. Se fosse algo de relevancia literéria, ndo havia a menor divida de que ela faria questo de usé-lo. — Pois ela o usou. Ela propria o fez. Ela me disse pessoalmente que este conhecimento era sua ‘vida’. Mal acabei de pronunciar essas palavras e arrependi-me de ter falado; ele ficou palido, como se eu o tivesse golpeado. — Ah, sua ‘vida’...! — Murmurou ele, desviando o rosto. Minha compungio era genuina; pus a mao em seu ombro. — Peco-lhe que me perdoe... cometi um erro. O senhor nao sabe 0 que eu julgava que soubesse. Se soubesse, o senhor poderia ter-me prestado um favor; e eu tinha motivos para achar que o senhor poderia ajudar-me. — Motivos? — Repetiu ele. — Que motivos? — Olhei-o bem; hesitei; pensei. — Venha sentar-se comigo aqui que eu Ihe conto. — Levei-o até o sofa. Acendi outro charuto e, comecando com o episédio em que, pela tinica vez, Vereker desceu das nuvens, relatei-Ihe toda a extraordinaria sequéncia de acidentes que, apesar de meu vislumbre inicial, mantinha-me até aquele momento no escuro. Contei-Ihe, em poucas palavras, tudo que contei aqui. Ele ouviu-me com atengao crescente, e percebi, para minha surpresa, através de suas interjeigdes, suas perguntas, que, afinal de contas, ele nao era indigno da confianga de sua esposa. A sibbita revelaco de que sua mulher nao confiara nele tinha agora um efeito perturbador sobre Deane; mas vi que 0 choque imediato pouco a pouco foi morrendo, e depois ressurgiu em forma de ondas de espanto e curiosidade — ondas que prometiam, eu percebia perfeitamente, explodir no final com uma ftiria semelhante 4 das minhas marés mais altas. Hoje, como vitimas de desejo insatisfeito, ele e eu somos exatamente iguais. O estado do pobre homem € quase um consolo para mim; ha mesmo momentos em que parece ser minha justa vinganga. indice 0 DESENHO DO TAPETE Ficha Catalogratica Capitulo 1 Capftulo 2 Capitulo 3 Capitulo 4 Capitulo 5 Capitulo 6 Capitulo 7 Capitulo 8 Capitulo 9 Capitulo 10 Capitulo 11 (Raison d’étre: do francés: razao de ser (N.R.) a a Malgré lui: do francés: apesar dele mesmo (N.R.) Kensington Square: bairro de Londres (N.R.) ( Vera incessu patuit dea: do latim: uma verdadeira deusa foi revelada (N.R.) 0 1 Vera dea: do latim: verdadeira deusa Secousse: do francés: agitar, agitagdo (N.R.) (7) Tetlement envie de voir ta téte: em francés, traducao literal, é algo co @ tua cabeca”, mas 0 sentido é “segure a sua ansiedade por enquanto” (N. “Estou ansioso para ver ) a Fiacre: carruagem antiga de aluguel (N.R.) Connaisseur: do francés: conhecedor (N.R.) 0) -Trouvaille: do francés (por extensao): descoberta (N.R.) (1 Prenologista: praticante da pseudociéncia frenologia a qual entende que as protuberancias do cranio indicam aptidées mentais e tracos de personalidade do individuo; esta desacreditada hoje (N.R.)

Você também pode gostar